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Figueiredo, Pedro José de. Arte da grammatica portugueza – T02

[Arte da Grammatica Portugueza]

Annotações,
que pareceram convenientes para melhor
entendimento desta arte.

Proemio.
Definição, e divisão da grammatica.

N.º 1.
Nota (a) de fol. 5.

Grammatica é vocabulo latino de origem grega da voz
γραμμα, que quer dizer letra, como significando arte, que tem por
fundamento as letras de que se formam as palavras, que esta arte
tem como materia propria de suas indagações. Não só comprehende
o escrever bem, senão tambem o bem fallar, como disse
Quintiliano, liv. I. cap. 5. Começou rude, e imperfeita como
todas as artes. Nestes ultimos tempos acha-se muito aperfeiçoada
pela mediante applicação com que se tem dado a seu estudo muitos
de conhecida erudição.

N.º 2.
Nota (b) de fol. 5.

Aindaque seja a ordem natural das partes da Grammatica,
a que seguimos, de orthografia, prozodia, etymologia, e syntaxe,
porque primeiro está tratar das letras, depois das syllabas,
em terceiro lugar das palavras, e ultimamente da oração, comtudo
grammaticos mui doutos, seguindo com razão a ordem da
doutrina, tratam em primeiro lugar da etymologia, depois da
prozodia, e ultimamente da syntaxe; e omittem de ordinario em
seus compendios a orthografia; e assim o pratiquei tambem a
exemplo delles.115

Livro I.
Etymologia.

Parte I.

Capitulo I.

N.º 3.
Nota (a) de fol. 6.

Tẽ para si a maior parte de nossos grammaticos, com Leão,
e Barreto em suas orthografias, ser o articulo sómente o e a, e
quando dizemos do, da, ao é pela synallefa a combinação deste
mesmo articulo com preposições. Chamo ao articulo signal, ou
distintivo das propriedades do nome, que são genero, numero,
e relação, e esta é como traz Laercio, liv. VII. Cap. I. num. 39.
a definição de Diogenes, αρδρου δι ισι σοιχειον λογο πτωτικον, διοριξον
τα γινη των, χαι τοσ αρθμοσ, οιον, ο, η, το, οι, αι, τα.
Se todos elles concordam em não haver declinações nas linguas
vulgares, e que é o articulo o meio de as supprir, designando
as relações nos nomes para corresponder ás dezinencias, ou terminações
variadas das linguas, que as tem; como podem ser
pelo articulo determinadas estas relações, não sendo elle mais
que o, e a, que só denota o genero, e o numero? E se as taes
preposições, que lhes precedem, são as que indicam as relações
dos nomes, onde fazem menção dellas com taes propriedades estes
grammaticos, quando tratam das particulas?

Já para obviar a estas difficuldades admittiram na lingua
italiana o Conde de S. Martinho e de Vische, Osservationi gramaticali,
e poetiche, Varchi no seu dialogo intitulado l’Hercolano
pag. 138. e Buommattei, Della lingua toscana uma terceira
entidade, que chamaram segnacazo, que verdadeiramente é o
mesmo articulo. Comtudo sem occorrerem estas duvidas é esta a
doutrina hoje recebida geralmente de nossos grammaticos, mas
nem a sua opinião me parece ser bem fundada, nem a minha
a elles tão mal como talvez cuidam.

Tomou a lingua portugueza o articulo da grega, e esta parece
o tomou da hebrea, como primeira e quasi mãi de todas
as outras; senão é a que desta lhe veio immediatamente polo trato,
e communicação, que desde o tempo do imperador Elio
116Adriano tiveram com os daquella nação os antigos hespanhoes;
assimcomo da vinda de muitos hebreos a Hespanha, e a outras
partes da Europa viria tambem introduzirem-no em suas linguas
os italianos, os francezes, os hespanhoes, etc. Ambas aquellas
linguas tiveram o articulo, e era de grandissima importancia,
se bem careceram delle os latinos, segundo Macrobio no seu livro
de differentiis, et societatibus graeci latinique verbi, não sem
gravissimo defeito, ou imperfeição, como apezar de Quintiliano
o julgar desnecessario, liv. I. das Instituições Oratorias cap. 6.
mostrou particularmente Frederico Sylburgio no seu compendio
de syntaxe da lingua grega, cap. 15, e João Clerico na arte

Critica tom. I. parte 2. secç. 1. cap. 2. A grega formava os nomes
com terminações variadas nos casos, e na hebrea eram immutaveis,
ou sem declinação como os nossos, sem outra mudança
mais que do singular para o plural; e nellas era elle o signal
ou nota de distinção para o numero, genero, e relação do nome.

Sendo pois o articulo na origem grego, ou hebreo, que
muito o queiramos regular pela semilhança de qualquer daquellas
linguas como da matriz donde emanou. Assim o sentiu o nosso
João de Barros acommodando-lhe declinação em sua grammatica
pag. 101, a quem seguiu Contador de Argote part. I.
cap. I. Por onde não me pareceu bem fundada a doutrina geral
dos grammaticos emquanto a esta parte do articulo, aindaque
esteja hoje mui bem recebida, antes a considero confuza, e difficultoza,
principalmente aos que aprendem, na correspondencia
das linguas antigas com as vulgares. As opiniões não se devem
condemnar logo, só por parecerem novas: esta que adopto, postoque
seja estranhada de muitos, já foi seguida por alguns: convem
examinar-se com maduro juizo para se acertar entre muitos
no methodo, que mais se encaminha á verdade. Tome cada um
a que quizer, não me proponho compor duvidas, nem discutir
opiniões; é livre a qualquer escolher a que mais lhe agrada.

N.º 4.
Nota (b) de fol. 6.

Com a differença, que noto no articulo, sei que escandalizei
a certo grammatico para levantar contra mim renhida controversia.

A divisão de articulo definido, e indefinido é de muitos
francezes, e italianos, e não foi desconhecida do nosso Contador
de Argote; seguio-a Hugh Blair na sua excellente obra,
Lectures ou Rhetoric and belles lettres, tom. I. onde a sustenta
com boas razões, e exemplos, e Lindley Murray na sua
117grammatica filosofica, adoptada hoje em todas as escolas de Londres;
pareceu-me conforme com a razão, natural, intelligivel,
bem fundada, e mui propria do methodo, que me propuz em
toda esta grammatica.

N.º 5.
Nota (*) de fol. 8.

A divizão dos nomes pelas letras, em que acabam, para distinguir
as suas differentes relações, é de Barros em sua grammatica
pag. 102; adoptei-a até com os mesmos paradigmas, não
por admittir declinação nos nomes, como os gregos, e latinos,
porque todos sem nenhuma mudança são em cada numero iguaes
entre si, tirada a differença de singular a plural, mas por acabarem
unicamente todos nestas letras, como trazem em suas orthografias
Leão pag. 35, Vera pag. 27 v. e 43, Pereira pag.
21, e Barreto cap. 47, pag. 189, e julgar, que ficariam por
este modo com maior clareza as regras da formação dos pluraes.
Veja-se a nota segunda da syntaxe.

N.º 6.
Nota (a) de fol. 9.

Entre as prerogativas da lingua portugueza, porque muitos
a louvam, e entre todos especialmente, Severim de Faria no
2.º de seus discursos varios a pag. 75 v. é uma o não se terminar
nenhuma dicção em letra muda, com vantagem a todas as
cultas da Europa, o que muito concorre para a suavidade, e numero
de sua pronunciação; porquanto estas letras fazem aspereza,
quando com ellas se acaba qualquer palavra.

N.º 7.
Nota (b) de fol. 9.

A regra de formar os pluraes dos nomes que acabam no
dithongo ão ensinam em suas orthografias Leão, pag. 30, Vera,
pag. 25 v., e Barreto cap. 48. pag. 192, e se deduz da lingua
castelhana pola grande analogia, que tem com a nossa. Se o
singular que os portuguezes acabam em ão for ácerca dos castelhanos
em an, como: capitan, capitanes, gavilan, gavilanes
formam o plural entre nós em ães; os que acabarem em on,
como: sermon, sermones, opinion, opiniones, nós acabamos em
118ões; e os que elles acabarem em ano, como: vilano, vilanos,
aldeano, aldeanos
, tem o plural em ãos; e os meramente portuguezes,
que não houver em castelhano, sempre acabaremos
em ões, por haver nisto respeito ao antigo uso de se terminarem
estes nomes em om.

N.º 8.
Nota (a) de fol. 10.

Os antigos formavam os pluraes dos adjectivos, que tem no
singular il breve, accrescentando-lhes a syllaba es; e a cada
passo se encontra inutiles, dociles, faciles, esteriles, volatiles,
aquatiles
, etc; assim Camões eclog. VI. E do rio os saxatiles
lamprêas
: o que provinha de acabarem tambem muitos delles
no singular em e, dizendo: inutile, facile, difficile, etc.

N.º 9.
Nota (b) de fol. 10.

Nos escritores de melhor nota em o plural do nome dom,
ora se encontra dões ora dons; o que procedia, como advertiram
em suas Orthogr. Leão pag. 31. v., e Vera pag. 26 v. de
que esta palavra dom quando era prenome de dignidade, titulo
de nobreza, a que lhe corresponde no latim dominus, fazia no
plural dons; e na significação de mercê ou dadiva, e que vem
de domum, fazia sempre dões. Hoje em ambas as accepções dizemos
indifferentemente dons.

N.º 10.
Nota (c) de fol. 10.

Aindaque aos nomes alferes, cáes, arráes, ourives, se dê
no plural a mesma terminação do singular, tambem se encontra
de alferes, alferezes, em Castanhozo, historia de D. Christovam
da Gama, cap. 15, Cam. Luziad. Cant. IV. Est. 27, Mauzinh.
de Queb. XI, est. 23. Souz. Vid. do Arceb. liv. VI, cap.
15; e ainda em Barret. Dizendo uma vez na Eneid, liv. XI.
est. 111.

Os alferezes volscos vão armar-se.

De caes acha-se em Barros caezes, Dec. IV, liv. 4. cap. 8. De
arráes, arraezes em uma carta delRei D. Diniz inserta nas Provas
119da Hist. geneal. tom. I. pag. 95; no Foral de Lisboa por
elRei D. Manoel fol. 64; e em Leão, Chron. de D. Joaõ I.
cap. 72. Do mesmo modo ao nome ourives davam no plural
ourivizes, Ordenaç. de D. Affonso V. Rezende, Miscelan. Pag.
164, que depois mudaram em ourivezes, como ainda escreveram
Barros, Dec. III. Liv. 4. cap. 4. e Dec. IV. liv. 9. cap. 5. Heit.
Pint. II. Dialog. V. cap. 23. Albuquerq. Cõment. part. II, cap.
26. Leão, Repertor; e antes de todos se encontra no livro vermelho
de D. Affonso V. tom. III. Dos Inedit. Da Academia Real
das sciencias pag. 428. Provinha esta mudança de se acabarem
antigamente estes nomes no singular em ez, e se dizia: alferez,
caez, arraez, ourivez
.

N.º 11.
Nota (d) de fol. 10.

Em sua grammatica apontou Barr. o nome mel, entre os
que careciam de plural; porem Leit. D’Andrad. em sua Miscel.
dial. 4. fol. 96. não teve duvida escrever melles; e antes delle
Leon. da Costa na IV. Georgica, tinha já duas vezes escrito
melles; de que encontravam exemplo em Azurara, Tomada de
Ceut. cap. 5; Pina. Chron. de D. João II, cap. 44; e Rezende,
Chron. do mesmo Rei, cap. 117, o que mostra estar em
uso antes de Barr., e assim se lê no Foral de Lisboa fol. 35.
Barreto dando-lhe igualmente plural, o emendou, dizendo: Os
soltos meis, e em outro logar: Os meis fragantes. Eneid. I. 99,
e 100; a quem imitou o suave Almeno, quando no liv. I. das
Metamorfoz. escreveu a pag. 9,

Do verde azinho os loiros meis gotejam.

N.º 12.
Nota (a) de fol. 11.

Ao adjectivo commum a davam de ordinario nossos classicos
uma só terminação tanto no singular, como no plural, ou concordassem
com os nomes masculinos, ou com os femininos, escrevendo
quasi sempre: gente commum, Barr. Decad. I. liv. 8.
cap. 8. opinião commum, Barr. Decad. II. liv. 6. cap. 1.
Paiv. Serm. part. II. pag. 392. Vieir. Serm. tom. V. pag.
504; natureza commum, Lucen. Liv. IV, cap. 8, e liv. VIII,
cap. 9; vida commum, Arraes Dial. V. cap. 20; quietação commum,
Brit. Chron. de Cist. liv. II, cap. 20; lingua commum,
Barr. Decad. III. liv. 5. cap. 5., Lucen. liv. VII. Cap. 5; razões
120communs, Paiv. Serm. part. I. pag. 99. v.; insignias communs,
Leão, Chron. de D. Affonso I. pag. 45; penas communs,
Arraes, Dial. VII, cap. 18; pouzadas communs, Souz. Vid. do
Arceb. liv. II. cap. 4; peregrinação commum, D. Hilarião, Voz
do Amado, cap. 41, pag. 226, etc. Muitos aindagora á sua
imitação o praticam, aindaque nos mesmos classicos encontrem
tambem exemplos da terminação feminina, e neste uso mui bem
os auctoriza o adverbio, que deste mesmo adjectivo se deriva,
que, devendo ser, como todos os outros, formado da terminação
feminina, é commummente, e não commuamente.

N.º 13.
Nota (a) de fol. 12.

Ao principio não tinha a lingua portugueza, como a hebrea,
superlativos regulares acabados em issimo, assimcomo ainda
hoje carece de comparativos á excepção de maior, menor, e
outros poucos deduzidos do latim. E o primeiro, que os introduziu,
ao que eu saiba, foi Sá de Miranda.

N.º 14.
Nota (a) de fol. 13.

O superlativo asperrimo-a, que é muito expressivo, e de
grande viveza, foi frequentemente usado de nossos classicos, tanto
poetas como de proza. Apontarei sómente alguns exemplos
entre os muitos que nelles se encontraram. Cam. Luziad. cant. III.
est. 34, e cant. V. est. 12, Pereir. Elegiad. cant. V. est. 26,
Brit. Monarch. part. I. liv. 4. cap. I, e Chron. de Cist. liv. I,
cap. 2 e 7, Orient. Lusit. Transform. liv. I. pag. 93 v., e liv.
III. pag. 270, o auct. do Prim. e Honr. part. I. cap.12, Souz.
Hist. part. II. liv. I. cap. 18, Cost. Georg. IV, Sá de Menez.
Malac. liv. I. est. 56, Barret. Eneid. liv. VI. est. 124, Cardoz.
Agiol. tom. II. pag. 216, Castr. Ulyss. cant. III. est. 64, e
cant. IV, est. 62, e outros muitos; porem nos mesmos Cam.
Luziad. cant. III. est. 116, Pereir. Elegiad. cant. I. est. 51.
Brit. Chron. de Cist. liv. I. cap. I. Souz. Vid. do Arceb. liv. I.
cap. 18, e na Hist. part. I, liv. III. cap. 34, assimcomo em
Caminh. Epigram. 41, Cout. Dec. VII. liv. 6. cap. 6. Dec. V,
liv. V, cap. 9, Cardoz. Agiol. III. pag. 439, Cost. Eclog. III,

Leit. Miscel. dial. XIV, pag. 391 etc. se acha algumas vezes
asperissimo-a, mizerrimo-a é de Cam. Luziad. cant. V, est. 48,
Ferr. de Vasconcel. Ulysip. act. II. scen. 7., Leão, Chron. de
D. João I, cap. 10, Orient. lusitan. Liv. I. pag. 92 v., Barret.
121Eneid. liv. I. est. 48. e liv. IV. est. 28, Cardoz. Agiolog. tom.
II. pag. 92 etc.

Celeberrimo-a é de Coelho, Chron. do Carmo, liv. I. cap.
22, Mariz. Dial. II. cap. 6, Brit. Monarch. part. I. liv. I.
cap. 7. Orient. Luzit. Transform. liv. I. pag. 93v., Andrad,
Chron. de D. João III, part. IV. Cap. 128, Cardoz. Agiol. tom.
II. Pag. 580, e 587, e tom. III. Pag. 402 etc. Saluberrimo-a
encontra-se em Leão, Descripç. cap. 12, Brit. Chron. de Cist.
liv. IV. cap. 4. Manoel Thom. Insulan. liv. IV. est. 58, Cardoz.
Agiolog. tom. III. pag. 672. A’ imitação destes superlativos
adoptaram nossos classicos muitos outros superlativos irregulares
tirados tambem do latim, como acerrimo-a de que usou
Mariz, Dial. III. cap. 2. Ceita, Quadrag. I. pag. 97 v., Mirand.
Tryunf. da Cruz part. I. liv. I. cap. I., Barboz. de Carvalh.
Peregrin. Christ. Dial. III. pag. 259, Leit. Miscel. Dial. X.
pag. 298, Manoel Thom., Fenix da Lusit. liv. IX, est. 59,
Card. Agiol. tom. II. pag. 572 etc; pauperrimo-a, que se acha
em Fr. Diogo de S. Miguel, Exposiç. da Regr. de Santo Agostinho,
trat. I. cap. 12. fol. 16 v., Arraes, Dial. VII. cap. 7.
Barboz. de Carvalho, Peregr. Dialog. II., Mascarenh. Veriat.
VIII. 124. Vasconc. Notic. das couzas do Brazil liv. I. nº 119; l
iberrimo-a em Navarro, Commentar. rezolutor. pag. 105;
Prosperrimo-a em Mascarenh. Veriat. VIII. 122; teterrimo-a,
Barboz. de Carvalh. Peregr. Dial. II, Queirós, Vid. de Bast.
liv. II. cap. 6, Fernand. Alm. Instruid. tom. II. cap. I. doc. 23.
n.º 34, e Souz. de Maced. Eva e Ave, part. I. cap. 21, n.º 7;
integerrimo-a em Manoel Thom. Fenix da Luzit. liv. IX. est.
59, Cardoz. Agiol. tom. II. pag. 572, Fernand. Alm. Instruid.
tom. II. cap. I. doc. 25. num. 89; uberrimo-a em Barboz. de
Carvalh. Peregr. Dial. III. Cardoz. Agiol. tom. III. pag. 672;
pulcherrimo-a em o mesmo Cardoz. Agiol. tom. II. pag. 537 e
605, e tom. III. pag. 400 etc. E assim deduziram os adverbios
asperrimamente Couto Dec. V. liv. 4. cap. 10, Brit. Chron. de
Cist. liv. IV. cap. 27, Brand. Monarch. part. IV. liv. 13. cap.
24, Cardoz. Agiol. tom. II. pag. 52; acerrimamente Ceit. Quadrag.
I. pag. 25 v., Barboz. de Carvalh. Peregr. Dial. III.,
FR. Leão, Benedictina Lusit., tom. I. trat. 2. part. 5. cap. 3.
Cardoz. Agiol. tom. III. Pag. 89: pauperrimamente Brit. Chron.
de Cist. liv. IV. cap. 32.

N.º 15.
Nota (b) de fol. 13.

A maneira de se formarem os superlativos notabilissimo-a,
122terribilissimo-a, abominabilissimo-a
provem de que alguns dos
adjectivos, que agora acabamos em vel usavam os antigos acabarem
em bil, e diziam: affabil, terribil, abominabil, e assim
tambem vizibil, invizibil, impossibil, incansabil, insensibil,
instabil, vendibil, invencibil, immobil
, etc, de que se encontra
grande copia de exemplos em Camões, e em escritores de boa
idade da nossa literatura; ainda hoje permanece este uso em habil,
inhabil, debil, fiabil, ignobil
. Alguns superlativos tambem
se acham deste genero, em que se conserva o v dos pozitivos em
vel, por este modo escreveu Cout. Dec. IV. liv. 10. cap. 3, e
Freir. Elog. de Prim. e Honra, cap. 3. § 4. notavelissimo-a;
Vieir. Serm. tom. I. col. 1053; terrivelissimo-a; Granad. Compend.
part. II. cap. 7. abominavelissimo-a; Fr. Thom. de Jesus,
part. I. trabalh. 22; Souz. Vid. do Arceb. liv. I. cap. 24. mizeravelissimo-a;
Barret. Flos Sanct. part. II. pag. 401. admiravelissimo-a,
etc; Cardoz. Agiol. I. 57. Amavelissimo-a; Abreu,
Avizos pera o Paço, pag. 5. imitavelissimo-a.

N.º 16.
Nota (c) de fol. 13.

Dos superlativos facilimo-a, difficilimo-a, fragilimo-a tomados
tambem da lingua latinam fazem menção em suas Orthografias
Leão, e Barreto cap. 7., e temos delles muitos exemplos;
porem mais conforme á regra escreveu Arraes, Dial. I. cap. 18,
Cout. Dec. VII. liv. 10. cap. 15, Gouvea, Jornad. do Arceb.
liv. II. cap. 8, Correa, Conspiraç. disc. III. conc. 3. § 7, e
disc. XVIII. conc. 2. § 3., e Torr. de Lim. Sucess. de Portug.
part. I. cap. 4. facilissimo-a; Heit. Pint. part. I. Dial. IV. cap. 8;
Arraes, Dial. VII. cap. 6; Mello, Carta de Guia pag. 54 v;
Ribeir. de Maced. tom. II. Vid. da Imperatr. Theodor. liv. II.
pag. 267. difficilissimo-a: e delles deduziu o mesmo Heit. Pint.
part. II. Dial. III. cap. 6, Brit. Monarch. Lusit., e na Chron.
de Cist. liv. I. cap. 25, Vasconcel. Sitio de Lisboa, Dial. II.
pag. 231, e na Art. Milit. part. I. pag. 79 v. Cout. Dec. V.
liv. 5. cap. 9. Cardoz. Agiol. tom. I. pag. 275, e outros mais
facilissimamente. Do pozitivo humil, ou humile, que não está
agora em uso, a que depois deram Lucena, liv. IX. cap. 20.
Fr. Thom. de Jesus part. I trabalh. 10. Souz. Vid. do Arceb.
liv. V. cap. 11., Barboz. de Carvalh. Peregrin. Dial. III e
Dial. V. pag. 276, Leit. Miscel. Dial. XVIII, pag. 568. Vieir.
Serm. tom. V. pag. 184, e Mello Cart. Centur. II. Cart. I; humilissimo-a,
a que corresponde o adverbio humilissimamente, usado
123por Vieir. Cart. tom. III, dirivou Cam. Luziad. cant. IV.
est. 54 o superlativo humilimo-a, de que parece ter elle sido auctor,
a quem seguiu Man. Thom. na Fenix liv. VII. est. 106.
Leão se lembra delle em sua Orthograf. pag. 45, como tambem
do superlativo similimo-a; e Pinheir. No Panegyric. num. 59.
adoptou dissimilimo-a.

N.º 17.
Nota (d) de fol. 13.

A formação dos superlativos que acabam em cissimo, que
correspondem aos pozitivos tambem acabados em z provem de se
terminarem antigamente os pozitivos em ce, de que temos exemplos,
em falace, atroce, felice, infelice, fugace, tenace, veloce,
etc; cujo uso prevaleceu em alguns até nós, e ainda hoje
é muito frequente escrevermos no plural felices, infelices, etc.

N.º 18.
Nota (e) de fol. 13.

Dos superlativos maximo-a, minimo-a, optimo-a, pessimo-a
derivado do latim, bemque se encontrem alguns exemplos, usavam
nossos primeiros escritores mui raras vezes, porque commummente
diziam de grande, grandissimo-a; de bom, bonissimo-a;
de máo, malissimo-a; e o superlativo minimo-a ainda trabalhava
Leão por fazer vulgar no seu tempo. Comtudo o superlativo
pessimo-a é o mais antigo delles, pois se acha já usado em
Fr. Marc. Chron. logo no prologo da part. I; e Heit. Pint.
part. I, dial. 3, cap. 5, etc: e maximo-a mais parece deduzido
do pozitivo magno-a, a que melhor corresponde.

N.º 19.
Nota (a) de fol. 14.

Em Leão acha-se postero, que parece ser o pozitivo de que
se forma posterior, postremo-a, na Orthografia regra 18, a pag.
60 v., na Orig. da ling. portug. cap. 4. pag. 18; e na Chronica
delRei D. Fernando; mas não tenho apontado exemplo de
outro, que delle se servisse.124

N.º 20.
Nota (a) de fol. 15.

A maior parte de nossos grammaticos tẽ para si serem isto,
isso, e aquillo, verdadeiras terminações dos pronomes este, esse,
e aquelle, ás quaes pela negação da concordancia chamam neutras;
e tambem ao adjectivo todo dão tres formas, que são todo,
toda, tudo; e é isto particular idiotismo, de que mais nos certificaremos,
se repararmos, que nesta terceira forma não mudavam
estes pronomes de ordinario para com os antigos, pois nelles
se encontrará esto, esso, aquello, e ao mesmo pronome elle
tambem accrescentavam terceira forma, dizendo: elle, ella,
ello
; como sempre usaram Fern. Lop. Galvão, Azurara, Auctor
da Chron. do Condestav. cap. 32. pag. 28. Rezend., Bernard.
Ribeir. etc. Como no portuguez da mesma sorte que nas outras
linguas vulgares não ha nomes neutros, com quem elles hajam
de concordar, alguns entendem estas terceiras formas como substantivos
particulares, a que se podem unir adjectivos, que tem
só genero masculino, e carecem de plural.

N.º 21.
Nota (a) de fol. 18.

Nos antigos escritores encontram-se a cada passo femininos
quazi todos estes nomes. Assim Fr. Marc. fez feminino dia; Barr.
clima; Heit. Pint. maná, diadema, mappa, e planeta; o mesmo
Barr., e Thom. de Jes. Fizeram fem. cometa; e assim do
mesmo modo scisma nos mesmos Barr., e Thom. de Jes., e em
Barreiros, Brito, e Souza, etc.

N.º 22.
Nota (b) de fol. 18.

O nome arvore mais pela imitação do genero que trazia da
lingua castelhana, que da latina, tambem se acha masculino
em Fern. Lop. Bernard. Ribeir. Christ. Falcão, Moraes, Lobato,
e Alvar. do Orient, etc; e como tal o apontou Leão Orig.
cap. VII. De pyramede tambem se encontra exemplo como masculino.125

N.º 23.
Nota (a) de fol. 19.

Tribu tambem apontou como masculino Leão Orig. VII.,
e neste genero o usaram Barr., Ferr. de Vasconcel., Cam.,
Brito, Lucen., Arraes, Paiva, Ceita, etc.; e ultimamente Vieir.
em muitos lugares, nemque algumas vezes o faça feminino.

N.º 24.
Nota (b) de fol. 19.

Barreto, a exemplo de Fern. Lop. do auctor da Chron.
do Condestavel, e Arraes, fez sempre masculino o nome linhagem
na significação de prole, ou estirpe, como se pode notar
nos cinco lugares, em que delle se serviu na Eneida; e ainda
hoje se toma ora masculino, ora feminino o nome personagem.

N.º 25.
Nota (c) de fol. 19.

Fim tinha para com os antigos terminação feminina; assim
usa delle Sá de Miranda, Fr. Gonsal. da Silva, Heit. Pint. Bernard.
Ribeiro, Barr., Castanheda, Goes, e outros; porem alguns
exemplos se encontram nelles em contrario, principalmente
em Barros; e desta alternativa, com que o tomaram já masculino,
já feminino, nasceu escrever Leão cap. VII. Orig., e Barret.
Orthogr. cap. VII, que era ambiguo, ou commum de dous.
O nome finis em latim tinha tambem ambos os generos, como
com a auctoridade de Accio, Varrão, Lucrecio e outros observou
Nonio Marcelo, e Agellio com a de Virgilio.

N.º 26.
Nota (a) de fol. 20.

Não há em nossa linguagem palavras acabadas na syllaba
us, ou são mui raras, se exceptuarmos alguns nomes proprios,
como: Jesus, Mattheus, etc; assimcomo em geral são tambem
muito poucos, os que no singular acabam na letra s, por ser
esta a caracteristica dos pluraes. O nome jus, aindaque trazido
inteiro do latim, está adoptado, e foi usado por Vieira mais de
uma vez.126

N.º 27.
Nota (a) de fol. 23.

E’ necessario observar ácerca dos verbos auxiliares para intelligencia,
do que dizemos, o que não sei se já foi advertido, que
nem sempre os verbos, que servem de auxiliares são auxiliares. Assim
o verbo haver não é um só verbo, mas considera-se por tres
modos, ou por melhor dizer, ha tres verbos neste só verbo, e
mui differentes entre si; porque um é o verbo haver auxiliar, que
sem significação propria determina a dos outros, que ajuda a
conjugar, como quando dizemos: hei amado, ou hei de amar,
haveis, ou havereis recebido, onde se vê, que não faz mais
que determinar a significação dos dous verbos amar, e receber;
outro o verbo haver activo, que corresponde ao verbo habeo latino,
que significa ter, possuir, alcançar, como: hei medo,
haviam, ou houveram copia de riquezas; e o terceiro o verbo
haver impessoal, que significa permanecer, existir. O mesmo se
dá nos verbos ser, e ter, porque sendo ambos auxiliares, e por
conseguinte sem significação propria, o primeiro tambem é o
verbo substantivo ser com a mesma significação de sum dos latinos,
como: somos muitos, eramos felizes; e o segundo é tambem
verbo activo com significação de possuir, derivado de teneo
latino, como: tinhamos necessidade, temos razão, de que nascem
os compostos: abster, conter, deter, entreter, manter, obter,
reter, suster
, que o seguem na ordem de sua conjugação irregular.
Assim quando se encontrem os dous semilhantes na mesma
voz, como: hei havido, havia havido, tenho tido, tivera
tido
, saiba-se, que só os primeiros são méros auxiliares, e os
segundos são os verbos haver, e ter activos, e em sua natural
significação.

N.º 28.
Nota (b) de fol. 23.

Como nossa lingua tem tido muitas mudanças e alterações
nos differentes tempos desde sua origem atégora, não poucas
vozes achamos nos verbos com variedade; por exemplo no verbo
ser diziam em tempos anteriores som na primeira forma do prezente
do indicativo, depois emendaram são, como ainda se pode
observar em muitos escritores até o reinado de D. João III; na
segunda diziam eres; na mesma do plural sodes, como se encontra
na Chronica do Condestavel cap. 28; e na terceira som,
que nesta voz era terminação commum em todos os verbos á
127imitação dos hespanhoes, e pelo mesmo modo no conjunctivo seê
em lugar de seja, etc. Por não sermos prolixos em couzas desgostozas,
e talvez estranhas, apontaremos unicamente, como se
praticou atéqui, o mais notavel em algum verbo, ou de que faziam
especial uso, os que se nos propõem como exemplares do
estilo correcto, por não ficar ignorado, quando se nelles encontrar,
dos que os começam a ler, e não para se adoptarem semilhantes
archaïsmos, que posto fossem bem acceitos, e do uso em
outro tempo de auctores gravissimos, em cujos escritos devemos
aprender a perfeição da linguagem, são já hoje de todo esquecidos,
e como taes com razão reprovados.

N.º 29.
Nota (a) de fol. 27.

A conjugação promiscuamente dos dous auxiliares haver, e
ter serve para outra vez senão repetir, para estes mesmos verbos,
quando não são auxiliares; mas como lhes não correspondam em
tudo as suas vozes, convem para facil intelligencia dos meninos,
que os mestres em cada um delles apontem as que sómente lhes
competem como auxiliares, e estão ao prezente em uso, e as
que são ou pertencem aos activos. As vozes ha, havia, houve,
e as mais da terceira forma do plural em todos os outros tempos
do verbo haver são, as que elle só tẽ, na significação de ser
porque então, como disse, é impessoal. E note-se tambem um peculiar
idiotismo da lingua portugueza, que consiste em concordarmos
os nomes no plural com estas vozes, que parecem do singular;
pois nunca diremos bem Hão, haviam, ou houveram
muitos homens
; mas sim: Havia muitos homens; houve muitos
annos; houvera, haveria
, ou haja muitas cidades, etc. e assim o
usaram constantemente todos os classicos, não se encontrando em
nenhum delles exemplo em contrario, o que faz grande força;
nem poderemos defender de erro, os que hoje sem advertencia,
e por falta de doutrina o não praticam, em que homens mui
doutos de ordinario cahem sem nenhuma desculpa muitas vezes,
como achamos cada dia em livros destes nossos tempos: E pelo
mesmo modo nas vozes de circumloquio tambem diziam sempre:
Tinha havido muitos; tivera, ou tivesse havido alguns, e não
tinham, ou tiveram etc: e ainda no infinitivo o verbo, que lhe
precedia, e de que era regido, sempre o usavam no singular, e
como impessoal, no que sem duvida devem ser imitados: Assim
escrevia Heit. Pint. part. I. dial. V. cap. IV. Nas cidades, e
cortes dos principes pode haver muitos rodeados de negocios, que
128sejam mui virtuosos
; e outra vez, ibid. cap. VIII: Repugna haver
em uma alma no mesmo tempo duas consolações contrarias

etc: Mariz dial. III. cap. 2: Não deixa de haver alguns dignos
de credito
: Brito, Chronic. de Cister, liv. IV. cap. 16. E nunca
em sua caza deixava de haver pobres
: Souza, Hist. de S. Dom.
part. I. liv. I. cap. III: Podia haver muitos, e poderozos contradictores;
e ibid. cap. XXIV; Não ha, nem pode haver aquellas
antiquissimas escrituras
: Vieira, Serm. tom. VII. pag. 216.
col. 1: Tambem no prezente pode haver homens tão grandes como
os que já foram, e ainda maiores
: Id. tom. II. Cart. I.
Nem por isso deixa de haver outros meios menos custozos de a
divirtir
; e muitos outros exemplos, que poderiamos apontar,
que a cada passo estão arguindo o nosso descuido, e imperfeição,
ou, por melhor dizer, o nosso erro.

N.º 30.
Nota (a) de fol. 54.

Em lugar destas vozes desconhecidas dos antigos, se encontrará
nelles sempre neste tempo estê, estês, estê, estêmos, estêis,
estêm
. Aindaque hoje estão fora do uso, he bem que se conheçam,
quando nelles se lerem; pois são mui frequentes em Castanhed.,
Barr., Rezend., Sá de Mirand., Heit. Pint., Arraes,
etc: grande copia de exemplos, e ainda em Cam.; mas já este
disse esteja, e estejais pela primeira vez por causa da rima.

N.º 31.
Nota (a) de fol. 59.

Este imperativo val é de Bernard. Ribeir. Men. e Moç. liv.
III. cap. 12.

N.º 32.
Nota (b) de fol. 59.

Ha exemplo deste imperativo em D. Fr. Anton. de Souz.,
manual de Epicteto, em Thom. de Jes., Lobo, Primavera, e
Vieira, postoque o terminam de outro modo, dizendo quere,
como traz Argote; e assim se acabava tambem quere e terceira
forma do singular no prezente do indicativo.129

N.º 33.
Nota (a) de fol. 66.

Deste segundo modo usaram constantemente nossos antigos
escritores, e vamos sómente diziam na voz do conjunctivo,
como nelles se pode observar; mas já em Souza se encontra
sempre vamos no indicativo, e nisto o imitaram alguns, dos que
se lhe seguiram, como Sá de Menez., Barret., etc: em Vieira
sempre se encontrará imos, imitando os primeiros; porem hoje
diz-se indistinctamente de um, ou de outro modo. Tambem se
acha is no prezente do indicativo em lugar de vais, differente
do outro is, que por syncope tomavam no plural por ides; e no
imperativo diziam pelo mesmo modo i no singular.

N.º 34.
Nota (a) de fol. 69.

Os antigos, mais cuidadozos em guardar regularidade nas
conjugações, escreviam a maior parte destes verbos sem esta mudança,
dizendo: acude, construe, consume, destrue, fuge, sume,
etc: o qual uso, postoque acabou mais depressa nas vozes
do indicativo, prevalecem por muito tempo depois nos imperativos,
onde assim o costumaram com frequencia.

N.º 35.
Nota (b) de fol. 69.

Tambem esta irregularidade era desconhecida dos antigos
em alguns destes verbos, nos quaes sempre escreveram tanto no
prezente do indicativo, como no imperativo luze, produze, reluze,
o que ainda praticou Camões. Ao contrario dentre os primeiros
faziam irregular ao verbo seguir, e seus compostos em
todas as mais vozes do prezente, e diziam sigue, consigue, etc,
e no imperativo em que tambem se acha sigue até em Vieira.
Os verbos mentir, e sentir, e o seu composto consentir tinha por
imitação dos italianos a inflexão mento, sento, consento. Sá de
Mirand. Camões, e Alvares do Oriente muitas vezes escreveram
senta em lugar de senta por causa da rima, e Heit. Pint.
deu viste ao imperativo do verbo vestir.130

N.º 36.
Nota (c) de fol. 69.

Chama-se este verbo irregular de todas as conjugações, por
não pertencer a nenhuma das tres regulares: Os antigos faziam-no
irregular da segunda, e diziam poer, e poemos, poeis, poendo,
e da mesma sorte os seus compostos; como ainda é facil notar
em muitos dos seus tempos.

N.º 37.
Nota (a) de fol. 72.

Delicado, Adag. apezar desta defectibilidade disse feça pag.
159. Cheire-me a bolsa, feça-me a bocca.

N.º 58.
Nota (b) de fol. 72.

O verbo aprazer, que por afereze se costuma escrever em
algumas vozes sem a, dizendo: prouve, prouvera, prouvesse, etc,
não está ao prezente em uso em todos os tempos; os que deixo
apontados todos são auctorisados com exemplos de classicos, que
por brevidade ommito. Nelles se encontrarão tambem, fazendo
este verbo pessoal, vozes da primeira e segunda forma, assim:
Ferreir. Eclog. 4. disse aprazes; Sá de Miranda, Vilhalpand. act.
3. scen. 3. aprazemos; Cort. Real, Naufrag. cant. 9. aprazieis;
Barr. prolog. da Dec. II. aprouvermos; e do mesmo modo vozes
do plural, como em Sá de Mirand. cart. 3; Barr. Dec. I. liv.
6. cap. 1; Ferreira liv. 2. cart. 3; Caminh. od. 5. e epigram.
170; Pinto Pereir. II. 27 v.; D. Hilarião, Voz do amado,
cap. 10. pag. 56; D. Catharin. Perfeiç. monast. 276; aprazem;
Fr. Marc. chron. part. I. liv. I. cap. 77; Sá de Mirand, canç.
a No. Senhora 2, e no prolog. dos estrangeir. aprouveram; Moraes,
Palmeirim II. 311. apraziam; D. Catharin. Perfeiç. monastica
cap. 23. pag. mih. 273. aprazerão; D. Hilarião, Voz
do amado, cap. 3. pag. 12 v. Muitas vezes acontece aprazerem-nos
muitas couzas, que em nos aprazerem não he bem, etc, e o
mesmo no seu composto desaprazer
, em que se encontra desaprazeres
na Epistol. IX. de Caminha etc.131

N.º 39.
Nota (a) de fol. 73.

Aindaque seja da sua natureza do supino carecer do plural,
e ter só uma terminação, comtudo muitas vezes tomavam nossos
auctores em seu lugar junto aos verbos activos, os participios
da passiva. Exemplo muito claro temos disto na carta delRei
D. João III, escrita a D. João de Castro, inserta na Decada VI
de Diogo de Couto liv. VI. cap. 8, e na vida do mesmo D. João
de Castro por Jac. Freir. liv. IV. num. 95. Como foram (falla
dos serviços daquelle governador) os que atégora me tendes feitos.
Na carta da Rainha D. Cathar., na mesma vida de Castro num.
96. Como pela muita honra que nisso tendes ganhada. Rezend.
chron. de D. João II. cap. 18. De quem tantas mercês, e honras
tinham recebidas
. Barreir. Corografia, pag. 91 v. Dizem que
tem feitos muitos milagres
. Fr. Marc. chron. part. I. liv. I. cap.
III. Cumprir os piedozos dezejos que lhe tinha inspirados. Ibid.
cap. VIII. As grandes mercês, que da alteza da Divina magestade
tinha recebidas
. Heit. Pint. part. I. dial. V. cap. V. Depois
de ter muitos annos governado o imperio, e alcançadas grandes
victorias, e edificadas aquellas espantozas thermas de Roma
Id.
dial. III. cap. II. Donde vem terem feitas em nossos tempos em
Africa, e em Asia façanhas tão excellentes, e pasmozas
. Mariz,
dial. III. cap. 3. Outro a satisfazer-se das perdas que tinha recebidas.
Goes, Chron. do Princip. D. João, cap. 33. Pelos muitos
gastos que tinha feitos
. Lucen. liv. VII. cap. XXV. Tendo
fundados, e dotados a propria custa grandes mosteiros aos bonzos,
e feitas por toda a vida outras grossas esmolas
. Souz. part. I.
hist. liv. II. cap. XX. Chegando entrou por uma camera, que
lhe tinham concertada
etc. Donde destes muitos exemplos se colhe,
que alem de ser vulgar este uso, o qual todavia não faz
perder a natureza ao supino, nelle faziam consistir nossos melhores
escritores uma das principaes bellezas, e ornamentos da
oração. Postoque algumas vezes tambem os verbos ter e haver
não são nestes cazos auxiliares, mas verbos activos, e na sua
propria significação.

N.º 40.
Nota (a) de fol. 74.

Facil é de conhecer a razão, porque os verbos intransitivos
não podem formar passiva. Os verbos activos transitivos, como
empregam a acção em couza estranha fóra do sugeito, que a
132pratica, commutam-se em passivos, quando esta acção volta do
mesmo sugeito, em quem recahira, passando para agente na
passiva o paciente da activa; como a acção não sahe nos intransitivos,
e fica no sugeito que a faz sem passar a outro, não pode
por conseguinte converter-se em passivo. Outro tanto se deve observar
nos reflexivos, porque como á semilhança dos raios vizuaes,
que cahem sobre o espelho, reverberam para o mesmo sugeito
que pratica a acção sem que se empregue em couza estranha,
não podem ter por agentes na passiva senão os mesmos da activa.
Comtudo a muitos dos intransitivos por uso commum a todos
os idiomas modernos derivado do grego e do latim se dá pacientes
cognatos. Os primeiros auctores, que formaram por aquelles
nossa lingua, recolheram por imitação delles em nossa syntaxe
muitos dos seus idiotismos, e com especialidade este, e assim
a cada passo diziam dormir sono, viver vida, morrer morte
etc. Sá de Mirand. cart. III. 23. Dormimos sonos alheios. Os
nossos não nos dormimos
. Cam. Od. 1. estrof. 13:

Oh quanto melhor fora que dormissem
Um sono perennal
Estes meus olhos tristes
.

Brito, Monarch. I. livro 2. cap. 10. Podiam os moradores
dormir seguramente o seu sono
. Arraes, dial. V. cap. 7. Dormiram
seu sono, e não acharam nada em suas mãos todos os varões de
riquezas
; e dial. IX. cap. 4. Não é morte a dos justos, mas
sono, porque vigiando quando viviam, dormem seu sono quando
morrem
. Cardozo, Agiol. II. pag. 560. Dormia o ultimo sono
com gloriozo nome de virtude
. Granada, Compend. nos Serm.
pag. 31 v. O homem alem de uma vida natural que vive, quiz
Deos, que vivesse outra vida sobrenatural, e espiritual… e
fa-lo viver vida de Deos
. Nabo, Ceremonial, pag. 56. v.
finalmente facilidade pera viver vida virtuosa
. Coelho, chron.
do Carmo, liv. I, cap. 4. E vivendo nova vida buscam os gusanos
da morte
. Ferreir. Castr. act. 2:

Oh vida felecissima, a que vive
O pobre lavrador só no seu campo
.

Simão Machado, comed. de Diu. part. I. pag. 7.

Vida que vive sem vida.

Arraes, dial. VIII. cap. 8: O sair depois da agua é como sair
133do sepulchro, e viver vida nova; e outra vez no fim do mesmo
cap: E não sabia distinguir se vivia a vida que dantes sohia,
ou não
.

Oriente, Luzit. transf. liv. III. pag. 221. v.

A vida vivirei, que o ceo me ordena,
Aqui: que é mais seguro que vive-la
Onde é forçado que se sinta a pena
.

Souza, Hist. de S. Domn. I. liv. 5. cap. 11: Vivia hũa vida
commum em conservação igual, e religiosa
. Idem, II. liv. 5.
cap. II: Deixarem aquella vida vegetativa que vivião. Leit.

D’Andrad. Miscel. dal. 5. pag. 137: Viveo vida muito inculpavel.
Vieir. Serm. I. col. 410: Ou vivem vida vegetativa, e são
as plantas; ou vivem vida sensitiva, e são os animaes; ou vivem
vida racional, e são os anjos
. Fernand. Alm. II. cap. 1.
doc. 25. num. 27: Aos que professão virtude, e vivem vida de
justos
. Matos, Cathecism. roman. pag. 396 v. Rogamos tambem
a Deos, que não morramos morte supitanea
. Leão, chron. de
D. Sancho II. Por não morrerem tão desesperada morte, como
se lhes offerecia
, no que imitou a Rui de Pina, Chron. do mesmo
Rei, cap. 10. Per nom morrerem tão cruas, e desesperadas
mortes, como se lhes offereciam
. Madre de Deos, Process. da
Paix. § 2. cap. 24. E dessa maneira não morria morte deshonrada,
e affrontoza. Ceita, Quadrag. I. pag. 107. v. Morrerás
infamemente morte desastrada
. Souza, Hist. de S. Dom. liv. 4.
cap. 18. Morreu huma só morte, e esta juntamente nos tres lugares,
que apontava
. Severim, Promptuar. XVI. § 7: Os que
se exercitarem em obras de mizericordia, não morrerão má morte
.
Vieir. Serm. II. pag. 172: Perder a vida pelos instrumentos
da vida, e converter-se a meza em laço he morrer morte traidora
.
Bern. Florest. I. tit. 6. 49. Ultimamente morreo morte desastrada.
Barr. Panegyric. da Infant. D. Maria, num. 21. Morrer
morte desastrada
. Anjos, Jardim de Portugal, 129: Que
vivam vida heremitica
. Rezend. Vid. do Inf. D. Duart. 56. Com
muito boa vontade morrer muitas mortes
. Esta elegancia é mui
conhecida, e de particular graça nos bons escritores.

N.º 41.
Nota (b) de fol. 74.

Ha no portuguez verbos intransitivos, de que se formam
participios, como: carecido-a de carecer, succedido-a de succeder,
134quedo-a de quietar, morto-a de morrer, vivo-a, ou vivido-a
de viver, nado-a, ou nascido-a de nascer, ido-a de ir, vindo-a
de vir
, etc; mas estes verbos podemos dizer, que são propriamente
os nossos depoentes pela semilhança que tem com os dos
latinos, a que muitos correspondem; e estes participios, que delles
nascem, são da classe daquelles, adiante em seu lugar apontados,
que retem na voz passiva a significação de activos; ou
tanto valem, e significam unidos aos auxiliares activos, como ao
passivo: o que se deixa bem ver nestes exemplos: Heit. Pint.
part. I. dial. I. cap. III: E por não gastar o tempo em recitar
varões insignes, que foram carecidos da vista
. Arraes, dial. V.
cap. XII: Sobre que eram succedidos muitos insultos. Sá de Mirand.
canç. a N. Senhora: São vindas minhas culpas, e querellas.
Vieir. tom. I. Serm. col. 277: Ainda não era vinda a hora
do Sol
: tom. VI. pag. 221:Porque não era ainda vindo o esperado.
Souz. part. I. Hist. liv. I. cap. III. Era entrado o anno
de duzentos e nove
: ibid. liv. IV. cap. I. Somos chegados com
a historia aos annos do Senhor
etc. Nos quaes exemplos fica facil
notar, como os verbos, parecendo de voz passiva, tem todos
significação activa, e tanto valem, como se para ella mudados
se lêsse no primeiro exemplo careceram, no segundo succediam,
e assim nos mais.

N.º 42.
Nota (c) de fol. 74.

O adjectivo amante, que se deduz do verbo amar, aggravante
de aggravar, defendente de defender, pedinte de pedir,
etc; aindaque se formem á semilhança dos participios latinos sendo
acabados em ante, ente, inte, não são porisso participios no
portuguez: porque alem de não gozarem da natureza de verbos,
como os dos latinos, em admittirem pacientes, seriamos obrigados
a chamar defectivos, só por carecerem destes participios, a
maior parte dos nossos verbos em tudo o mais regulares, como
ao verbo louvar, estimar, admirar, honrar, duvidar, agradecer,
appetecer, reprimir, admittir
, etc: seriamos obrigados a
ter como anomalos aos verbos auzentar, porque se diz auzente,
aos verbos patentear, obedecer, permanecer, arguir, prezidir,
porque os que delles se formam são patente, obediente, permanente,
auguente, prezidente
; e de que verbos fariamos participios
a elegante, vigilante, percuciente, affluente, indulgente,
agente, indigente, penitente, sciente, senciente
, e outros muitos
que tambem formamos como os latinos? O mesmo digo tambem
de alguns adjectivos verbaes, que temos derivados á maneira dos
135participios do futuro, que os latinos acabavam em rus e dus,
como: futuro, venturo, abominando, memorando, mizerando,
intolerando, venerando, moribundo, sitibundo, furibundo, venerabundo
,
os quaes aindaque lhes correspondam na significação,
devem pelas mesmas razões ser excluidos da classe dos
participios.

N.º 43.
Nota (d) de fol. 74.

Este participio é de Fr. Marc., Cam., Souz., Sá de Menez.,
Barreto etc.

N.º 44.
Nota (a) de fol. 75.

O verbo quietar, ou, como outros escrevem pela figura
prothese, aquietar, tẽ duas significações: umas vezes toma-se por
socegar o animo, e então me parece, que lhe é proprio o participio
contracto quieto; outras vezes significa parar, não proseguir,
ou não passar avante, e nesta significação lhe corresponde
quedo ainda hoje uzado, que val o mesmo que parado, ou detido
na carreira
, o qual parece nos ficara do verbo quedar antiquado
que se encontra em Fern. Lop. Rui de Pin. Barr., e
no Aut. da relação da Frolida: isto se pode notar no uso que
delles faziam os nossos classicos, aindaque algumas vezes os trocavam.

N.º 45.
Nota (b) de fol. 75.

Postoque em tempo de Barr. tinha somente uso o supino
aprazido na linguagem vulgar, e entre os rusticos, como elle
diz na sua grammatica, comtudo veio depois a ser recebido no
bom estylo; e delle se serviu Barreto na Eneid., dizendo no liv.
XII. Out. 48.

Que á cidade de Evandro de bom grado,
Os vencidos se vão me ha aprazido
.

E tinha exemplo em Galvão, que muito antes o adoptou na
chron. de D. Affonso Henriques: Querendo mostrar por mais maravilhas
quanto lhe tinha aprazido
, cap. 34.136

N.º 46.
Nota (c) de fol. 75.

O preterito jouve é de Fern. Lop. Azurar., Pina, Rezend.,
Sá de Mirand., Goes, Arraes, Lucen., Souz., etc, e delle se
deriva o plusquamperfeito jouvesse, de que usou o mesmo Fern.
Lop., Barr., Cout.; e o futuro jouver, em Ferreir. Bristo, acto
IV, scen. 6. Hoje está introduzido já o preterito jazi, que adoptou
Garção, a exemplo de Correa, na Conspiraç. Univers., que
tinha escrito Que por largos tempos jazeu na cama da culpa.
Disc. 18. conc. 2.

N.º 47.
Nota (a) de fol. 76.

Alguns compostos do verbo ter, como conter, deter, manter,
e reter, formam como elle, alem do participio derivado do
supino, outro segundo participio pela figura dierese, como são
tendo-a; contendo-a; detendo-a; mantendo-a; retendo-a, que
já não estão em uso.

N.º 48.
Nota (b) de fol. 76.

E’ de Fr. Marc., Sá de Mirand., Heit. Pint., Luc., Souz.,
Vieir., etc: mas Vieir. deu tambem a este verbo o participio absoluto-a.

N.º 49.
Nota (c) de fol. 76.

E’ de Cam., o qual usou delle pela primeira vez deduzindo-o
do latim, como diz Faria e Souza.

N.º 50.
Nota (d) de fol. 76.

E’ de Fer. Lop., Barr., Fr. Marc., Sá de Mirand.,
Heit. Pinto, Andrad. etc. Melhor parece participio do verbo antigo
defezar, que se encontra em Leitão de Andrada, Miscellan.
pag. 346, a que tambem dá o outro participio defezado-a p. 98.137

N.º 51.
Nota (a) de fol. 77.

E’ de Ferr., Arraes, Sá de Menez., Barret. etc.

N.º 52.
Nota (b) de fol. 77.

E’ de Barr., Fr. Marc., Sá de Mirand., Cam., Bernard.,
Chron. do Condest., Heit. Pint., Alvar. do Orient., Pint. Per.,
Cent., Cancioneir. etc.

N.º 53.
Nota (c) de fol. 77.

E’ de Barr., Heit., Pint., Cam., D. Hilarião, Voz do
Amado, Franc. Barret, etc.

N.º 54.
Nota (a) de fol. 78.

E’ de Brito, Corte Real, Sá de Menez., etc.

N.º 55.
Nota (b) de fol. 78.

Não se pode estabelecer regra fixa sobre a materia de formar
o participio, se deve ser do supino regular, ou do contracto,
porque a cada passo se encontrará feito indifferentemente tanto de
um como de outro supino; ou no mesmo verbo alem do participio
contracto outro participio derivado do supino regular, como
nos verbos gastar, pagar, affligir, a que os antigos mui cuidadozos
em evitar anomalias quazi sempre contrapostas á razão davam
sempre os participios gastado-a, pagado-a, affligido-a
formado do supino regular: e não somente nestes, nos quaes parece,
que não conheceram alguns os contractos gasto-a, pago-a,
afflicto-a
, os quaes não excedem muito o tempo de Vieira; mas
a muitos outros verbos, como: acceitar, manifestar, suspeitar,
izentar, absolver, imprimir, erigir
, etc: assim Heit. Pint. part.
I. dial. III. cap. VI: Mas depoisque eram feitas, e acceitadas,
138inviolavelmente os guardavam. Souz. part. I. Hist. liv. II. cap.
XIX: E nelle foi acceitada a fundação do convento da cidade
do Porto
. Heit. Pint. ibid. cap. I. Agora sem a lei a justiça de
Deos he manifestada: dizendo pouco depois: Não somente as
palavras são claras mas ainda está manifesta sua razão
. Souz.
Vid. do Arceb. liv. II. cap. XIII: Tanto damno faz nos conselhos
estar suspeitada não só entendida a tenção de quem prezide
etc.

N.º 56.
Nota (a) de fol. 79.

São as particulas a base fundamental em que se sustenta o
principal artificio da elocução em todas as linguas, porque ainda
havendo propriedade nas vozes, pureza de dicção, ordem e junctura
na colocação, a faltar a judicioza escolha das particulas,
o estylo será pouco polido, e de nenhuma sorte parecerá urbano,
e cortezão, como diz Quintiliano. Veja-se João Clerico, Arte
Critic
. tom. I. p. m. 62, onde mostra a necessidade de conhecer
bem as particulas gregas, e o mostra com exemplos; e
tambem Christiano Weissio: De Stylo Romano, pag. 229.

N.º 57.
Nota (b) de fol. 79.

Daqui lhe provẽ o nome, que tẽ de adverbio, da voz latina
adverbium, porque (diz Barros, Grammatic. pag. 144) ad
quer dizer cerca, e composto com verbum, fica adverbium, que
quer dizer acerca do verbo.

N.º 58.
Nota (c) de fol. 79.

Dos adverbios derivados, ou feitos da terminação feminina
dos adjectivos e da palavra mente temos grande copia no portuguez,
porque se formam de quasi todos os adjectivos. A palavra
mente não é adjecção syllabica, como alguns entenderam, senão
o nome substantivo mente derivado de mens mentis dos latinos,
e com a mesma significação de animo, vontade, intenção, como
é na lingua italiana: porque tanto val certamente como animo
certo, o mesmo é sabidamente como com vontade, com intenção
sabida; ouzadamente, prudentemente com vontade, com
139animo, com intenção ouzada, prudente, e assim nos mais deste
genero. Veja-se Sicar, Eléments de Grammaire général appliqués
a la langue françois, Paris ann. 7. pag. 96. part. II.

N.º 59.
Nota (d) de fol. 79.

Não aponto outros adverbios já antiquados, aindaque proprios
deste lugar, como: adur; já desusado em tempo de Leão,
e de que se acha somente exemplo em Fern. Lop., Azurar., e
o anonymo auctor da Chron. do Condestavel etc. Asinha muito
ordinario em Sá de Mirand., Cam., e ainda depois, mas já raro
em tempo de Vieir. Ha, adrede, acarão, samicas, consum, entonces,
juso, maguer, medes, peró, toste, apres, asuzo
ou suzo;
Leão, Orig. cap. 19, e os Diccionar., e Elucidar.; e outros
hoje de todo esquecidos; porque facil é o conhecimento delles,
aos que tomam nas mãos os livros, onde se encontram, e desnecessaria
neste lugar a sua explicação.

N.º 60.
Nota (a) de fol. 80.

Em lugar destes adverbios, e na mesma significação delles
usavam tambem do adverbio quiçá (ou como anteriormente
diziam quiçáis) muito vulgar nos bons escritores: delle se serviu
muitas vezes ainda Taç. Ferreir., e D. Franc. Manoel, e o seu
uso prevaleceu quazi até nossos dias.

N.º 61.
Nota (b) de fol. 80.

é o nome adjectivo , que no plural faz sós; toma-se
como adverbio simplesmente, e sem se lhe accrescentar a palavra
mente; e por este modo se usa no portuguez tomarmos como
adverbios alguns adjectivos na terminação masculina, á imitação
dos gregos, que o mesmo praticavam na neutra, dizendo:
Οξυ, Καλον, Μιτρον, Πρωτον, ποτιρον: e assim tambem usamos:
certo, claro, junto, alto, continuo, manso, subito, attento,
e outros, em lugar de certamente, claramente, juntamente
etc; e do mesmo modo os dous comparativos melhor, e peior.
A lingua latina tambem adoptou este helenismo nos adjectivos
140multum, solum, primum, pejus, nimium, immane, etc, a que,
tomados na terminação neutra, dava as vezes de adverbios.

N.º 62.
Nota (c) de fol. 80.

A preposição é assim chamada pela etymologia do verbo
latino praepono, que significa pôr antes, ou em primeiro lugar,
porque na ordem do discurso sempre se antepõe a preposição, ou
val antes do nome, que lhe serve de complemento.

N.º 63.
Nota (d) de fol. 80.

Equival o adverbio per si só á preposição junta com o seu
complemento: assim é o mesmo prudentemente como com prudencia;
sabiamente o mesmo que com sabedoria; aqui tanto como
neste lugar, ahi como nesse lugar; hoje como neste dia; agora
como nesta hora; sempre como em todo o tempo; nunca como
em nenhum tempo.

N.º 64.
Nota (e) de fol. 80.

Tambem nisto corresponde a preposição ao adverbio em modificar,
e variar a significação do verbo, e do adjectivo; mas
advirta-se que neste caso já a preposição não é o caracteristico de
circumstancia segundo a sua definição. O complemento da preposição
só pode ser o substantivo, porque se denota circumstancia;
e se se antepõe como caracteristico ao verbo é somente nas
vozes do infinitivo, quando pela figura enallage se toma como substantivo.
Fora deste caso ou vá unida ao verbo, ou ao adjectivo
para lhe accrescentar seu valor, forma com elles uma só dicção,
nem della se usa separadamente, nada per si significa, senão
unida a elles, e por isso é chamada pelos grammaticos inseparavel.
Taes são as preposições compositivas tomadas dos latinos:
ab, ad, circum, con, de, dis, ex, in, inter, ob, per, pre,
pro, re, sub, trans
, de que se formam muitos verbos e nomes,
como: absolver, advertir, predizer, reprovar, desfazer, dispor,
concordar, obstar, encobrir, substituir, rescrito, adjutorio,
inadvertencia, pronome, transposição, circumferencia
, etc, as
quaes mudam a significação dos simples; porem pela maior parte
141trazem a composição já formada do latim, donde foram trasladadas,
podendo chamar-se verdadeiramente simples no portuguez.

N.º 65.
Nota (a) de fol. 81.

A preposição fóra toma diversos usos conforme a differente
accepção; quando é caracteristica de circumstancia de lugar ou
de distancia, e responde á preposição extra dos latinos leva sempre
depois o articulo de indefinido, ou definido do da. Fóra do
costume e rudeza dos fidalgos daquelle tempo
. Leão, Chron. de
D. João p. m. 467. Tiraram de todo fóra do leito – achando-se
em terra fóra do leito
. Fr. Marc. Chron. II. 45 v. col. 2. Para
lançarem os inimigos fóra das terras era necessario gente de cavallo
.
Cont. Dec. VII. pag. 108. v. Mariz, Dial. pag. 102. E
se denota excluzão na significação de excepto e corresponde á latina
praeter, a que por afereze accrescentavam os antigos a letra
a, dizendo afóra, encontra-se de ordinario sem articulo. Afóra
estes argumentos se achão algumas pedras na cidade
. Barret.
Corograf. 2. v.

Que sete illustres condes lhe trouxeram
Prezos afóra a preza que tiveram
. Cam. IV. 16.

Afóra estas reliquias ha hi muitas outras sem conto. Heit. Pint.
II. dial. 20. pag. 390 v. Afóra estes eram com elRei aquelles
estrangeiros, que já dissemos
. Azurara, Tomada de Ceuta, cap.
49. pag. 137. Leão, Chronic. de D. João I, pag. 424 copiando
Azurara. Sustenta este convento afóra conversas… Souz. Hist.
II. 202. Os grammaticos incluem no numero das preposições
muitas, que não são rigorozamente preposições, e com mais propriedade
lhes chamariamos nomes, taes são: conforme, salvo,
segundo, excepto, junto
, que algumas vezes são adjectivos; e
acerca, acima, abaixo, arriba, defronte, detraz, diante, que
são formadas pela união de preposições com substantivos, mas
como fazem as suas vezes, sendo verdadeiros signaes de circumstancias,
que se lhes seguem como complemento, e correspondem
em sua significação a preposições latinas não fica improprio nem
fóra de razão contarem-se entre ellas, quando o uso as tem assim
adoptado.142

N.º 66.
Nota (b) de fol. 81.

As duas preposições per, e por aindaque pareçam as mesmas,
são mui differentes em natureza, e significação, como no
latim são per, e pro que tem differente significação, e pedem
diverso caso; e assim o entenderam nossos classicos, que as não
tomavam indistinctamente trocando uma per outra, como com
grave confuzão se faz vulgarmente. Da primeira per usaremos,
quando quizermos significar o meio, per que se faz alguma couza,
e corresponde á latina per, e então diremos: Eu vos mostrarei
isto per razões evidentes. Este livro foi composto per Virgilio
. E
o mesmo em tudo que com a preposição per diziam os latinos.
A segunda por, que corresponde a pro e propter latinas, tem
lugar para significar a causa, respeito, ou motivo de alguma
couza se fazer, e diremos tambem, como elles o faziam com as
suas preposições: Eu vos tenho por amigo. Esta cidade está por
elRei
. E não se soffrerá o contrario disto, como bem notaram em
suas orthografias, e se pode ver em Leão, regr. X. pag. 55. v;
Vera, regr. IX. pag. 44. v. Pereir. regr. XIV. pag. 78; e Barreto,
regr. X, conformando-se com Leão, pag. 248.

N.º 67.
Nota (c) de fol. 81.

Esta distinção nos advirtirá de um erro transcedente em
quasi todos os nossos grammaticos em confundirem estas preposições
de, e a com os articulos, sendo entre si mui differentes: o
que nasceu certamente de não conhecerem o articulo, e não fazerem
a devida observação, que por isso recommendamos tão
necessaria. Veja-se a Nota numero 5 da Syntaxe.

N.º 68.
Nota (a) de fol. 82.

Aindaque seja doctrina commum dos grammaticos, que a
conjunção une as partes da oração em particular, isto é, o verbo
com o verbo, o nome com o nome, o attributo com o attributo,
e as circumstancias umas com as outras, alguns dos melhores entre
os modernos seguindo a Sanches Brocense, são hoje de opinião,
que o officio da conjunção é somente unir as clauzulas inteiras
143ou orações umas com outras, e que para formarem sentido
completo se devem substituir ellypses.

N.º 69.
Nota (b) de fol. 82.

Quando alguma das particulas muda de especie, já não a
devemos considerar a mesma particula, senão outra verdadeiramente
diversa, e mui distincta. Para isto bem se perceber convẽ
notar o officio que cada uma dellas exerce, e o modo com que
se usa. Correspondem muito o adverbio, e a preposição, servindo
promiscuamente ambas para designar as circumstancias da
acção; admittem todavia mui clara differença entre si. O adverbio
denota per si só a circumstancia; a preposição depende de
complemento: o adverbio, como sua mesma voz manifesta,
junta-se mais ao verbo do que ao nome; a preposição mais ao
nome do que ao verbo; o adverbio precede ao verbo, ou vai
depois delle; a preposição precede sempre ao nome na ordem do
discurso: o adverbio só se junta ao adjectivo, nunca ao substantivo;
a preposição somente ao substantivo: o adverbio ou se junte
ao verbo, ou ao adjectivo vai sempre separado, sendo cadaum
dicção distincta: a preposição vai com qualquer delles tão ligada,
quando se junta, que formam ambos uma só dicção composta.
A mesma differença se pode facilmente notar a respeito da conjunção,
considerando o seu officio, e uso.

Prozodia.

N.º 1.
Nota (a) de fol. 84.

Os gemidos, os suspiros, o choro, e outros semilhantes signaes
com que se manifesta, e exprime a dor, o alvoroço, a ira,
etc; e assim tambem as vozes dos animaes, como o mugido do
boi, o bramido do lobo, o rugido do leão, o ladro, ou latido
do cão, o rincho, ou relincho do cavallo, o grunhir do porco,
o balar da ovelha, o chiar da ave, são sons indistinctos, e confuzos,
como advertiu Aristoteles, secç. 33 da Poetica, e não vozes
articuladas, por mais que tenhamos claro conhecimento de
sua significação, e a nenhum delles chamamos letra, nem se
podem declarar por figura, e compor com elles palavra. A definição,
que se dá de letra, adoptada de quazi todos os nossos
144grammaticos, é de Sanches Brocense. As letras consideradas em
quanto elementos da oração, carecem de sentido, e significação.
O tratar dos accentos pertence propriamente á orthografia.

N.º 2.
Nota (b) de fol. 84.

Dithongo é vocabulo grego, formado de οισ dous, e φθογγοσ
som quasi significando som dobrado, como escreveu Barros, Ortograf.
pag. 180; porque é a união, ou concurso de duas vogaes
em que retem ambas o seu som, e guardam sua força em
uma só syllaba: por onde julgo necessario declarar, como está
em sua definição, que as duas vogaes sejam diversas; pois sendo
o dithongo um som composto, e derivado das duas vogaes, que
formam unidas em uma só syllaba duae vocales in unum sonum
conflatae
: e retendo cadauma dellas o seu som, de nenhuma
sorte poderia rezultar um som mixto dentre ambas, que isto quer
dizer dobrado, a serem unisonas. De se isto bem não advertir
nasce o não convirem os nossos grammaticos entre si, e darem
maior numero de dithongos. Os primeiros, ou communs ai, au,
ei, etc. são os mesmos que antigamente conheceram os gregos e
latinos, como largamente mostram Sanches Brocense, em sua
grrammatica grega, e na Minerva; e Angelo Policiano, nas miscelan.
cap. 43; os segundos ou nazaes são proprios, e peculiares
nossos, e principalmente o ão, que tiramos do om francez, e galego,
é tão proprio da lingua portugueza, que não só o desconhecem
as outras nações, mas até sentem grandissima difficuldade
em o pronunciarem.

N.º 3.
Nota (c) de fol. 84.

Algumas das consoantes pronunciam-se por uso indevidamente:
já o advertiu o nosso portuguez Pedro Sanches, na sua
grammatica latina, impressa em 1610: dizendo a pag. 85 “que
o f, l, m, n, r, s, se devem pronunciar: fe, le, me, ne,
re, se
: e pera bem sempre assi ouvera de ser, pois assi o fazem
os gregos, e hebraicos, e nós pera pronunciar ferro, livro,
nam dizemos effero, elivro.”

N.º 4.
Nota (a) de fol. 85.

Cadauma das vogaes tẽ varios sons, que lhe correspondem
no uso da pronunciação, que são: aberto, mudo ou fechado, e
145nazal, como traz Leão, em sua Orthograf., e outros que trataram
muito bem esta materia; assim o a ou é claro e aberto,
como em prado; ou obtuzo e mudo, como em ramo; ou nazal,
como em romã. A mesma vogal pode pronunciar-se, ou forte,
ou branda, segundo a varia modulação do orgão da voz; e estes
são os accentos vogaes. Não fallo destes sons, senão do som
ou accento prozodico que ha em cada palavra, em que se eleva,
e detem mais ou menos o canto, independente de que a vogal,
em que recahe seja de som aberto ou mudo, e este é propriamente
o accento a que os latinos denominam tonus ou tonor; e
chamão-lhe agudo e grave, e não longo e breve, como tambem
o podia denominar, porque senão creia, que admitto no portuguez
quantidade de syllabas, como para o numero, e rithmo
tinham os gregos, e latinos, cuja prozodia era absolutamente diversa
da nossa. Para melhor se entender, fallo daquelle só accento
predominante, e a que por excellencia se dá o nome de
accento, e designa em cada palavra particularmente a syllaba
sobre que cahe por distinção de todas as mais de que a palavra
se compõe. Todas as palavras, seja qual for o numero das syllabas
de que constar, admittem necessariamente este accento; e é
o que determina tambem a estructura dos periodos na proza, e
a medida dos versos, segundo as regras da arte versificatoria.

N.º 5.
Nota (k) de fol. 91.

Des de os primordios de nossa linguagem foi mui vulgar a
contracção, derivada dos provençáes, na terminação feminina do
adjectivo seu, e sempre se escrevia sa, sas, em lugar de sua,
suas, como se deixa ver de muitos documentos daquella idade,
foraes antigos de Santarem, S. Martinho de Mouros, e Torresnovas,
publicados no tom. IV. dos Ineditos da Academia Real
das Sciencias; e dos dous sonetos 34, e 35 do livro II. de Ferreira,
onde se lê sa vontade, sa fermozura, sa madre, sa bondade,
sa mão, sa sestra, sas donzellas, sas setas
. Prevaleceu
constantemente ainda na proza por muito tempo; mas já nos
escritores, ainda dos mais antigos que hoje temos, se não encontra
desta orthografia exemplo, e deveria cessar, segundo conjecturo,
pelos reinados de D. João I, ou D. Duarte. O mesmo se
dava no adjectivo teu, tua, supposto não haver differença no
modo de se escrever, que era tambem de uma só syllaba, nem de
outra sorte eu sei como se poderia pronunciar, e medir este verso:
Tua fe, teu Rei, tua terra, teu nome ama, Ferreir. eclog.
12; e outros semilhantes, que se encontram a cada passo em
146nossos antigos poetas. Não foi desconhecido este uso dos latinos,
como advirtiu Izac Pontano em uma nota do cap. 7. do liv. I.
dos Saturnaes de Macrobio; veja-se Vossio no Etymologicon,
onde diz que suus, sua, suum se declinara antigamente sos, sa,
sum
.

N.º 6.
Nota (e) de fol. 92.

Nem sempre é o hiato viciozo. E’ certo, que todas as linguas
o procuraram evitar com grande cuidado não só em quanto
ás vogaes, mas tambem pelo que pertence ás consoantes, como
advertiu Bacon de Verulamio, De dignitate, et augmentis scientiar.
liv. 6. cap. 1. Demetrio, num. ou sessão 70 De Elocutione
considerou o concurso das vogaes como uma das fontes para fazer
a oração magnifica, porque, do seu som, quando não seja
aspero nem vagarozo, rezulta á compozição suavidade, e melodia.
O escrupulo de Isocrates e de Theopompo nesta parte não
pareceu tão bem a Quintiliano, como a prudencia de Demostenes,
e de Cicero; por onde no cap. 4. do liv. 9, quando trata
do mesmo hiato, diz, que alem de conciliar graça ao discurso,
contribue muito para sua sublimidade.

As linguas vulgares constam de sons menos abertos, e não
é tão sensivel nellas o hiato como na grega, e na latina. Em
quanto ás consoantes, pois não deve haver menor medida, e
compasso nestas do que nas vogaes, procura igualmente que as
palavras não sejam escabrozas nem dissonantes, como ficariam
se a multidão destas abafasse, e emudecesse o som expressivo
das vogaes.

N.º 7.
Nota (m) de fol. 93.

A poezia foi em todos os tempos quem poliu, e aperfeiçoou
as linguas. A falta do bom gosto, e o não se attender ao uso
destas figuras deu occasião a censurar como errados, e sem medida
alguns versos dos antigos poetas, que elles parece muito de
propozito formavam, sem exceptuar os do mesmo Camões, que
no canto numerozo, e melodia certamente muito a todos excedeu,
como em uma das qualidades importantes no poeta para responder
a um de seus fins essenciaes, qual é o deleite.

N.º 8.
Nota (c) de fol. 84.

Leio estes dous ultimos versos pela magnifica edição de Pariz,
147de 1817 do Excellentissimo D. José Maria de Souza Botelho,
Morgado de Mattheus, conforme as primeiras de 1572; e á de
Lyra de 1584. Veja-se Correa, Commentario do mesmo Camões,
na edição de 1618, que não sei com que motivo foram mudados
na segunda impressão de 1720.

Syntaxe.

N.º 1.
Nota (a) de fol. 95.

Assimcomo na compozição do corpo humano não são os
membros todos iguaes, senão uns maiores, outros mais pequenos,
como por exemplo o braço é membro maior, e principal, e a
mão mais pequena e menor, e isto contribue para sua formozura,
e perfeição, da mesma sorte são as partes da oração unidas
convenientemente como membros entre si, umas mais nobres,
ou de maior valia, outras de inferior qualidade porque de sua
natureza não podem receber nem ter ser sem as primeiras. Assim
são como se diz as duas verbo, e nome partes principaes,
que por suas propriedades tem subsistencia, e as outras duas articulo,
e particula devem ser consideradas menores, ou accessorias
porque per si não figuram nem tem ser sem dependencia das
outras.

N.º 2.
Nota (b) de fol. 95.

Todas as linguas tem signaes demonstrativos para denotar
cadauma das propriedades, tanto no verbo, como no nome. No
verbo todas uniformemente adoptaram variação, ou mudança de
letras nas terminações para distinguir em cadauma de suas vozes
a differença de modos, tempos, numeros, e formas. O mesmo
se dá no grego, e no latim, e o mesmo no portuguez, e nas
mais linguas; e a estas differentes mudanças, ou variações é a
que chamamos conjugações dos verbos.

N.º 3.
Nota (c) de fol. 95.

As propriedades no nome tambem admittem variação em
terminações para mostrar differença quanto ao genero, e numero;
mas quanto ás relações nem todas as linguas concordam no
modo de as distinguir; porque umas variam tambem como no
verbo as terminações em cadauma dellas como gráos de declinação,
148assim o vemos na grega, na latina, e na alemã, outras
sem mudarem a terminação mais do que do singular para o plural
procuram indica-las antepondo-lhes o articulo como significativo
de cadauma dellas, como nas linguas hebrêa, caldea, siriaca,
e em todas as vulgares, ingleza, italiana, franceza, castelhana,
e na nossa portugueza. Os gregos admittiam ambos os
modos, servindo-se juntamente das terminações, e do articulo;
por onde se mostra a riqueza daquella nobilissima lingua. Na
arabe os nomes são declinaveis geralmente, e indeclinaveis em
certos casos particulares, mas sempre vão igualmente acompanhados
do articulo. Advirta-se comtudo que esta differença em
assim se determinarem as relações é meramente accidental, porque
em efficácia tanto val o articulo como a terminação, pois
não são mais em si tanto um como outro do que signaes das relações,
ou estado da regencia do nome, e a distinção está só,
em que um vai antes, e separado do nome, e o outro depois, e
unido a elle. Porquanto declinação, como sentiu Varrão, liv. IX,
Da lingua latina, não significa só no rigor da palavra mudança,
ou variação de letras na terminação, mas tambem a differença,
ou commutação, que o nome sem variar em si admitte
nos gráos de relação em que é necessario considerar-se. Assim o
entendeu Bento Pereira, na sua Arte de Grammatica da lingua
portugueza, pois havendo dito, que os nossos nomes são indeclinaveis,
accrescenta, class. 1. subs. el. 1. num. 122: Articulis
accipiunt quandam extrinsecam mutationem, qua acquipollent nominibus
latinorum casus diversos per intrinsecam mutationem habentibus
tam in singulari, quam in plurali
. E de outra maneira,
como reconheceriam os latinos variedade de relações, ou cazos
nos nomes aptotos, ou indeclinaveis cete, penu, cornu, veru,
genu, gumi, sinapi
, que nunca mudam na terminação? Pode
vêr-se nesta materia Julio Cezar Escaligero, no cap. 80, e seguintes
do liv. IV. De causis linguae latinae; e Saey, Principes
de grammaire générale mis à laportée des enfans, et propres à
servir d’introduction à l’etude de toutes les langues
, ediç. 2. Pariz
1803, pag. 81, 140, e seg. Por onde se vê, que chamar
cazos, ou relações; admittir declinações verdadeira, ou virtual;
dizer com os antigos grammaticos nominativo, genitivo, dativo,
ou agente, restringente, recipiente, etc, sendo o mesmo quanto
ao sentido, e differençando sómente na forma, é questão meramente
de nome, e de nenhuma importancia.149

N.º 4.
Nota (d) de fol. 95.

O articulo não se deriva do verbo grego αρω, que significa
adaptar, preparar, como escreveu sem consideração certo grammatico
moderno, mas tem sua verdadeira etymologia em articulus,
dicção latina, deduzida de αρθρον, que em grego quer dizer
juntura, ou união de nervos, segundo bem ponderou o nosso
Barros Grammatica pag. 99, a que nós propriamente chamamos
artelho; e bem como a liança, e ligadura dos nervos se sustem
o corpo, assim do ajuntamento do articulo se compõe a oração.
O mesmo podemos dizer da particula, nome diminutivo, que
val tanto como partezinha, ou parte mais pequena em comparação
das outras partes, ou menos importante, e que, da mesma
sorte que o articulo, só serve para a união, ou composição das
outras. Assim com serem quatro as de que se compõe a oração,
como ensinam os grammaticos, só duas, a saber o nome, e o
verbo, reprezentam per si na oração; o nome manifestando os
sugeitos, e o verbo symbolizando as acções; porque as outras
duas, supposto as acompanhem, não são essenciaes ou substanciaes,
mas secundarias, ou accessorias dellas, e para o dizer
com Castelvetro, no commentario da poetica de Aristoteles p. 3.
particul. 23. Art. de Conceit. tom. I. p. 109, são vinculos necessarios
de união, para subsistirem as duas primeiras entre si.
Ambas são invariaveis, isto é, nem admittem relações como o
nome, nem inflexões como o verbo; porem differençam-se entre
si; porque o articulo é de uma syllaba, e a particula pode ser
de uma, ou de mais.

N.º 5.
Nota (d) de fol. 99.

De que o de quando denota o restringente não é a preposição
como contra mim pretendem sustentar certo grammatico, mas
sim o articulo facilmente se convencerá o que advertir a grande
differença que tem entre si, 1º de articulo não denota circumstancia,
mas restrição; 2.º não pode dar-se senão depois de substantivos,
conforme a regra, e a preposição de tẽ lugar depois
de adjectivos, e de verbos; 3.º mudado para o latim só lhe deve
corresponder genitivo, como: templo do senhor, filho de Deos,
que se deve dizer templum domini, filius Dei; e sendo preposição,
como: cego de ira, tocado de medo, cobiçoso de fama,
limpo de odio, esquecer-se, desgostar-se de alguma couza
, na
mudança para o latim equival preposição a preposição: 4.º sendo
preposição pode resolver-se per outra, com tanto que subsista inteiro
150o sentido da oração, o que nunca pode ter lugar no articulo,
que nesta relação de restringente é sempre immutavel. Esta
ultima differença se observa em muitos exemplos. Podemos dizer
com a preposição de: Armou-se do signal da cruz em a fronte.
Alcobaça, Vit. Chrsit. I. 153 v., ou substitui-la pola preposição
com dizendo: Logo me armei com o signal da santa cruz,
Costa, Convers. de S. Maria Egypc. cant. VII; e do mesmo
modo: Armou-se do santo signal de nossa redempção. Souza, p.
I. hist. de S. Dom. liv. 5.º cap. 6, ou Armava-se com o santo
signal da cruz
. Id. p. 111. liv. 2. cap. 15. Para fortalecer, e
armar os christãos… com o signal da cruz
. Arraes, dial. VI.
cap. 9. Se nos armarmos vivamente com o signal da cruz. Miranda,
Tryunf. da Cruz II. 4. Quer que nos armemos com o signal
da cruz
. Lucas d’Andrada, Illustraç. III. pag. 41. Armando-se
com o signal da cruz
. Bernardes, Florest. III. 7. 80.
§ 6. Diogo Bernardes escreveu:

Que do signal da santa cruz armado
Saiste contra o tyranno ao terreiro
.

Rim, ao bom Jes. egolg. deplorator.; e no Lyma, eglog. XII;
Azurara: Que este principe, assimcomo seu cavalleiro, armado
com o signal da santa cruz pelejasse polo seu nome
. Tomada de
Ceuta cap. 79; e Santa Maria disse: E assim armados sempre
com o signal da cruz de Christo se consolavão
. Hist. Tripart. I.
n. 71. Para confirmação desta doutrina temos a pratica constante
por exemplos approvados de nossos escritores, e desta longa authoridade
colligimos a verdade do que fica escrito, sem podermos
admittir theorias inventadas, e sem fundamento. E não pareça
isto novidade, muitos annos ha já que entre os francezes o escreveu
Renato Guilon, Meditationes in Grammatic. Clenardi, que
vem nas Annotationes Grecanicae do mesmo Clenardi, dizendo:
Articuli autem Gallorum exprimentes Articulos casus Gignendi
Graecorum, habitu tamen ratione Generis etc. Numeri, sunt de,
du, des
. Por onde se entenda, que quando vier de depois de
substantivos appellativos é o articulo, a que se segue o restringente;
e depois de verbos ou adjectivos é a preposição que denota
circumstancia.

N.º 6.
Nota (a) de fol. 100.

A relação de restringente só pode ter lugar depois do nome
substantivo appellativo, e nunca depois de proprio. Esta regra é
de todos os grammaticos, e a razão, aindaque elles a não expliquem
151é mui facil de entender. Ao nome proprio não pode
dar-se restricção, por significar já couza limitada, e particular.
O nome appellativo tem significação vaga, exprime a imagem
de speecto indeterminado, e em toda a estensão, como por exemplo
lagrimas, signaes, que significam em geral todas, e quaesquer
lagrimas, ou signaes; mas logoque se lhe ajuntam os restringentes,
perdem a generalidade, ficam limitados, e tão sómente
denotam, como se foram nomes proprios, couza particular,
e especifica; assim ao primeiro exemplo lagrimas de meninos,
e signaes da mizeria já não significam em geral, e em sentido
absoluto todas as lagrimas, todos os signaes, como antes significavam,
senão em sentido determinado, e limitado certas lagrimas,
e signaes, que os restringentes lhes dezignam. Esta regra
não admitte excepção; porem mais pelo modelo da lingua grega
do que da latina tambem se usa no portuguez para maior viveza
da expressão tomar o adjectivo no mesmo numero, e genero do
substantivo, com quem deveria concordar, e por depois delle
este mesmo substantivo com o articulo de restringente, como se
viera depois de nome appellativo. O mesmo uso tinham os hebreos,
mas os hebreos careciam de comparativos, e superlativos, e
por isso usavam sempre dos pozitivos. E muitas vezes se diz até na
conversação familiar: o máo do homem, os formozos dos animaes,
como tambem diziam os gregos, de que se pode colher grande copia
de exemplos em nossos classicos. Pequeno de trabalho, Souz.
Vid. 30. Pequeno de refrigerio, Brito chron. 183. Pequeno de
máo caminho
, Aveiro, Itinerar. 170 v. Pequeno de pão, Brit.
chronic. 176 v. 244 v. 271 v. 284 v. Fr. Marc. chron. II,
138. v. Pequeno de entendimento, Silva. Defensão da Monarch.
II. 117. Tambem é mui vulgar dizerem nossos classicos: Peccador
de mim
. Arraes, 256 v. Sá, Vilhalpand. 190. Pobres das
mulheres
. Cart. de guia 141. Coitada de mim. Bernard. Ribeir.
8. Sá, Vilhalpand. 192. 203. Ferr. Brist. 19. Coitadas das mulheres,
Bernard. Ribeiro 9. Boa da velha, Leit. Miscel. p. 404.
Bom do Prior. Leit. Miscel. p. 576. Doudo de mim, Sá Vilhalpand.
184. Parvo de mim, Ferreir. Brist. 32. Tudo imitação
verdadeiramente dos gregos, que diziam commumente:

πολλοι των ανδρωπων
Esopo, fabul. 64., e fabul. 105.

ταλλα των ξωων
Id. fabul. 113.

τα φιξιρα των ξωων
152Id. fabul. 5.

οι φροημοσ των αυδρωπων
Id. fabul. 137.

E o mesmo:

πα παλα των ξωων.

Mas neste cazo os grammaticos entendem muitas vezes a
elipse.

N.º 7.
Nota (f) de fol. 100.

O que se diz na nota de restringente deve-se entender nos
caracteristicos ao, á, aos, ás, pois segue a mesma regra, porque
a, as, e á se deve entender artigo de recipiente quando
vem antes delle; e quando vier antes de verbos, ou adjectivos,
e assim se dá com a que é sempre articulo quando significa ou
é signal de recipiente, ou de paciente; e preposição, quando
vier anteposta a circumstancias.

N.º 8.
Nota (a) de fol. 120.

Em a nota 63. do liv. I. part. III, se pode ver o que dizemos
ácerca do adverbio, e preposição.

N.º 9.
Nota (c) de fol. 130.

Assimcomo o verbo não pode ser levado ao infinitivo senão
depois de outro no finitivo, assim tambem não pode o infinitivo
em nenhuma occasião ser pessoal. Muitas vezes pela figura paragoge
se accrescentam aos infinitivos as vozes es, mos, des, em,
que fazem as vezes de pronomes, com as quaes parece imitar as
formas pessoaes, quando se diz, por exemplo: amares, amarmos,
amardes, amarem, defenderes, defendermos
etc: mas alem
de que este especial idiotismo não pode mudar a natureza do infinitivo,
em que não sabe numero, nem forma; devem estas
vozes resolver-se, quando occorrerem, nas do conjunctivo pela
figura enallage.153

N.º 10.
Nota (a) de fol. 104.

Ellypse é voz grega, que alguns derivam do verbo ειλω,
contrahir, estreitar, outros de λιεα deixar, faltar, e οψιποσ,
voz ou palavra. E’ frequente em todas as linguas, entre os gregos
tinha uso mui especial, e tanto, que quasi se não encontra
verso, em que se não ache a brachulogia.

N.º 11.
Nota (d) de fol. 105.

Os grammaticos dão ordinariamente esta regra dizendo: intervindo
na oração substantivos no singular de diversos generos,
e pessoas, põe-se no plural o adjectivo, ou o verbo, que deve
com elles concordar, prevalecendo o genero masculino ao feminino,
a primeira pessoa á segunda, e a segunda á terceira, por
se entender mais nobre o genero masculino que o feminino; e a
primeira pessoa mais nobre que a segunda e terceira, e a segunda
mais do que a terceira; e se os substantivos são de terceira
pessoa põe-se o verbo ou no singular ou no plural, assim no
exemplo proposto o verbo folgais está no plural, com serem
dous agentes do singular; e na segunda forma por vir tu da segunda
pessoa com substantivos da terceira.

N.º 12.
Nota (g) de fol. 106.

Tambem se usa concordar no portuguez com o verbo no
plural um só agente do singular, juntando a este um, ou mais
nomes na relação de circumstancia com a preposição com. E’
uso dos latinos, ex: Pharnabazus cum Apollonide, et Athenagora
vincti traduntur
. Curtius, lib. IV. Cap. 5. num. mih. 18. Juba
cum Labieno capti in potestatem Cesaris venissent
. Por este modo
escreveu Moraes: O imperador com Primalião, e alguns seus
privados gastavam muito o tempo no muito que se devia a Targiana
.
Palmeir. part. II. cap. 123; e Camões

Q’eu c’o o grão Macedonio, e c’o o Romano.
Demos lugar ao nome Lusitano
?
Lusiad. cant. I. est. 75.

Sobre umas palhas se agazalhavam o santo Patriarcha Ignacio
com seus dous companheiros
. Telles, chron. da Companh. part. I.
154liv. I. cap. 6. Patecatir com todolos seus per falta destes quatro
jungos padeciam grande fome
. Goes, chron. de D. Manoel, part.
III. cap. 28. pag. 191. Rui de Souza com os sacerdores etc. Barr.
Dec. I. liv. 3. cap. 9. pag. 53. Finalmente Antonio Correa com
toda sua gente
. Id. Dec. III. liv. 3. cap. 5. pag. 66. v. Estão
indivizos nos louvores a mai com o filho
. Ceita, Quadragen. I.
11 v. Dous ou mais nominativos do singular levam o verbo ao
plural (regra dos grammaticos). Tambem pode ser o verbo no
singular. No primeiro concorda com todos, entendendo o ellipse
ambos, ou todos. No segundo modo concorda com cada um de
persi. Estes exemplos bastem, deixando muitos outros, em prova
desta verdade.

N.º 13.
Nota (c) de fol. 105.

O uso da syllepse á imitação da syntaxe grega, e latina é
mui frequente em nossos auctores, que, fazendo corresponder ao
numero plural do verbo ou adjectivo o singular do substantivo,
e o genero masculino ao feminino, tinham em pensamento mais
o speecto, que queriam significar, do que a qualidade da voz
que o representava. Bem sabidas são as locuções latinas: Populus
clamant: Pars in carcerem acti
, que em tudo imita a nossa lingua;
e tem lugar, quando o nome do singular é collectivo. A
cada passo se podem colher exemplos. Por este modo em quanto
ao numero escreveu Barros. Dec. I. liv. 9. cap. 4: Assi ascenderam
a furia dos gentios, e mouros das náos que eram prezentes,
que vieram com aquelle impeto um grande numero delles sobre
os nossos
. Id. Dec. II. liv. 3. cap. 4. Com as trovoadas de
Guiné se criam tão grande quantidade desta praga, que cobre
a terra, e per onde passam como nuvens de fogo leixam escaldado
e queimado toda planta e herva, ao tempo desta sua passagem
.
Ferreir. Elg. VI.

De Persia e Arabia a tributaria gente
Viram de seu despojo as praias cheias
.

Cam. Luziad. cant. IV. est. 21.

Desta arte a gente fórça, e esforça Nuno,
Que com lhe ouvir as ultimas razões;
Removem o temor frio, importuno,
Que gelados lhe tinha os corações:
Nos animaes cavalgam de Neptuno,
Brandindo, e volteando arremessões;
Vão correndo, e gritando a boca aberta:
Viva o famozo Rei que nos liberta
.155

Brit. Chron. de Cister, liv. 3. cap. 29: Quando a gente, que
vinha vizitar seu corpo o acharam já sepultado
. Souz. Vid. do
Arceb. liv. 4. cap. 8: Povoavam os degráos muita sorte de gente
que pareciam pobres
. Id. Hist. 11. liv. 6. cap. 3. Entraram
pouco depois no convento de mandado delRei uma moderada companhia
de fidalgos, e capellões de sua capella
. Telles, Chron.
da Companh. II. 5. 35. num. 4. Tambem o sahiam a esperar
perto de legoa infinita gente da cidade
. Em quanto ao genero
Rezend. Chron. de D. João II. cap. 128: E detraz dos cadafalsos
vinham muitas charamelas, e sacabuzas ricamente vestidos
.
Barr., Dec. 1. liv. 1. cap. 2: Antre os quaes foi uma pessoa notavel
chamado Bertolameu Perestrello, que era fidalgo da caza
do Infante Dom João seu irmão
. Moraes, Palineir. part. II. cap.
164: Pedindo ajuda, e soccorro aaquellas estatutas contra aquelle
violador de seu paço, aos quaes gritos pareceu que se boliam
todos co’ as espadas levantadas
.

Camões Luzid. cant. IV. est. 22:

Das gentes populares uns approvam
A guerra com que a patria se sostinha.
Uns as armas alimpam, e renovam,
Que a ferrugem da paz gastadas tinha
.

Id. cant. VII. est. 47.

Alli estão das deidades as figuras
Esculpidas em páo, e em pera fria,
Varios em gestos, varios de pinturas
.

Paiva, Serm. part. III, pag. 63: Não ha couza mais certa,
que correrem-se as pessoas, quando se vem enganados das esperanças
que tinham
. Leit. d’Andrad. Miscel. dial. 19. pag. 583:
Onde dizem plantou certas arvores, pera sombra e recreação nas
festas, os quaes cresceram em breve tempo de maneira que se fizeram
tão frondozos, e estendidos, que a sombra de qualquer
delles pode cobrir um escoadrão de gente
. Vieira Serm. II. num.
44. Vemos tantas velhices decrepitas tão enfeitiçadas das paredes
de palacio que tropeçando nas escadas, sem vista, e sem
respiração as sobem todos os dias bem esquecidos dos que lhe restam
de vida
. E não pareçam muitos os exemplos, que mais ainda
poderia trazer em prova, do que já alguem sem fundamento
me quis duvidar.156

N.º 14.
Nota (d) de fol. 106.

E’ muito ordinario pola figura enallage tomar na lingua portugueza
não somente os infinitivos dos verbos como nomes substantivos
da mesma sorte que na latina ensinam Prisciano, e outros
grandes grammaticos, e comprova Sanches em varios lugares da sua
Minerva; mas tambem acommodar-lhes genero, e relação á
maneira dos gregos; o que se faz commumente no portuguez,
mas só com o artigo indefinido, e dizemos: amar, de amar,
a amar; receber, de receber, etc; algumas vezes se lhe antepõe
tambem o artigo definido, como no exemplo apontado de Arraes,
O dar he titulo etc.

N.º 15.
Nota (a) de fol. 108.

E’ a figura hyperbato usada dos poetas não só em razão da
rima, senão por cauza do ornato. Define-se esta segundo o veneravel
Beda no seu tratado dos Tropas: Transcensio qaedam
verborum ordinem turbans
. Valem-se della como do instrumento
mais proprio para imitarem o verdadeiro caracter de uma paixão
violenta; pois os assaltados de colera, de temor, de indignação,
ou de outra paixão vehemente cortam por uma viva agitação o
fio do discurso, concebem logo novo dezignio, na ametade delle
propõem outro, e voltam rapidamente ao primeiro. Estes transportes
reprezentam-se maravilhozamente, pela confuzão das vozes,
nesta figura. Tambem tẽ lugar no estylo da proza, porque
esta não menos procura chegar-se á perfeição da natureza. Confira-se
Longino secç. ou cap. 22. do seu tratado do Sublime, e
Theon nos seus Progymmasmas cap. 4., onde accrescenta que
tambem dá variedade, e novidade á oração.

Assim é que não são proprias da lingua portugueza as transposições
ao costume dos gregos, e latinos, aindaque tomou muito
de ambas: elles procuravam mais o artificio, e industria, a
nossa lingua deve mais á natureza, acompanha os pensamentos,
e segue-os na sua mesma ordem; mas não deixa comtudo de
procurar a harmonia, e o numero, como todas as outras linguas.

Fui notado de certo grammatico, por escrever assim na dedicatoria
desta arte: Quando esta Grammatica comecei a escrever
etc, defeito em que crimina igualmente a Camões, quando disse
no canto III. est. 42:

Senão no summo Deos, que o eco regia,157

e no cant. II. est. 12:

Naquelle Deos, que o mundo governara;

por imaginar verdadeira a regra, que havia dado, de que o paciente,
quando é de couza, deve ir sempre depois do verbo. Porem
a minha construcção ainda a tachou de mais vicioza, e tão
fora do commum uso de fallar, que a reputou muito mais retorcida,
que a dos versos apontados por João de Barros, no Dialogo
em louvor da nossa lingua, a pag. 219, que começam: O
quam dicinos acquiris terra trimphos
, etc. de que Franc. Barret.
no cap. 4. da sua Orthograf., e Vera nos louvores da lingua
portugueza, pag. 84, dão por auctor a D. Miguel da Silva,
em louvor de Portugal, e juntamente são latinos, e portuguezes.

Porem, salva sua grande auctoridade, não advertiu, como
devia, aquelle critico, posto que mui sagaz, e experto, que esta
collocação, que tanto o desassosegou, não somente é adoptada,
e mui frequente, e necessaria nos poetas, e no mesmo Camões,
assimcomo em todos os outros, se lesse com a deligencia devida,
acharia exemplos a cada passo; mas foi, e é ainda hoje usada
na proza. Doutrina é de todos sabida, que da juntura, e suave
disposição das palavras depende a principal graça da elocução,
porque sem perturbar a sentido, e intelligencia do pensamento
devem encher, e deleitar pela harmonia o ouvido, cujo severo
juizo chamou Cicero soberbissimo. Orat. n. 150; e que esta é
uma daquellas cinco essenciaes virtudes do discurso recommendada
pelo mesmo Cicero, Part. Orat. n. 5: Dilucidum, breve,
probabile, illustre, suave
; mui conhecida, e praticada dos nossos
bons escritores, os quaes mui bem advertiam, quando elle
perde de sua graça, e formozura se se quebrar a artificioza collocação
das palavras, por seguir a ordem natural, e da grammatica.
Assim o sentiu Cicero Orat. n. 81. e o mostrou Quintiliano,
liv. 9. cap. 4. em um lugar de uma oração do mesmo
Cicero quasi pelas mesmas palavras com que elle o havia já notado
no mesmo livro Orat. num. 252. O modo por que se isto
pratica não é proprio deste lugar, pode com facilidade, o que
dezejar instruir-se, consultar a Escaligero, que, depois de Dyonizio
de Halicarnasso, mui bem o ensina em sua Poetica, liv.
4. cap. 47, a Jacob Omsalio, De elocutionis imitatione, ac apparatu,
e particularmente a Jacob Luiz Strebeo, De Electione,
et oratoria collocatione verborum, e Jovita Rapicio, De numero
oratorio
, que nesta materia escreveram com summa deligencia,
e utilidade, publicados ambos juntamente na impressão de Colonia,
8º em 1582.158

Bem a propozito desta accuzação vẽ a resposta de Probo
Valério, referida por Aulo Gelio, liv. 13. das Noites Aticas,
cap. 19: Si aut versum pungis, aut orationem solutam struis,
atque ea verba dicenda sunt; non finitiones illas prae aeneidas,
neque faecutinas grammaticas spectaveris: sed aurem tuam interroga,
quo quid loco conveniat dicere; quod illa suaserit, id profecto
erit rectissimum
. E com sua resposta me dou por satisfeito.

Quão rigorozo vai este Juro censor! Receio tenho não approvará:
O pão nosso de cada dia nos dá hoje, e: Esses teus
olhos mizericordiozos a nós volve
, que estão de longa posse na
cartilha. E’ muito para admirar, que cedendo o trabalho ao engenho
em materia tão importante, e varia como é a sua Grammatica
filosofica, antes de lançar aquella regra não tivesse lido
em Moraes, Palmeirim, e na dedicatoria: Obrigação mui grande,
Serenissimo Principe, tẽ esta cidade de Lisboa, e seus moradores
grandes, e pequenos de servirmos perpetuamente a V. A
.
Granada, Compendio da doutrina christã, part. I. cap. 3: Todas
tuas obras faze com fé de tua alma
. Em Fr. Marcos, Chronica
dos menores, part. II. liv. III. cap. 5: A presumpção no gesto
declaram a cabeça levantada, os olhos erguidos, e o rosto carregado
.
Nabo Ceremonial, pag. 57. Sem estas ajudas e deligencias
perigo corre nossa vida
. Em Coelho, Chronica do Carmo,
liv. I. cap. 10: Tres couzas notaveis tambem nos deu o
fructo da Virgem
. Dom Hilarião, Voz do amado cap. 2: Esta
occupação trabalhoza deu Deos aos filhos dos homens
. Em Leão,
e tambem em dedicatoria, Orthografia: Não menos industria
puzeram no estudo da eloquencia que na disciplina da milicia,
e pouco depois: Não menos cuidado tiveram de bem escrever,
do que tiveram de bem falar, e ainda outra vez: E quanta deligencia
pozessem os antigos na arte de seu escrever
. A quem
imitou Vera no prologo da Orthografia: Quanta deligencia puzerão
os antigos, e sabios romanos na arte de seu escrever
. E
na Chronica de D. Affonso Henriques I. pag. 95: Como tal os
ajudaria sempre com sua pessoa contra os imigos da fee, e contra
aquelles, que damno, ou offensa lhes quizessem fazer
. Lucena,
liv. I. cap. 10: O coração do rei Deos o menea, e um pouco
adiante: Esses respeitos, e obrigações de authoridade tẽ hoje,
senhor, a republica christã no estado que vemos
. Arraes, dial.
VIII. cap. 8: Os pobres communs penhor tẽ sobre que seguramente
acham a sustentação pera a vida necessaria
; e no IX
cap. 16: Saul magoa mostrou pela desobediencia que commeteu.
Souza, Hist. de S. Dom. part. I. dedicat: Novo genero de chronica
offerece a Vossa Magestade minha religião
, e liv. IV. da
part. II. cap. 24. Quando o ceo testemunha, offensa fará a terra
159em querer tambem dar seu voto
. Fr. Christovão Ozorio, Pancarpia,
dedicatoria: A minha Pancarpia offereço a vossa muito
Reverenda Paternidade
, Torres de Lima, Successos de Portugal,
Avizos do Ceo, part. I. cap. 20; Portugal esforço teve,
verdade falou; fumozas obras cometteu, victorias, e triunfos alcançou
.
Telles, Chron. da Comp. part. I. dedicator. Este favor
espera nossa Religião de Vossa Magestade
, e liv. I. cap. 10:
Outra maior obrigação temos a este benignissimo Principe; e
part. II. liv. 5. cap. 18: A certeza indubitavel desta inviolavel
verdade vemos cada dia, e a experimentamos muito á nossa custa
.
Esperança, Hist. Serafic. part. II. prolog; No particular das
letras he certo, que os latinos nenhuma grega chegaram a admittir
senão foi nas palavras tambem gregas
. Vieira, Serm. tom.
I. col. 373: Grande obra intenta Deos, e col. 545: Varias razões
apontam os historiadores, e politicos
: Cartas, tom. III.
cart. 93; Uma carta tive de um irmão leigo de S. Roque, e um
pouco adiante: O soccorro do ceo, e da terra todo considero na
prezença de Vossa Magestade
. Parecerão muitos os exemplos,
verdadeiramente o são (e muitos mais havia), mas de propozito
foraõ apontados, paraque se note a grande lastima de tantos escritores
em copiarem cegamente uns aos outros, para virem todos
nestes nossos tempos a ser reos no austero tribunal de um tão
famozo juiz. Agora caberia bem dizer-lhe com Cicero no lugar
acima apontado, e copiado por Quintiliano: Immuta paullum,
perierit tota res.

Ora eisaqui os lugares, que eu talvez imitasse. Logo falsa
é a regra, que aquelle grammatico nos deu com engano gravissimo,
e sem desculpa, para que não tinha fundamento, nem
auctor nenhum; e falsa tambem a accuzação contra mim, porque
se fora boa, e certa, não seriam nossos classicos tão uniformes
nos citados exemplos, que desenganarão ainda os que tanto
conhecimento não tem destas couzas; não para me justificar, senão
para confirmar a verdade da doutrina.

Fim.160