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Fonseca, Pedro José da. Rudimentos da grammatica portugueza – T03

[Rudimentos
da Grammatica Portugueza]

Prologo.

Tem-se recommendado tanto, e
com tal pezo de boas razões o estudo
da Grammatica das lingoas nacionaes,
que ninguem a respeito da sua, poderá
entrar devidamente na menor dúvida
sobre a importancia, ou (para melhor
dizer) necessidade de huma tal
instrucção. Até mesmo os que della carecem,
rendendo-se á força da quotidiana
experiencia, não deixão de sentir
a sua falta, quando tomados ás
mãos nos frequentes erros, que comettem,
se achão corridos, e confusos,
já na conversação, já escrevendo.
Além de que no exercito dos empregos
(seja qual for o estado, ou profissão)
nas correspondencias epistolares,
no manejo dos proprios negocios,
na administração de seus mesmos bens,
n'uma palavra, em todas as funções
da vida civil se vêm constrangidos a reconhecer
superioridade naquelles, que
de viva voz, e por escrito se explicão
correctamente. Se alguns todavia (porque
IIInem tanto alcanção) a qualquer
destas cousas se arremessão confiados,
maiormente se o pede a obrigação do
officio, expostos á censura, irrisão,
e menos preço do Público, com justiça
ficão assás punidos da temeraria ousadia,
com que o fazem. Os defeitos
da educação, porque elles nunca attentárão,
não podem aqui esconder-se,
e offerecendo aos ouvidos, e olhos
de todos hum manifesto, e convincente
testemunho do seu prestimo, por
mais que a sorte os eleva, o geral
conceito em proporção os abate ao valor,
que só lhes compete.

“Pela Grammatica das lingoas,
(diz bem illustre Escritor nosso) (1)1
que he o primeiro degráo das
letras, se entra a todas as sciencias,
com cujo beneficio ellas se conservão,
e se perpetua a memoria das
cousas. Ainda que como escreve
Quinctiliano, tem mais de trabalho
que de ostentação. He (como diz
Isidoro) o fundamento de todas as
artes liberaes, e disciplinas nobres…
IVE se este primeiro degráo he tão
necessario aos homens, que parece
que sem o conhecimento desta arte
lhes não he licito abrir os beiços,
que será levantar-se a subir ao cume
mais alto das sciencias, e disciplinas
nobres.”

Além disto se o estudo da Grammatica
da propria lingoa, se anticipára,
como devêra ser, aos outros, que convém
aos primeiros annos da vida, facilitaria
muito a percepção das regras
dos idiomas estranhos, pincipalmente
as do Latim, indispensavel aos que
hão de seguir alguma das profissões
literarias. Os elementos do discurso
são communs a todas as lingoas, e por
tanto, “antes de emprehender o estudo
de huma nova (assim o julga
sabiamente Mr. De Condillac) (1)2
faz-se preciso saber a propria, e mais
que tudo ter muitos conhecimentos
para não encontrar embaraço nas palavras.
Pois ainda que he util deixar
a hum menino difficuldades,
que vença, todavia convém não o
Vdesgostar com obstaculos, ou muito
amiudados, ou excessivamente grandes;
e todo o cuidado deve consistir
em proporcionar-lhe as dificuldades
com as forças, e não lhe
offerecer de cada vez mais do que
huma.”

Não obstante porém conhecer-se
tão claramente o mal, que da sobredita
falta resulta, não se vê que na
prática se lhe acuda a tempo com o
remedio. Muitos o desejão, poucos
lho applicão. Será pela pouca efficacia
dos que se lhe tem ministrado? Varios
ha, mas póde ser que tentados
deixassem de se repetir por haver mostrado
a experiencia que prolixos, e
desabridos mais incommodão do que
aproveitão. Eis aqui a juizo de hum
Moderno dos mais acreditados neste
particular como Grammatico, e como
Filosofo, o motivo principal. Tudo
que Mr. Du Marsais (1)3 appropria
aos Grammaticos da sua nação, he
transcendente aos de todas as outras.

“Os nossos Grammaticos (assim
VIdiz) querendo sugeitar as lingoas
modernas ao methodo Latino, as
embaraçárão com hum grande número
de preceitos inuteis, como são
casos, declinações, e outros termos,
que não convém a estas lingoas,
e que nunca se haverião recebido
a não terem os Grammaticos começado
pelo estudo da lingoa Latina.
Assim vierão a submetter simplices
equivalentes a regras estranhas. Porém
a Grammatica de huma lingoa
nunca pelas fórmulas da Grammatica
de outra lingoa se deve regular.
As regras de huma lingoa só desta
mesma lingoa devem ser tomadas.
As lingoas precedêrão ás Grammaticas,
e estas não se devem formar
mais que de observações exactas,
tiradas do bom uso da lingoa particular,
de que ellas tratão.”

Remover o dito inconveniente na
conformidade do methodo aqui prescrito,
e já praticado por Grammaticos
insignes, dos quaes se consultou o
maior número, foi o designio, com
que se escrevêrão, e publicão estes
Rudimentos da Grammatica Portugueza.
VIIAssim he que ainda nestes taes
Grammaticos não falta que desejar (*)4;
mas quanto á ordem, e solidez dos
preceitos, perspicuidade em os expôr,
e averiguação de seus principios, a
ventagem, que elles tem sobre os Antigos,
he incontestavel.

O intento, com que esta obra se
imprime, he ver se por semelhante
modo se consegue entre nós proveito
igual ao que em outras partes se tem
percebido por intervenção, e industria
dos referidos Grammaticos. Porém isto
sem que se experimente, mal póde com
segurança saber-se. Deve pois tentar-se:
o meio he este. O zelo (segundo
bem considera hum Autor eloquente (1)5),
“não tem mais obrigação
que de ser bem intencionado. Póde
ser muito bom, e póde enganar-se.”
VIIIAssim quando a este projecto pelo zelo
do serviço do Soberano, e da Patria
puramente concebido, succeda outro
tanto, nunca se seguirá a quem o
formou, desprazer, ou arrependimento
de o haver preparado.

Quanto á sua execução, permitta-se
não se dar della neste lugar huma
individual noticia. A brevidade da obra
levemente soffre este exame, e o deixa
a pouco custo perceber. Sugeito,
como deve estar ao juizo dos Sabios,
juizo privativo neste genero, e nelle
só legal, porque intelligente, recto
sempre em commum, porque sem dependencia,
nem parcialidade, a este
juizo em fim se offerece o sobredito
exame com o mais profundo, e docil
respeito.

Não se quiz fazer hum livro grande,
pois que isso bastaria por si só
a frustrar o fim, a que elle se encaminha,
e o titulo promette. Por conseguinte
as discussões de pontos controversos
não podem aqui entrar. Methodo,
concisão, simplicidade, sem
omittir quanto se entendeo ser necessario,
foi sobre que se pôs especial cuidado
IXo possivel desvelo á medida
(como he bem que só se entenda)
das limitadas forças de quem a si tomou
este trabalho, talvez a ellas muito
superior. Se com tudo na sua fórma,
e estructura se conhecer alguma
utilidade, aperfeiçoado elle por quem
melhor o saiba fazer, nem o exemplo
ficará sendo infructuoso, nem quem o
abrem se terá por pouco satisfeito, ou
menos bem galardoado.

Sejão á boa tenção obras iguais,
E a boa tenção, e obra á Patria sirva,
Demos a quem nos deo, e devemos mais.
(1)6

No tocante porém aos exemplos
que confirmão, e illustrão a doutrina,
igualmente se permitta o sahir dantemão
ao encontro de dous reparos,
que ao Leitor poderão particularmente
occorrer, taes como o de serem
muitos em geral, e alguns delles hum
pouco extensos.

Se parecerem muitos; pede-se que
haja consideração, que em todas as
artes, e com especialidade na de fallar,
para saber as regras não basta ententelas,
Xnem havelas tomado de cór,
pois que além disto se faz necessario
ter acquirido o habito de as applicar.
Este habito tão importante á cultura
da razão humana, e ao util progresso
em toda a sorte de estudos, se desde
a primeira idade deixa de se inspirar,
diffizultosamente se consegue ao diante,
e quasi sempre falta pelo discurso
da vida inteira. O entendimento contente,
e pago de si se deleita sobre
modo quando descobre executado aquillo,
que nas regras se lhe occulta; e
como tem isto por invento proprio, a
secura das mesmas regras se lhe torna
suave por este modo, e a disposição
de as applicar a novos exemplos ganha-se,
e cada vz mais se fortifica
com gosto, e facilidade. Por isso com
razão se diz, que o caminho das artes
pelos preceitos, he dilatado; porém
breve, e efficaz quando he feito
pelos exemplos; e que são elles mais
poderosos que as mesmas artes, que
se ensinão.

Quanto ao segundo reparo sobre
a extensão dos sobreditos exemplos,
qualquer que ella seja, justo parece,
XIque se lhes releve, olhando-se ao que
tem de instructivos. Documentos de
Religião, principios de moral, huma
util maxima, hum pensamento delicado,
hum conceito engenhoso, hum
bom apophthegma, um facto exemplar
são o que nelles se contém; e tudo
isto, ou comprehendido em versos
harmoniosos, ou expressado por elegantes
palavras excita pela variedade a
attenção dos meninos, e lhes diminue
a dureza, que he inseparavel dos preceitos.
Verdade he que muitos destes
exemplos escusão decorar-se; mas a sua
graça, e belleza lhes dará pronta entrada
na memoria, e como esta de ordinario
tenazmente retem o que se lhe
imprime quando tenra, póde ser que
em maiores annos venhão a converter-se
em proveitosos fructos estas cousas,
que se lhe entregárão a principio na
simples fórma de agradaveis flores.

Demais, todos estes exemplos
são tirados dos nossos Classicos, isto he,
daquelles bons escritores Portuguezes,
que ou pela sua ancianidade, ou por
consenso commum fazem autoridade
na lingoa, a qual se nos transmittio
XIIpor elles já formada, e enriquecida
com preciosos dotes, gravando lhe juntamente
o indelevel caracter, que tanto
a singulariza. Esta autoridade, que
só o tempo, e a constancia unanime
da pública opinião podem fixar, serve
para dar aos ditos exemplos força,
e apreço. Mas conhecendo os meninos
desta maneira parte daquelles,
a que ella pertence, he natural que
dese em conhecer depois os outros seus
iguaes. Daqui talvez se siga, que tendo-os,
como realmente são, por unicos
mestres, e seguros modellos da
nossa boa lingoagem, nas suas obras
procure aprendela quem com pureza,
e correcção a quizer fallar, e escrever.
E quando isto apenas chegasse a se
conseguir por hum tal meio, sobejamente
venturosa ficaria sendo a diligencia,
que se empregou para o fazer effectivo.

Finalmente por não dilatar mais
a conclusão deste prologo, seja o seu
remate a judiciosa ponderação de hum
antigo Historiador nosso (1)7, pelas
XIIIsuas formaes palavras. “Quem escreve
(diz elle) não póde contentar
a todos, e não fará pouco, se de
poucos for tachado, que todos querem
emendar, e mui poucos escrever.
E para se isto evitar não devia
de haver outra pena senão aos glosadores
metter lhes papel, e tinta
nas mãos, e fazelos por força escrever,
e seria mui bom freio para
os desbocados, que sem saber o que
dizem, glosão o que não entendem”
Donde provém que, segundo
elle mesmo nota em outra obra: (1)8

Mui poucos ajudadores
Acha quem quer fazer bem,
E se alguem bem feito tem,
São tantos os glosadores,
Que o não faz já ninguem.

A estes advertio tambem hum dos
nossos Comicos velhos (2)9, que “lêr
sem gosto, e a fim de notar por
mostrar discrição, he huma purga,
XIVque faz que nada se logre no peito.”

Mas isto se entenda meramente dito
a respeito dos que só podem entrar
nesta conta. Das pessoas doutas he que
depende por inteiro o bom, ou máo
acolhimento, que o Público faz áquillo,
que se lhe dirige a titulo de o servir,
na certeza de serem ellas as que
mais de verdade, e com o necessario
conhecimento amão, e zelão o bem, e
interesse commum. A este supremo voto
fica de boa mente subordinada, como
as demais todas, que se dão á estampa,
a presente obra. Não aspira ella
inconsideravelmente a obter o de approvação
absoluta; mas confiada na pureza
da origem, de que procede, espera
segura o da mais benevola indulgencia.
Isto lhe basta:

Os mais que digão bem, que mal, que monta?
Sempre os que menos sabem, mais reprendem.
(1)10XV

1(1) Lob. Cort. na Ald. dial. 16. f. 159.

2(1) Cours d'Etude, t. 1. p. 70. motif. des etudes.

3(1) Principes de Grammaire, part. 2. p. 567.

4(*) «Outros [depois de Mr. Du Marsais]
tem trabalhado neste genero com felicidade,
e mostrado nelle grandissima sagacidade. Sem
embargo disto confesso que ainda nas suas
obras não encontro aquella simplicidade, que
constitue o principal merecimento dos livros
elementares.» Mr. de Condillac, Cours
d'Etude, t. 1. Grammaire, pag. 2.

5(1) Vieir. Serm. t. 12. p. 45.

6(1) Ferreir. Poem. Lusit. l. 1. cart. 3.

7(1) Garcia de Resende, Chron. delR. D.
João II, c. 137 f. 32. col. 1

8(1) Id. Miscellan. f. 174. col. 2.

9(2) Jorge Ferreira de Vasconcellos, Eufros.
c. 3. ac. 2. f. 103.

10(1) Bernard. Lim. cart. 12.