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Sousa, Manuel Dias de. Gramatica portugueza – T02

[Gramatica portugueza]
Introdução

A Palavra fás huma parte fundamental da essencia,
e da gloria do homem, e o distingue incomparavelmente
das outras creaturas animadas,
com as quaes elle reparte os frutos da terra, e
participa de todos os fenomenos da vida animal.

Se os animaes nascem, crescem e se movem,
comem, bebem, e dormem como o homem ;
se eles são igualmente sensíveis ao prazêr,
á dôr, e ás revoluções do tempo ; se como
ele procurão entreter-se com seus semilhantes ;
eles não exhalão mais do que hum grito inarticulado,
tão lemitado nos seus efeitos, como na
sua natureza, o qual lhes não serve de mais do
que para hum instante, sem nada contribuir
para eles augmentarem a massa dos seus conhecimentos.
E por mais seguro que seja o instinto
dos brutos, por mais perspicacia, delicadeza e
astucia que neles se descubra, desde que são destituidos
da palavra, eles são de huma natureza
infinitamente inferior á do homem.

Pois se no homem se encontrão as mesmas
propriedades que ha nas outras creaturas ; se ele
vegeta como a planta, se ele se move e sente
como o animal, ha nele huma terceira vida que
não he nem a vegetal, nem a animal ; ha nele
a vida da inteligencia, que o eleva tanto acima
dos animaes, que deixa hum immenso intervalo
Ventre as respectivas naturezas ; porque se
o homem tem faculdades sensitivas, por meio
das quaes executa tudo o que exigem as suas
necessidades naturaes assim como os brutos,
tem alem disto faculdades intelectuaes, fundadas
sobre as sensitivas, as quaes, ainda mesmo
que nelas se firmem, as excedem infinitamente
por suas operações. Pois com efeito, os meios
pelos quaes nos elevamos de huma a outra
verdade, nada tem de cõmum com a industria
necessaria para procurar os alimentos convenientes
ao nosso estado, ou para evitar tudo o
que pode ser funesto á nossa vida animal.

Os brutos acabão com a morte, e não precizão
de mais doque deste instinto e propensão
da natureza para se nutrirem, e reproduzirem
em quanto existem ; mas o homem he o
chefe d'obra da natureza, e a ultima que sahio
das mãos do Creador do Mundo : ele foi creado
para viver eternamente com seu mesmo Creador ;
e por isso o mesmo Senhor o enriqueceo de outras
prerogativas proporcionadas ao seu alto destino.
O espirito com que o animou pensa, julga,
e discorre, e por este modo adquire novos
conhecimentos, e aperfeiçôa todas as suas faculdades ;
porém elas lhe serião quazi inuteis
se houvessem de ficar encerradas no interior
do homem, sem que ele podesse exprimir a
seus semilhnates as idêas, os juizos, e discursos
que formasse das coizas que o cercavão, e já
mais os homens poderião formar huma sociedade
VIvantajoza. A bondade do Creador tudo prevenio :
e dando a esta sua mais bela creatura a
faculdade de poder manifestar as suas sensações
pelo grito, como os quadrupedes, os seus prazeres
pelo canto, como as aves, lhe concedeo
tambem o preciozo dom da palavra para exprimir
os seus pensamentos ; para este fim o dotou
dos orgãos necessarios para articular os diversos
sons de que a mesma palavra de compõe, e lhe
deo hum gráo de inteligencia pelo qual só ele
podia fazer destes orgãos o uzo para que erão
destinados. Os animaes que tem com pouca diferença
orgãos proprios para a palavra não sabem
fazer dela algum uzo por si mesmos, porque
lhes falta a inteligencia, que unicamente
pode pôr em obra o instrumento vocal, do
qual a palavra he o efeito mais preciozo. O homem
sim fala, porque he dotado de inteligencia.

A Sagrada Escriptura nos reprezenta os primeiros
individuos da especie humana, conversando
com a Divindade desde o primeiro momento
da sua existencia, e ao mesmo Creador
instruindo estas ditozas creaturas a fim de as
fazer mais dignas do fim para que as tinha creado,
e de que a sua conduta correspondese á
sua Augusta Origem.

O dom da palavra dado pelo Creador excluzivamente
ao homem, he o vinculo mais
suave e deliciozo da sociedade, que o mesmo
Senhor quis estabelecer entre os homens. Por meio
d'ela manifestamos as nossas necessidades, os
VIInossos temores, os nossos prazeres, e as nossas
lúzes ; recebemos da parte dos outros os socorros,
os avizos, e as instruções de que necessitamos.
Por meio dela huma alma, desenvolvendo
a outra, adquire todas as perfeições de que
pode ser susceptivel : sentimentos de coração,
fogo de genio, riquezas de imaginação, profundeza
de espírito, e tudo se vem a fazer hum
bem cõmum para os homens ; os conhecimentos
de hum são os conhecimentos de todos : assim
ajuntando sem cessar descubertas a descubertas,
artes sobre artes, lúzes sobre lúzes, o espírito
do homem se orna, se augmenta e se aperfeiçoa
sem cessar, e se eleva a novos conhecimentos ;
ao mesmo tempo que sem esta faculdade,
o homem abismado em huma estúpida languidês
não teria quazi alguma superioridade sobre
os animaes que vivem em familia, e que os gritos
advertem das suas mútuas necessidades.

Comtudo, nada ha menos duravel que a
palavra : ela fére o ár, e não deixa nele vestígio ;
e se fás alguma impressão sobre aquelles que a
ouvem, esta impressão he nenhuma a respeito
d'aquelles que não estão encerrados no pequeno
circulo que ela abrange. Os frutos pois que dela
se tirão, não são mais que frutos de hum
momento ; e quanto mais ela era essencial á
felicidade dos homens, mais importante era descubrir
os meios necessarios para extender os seus
felizes efeitos. Quem poderia lembrar-se de
huma multidão de invenções uteis e necessarias,
VIIIse não podesse fixar as duas idêas fóra de si,
e traça-las de hum modo que as fizesse sempre
lembradas ? De que serviria inventar as sciencias
e as Artes, compôr lições as mais instrutivas,
exprimir em harmoniozo verso as verdades
mais consoladoras, formar leis sabias,
penhor e vinculo da felicidade publica, se para
conservar estes frutos do genio do homem,
não houvesse outro meio mais do que a memoria
e a tradição ; se estes maravilhozos trabalhos
do espírito humano não pudessem servir
mais do que á geração prezente, e somente aquella
que está junta em hum lugar ? Em vão se
elevarião os genios admiraveis, os seus esforços
serião inuteis, ou limitados a hum muito pequeno
numero de lugares, e de annos, se não se
achassem meios de fazer a palavra permanente ;
e o genero humano longe de se aperfeiçoar adientando
os seus conhecimentos bem depressa
tornaria a cahir no cáos, de que o pertendessem
tirar.

Mas tal he o genio do homem que chegou
a descubrir este meio por mais dificil que ele
nos pareça, e ainda que não percebamos o modo
com que o conseguio, nem menos saibamos
em que tempo, e em que lugar o inventou.

Este meio admiravel de eternizar os nossos
pensamentos, e de os fazer passar a todos os
tempos e a todos os lugares, he a Arte de escrever ;
esta arte que fala aos olhos, e que exprime
á vista o que a palavra exprime aos ouvidos ;
IXque tem tanto de fixa, como a linguagem
tem de fugitiva ; que subsiste depois que
aqueles que a obrárão, descêrão á muitos seculos
para a noite do túmulo ; esta arte que perpetua
as sciencias, e facilita a sua acquizição ; que
fas que os conhecimentos dos tempos passados
sirvão de aperfeiçoar os do prezente, e que todos
juntos venhão a formar a baze do edificio
immenso que deles formarão os tempos futuros.

Em vão os homens tem vivido em grandes
distancias, e em epocas prodigiozamente afastadas ;
nós podemos aproveitar-nos dos conhecimentos,
dos encantos da conversação, e do genio
de todos os Sabios, em qualquer tempo, e
em qualquer lugar que eles tenhão existido ; o
seu espirito está prezente por todos os povos
ainda mesmo que deixassem de existir.

Depois que o Mundo existe, o homem não
tem podido ser insensivel a estas maravilhas :
já hum grande numero de Sabios distintos se
tem exercitado em indagar como elas se operavão.
Das observações destes Sabios tem rezultado
tres artes, com as quaes se aperfeiçôa
quanto he possivel este estimavel dom do Creador,
expondo as regras necessarias oara uzar
da palavra do modo o mais proprio para produzir
os devidos efeitos. Estas Artes são a Gramatica,
a Logica, e a Retorica. A Gramatica
ensina a pintar e exprimir as nossas idêas do modo
que elas existem no nosso espírito. A Logica
examina a verdade delas, e ensina a exprimi-las
Xtaes quaes elas devem ser para terem a mais
perfeita conformidade com os seus modelos,
e com toda a certeza possivel. A Retorica ensina
a ornar a expressão, e a pintar as idêas do modo
mais apto e energico que he possivel para excitar
a atenção e persuadir. Da reunião destas tres
Artes rezulta a cõmunicação das idêas a mais
perfeita, a mais agradavel, e a mais conforme
a natureza, a qual não se contenta só com dar
existencia ás coizas, mas reveste-as com todas
as graças, e com todo o ornato de que elas são
susceptiveis. E quanto a expressão fôr mais exacta,
verdadeira, e agradavel, quanto melhor se
prehenche o fim da palavra.

A Gramatica costuma ter o primeiro lugar
e ser a porta dos outros estudos ; porque he
necessario ter idêas, e sabe-las exprimir antes
de julgar se elas são verdadeiras : he necessario
poder falar, antes de julgar se se fala bem ; e he
necessario que cada hum se certifique de que fala
bem, e de que tem adquirido idêas verdadeiras,
antes de as procurar persuadir e fazer gostar aos
outros ; pois que ornar o que he falso com os
encantos da verdade he abuzar do discurso.

Ainda que as linguas vivas ordinariamente
se costumão aprender só pelo uzo de as ouvir
falar, em todas as Nações cultas tem sido geralmente
conhecida a necessidade de estudar a
Gramatica da lingua materna para se poder falar
e escrever a propria lingua com perfeição ;
porque o uzo sem regra não tem firmeza, e nem
XItodos sabem, nem podem fazer sobre o uzo as
observações e combinações necessarias para estabelecer
as regras que exige a sciencia da palavra.
Não ha Nação alguma em que tenhão florecido
as letras, na qual se não tenhão ocupado
homens doutissimos em compor Gramaticas
da dua lingua. Na nossa já igualmente se
se tem ocupado homens de conhecidos talentos
e literatura em compor a Gramatica Portugueza,
como Fernão de Oliveira, João de Barros,
Amaro de Roboredo, D. Jeronimo, Contador de
Argote
e todos com maior ou menor sucesso á
proporção das lúzes que neste genero de literatura
havia no tempo em que cada hum escreveo.
Depois destes o Douto Antonio Jozé dos
Reis Lobato
, aproveitando-se das lúzes de Sanches,
Perizonio, Vossio, Sciopio, e Lanceloto
corregio
os defeitos e suprio as faltas dos nacionaes
que o precedêrão, e adiantou incomparavelmente
a Gramatica da nossa Lingua. Depois destes
celebres Gramaticos aparecêrão outros de não
inferiores talentos, que socorridos com as lúzes
dos que lhe precedêrão, adiantárão muito esta
sciencia, e a Enciclopedia metodica produzio
o melhor das suas descubertas. Porém ultimamente
M.r de Gebelem *1 remontando com immensos
trabalhos á origem primitiva da linguagem
demonstrou com toda a evidencia que
os principios da Gramatica erão tão dependentes
da natureza como os das outras Artes ; e
XIIque havia erro em pensar que eles erão de pura
convenção, como antes dele julgavão pela
maior parte os Gramaticos. Por este meio M.r de
Gebelem trouxe a Gramatica a hum principio tão
simples e sensivel, que vindo a ser o fundamento
desta Arte, espalha em todas as suas partes
huma nova lús, que as torna tão faceis de comprehender,
quanto elas, sem esta lús, são dificeis
e penozas.

Se com taes socorros poderá fazer-se huma
Arte completa da Lingua Portugueza, he questão
que me não atrevo a decidir ; e parece-me
que a empreza excede ás forças de hum só homem,
por mais abalizados que sejão os seus
talentos ; mas que com estas lúzes se pode esta
Arte adiantar muito mais do que adiantou Lobato
parece me innegavel, e nisto mesmo interessa
grandemente a Nação. O mesmo Lobato o teria
feito se existisse principalmente depois das descubertas
de M.r de Gebelem. Na falta dele ou
de outro de iguaes talentos e estudos, he que
eu tomei o trabalho de ordenar esta Gramatica
sem de nenhuma sorte prezumir que com ela
satisfaço aos dezejos da nossa Ilustre Academia ;
o que tão somente pertendo he facilitar á mocidade
Portugueza, quanto mo permitem as minhas
forças, a habitação de huma Aldea, e a
ocupação de Paroco que exercito, o estudo da
sua propria Lingua e das estrangeiras, e dar
áqueles sujeitos que com poucos estudos exercitão
o Magisterio nas Escolas menores os conhecimentos
XIIIda Gramatica, que lhes são indispensaveis
para que os seus discipulos possão aproveitar
melhor o tempo e trabalho que destinarem
á sua instrução de ler e escrever a Lingua
Portugueza.

A Doutrina que proponho foi principalmente
coligida da Gramatica universal de Gebelem, e
da Gramatica Geral de M.r Bozé *2 pelo que respeita
a este objeto ; e pelo que respeita ao particular
da nossa Lingua a tirei dos Gramaticos
Nacionaes e em especial de Lobato ; quem duvidar
dela, ou das inovações que faço no sistema
Gramatical, pode recorrer a estes Autores
que aponto, onde achará as discussões suficientes
para a sua justificação. O meu trabalho redús-se
tão sómente á escolha e arranjamento destas
doutrinas, segundo o metodo que julguei mais
apto ao fim que me proponho : Isto o submeto
ao Juizo esclarecido dos Sabios da Nação.XIV

1* Em Francês escreve-se Gebelin.

2* Em Francês escrevese Beauzée. Veja-se a nota sobre a primeira
regra da Ortografia pag. 235. onde se dá a razão de assim escrever em
Português os Nomes estrangeiros.