CTLF Corpus de textes linguistiques fondamentaux • IMPRIMER • RETOUR ÉCRAN
CTLF - Menu général - Textes

Silva, António de Moraes. Epitome da grammatica da lingua portugueza – T02

[Epitome
da
Grammatica
portugueza.]

Ao Leitor Benevolo.

Propuz me nesta Grammatica dar te idéyas mais
claras, e exactas, do que cõmummente se achão
nos livros d'este assumpto, que tenho visto no nosso
idioma, tanto á cerca das Partes Elementares da Oração,
como da sua emendada composição.

Nelles não se explica por exemplo o que é artigo ;
dizem te que se ajunta aos nomes para mostrar os
numeros, e os casos. Mas os nomes Portuguezes, exceptos
Eu, Tu, e Elle, não tem casos ; e estes não se
usão com artigos. Demais, sendo o artigo um adjectivo,
quem fala, ou escreve deve saber o genero do nome,
a que o artigo precede, para usar delle na variação
correspondente ao genero, e numero do nome,
como se faz com qualquer outro adjectivo.

Nenhum Grammatico, á excepção de Duarte Nunes
do Lião (a)1 te diz quando deves usar do artigo,
e quando omitti-lo. Ensinão te que se não
diz v. g. navego Tejo sem preceder o a Tejo, porque
soaria mal. Mas os nossos bons Poetas dicerão
= Tejo leva na mão o gran Tridente „ e „ Guadiana
atras tornou as aguas „ sem o artigo. (b)2

Passando aos nomes, fazem te não sei quantas
declinações, e dão lhes não sei quantos casos : mas
os nossos nomes não tem casos, ou desinencias finaes
diversas, senão eu, tu, elle ; os mais só se varião
para indicar o numero plural, v. g. casa, casas ;
templo, templos
.

A estes sonhados casos dão lhes nomes de Nominativos,
Genitivos, Dativos, Accusativos, &c. Se
IIIlhes perguntares o que é isto, dir-te hão, que em
Latim são diversas terminações do mesmo nome, que
servem para indicar as varias relações, em que se
representa o objecto significado pelo nome. Mas
além de que são ideyas falsas dizer, que ha genitivos,
dativos, &c. em Portuguez, tambem serião falsas noções
as que se dessem de correspondencias entre o
Latim, e Portuguez. Me v. g. parece se com o accusativo
Latino, quando dizemos feriu me, matou
me : mas me tambem indica o termo da acção, quando
esta tem paciente, e termo, v. g. matou me um
cavallo ; cortou me uma arvore, deu me um Livro,
as quaes relações no Latim se representão por outro
caso diverso : (mihi e não me) e no Portuguez mũitas
vezes me, e a mim representão o mesmo.

Alem d'isto ; a tua lingua deve servir te de meyo
para aprenderes as estranhas, e seria absurdo querer
te explicar o artificio da Sintaxe, ou composição
d'ella, por meio de outra lingua, e suas regras, que
demais de serem inapplicaveis aos idiotismos Portuguezes,
te são ignotas, e mais difficeis.

Quasi todos os Grammaticos, que tenho visto,
engrossão os seus livros com conjugações : as regras
da composição, parte tão principal das Grammaticas,
reduzem nas a mũito poucas. Eu cuido que te expliquei
esta parte da Grammatica com assás curiosidade,
propondo-te o que nella é mais recondito, e mũitos
exemplos dos bons autores, que seguramente imites,
porque tambem a copia delles te fará cair mais facilmente
na intelligencia, e applicação das regras. Ajuntei
algũas observações á cerca de frases, e construcções
erradas, ou menos seguidas, para que imitando
o bom dos livros Classicos, não sigas tambem os
erros, e descuidos, ou o que já hoje se não usa geralmente. (c)3IV

Acharás neste Compendio algũas palavras, conjugações,
e frases, que te dou como antiquadas, para
que não as estranhes nos bons autores, e não as
imites.

Não te contentes toda via com as noções elementares
deste compendio : Sirvão te sómente de guia
para leres os bons autores, que desde os annos de
1500 fixárão, e aperfeiçoarão a nossa lingua, e começarão
a escrever tão cultamente, ao menos os seus
Dramas, como os Italianos que primeiro o fizerão
na Europa moderma, antes que os Francezes, Inglezes,
e outros tivessem Poetas correctos, e elegantes,
nem Historiadores, e Oradores dignos de se lerem
como os nossos Castanheda, Barros, Couto, Antonio
Pinto Pereira, Lucena, Diogo de Paiva d'Andrada,
Gil Vicente, Francisco de Sá de Miranda, Antonio
Ferreira, e a immortal Lusiada, tão superior
aos nossos Epicos em invenção, grandeza e interesse
do assumto, elegancia, pureza, e majestade d'estilo,
e tão justamente invejada do grande Tasso. (d)4V

Delles tirei os exemplos, que te propuz ; nelles
te exercita ; conversa-os de dia e de noite, porque
se basta o estudo de um anno para saberes meyãmente
um idioma estrangeiro, quando quizeres saber a
VIlingua patria perfeita, e elegantemente, deves estudar
toda a vida, e com mũita reflexão os autores
Classicos, notando principalmente as analogias peculiares
ao genio do nosso idioma. E deste modo poderás
imita los, não repetindo sempre servilmente as
suas palavras, e frazes, e remendando com ellas as
tuas composições, como alguns tem feito, mas dizendo
coisas novas, sem barbarismos, sem Gallicismos,
Italianismos, e Anglicismos, como mũi vulgarmente
se lem, e mais de órdinario nas traducções
dos pouco versados nas linguas estrangeiras, e talvez
menos ainda na sua.

Sigamos o exemplo dos bons ingenhos, que na
Arcadia Portugueza resuscitárão as elegancias do idioma
materno ; aproveitamos as reflexões sobre a lingua,
que tem feito alguns membros da Real Academia
das Sciencias de Lisboa, e chegaremos a fazer
nos capazes de produzir mais copiosas advertencias
sobre o artificio, purezas, e elegancias do nosso idioma,
do que por hora temos, sendo elle mũito digno
de occupar os desvelos dos patriotas eruditos.
Assim teremos quem suppra as faltas d'esses Grammaticos,
com quem Cesar, Augusto, e o mesmo
VIICicero estudavão, e conferião, (*)5 depois de serem
já mũi distinctos Oradores, porque ainda que não
tinhão em mũito o merecimento de falar correctamente,
havião que era grande torpeza não o saberem falar
emendada, e puramente.

Nam ipsum Latine loqui est illud quidem in
magna laude ponendum, sed non tam sua sponte,
quam quod est a plerisque neglectum. Non
enim tam praeclarum est scire Latine, quam turpe
nescire ; neque tam id mihi Oratoris, quam
Civis Romani proprium videtur.
Cicero
Vale
.VIII

1(a) Na Ortografia da Lingua Porugueza, pag. 306.
e seg. da edição de 1784.

2(b) Ferreira, Egloga I. e Camões na Lusiada, 4. 28.

3(c) Isto mesmo praticárão na lingua Ingleza o Bispo
Lowth na sua Short Introduction to the English
Grammar
, o Dr. Priestley ; e Mr. Wailly em Francez.

4(d) Voltaire diz que Tasso é mui superior a Camões,
a pezar das invejas, que o nosso Epico fazia
ao Italiano. Mas Voltaire nunca leu Camões senão na
má traducção Ingleza do Fanshaw : e se entendia bem
a Gerusaleme Liberate, entenderia melhor Camões,
do que o Tasso que receonhece a propria inferioridade ?
Sei que Gabriel Pereira de Castro, na Ulissea,
Vasco Mausinho de Quevedo, no Afonso Africano,
e a Malaca Conquistada do Menezes tem mũito merecimento ;
mas estes tiverão em Camões um grande
exemplar ; e elle só póde ler para formar o seu estilo,
a Castanheda, e Barros ; e Jorge Ferreira de Vasconcellos ;
poetas só a Gil Vicente, e Bernardim Ribeiro ;
e os do Cancioneiro de Resende ; porque Sá
de Miranda, e Ferreira &c. sairão á luz depois de
composto o seu poema, ou no mesmo anno, em
que se imprimiu. A 1.ª e 2.ª parte dos Palmeirins publicárão
se em 1572, anno em que se fizerão as duas
primeiras edições da Lusiada : Camões formou se a si
mesmo na sua lingua, e teve felicidade em todos os
estilos, quando não foi grande, e sublime. A inveja,
que o perseguira na sua vida, resuscitou ha pouco,
preferindo lhe a Ulissea de Gabriel Pereira, e até
a Malaca Conquistada. Mas a Ulissea só tem o merecimento
da dicção, em que Camões lhe foi mestre,
e guia. A fabula é imitada, e copiada das de Homero
e Virgilio, e despida das bellezas dos Originaes,
e das suas excellentes allegorias. Quanto á grandeza,
e interesse dos assumtos, não é necessario gastar palavras.
Se Camões introduziu nomes, e allegorias tiradas
das Divindades do Paganismo, elle dá a sua
descarga ; e deviamos lembrar nos, que no seu tempo
o Papa Clemente XI, os Cardeaes, &c. escrevião
per Deos atque homines, e usavão os imitadores de
Cicero, e Virgilio nos seus modos de dizer conformes
á religião dos antigos Romanos. Voltaire censura
a Camões por ter falado ao Rei de Melinde nas
navegações de Ulisses, e Eneas, como se um barbaro
Africano das Costas de Zanguebar tivesse lido
Homero, e Virgilio. Mas elle mesmo não leu o que
Camões diz na est. 111. do Canto 2., para prevenir
esta censura ; e não sabia, que na India, e especialmente
em Ormuz, d'onde se navegava até á Costa
de Zanguebar, os Reis ouvião ler Chronicas das historias
Romana, e Grega ; e não sabia, que pola India toda
andavão obras dos Poetas de todas as idades,
e de todas as nações, que trazião os Soldados
e Elches Europeus, e mũitas vezes os nossos tomárão
entre os despojos ? Que inverisemelhança ha logo,
ou impossibilidade de que um Rei tivesse noticia
das navegações de Ulisses, e de Eneas ? Quanto
ao silencio dos Poetas seus contemporaneos, que todos
se regalárão de elogios reciprocos, e nenhum
(salvo Diogo Bernardes) derão a Camões, Horacio
nos predice ha mũito a causa destas desgraças
(Epist. 1. L. 2.)

Urit enim fulgore suo, qui praegravat artes
Infra se positas
 :

Mas com quanta vergonha dos detractores do
nosso Epico não se verifica a predicção do Lyrico Romano,
extinctus amabitur idem !

5(*) V. o Tratado de Illustrib. Grammat. e Sueton.
Nas Vidas de Cesar, e Augusto.