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Barbosa, Jerónimo Soares. Grammatica philosophica da lingua portugueza – T02

[Grammatica Philosophica]

Introducção.

A Grammatica, (que quer dizer Litteratura)
não foi ao principio outra couza, senão a sciencia dos
caracteres, ou Reaes, representativos das couzas, ou
Nominaes, significativos dos sons e das palavras.
Toda a sciencia do homem Letrado, ou Grammatico,
se reduzia naquelles primeiros tempos a saber
ler e formar, ou com o ponteiro, ou com a penna,
estes caracteres.

Segundo os progressos do espirito humano, quatro
forão os estados desta especie de Litteratura e
Grammatica. O primeiro foi o da Pintura. Para representar,
por exemplo, a idea de hum homem, ou a
de hum cavallo, pintava-se ou esculpia-se a figura
natural de hum, ou de outro ; e tal he ainda presentemente
a escriptura dos selvagens do Canadá.

Como porem este methodo de representar as
ideas era mui defeituoso, longo, e custoso ; os Egypcios,
dotados de hum engenho inventor, descobrírão,
á imitação delle, outro mais breve, que he o
dos Hieroglyphicos. Empregavão elles huma figura,
não ja para representar huma couza somente ; mas
para servir de signal a muitas. Hum Hieroglyphico
so, pelas ideas que a sua instituição ao principio, e
depois a tradição lhe alligava, era huma pequena
historia. Desta sorte a Escriptura, que ao principio
era huma simples pintura, ficou sendo pintura e symbolo
ao mesmo tempo. Para a abbreviar ainda mais,
não costumavão os Egypcios pintar a figura inteira ;
mas ou huma parte della pelo todo, ou o signal
pela couza significante, ou huma couza por outra,
que com ella tivesse alguma semelhança, ou analogia.
Este foi o segundo estado da Litteratura ou
IGrammatica, da qual temos ainda alguns restos nos
nossos Brazões, e Armaria.

O terceiro foi o da Escriptura Symbolica corrente.
Na Hieroglyphica desenhava-se a couza ao natural
para a representar, e trazer com ella outras á
memoria. Mas crescendo a razão com o tempo,
com a policia, e com a experiencia ; e bem assim
multiplicando-se tambem á proporção os conhecimentos
e as necessidades : ja a estas não podia supprir
huma escriptura tão diminuta e embaraçosa, como
era a Hieroglyphica. Continuando pois os homens
em a abbreviar cada vez mais ; á força de mudanças
e alterações o que ao principio erão pinturas, se
vierão a converter em Symbolos, semelhantes aos de
que ainda agora se estão servindo os Chinos. Tendo
elles ao principio sido formados da circumferencia e
contornos das figuras naturaes ; depois com a continuação
do tempo, e alterações se reduzírão a huma
especie de Caracter Real, que diminuindo, e escurecendo
em fim a attenção, que d'antes se dava á
imagem natural ; ficou servindo so de Symbolo para
fixar o espirito mais sobre a couza significada do que
sobre elle.

Os Symbolos pois ja não são huns signaes naturaes,
como o erão as pinturas e os Hieroglyphicos ;
mas huns signaes artificiaes e de instituição. Mas,
como para cada idea he precizo hum Symbolo, e as
ideas são infinitas ; bem se vê que a Escriptura Symbolica
tem quasi os mesmos inconvenientes que a
Representativa e a Hieroglyphica. Assim hum Grammatico
e Letrado Chino gasta toda a sua vida a ler
e a escrever. Os seus symbolos a pezar de todas as
reducções que se tem feito, chegão ainda ao enorme
numero de oitenta mil.

Neste estado estaria naturalmente a Grammatica
e Literatura ; quando algum genio creador, conduzido
IIpela Providencia descobrio felizmente a Arte de
pintar, não ja as couzas mesmas, mas os vocabulos
que as representão. Esta he a Escriptura Litteral,
cujo invento por huma antiga tradição dos povos,
he attribuido aos Phenicios ou Cananeos, e que ja
no tempo de Moises, primeiro Escriptor do mundo
e da Religião, estava em uso pelos annos do mundo
dois mil e quatrocentos pouco mais ou menos, e
mil e seiscentos antes de Jesus Christo.

O descobrimento deste genero de Escriptura
era mui difficil ; a execução porêm era facil. Para a
excogitar era necessario hum engenho superior, que
advertisse que os sons de huma lingua se podião distinguir
e decompor em certos elementos, communs
a todas as palavras della. Porêm, huma vez descoberto
este segredo, a separação e enumeração dos sons
não podia custar muito. Era mais facil notar e contar
todos os sons de huma Lingua que se falava,
do que achar que se podião contar : isto era hum
lance do engenho, aquillo hum simples effeito da attenção.

O primeiro cuidado pois do inventor das Letras,
e do primeiro Grammatico, que abrio o caminho
aos mais, cahio sobre aquillo so, que os vocabulos
tem de mechanico e material, quer sejão os
sons articulados, de que se compõe a Fala, quer
os signaes Litteraes, que escolheo para na Escriptura
exprimir, e significar os mesmos sons. Aquillo, que
os mesmos sons articulados e os vocabulos tem de
logico e espiritual como signaes que são das nossas
ideas e pensamentos, foi a ultima couza, em que se
cuidou. Os homens ao principio contentarão-se com
pintar aos olhos e fixar por meio dos caracteres escriptos
os sons fugitivos, que a prolação de cada palavra
lhes offerecia ; sem entrarem ainda na analyse
miuda do discurso para descobrirem e determinarem
IIIao justo as differentes classes e especies de palavras,
que o compunhão ; nem na sua combinação e ordem
para poderem achar as regras da Etymologia,
e da Syntaxe.

Esta indagação foi muito posterior. Platão, que
segundo Laercio Liv. III. Cap. 19 foi o primeiro
d'entre os Gregos, que indagou a natureza da Arte
Grammatica ; não tracta em seus Dialogos de outra
couza senão da sciencia das Letras, e se a significação
das palavras he natural ou arbitraria. Entre
os Romanos tambem o mais antigo escripto de Grammatica
era segundo Suetonio (De illustr. Gramm.
Cap. I), hum tractado de Letras e de Syllabas,
que andava debaixo do nome de Ennio.

A parte Mechanica das Linguas, em que primeiro
se trabalhou, tem duas observações. Huma sobre os
sons articulados tanto simples como compostos, que
entrão na composição de seus vocabulos ; e outra sobre
os caracteres Litteraes, adoptados pelo uso para
servirem de signaes dos mesmos sons, e seus depositarios
na Escriptura. Destas duas considerações sobre
o physico dos vocabulos nascêrão as duas partes
mais antigas da Grammatica. Huma da Boa Pronunciação
e Leitura da Lingua, chamada Orthoepia,
e outra da sua Boa Escriptura, chamada Orthographia.

A Orthoepia, que he emendata cum suavitate
vocum explanatio
, comprehende não so o conhecimento
dos sons fundamentaes, que fazem como o
corpo dos vocabulos ; mas tambem o das modificações
musicaes, de que os mesmos são susceptiveis,
relativas ou ao canto e melodia, chamadas Accentos,
ou ao compasso e rhythmo, nascidas da quantidade
das syllabas. Esta parte musical da Orthoepia ou
Boa Pronunciação tem o nome de Prosodia, da
qual a maior parte dos Grammaticos fizerão huma
IVdas quatro partes da Grammatica, ou não fazendo
caso, e desdenhando ainda os primeiros principios da
Boa Pronunciação e Leitura, ou incluindo-os na mesma
Prosodia.

Porêm a Orthoepia, ou observação dos sons
elementares e fundamentaes da Linguagem articulada,
e a sua boa Escriptura foi a primeira e ainda
a unica parte da antiga Grammatica, como acabamos
de ver. A Prosodia não foi reduzida a arte, senão
muito tarde. Sendo, como são, tantas, tão finas, e
quasi imperceptiveis as modificações, que os sons
fundamentaes recebem na pronunciação ; por huma
parte era difficil o observal-as ao principio e ainda
mais o pintal-as na escriptura ; e por outra parecia
isto excusado. O uso vivo da pronunciação assaz ensinava
assim a quantidade e demora de cada syllaba,
como a sua inflexão e accento. So quando se tractou
de communicar aos estrangeiros não so a lingua
escripta, mas ainda a sua pronunciação viva ; he que
se começárão a dar regras sobre esta parte da Orthoepia.
Aconteceo isto na Lingua Grega pouco antes
do tempo de Cicero. Os signaes mesmos destes
accentos, postos por cima das vogaes, bem mostrão
que são de huma data muito posterior.

Por tanto o nome de Prosodia, dado até agora
a esta parte da Grammatica, por huma parte não
comprehende todo o seu objecto, e por outra suppõe
antes de si o conhecimento dos sons fundamentaes
da Lingua, do qual a Grammatica nunca prescindio,
nem póde prescindir, visto ser necessario, e
indispensavel para regular a boa pronunciação, e
consequentemente a sua boa Escriptura e Orthographia.
He verdade que de muito tempo a esta parte se
tem entregado o ensino destas duas partes da Grammatica
Portugueza, aos Mestres de Eschola, pela
maior parte pouco habeis. Porêm daqui tem procedido
Vos maos methodos, com que a primeira idade
perde nas Escholas boa parte do seu tempo, e gasta
outra em aprender couzas, que depois tem, ou de desaprender,
ou de reformar. He justo pois que a couza
torne a seu dono, e que os Grammaticos tomem
outra vez a si esta parte da Grammatica, que ensina
a theoria dos sons, e tudo o que pertence á boa
pronunciação e leitura da Lingua ; pois que tem sido
tão mal desempenhada em mãos estranhas. O nome
de Orthoepia, que damos a esta primeira parte
da Grammatica, he mais proprio e accommodado a
caracrerizal-a que o de Prosodia.

So depois de descoberta a arte de separar em
partes elementares e communs a massa confusa dos
vocabulos, e a de as representar aos olhos e fixar
por meio da Escriptura he, que o espirito humano
podia dar os passos, que deo para analysar o discurso
e descobrir nelle a analyse de seus proprios
pensamentos, que antes não percebia. Esta analyse
do discurso dependia de muitas observações particulares
e de muitas combinações para dellas se formarem
noções geraes, que reduzissem a certas classes as
partes elementares da oração segundo as suas significações
e analogias ; e bem assim as regras geraes ás
varias combinações, que o uso fazia das mesmas para
exprimir todas as operações do entendimento, e tecer
de tudo isto hum systema seguido de Grammatica.
E posto que para tudo isto concorria ja muito
a Lingua falada ; comtudo este systema completo
nunca se chegaria a organizar, se a Escriptura não
fixasse a memoria dos primeiros descobrimentos, e
não facilitasse assim a comparação do caminho andado
com o que restava por andar. Tire-se a qualquer
engenho, por superior que seja, o uso dos caracteres :
e ver-se-ha quantos conhecimentos lhe são
inaccessiveis, aos quaes chega hum talento ordinario
VIcom o subsidio dos mesmos. Os progressos, que com
os Algarismos fez a Sciencia dos Numeros, dão a conhecer
assaz a importancia tambem da Escriptura
Alphabetica para os mais conhecimentos.

Portanto, assim como na ordem, e na historia
mesma dos descobrimentos humanos sobre a Arte de
Falar
, a parte mechanica das Linguas foi o primeiro
objecto das indagações e trabalhos do homem : assim
o que as mesmas Linguas tem de Logico e discursivo
devia ter o segundo lugar na ordem dos mesmos
descobrimentos, e o teve com effeito. Pois que Aristoteles,
muito posterior a Platão, foi o primeiro dos
Escriptores Gregos, que sabemos se adiantasse na
sua Poetica a distribuir as palavras em certas classes,
e a distinguil-as entre si por seus differentes caracteres
e propriedades.

Na ordem destes conhecimentos Logicos sobre a
Lingua he sem duvida que os homens se occuparião
em considerar primeiro as palavras, que são signaes
assim das ideas que fazem o objecto dos nossos
pensamentos, como das relações que as mesmas podem
ter comsigo, e com outras ; do que em considerar
estas mesmas palavras combinadas e coordenadas
entre si em ordem a exprimirem o pensamento.
Pois que primeiro he conceber e exprimir as ideas
do que comparal-as. Os primeiros Grammaticos pois,
reflectindo sobre a semelhança e dissemelhança das
funcções, que as palavras exercitão na enunciação de
qualquer pensamento, advertírão que humas tinhão
as mesmas, e outras não. Estas differenças os conduzírão
a reduzir a certas classes todas as palavras
da sua Lingua ; e a esta parte da Grammatica, que
tracta das partes elementares do discurso e de suas
propriedades e analogias, derão o nome de Etymologia ;
não porque ella se occupe em indagar as
origens particulares de cada palavra : mas porque
VIItracta dos signaes artificiaes das nossas ideas, que por
isso Aristoteles lhe dá o nome de Symbolo e Cicero
nos Topicos Cap. 8, traduzindo a mesma palavra,
lhe chama Notationem, quia sunt verba rerum
notae
.

Na Etymologia pois não considerão os Grammaticos
as palavras senão em si mesmas attendendo
ás suas funcções e natureza. Passando porêm depois
a olhal-as unidas em discurso para formarem os differentes
paineis do pensamento ; observárão que segundo
as differentes relações, que as ideas tinhão
entre si, ou de identidade e coexistencia, ou de determinação
e subordinação : assim as palavras para
representarem estas relações mutuas, tomavão ou differentes
fórmas e terminações, ou differentes proposições,
pelas quaes ou concordavão entre si, ou regíão
humas a outras ; e a esta ordem das partes da
oração segundo ou sua correspondencia, ou sua subordinação
derão os Grammaticos o nome de Syntaxe,
que quer dizer Coordenação de partes.

A Grammatica pois, que não he outra couza,
segundo temos visto, senão a Arte, que ensina a
pronunciar, escrever, e falar correctamente qualquer
Lingua
, tem naturalmente duas partes principaes ;
huma Mechanica, que considera as palavras
como meros vocabulos e sons articulados, ja pronunciados,
ja escriptos, e como taes sujeitos ás leis physicas
dos corpos sonoros, e do movimento ; outra
Logica, que considera as palavras, não ja como vocabulos,
mas como signaes artificiaes das ideas e suas
relações, e como taes sujeitos ás leis psychologicas,
que nossa alma segue no exercicio das suas
operações e formação de seus pensamentos : as quaes
leis sendo as mesmas em todos os homens de qualquer
nação que sejão ou fossem ; devem necessariamente
communicar ás Linguas, pelas quaes se desenvolvem
VIIIe exprimem estas operações, os mesmos principios
e regras geraes, que as dirigem. A’ parte Mechanica
das Linguas e sua Grammatica pertencem a
Orthoepia e a Orthographia ; e á parte Logica pertencem
a Etymotogia, e a Syntaxe.

Toda a Grammatica he hum systema methodico
de Regras, que resultão das observações feitas
sobre os usos e factos das Linguas. Se estas regras
e observações tem por objecto tão somente os usos
e factos de huma Lingua particular ; a Grammatica
será tambem Particular. Se ellas porêm abrangem
os usos e factos de todos, ou da maior parte dos
idiomas conhecidos ; a sua Grammatica será Geral.
Huma e outra póde ser, ou somente Practica e Rudimentaria,
ou Philosophica e Razoada. Aquella
não sóbe acima destas observações e regras practicas,
que a combinação dos usos da Lingua facilmente
subministra a qualquer para della formar estes
systemas Analogicos, a que de ordinario se reduzem
quasi todas as Artes vulgares de Grammatica.

Porêm se o espirito se adianta a indagar e descobrir
nas leis physicas do som e do movimento
dos corpos organicos o mechanismo da formação da
Linguagem ; e nas leis psychologicas as primeiras
causas e razões dos procedimentos uniformes, que todas
as Linguas seguem na analyse e enunciação do
pensamento ; então o systema, que daqui resulta,
não he ja huma Grammatica puramente practica,
mas scientifica e philosophica.

Toda a Grammatica Particular e Rudimentaria,
para ser verdadeira e exacta nas suas definições, simples
nas suas regras, certa nas suas analogias, curta
nas suas anomalias, e assim facil para ser entendida
e comprehendida dos principiantes ; deve ter por fundamento
a Grammatica geral e razoada. Porque, subindo
esta ás razões e principios geraes da Linguagem,
IXhe quem melhor póde dar noções dos signaes
das ideas, descobrir todas as analogias de huma Lingua
particular, e reduzir a ellas muitas anomalias, que
os ignorantes contão por taes, não o sendo realmente.

Por outra parte, sendo a Grammatica de qualquer
Lingua a primeira theoria, que principia a desenvolver
o embrião das ideas confusas da idade pueril ;
e dependendo da exactidão de seus principios o
bom progresso nos mais estudos : ella deve ser huma
verdadeira Logica, que ensinando-se a falar, ensine
ao mesmo tempo a discorrer. Que por isso a Grammatica
foi sempre reputada como huma parte da
Logica pela intima connexão, que as operações do
nosso espirito tem com os signaes, que as exprimem.
E esta he a razão, porque os antigos Philosophos, e
os Stoicos principalmente se fazião cargo della nos
seus tractados de Philosophia, como Protagoras, Platão,
Aristoteles, Theodectes, Diogenes, Chrysippo,
Palemon, e outros, sobre os quaes se póde
ver Laercio nas suas vidas, e Quintilíano Inst. Ora.
I, 6
.

Se semelhantes homens tivessem continuado a
illustral-a com suas meditações e escriptos ; teria ella
desde tempos mais antigos tomado outra face e outro
lustre. Porêm deixada pelos Philosophos nas mãos
de homens, ou ignorantes, ou pouco habeis, se reduzio
a hum systema informe e minucioso de exemplos
e regras, fundadas mais sobre analogias apparentes,
que sobre a razão, a quem so pertence inquirir
e assignar as verdadeiras causas da Linguagem,
e segundo ellas ordenar a Grammatica de qualquer
Lingua particular. Daqui nascêrão todas estas Artes
enfadonhas de Grammatica Latina, cheias de mil
erros, e tantas excepções, quantas são as regras.
O que tudo repetido e copiado cegamente de idade
em idade, sem nunca ter sido submettido a exame ;
Xsem o mesmo tambem foi servilmente applicado ás
Grammaticas das Linguas vulgares.

Mas felizmente aconteceo em nossos tempos,
que Sanches principiasse entre os Hespanhoes a sacodir
o jugo da auctoridade e preoccupação nestas materias ;
e introduzindo na Grammatica Latina as luzes
da Philosophia, descobrisse as verdadeiras causas
e razões desta Lingua, que até então, ou ignoradas,
ou não advertidas, tinhão enchido esta materia de
confusão e desordem, e que, seguindo depois seu exemplo
outros grandes homens e Philosophos, tractassem
pelo mesmo methodo e reformassem a Grammatica
das Linguas vivas, pondo primeiro e estabelecendo
principios geraes e razoados da Linguagem, e
applicando-os depois cada hum á sua Lingua. Este
trabalho, que depois foi continuado, começárão
M.r Arnaud na Lingua Franceza, Wallis e Starris
na Ingleza, e Lancellot na Hespanhola e Italiana.

Portugal conheceo Grammaticas Portuguezas ainda
antes que outras nações civilizadas tivessem huma
na sua Lingua. Quando Ramos em 1572 publicou a
primeira Grammatica da Lingua Franceza ; ja Portugal
tinha a de João de Barros, dada á luz em 1539,
e a de Fernão de Oliveira em 1552. Estas forão seguidas
do Methodo Grammatical de Amaro de Roboredo,
impresso em Lisboa em 1619, da Grammatica
do P. Bento Pereira em Londres no de 1672,
da de D. Jeronymo Contador d'Argote em Lisboa
1721, e finalmente da de Antonio Jose dos Reis Lobato
em 1761.

Mas todas estas Grammaticas, alêm de muitos
erros e defeitos particulares, que nos seus lugares notarei,
tem o commum de serem huns systemas meramente
analogicos, e fundidos todos pela mesma
fôrma das Grammaticas Latinas ; e nesta mesma consideração
ainda mui imperfeitos por falta de muitas
XIobservações necessarias sobre o genio particular e caracter
da Lingua Portugueza. Grande parte destes defeitos
emendou ja o auctor dos Rudimentos da Grammatica
Portugueza
, impressos em Lisboa em 1799,
tomando por guia quasi em tudo a Grammatica da
Lingua Castelhana composta pela Real Academia
Hespanhola
, a qual entre as das Linguas vulgares
tem merecido hum distincto louvor.

Esta Grammatica porêm he mais hum systema
analogico de regras e exemplos, do que Logico ; e
posto que reforme muitos abusos das antigas Grammaticas,
segue comtudo a mesma trilha, e desamparando
os principios luminosos da Grammatica geral
e razoada, multiplica em demazia as regras, que poderia
abbreviar mais reduzindo-as a ideas mais simples
e geraes. Nenhuma destas duas Grammaticas se
faz cargo de Orthoepia e Orthographia, partes essenciaes
e importantes a qualquer Grammatica vulgar.
Porque a Grammatica da Lingua Nacional he
o primeiro estudo indispensavel a todo homem bem
criado ; o qual, ainda que não aspire a outra Litteratura,
deve ter ao menos a de falar e escrever correctamente
sua Lingua : o que não poderá conseguir
sem todas as partes daquella arte.

Esta arte por outra parte não deve ser meramente
practica e hum estudo so de memoria. Deve
comprehender as razoes das practicas do uso e mostrar
os principios geraes de toda a Linguagem nos
do exercicio das faculdades da alma e formar assim
huma Logica practica, que ao mesmo tempo que
ensina a falar bem a propria Lingua, ensine a bem
discorrer. As Linguas são huns methodos analyticos,
que Deos deo ao homem para desenvolver suas faculdades.
Ellas dão o primeiro exemplo das regras
da analyse, da combinação, e do methodo, que as
Sciencias as mais exactas seguem nas suas operações.
XIIAs regras propostas por este methodo reduzem-se
a menos, porque se unem no mesmo principio ;
percebem-se melhor, porque se sabe a razão
dellas ; e fixão-se mais na memoria, porque se ligão
humas com outras.

Aquelles, que aspirão a estudos maiores, e para
entrarem nelles tem de aprender as Linguas sabias,
levão huma grande vantagem com aprender primeiro
a Grammatica de sua Lingua. O que as Linguas
mortas tem de mais escabroso he a theoria grammatical,
que sendo de sua mesma natureza, sublime
e abstracta, he a que custa mais a quem ainda não
tem habito de discorrer. Esta theoria, applicada primeiro
á propria Lingua, percebe-se e comprehende-se
muito mais facilmente do que applicada a Linguas
desconhecidas. Vencida esta primeira difficuldade
no estudo da Lingua propria, o caminho fica
plano e desembaraçado para o das mais, que tem os
mesmos principios geraes, e não se differenção senão
nas fórmas accidentaes que cada huma escolheo para
indicar as mesmas ideas e fazer dellas as mesmas
combinações. Assim como quem estudou a Grammatica
Latina poupa metade do trabalho, quando entra
no estudo da Grammatica Grega ; porque acha
nesta as mesmas noções geraes, que ja sabe : assim
quem primeiro estudar a proposito a Grammatica da
propria Lingua, não achará difficuldade alguma na
da Lingua Latina ; e o tempo, que naquella gastar,
ganhará nesta com grande usura.

Ja o nosso João de Barros conheceo esta verdade
em seu tempo. Pois no Dialogo da Lingua Portugueza
pag. 230 da edic. de Lisboa de 1785 faz
discorrer a seu filho da maneira seguinte : “ Ca se
não soubera da Grammatica Portugueza o que me
vossa merce ensinou ; parece-me que em quatro
annos soubera da Latina pouco, e della muito menos.
XIIIMas com saber a Portugueza fiquei alumiado
em ambas, o que não fará quem souber a Latina. „
O que o mesmo zeloso Escriptor tanto desejava,
que nas villas nobres e nas cidades puzesse
o Governo Mestres capazes, que podessem ensinar
á mocidade a Grammatica da sua propria Lingua ;
executou felizmente em nossos tempos o Senhor Rei
D. Jose de gloriosa memoria, estabelecendo por toda
a parte Professores Publicos de Grammatica e
Lingua Latina, e ordenando-lhes pelo Alvara de 30
de Septembro de 1770, que, quando em suas classes
recebessem os discipulos para lhes ensinar a dicta
Lingua, os instruissem primeiro na Grammatica Portugueza
por tempo de seis mezes, se tantos precizos
fossem.

Para esta instrucção se propunha então a Grammatica
de Antonio Jose dos Reis Lobato. Mas depois
daquelle tempo tem saido outras Artes á luz e
esta agora para o Publico escolher a que melhor lhe
parecer. Em todas ellas ha couzas que so os Mestres
devem estudar para as explicar a seus discipulos ; outras
que estes devem aprender, como os usos particulares
e idiotismos da Lingua ; e muitas, que devem
decorar, com são os paradigmas todos das partes
da Oração e regras de suas terminações, Conjugações,
e Syntaxe. As regras mesmas da boa pronunciação
e escriptura devem entrar no ensino da
Grammatica para emendar muitos vicios, que os
Mestres das primeiras Letras, pela maior parte idiotas,
não são capazes de corrigir. Em hum homem
bem criado releva-se mais, e he menos vergonhoso
hum erro de Syntaxe, que hum erro de pronunciação
ou de Orthographia ; porque aquelle póde nascer
da inadvertencia ; estes são sempre effeitos da má
educação.XIV