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Azevedo, Domingos José de. Grammatica nacional – T02

[Grammatica nacional]

Introducção
Da origem e progressos da linguagem

Collocado no primeiro logar da escala da creação, deve o homem
a superioridade á perfeição da intelligencia, e ao pensamento
a força apparente que anima a sua natural fraqueza.
Muitas vezes se tem repetido, que a mais nobre creatura de
Deus, reduzida ás faculdades physicas, não seria mais do que um
debil e mesquinho animal. E’ pela intelligencia, que o homem,
abrangendo a natureza inteira, a conquista, e a subjuga ás suas
necessidades e prazeres. Paira acima da aguia, domina o raio,
e sendo, na apparencia, o mais limitado ser, é na realidade o
Senhor da creação. Mas, entre as vantagens inherentes á nossa
organisação intellectual, deve-se incontestavelmente collocar em
primeiro logar a faculdade de falar, prerogativa tão preciosa
como o do entendimento; pois a linguagem não é só o auxiliar,
mas sim o complemento da razão. Dotado o homem da faculdade
de fixar os pensamentos por meio de signaes materiaes, de comunical-os
aos seus similhantes, de se utilizar das concepções e
descobertas de todos os tempos e logares, pôde dilatar indefinidamente
os limites da sua perfectibilidade e, contemporaneo
de todas as edades, cidadão de todos os paizes, conservar os
thesoiros da sabedoria antiga a par d’aquelles que acumula o
7presente. Sem a palavra não haveria tradição, nem historia, nem
discussão, nem sciencia, nem leis, nem sociedade. Pois quem poderia
denominar sociedade o encontro fortuito de alguns individuos
incapazes de communicarem as suas necessidades, de combinarem
os seus projectos, e de trabalharem em commum para
seu proveito. Imaginemos um povo de surdos-mudos; se tal povo
tentar estabelecer uma fórma social, quantos obstaculos não terá
que vencer! Como será vacillante e difficil o seu caminhar! Podemos
applicar estas considerações á linguagem escripta, especie
de corollario ou fórma visivel da linguagem. Se a palavra é a
imagem fugitiva da intelligencia, a escripta é o symbolo permanente
da palavra; se esta nos põe em communicação com as pessoas
presentes, aquella leva o nosso pensamento aos logares onde
não estamos, e conserva-o para os tempos em que já não existirmos.

A gramatica segue de perto a escripta. Assim que se descobriu
o meio de se pintarem as palavras, não tardou que se inventassem
as leis que as devem reger. Desde então, deixou de ser
permittido empregar-se um termo por outro, ou construir uma
phrase arbitrariamente, como outr’ora se fizera mais de uma vez,
na epoca em que todos eram senhores absolutos das suas palavras,
como da sua pessoa. A grammatica foi para a linguagem
como a lei para a sociedade, designou a cada coisa o seu logar, e
assegurou a ordem geral, restringindo a independencia individual.

As familias em commum pouco afastados uns dos outros submeteram-se
em commum ás mesmas leis grammaticaes; mas, como
as montanhas, os rios e os mares estabeleciam barreiras entre as
differentes linguagens, aconteceu que muitas grammaticas se formaram
na superficie do globo. Teve cada lingua o seu genio
particular; mas qualquer que fosse a differença de fórma, a base
ficou a mesma por toda a parte, porque se derivava da mesma
natureza do espirito humano. A reunião d’estes principios invariaveis,
communs a todas as linguas, fórma o que se chama —
grammatica geral —.

Lancemos um golpe de vista sobre a origem dos elementos da
linguagem.8

Interjeições

As primeiras palavras das linguas, na infancia das sociedades,
não foram mais do que uns sons, ou antes gritos inarticulados,
acompanhados de movimentos e gestos proprios para exprimirem
com evidencia e clareza as impressões que se sentiam e se queriam
communicar. São esses effectivamente os signaes que a natureza
nos ensina a empregar, e que todos podem comprehender.
Quem via approximar-se um homem do covil de alguma fera ou
de um logar onde se correra risco de vida, só podia prevenil-o
do perigo, solando gritos, e fazendo os gestos que são os signaes
do medo. Estas exclamações, pronunciadas de um modo violento
e apaixonado, e ás quaes os grammaticos deram o nome de interjeições,
foram, de certo modo, os primeiros elementos ou materiaes
da linguagem.

Substantivos

Os primeiros passos que os homens deveriam dar, depois de
terem, de certa forma, instituido os gritos inarticulados que se
chamam interjeições, como signaes das paixões mais violentas e
das necessidades mais urgentes; as primeiras palavras que deveriam
ter inventado, são os nomes dos objectos que lhes foram
mais familiares, e que mais os poderiam servir ou prejudicar. A
arvore que os alimentava com seus fructos e os abrigava debaixo
da sua folhagem; o regato que os refrigerava; e o animal
cuja ferocidade temiam, ou mesmo aquelle que lhes servia de
preza, assim como a arma grosseira com que atacavam um e repelliam
o outro, todos estes objectos, e muitos outros mais, deveriam
ter recebido um nome. Depois das exclamações ou interjeições,
que, como dissemos, devem ter formado a primeira linguagem
do genero humano, a parte mais antiga do discurso é, sem duvida,
esta classe de palavras, que exprimem as coisas existentes.
Desde que os homens não se limitaram a designar os objectos
por um grito energico e rapido, e lhes deram um nome articulado,
ficaram inventados os substantivos.9

Pronomes

Quando o homem aprendeu a distinguir-se dos objectos que o
rodeavam, e quiz exprimir com uma só palavra a sua existencia
individual, a palavra eu saiu-lhe dos labios, e designou pela palavra
tu a existencia de um outro homem a quem fallava; disse
elle para indicar o seu similhante sem lhe dirigir a palavra, e
mais tarde a mesma palavra elle foi applicada aos animaes ou ás
coisas inanimadas, substituindo o nome no discurso. A esta classe
de palavras, chamaram os grammaticos pronomes.

Adjectivos

As qualidades proprias dos objectos que cercam o homem fizeram-se
necessariamente notar desde o momento em que elle
conheceu esses mesmos objectos; um fructo doce a agradavel não
podia ser confundido com um fructo amargo ou que contivesse
succos venenosos; o cão, tão naturalmente amigo do homem, tão
prompto sempre a servil-o, a sacrificar-se até por elle, deveria
distinguir-se do lobo ou do tigre, que parecem destruir e despedaçar
os outros animaes sem necessidade, só por um instincto
de natural ferocidade. Os proprios sentidos nos obrigam a decompôr
os objectos que nos patentea a natureza: as côres, as
fórmas, as qualidades tactis, etc… não nos affectam os mesmos
orgãos; porque somos obrigados a formar tantas idéas diversas,
quantos são os orgãos differentes pelos quaes o entendimento
recebe as sensações. Foi por isso que se inventou uma
terceira classe de palavras, completamente distincta d’aquellas
de que temos fallado, a dos adjectivos, que servem para designar,
não o proprio objecto, mas o modo de ser do objecto.

Verbos

Depois que o homem indicou por nomes a existencia particular
dos objectos que o rodeavam, elevou-se á idéa geral d’existencia:
inventou a palavra ser, que não era mais do que a abstracção
10dos differentes objectos existentes, percedentemente conhecidos
e denominados. Deveria servir-se d’esta palavra para
affirmar que o objecto designado ou a qualidade que lhe era
atribuida existia realmente. Foi d’este modo que, depois de ter
dito primeiramente sol, á vista do globo de fogo que alumiava
os seus olhos e fecundava a terra, pôde dizer: o sol ser, para
mostrar que o sol não era um sonho da sua imaginação,
mas sim um objecto real da natureza, ou: o sol ser brilhante,
para affirmar que o attributo de brilho pertencia realmente ao
sol. Ainda não é tudo. Tendo conhecimento da sua existencia em
differentes momentos successivos, concebeu a idea do tempo, que
dividiu naturalmente em tres partes: o passado, o presente e o
futuro; applicou esta divisão á palavra que lhe servia para exprimir
a existencia em geral, e em vez de dizer vagamente: o
sol ser brilhante
, disse: o sol é brilhante, não se limitando já a
affirmar a existencia e o brilho do sol, mas mostrando que o
momento em que fallava era precisamente aquelle em que o sol
brilhava no horisonte. Durante as trevas da noite, disse: o sol
era brilhante
, para enunciar que o ser brilho tinha passado, ou:
o sol será brilhante, para significar a esperança de um novo dia.
Desde então ficou descoberto o verbo, assim chamado do vocabulo
latino verbum, que significa palavra, querendo-se dar a entender
que é a palavra essencial, a palavra por excellencia, porque
é effectivamente aquella que representa o principal papel
na expressão do pensamento, a que dá movimento e vida ao discurso.
As outras palavras não são mais do que uns signaes isolados
dos seres ou das suas qualidades sensiveis; são materiaes
dispersos que o verbo liga e coordena para um fim commum.

Preposições

Com substantivos, adjectivos e verbos, poder-se-hiam construir
phrases complestas; mas estas phrases só apresentariam um
sentido limitado, se não se tivesse imaginado ligar os substantivos
entre si por outra especie de palavras, que servem para determinar
circumstancias accessorias. Ha grande differença entre
a expressão: passeio, e estas: passeio em um bosque a cavallo antes
11ou depois de jantar
. As palavras em, a, antes, depois de,
pertencem a uma classe que os grammaticos denominam preposições,
e que servem para indicar as relações que existem entre
os objectos.

Conjuncções

Não bastava ligar as palavras para se designarem as relações
que podiam existir entre ellas; foi preciso tambem reuir as
phrases por outras palavras: tal é o fim das conjuncções.

N’esta nomenclatura não fallámos do artigo, porque não é uma
parte essencial do discurso. Foi sem duvida uma descoberta util,
a do artigo, pois que, especificando o objecto antes do qual é
collocado, isolando-o dos outros objectos similhantes, augmenta
muito a clareza e precisão do discurso. As linguas que possuem
o artigo, como o grego, o italiano, o francez, o allemão, o inglez,
e o portuguez, são mais claras que as outras que o não têm; entretanto
póde a linguagem rigorosamente passar sem elle, e para
o provar de um modo incontestavel, temos o latim que o não
possue, mas que nem por isso é destituido de clareza e precizão.

Tambem não fizemos menção dos adverbios, classe numerosa
de palavras que pela maior parte poderiam ser classificadas como
adjectivos, poir servem para modificar a existencia ou a acção
dos seres, ou para indicar uma circumstancia de tempo, logar,
ordem, gráo, etc. Longe de formarem uma classe á parte, não
são quasi todos os adverbios senão locuções abreviadas, exprimindo
com uma só palavra uma periphrase completa. Por exemplo:
aqui equivale a n’este lugar; sabiamente a com sabedoria, etc.
Podemos pois considerar os adverbios como as palavras de mais
recente invenção, sendo pela maior parte derivadas das palavras
primitivas.

Deviamos tambem fallar dos participios, cuja denominação
bem indica o seu caracter mixto, pois que participam ao mesmo
tempo do adjectivo e do verbo. não formam por isso uma das
partes essenciaes do discurso, e devem ser classificadas entre os
adjectivos.

Taes são os elementos que entram necessariamente em todas
12as linguas que têm chegado a um certo gráo de perfeição. Não
nos demoraremos mais tempo em investigar qual póde ter sido
o uso ou a natureza d’estas palavras na origem da linguagem,
isto é, n’uma época da qual não nos restam quasi nenhuns documentos
authenticos.13