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Vera, Alvaro Ferreira de. Orthographia ou modo para escrever certo na lingua Portuguesa – T02

[Orthographia…]

Prologo.

Muitos, & mui graves authores puserão
este argumento: Qual he de môr
excellencia, o fallar bem com a penna,
ou com a lingua? E dão (com
justa razão) a ventajem ao bem arrazoado per
escritto. Porque o fallar elegante fica sepultado
no esquecimento; & o q̃ se escreve fica em perpetua
memoria. Que fora da eloquencia de Cicero,
se a não deixara escritta? Nem delle nos
lembramos os presentes, nem delle tiverão noticia
os futuros. Quem soubera agora de Agamemnon,
de Achilles, de Ulysses, & de quanto
elles fizerão no celebrado cerco de Troia, senão
fora Homero Escrittor daquella guerra? As
mesmas sepulturas, que cubrîrão seus corpos,
houverão de cubrir a gloria, & excellencia de
seus feitos. E vemos que sua fama ainda hoje
voa pelo mundo por meïo da penna daquelle
Escrittor, que floresceo, ha perto de tres mil annos.
Esta verdade se vê expressa com injenho,
& elegancia nestes versos d’Ouidio.

Tabida consumit ferrum, lapidemq; vetustas,
Nullaq, res maius tempore robur habet.
9Scripta ferunt annos: scriptis Agamemnona nosti,
Et quisquis contrà, vel simul arma tulit
.

Per beneficio da escrittura (diz o mesmo
Poeta) vivirão gloriosamente todos os antigos,
em quanto o mundo durar:

Tityrus, & Segetes, Æneiaq; arma legentur,
Roma triumphati dum caput orbis erit
.
Vivet Maeonides Tenedos dùm stabit, & Ida,
Dùm rapidas Simois in mare volvet aquas
.
Dùmq; suis victrix septem de mentibus orbem
Prospiciet domitum Martia Roma, legar
.

Os Gregos chamârão aos doutos Sophos, q̃
quer dizer sabios; nome que por arrogante mudou
Pithagoras em o de Philosophos, que tanto
monta como Namorados da sabiduria: os
Franceses Druidas: os Egypcios Sacerdotes:
os Hebreos Scribas: os Persas Magos: os Indios
Gymnosophistas: & nenhum destes (nẽ d’outras
naçoẽs) chamârão aos doutos Falladores.

Mecenas, aquelle que tanto estimou as artes,
& sciencias, costumava dizer, que não estimava
a eloquencia por ser cousa falladora; mas que a
estimava por escritto, porque nelle se dizia tudo
com silencio.10

Os Paduanos querendo honrar a seu Tito
Livio puserãolhe estatua nos lugares mais honrosos,
assentado com hũa penna na mão, &
dous dedos na bocca. Dando a entender, que
aquelle que o quizesse imitar, escrevesse, & não
fallasse. Porque (como a experiencia mostra)
o homẽ, que muito falla, danna a sua propria
pessoa, & o que escreve honra, & aproveita a
hũa republica. O fallar he cousa de muitos; &
o escrever de poucos: os que escrevem sabem;
& os que muito fallão errão, & obrão pouco,
& sabem menos.

Assi que he tàm differente a eloquencia da
orthographia, & tàm fora de se comparar cõ
ella, que para o homẽ ser sabio, ha de ser destro
no escrever; breve, & cauto no fallar. Com
tudo não nego, que o fallar bem, he ventajem,
que os homẽs estimão, como cousa tàm superior
aos animaes: & que procurão os doutos
ser tàm aventejados nesta parte aos mais homẽs,
como o saõ em muitas artes, & sciencias.
Porque as palavras saõ o toque, em que se vê o
valor das pessoas, & a differença, que ha do nobre
ao plebeio; & do vicioso ao bem instituîdo.
Porem digo, que se esta ventajem se conhece
11nas palavras, muito mais se conhecerâ na perfeição
das letras, & certeza na orthographia.
Porque as letras, & escrittura saõ retratto, &
representação do que se falla; & se o homẽ he
politico nas palavras, passa, & esquece; porem
se acerta no que escreve, fica nessas letras com
perpetua fama.

Polo que concluindo com este argumento digo,
que se os nobres doutos, & sabios, querem
ser mais aventejados aos mais homẽs, como o
saõ aos brutos animais, devem têr mais cuidado
no escrever ao certo, do q̃ tem de bem fallar.

Alem do que este he o principio, & assento
de todas as sciencias, sem o qual senão poderâ
saber com fundamento algũa dellas: como affirma
Quintiliano lib. I. Inst. orat.

Por conhecer esta verdade o Philosopho,
sendo tam sciente, senão desprezou de ensinar
esta arte ao grande Alexandre tàm exactamente,
como se fora mestre d’escolla, dando por razão
o que se segue: Non sunt contemnenda quasi
parva, sine quibus magna constare non possunt
.

Quanta dilijencia puserão os antigos, &
sabios Romanos na arte de seu escrever, testemunhas
são as pedras, moedas, & medalhas de
12seus tempos, que hoje em dia leemos: em as
quaes senão acha vicio, por serem escrittas cõ
grande perfeição. Tanto que querendo o gram
Pompeio escrever seu nome, & titulo no templo
da Vittoria, que elle havia edificado, em q̃
declarasse, como fora tres vezes Consul, tomando
parecer dos mais doutos de Roma, porque
hũs dizião Tertium; & outros Tertio, pedio a
Cicero o determinasse. O qual (como tam sabio,
& prudente, que era) porque nenhũ, dos
q̃ havião dado seu parecer, ficasse descontente,
mandou que se escrevesse o titulo abbreviado
com as primeiras letras sômente.

E assi os Romanos julgavão esta arte per
hũa das mais importantes âs respublicas, dizendo,
que ella era lume das sciencias, & a que differençava
as respublicas politicas das barbaras.

Marco Varrão com ser tàm douto escreveo
muitos livros da Analogia, fundamento de bẽ
escrever.

Iulio Cesar Monarca do mundo, que se não
prezava menos da penna, que da espada, escreveo
outros muitos livros da Etymologia das
palavras.13

O Emperador Augusto, sobrinho do mesmo
Cesar para se parecer com elle em tudo, se prezou
tanto desta arte, que nas cartas, que escrevia
de sua mão, por não fazer mâ repartição das
letras, acabava as regras com as palavras inteiras.
E por tamanha falta tinha o erro de hũa
sô letra, que sendo hum Principe tâm clemente,
privou do officio a hũ legado Consular, por
lhe escrever em hũa carta hũ icsi, por hũ ipsi.

O grande Orador Marco Messala Corvîno
tam illustre per sangue, eloquencia, & dignidade
Consular, escreveo sobre cada letra do alphabeto
particular trattado.

O Emperador Carlo Magno, Principe doutissimo
nas letras divinas, & humanas, & em as
linguas Hebrea, Grega, & Latina, estando recolhido
em Aquisgrano o tomou a morte escrevendo,
& reduzindo em arte a lingua, & escrittura
dos Alemães.

Com os quaes exemplos fica condẽnada
hũa barbaria novamente usada entre algũs senhores,
& fidalgos, que leem mal, & escrevem
peior, como se fosse caso de menos valor o sabelo
fazer com algũa graça.

E assi nestes nossos tempos, em que os homẽs,
14que mais tẽe, esses saõ os, que mais valem
(segundo aquillo do Poëta: In pretio pretium nũc
est: dat census honores
) procurão sômente saber
arte que lhes dee ganho; & deixão perder muitas,
cujo principal interesse he virtude, & boa
instituição. Entre as quaes hia tambem esta caminhando
com passos agigantados para o Occidente
da imperfeição, sendo arte tam necessaria
a todo genero de pessoa (mormẽte âquelles,
que compõe) que me obrigou minha curiosidade
escrevela diffusamẽte, acrescentãdo mais
letras ao nosso alphabeto. E não causarâ espanto
teer mais tres tam necessarias; & menos
hũa das antigas tam ociosa, & superflua, como
todos sabemos, que he a letra K dos Gregos. E
se as razoẽs, que pera isso dou, não forem bastantes,
fiquese tudo como d’antes; & da maneira,
que o escrevo no principio ao antigo.
Porque com ellas não pretendo fazer meu nome
immortal, como pretendia o Emperador
Tiberio Cesar, que tambem escreveo sobre a
Orthographia acrescentandolhe certas figuras
de letras, que servîrão em quanto elle viveo, de
que hoje em dia ha letreiros, & memoria. Sô
o fiz por curiosidade, que essa me obrigou tambem
15ajuntar a este trattado outro da Memoria
artificial, que ensinou â minha instancia o Padre
Christovão Bruno meu mestre insigne nas
Mathematicas, despois que leu sua nova Astronomia
de tres ceos sòmente, Aëreo, Sydereo,
Empyreo: & a navegação de Leste a O este: cou
sas dignas de perpetua memoria. O mais, que
lhe acrescentei, terà algũa estima por ir no mesmo
volume. Tudo offereço com a vontade, que
tenho de apresentar hum vocabualario Latino,
& Português intitulado: Compendio de vocabularios.
O qual vai repartido per frases de Re
civica, nautica, rustica, & bellica: partes exteriores,
& interiores do homem: officios, & vicios
do corpo: proverbios commumente usados
em Latim, & Português. O que tudo tenho
quasi de todo acabado, porque pretendia escrever
tudo em hum volúme. En tanto aceite
o Lector esta vontade. Vale.16