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Grivet, Charles Adrien Olivier. Nova Grammatica Analytica – T01

[Nova Grammatica Analytica da Lingua Portugueza]

Noções preliminares

1. Grammatica é a arte de fallar e escrever correctamente :
o seu objecto é, portanto, a palavra.

2. Falla e escreve correctamente quem se conforma
com as regras sanccionadas pelos dictames da boa razão,
o segundo os usos respeitáveis pelo assenso que grangeárão
dos doutos.

3. Sendo, porém, essas regras, não só numerosas,
como ainda de alcance bastante diverso, entendeu-se que,
para as tornar mais comprehensiveis, convinha distribuí-las
em differentes secções : dahi a divisão prévia da Grammatica
em cinco partes : lexicologia, syntaxe, orthographia, prosódia
e pontuação
.

4. Lexicologia é a parte da Grammatica que onsina
a natureza e as formas das palavras.

5. syntaxe é a parte que assignala as relações que
entre ellas occorrem na enunciação dos pensamentos.

6. Orthographia é a parte que determina o modo
mais acertado de as escrever.

7. Prosodia é a parte que trata de sua pronunciação
metrica.

8. Pontuação é a parte que regula a separação dos
pensamentos escriptos por meio de signaes marcando as
pausas naturaes da elocução.1

Primeira parte
Lexicologia

Das letras

9. Chama-se linguagem ou discurso a enumeração
verbal ou escripta dos pensamentos.

10. Todo o pensamento, ou complexo de pensamentos
encerrado por um ponto final donomina-se grammaticalmente
oração.

Exemplos :

O homem é um ente racional.

O homem é o unico dos entes deste mundo — que fica responsável
pelos seus actos
.

11. Uma oração póde constar do uma ou de mais
palavras. Ex. Ouví. — Que deve procurar o homem em todos
os actos de sua vida ?

Uma palavra pode constar de uma ou de mais vozes.
Ex. Não — respondeis ?

Uma voz póde constar de uma, ou do mais letras. Ex.
O — bem.

12. As letras dividem-se em — vogaes e consoantes.
Vogaes são a e i o u y. Assim se chamão por poderem
constituir de per si sós uma voz. Consoantes são todas as
mais letras, por nunca constituirem uma voz sem o concurso
de ao menos uma vogal.

13. Cada voz representada por uma ou mais letras
denomina-se grammaticalmente syllaba. Assim é que, embora
diverso seja o numero das letras de que constão os
vocabulos do seguinte exemplo, cada um delles constitue
todavia uma só syllaba, porque cada um delles se enuncia
çm um só voz : E’ — um — dos — tres — trens2

As palavras que, como estas, abrangem uma só syllaba,
costumão ser chamadas monosyllabas, por opposição
ás que, abrangendo mais de uma, se chamão polysyllabas.

14. Assim como, em referencia ao procedente exemplo,
póde, já uma, já mais de uma consoante concorrer á formação
de uma só syllaba, tambem podem duas e até tres
vogaes encontrar-se n’uma só e mesma syllaba. Sendo
duas, o seu conjuncto chama-se diphthongo ; sendo tres
chama-se triphthongo.

Os diphthongos ficão, portanto, caracterisados pela circumstancia
de se não deixarem separar as vogaes de que
constão, na emissão pausada das syllabas ; assim em ai, ou,
lei, pai, mãi, lãa, mui, vãos, grãos, cães, ruins, deitâo (deitão),
cuidou (cui-dou)
, etc. Não se devem, porém, ter em
conta de diphthongos vogaes que, embora consecutivas,
sahem disjunctas na pronunciaçào pausada, assim em eu,
meu, boa, tio, teus, doer (do-er)
, fiar (fi-ar) etc.

Os triphthongos ficão, do mesmo modo, caracterisados
pela circumstancia de se não deixarem separar as vogaes
de que constão, na emissão pausada das syllabas ; assim
em guai, peão, deão, quão, união (u-nião), regiões (re-giões),
argueiro (ar-guei-ro)
, etc. Mas tambem não se terão em
conta de triphthongos vogaes que, embora consecutivas,
não sahem conjunctamente na pronunciação pausada, assim
em joia (jo-ia), vaias (va-ias), raiar (ra-iar), catraeiro
(ca-tra-ei-ro), etc.

15. O que destas considerações se segue, é que, para
em qualquer palavra determinar-se o numero das syllabas,
basta proferi-las emphatica e pausadamento, reputando-se
como syllaba toda a voz que se emitte em um unico movimento
dos orgãos da falla, meio este que, por exemplo,
na palavra pau-sa-da-men-te, denuncia cinco syllabas.

Divisão das palavras

16. Consideradas na sua natureza, as palavras se dividem
em dez especies, que são : verbo, substantivo, artigo,
adjectivo, pronome, participio, preposição, adverbio, conjuncção
e interjeição
.

Verbo é uma palavra que enuncia um facto.

substantivo ou nome é uma palavra que designa entes
ou abstracções.

Artigo é uma palavra que, antepondo-se essencialmente
aos substantivos, e accidentalmente a pronomes ou mesmo
a verbos no infinitivo, confere-lhes um sentido preciso.3

Adjectivo é uma palavra que se accrescenta mediata
ou immediatamente aos substantivos, pronomes ou mesmo
a verbos no infinitivo para os qualificar ou determinar.

Pronome é uma palavra que, dispensando a frequente
reproducção dos substantivos, suppre-os em todas as suas
funcções.

Participio é uma palavra que, procedendo do verbo,
coadjuva-o na conjugação, ou porta-se como mero adjectivo
junto a substantivos ou pronomes.

Preposição é uma palavra que se antepõe essencialmente
a substantivos, pronomes ou verbos no infinitivo, e
accidentalmente a adverbios, para marcar uma relação.

Adverbio é uma palavra que se ajunta a um verbo,
participio, adjectivo, ou até a outro adverbio, para modificar-lhes
o alcance de significação.

Conjuncção é uma palavra que liga partes de uma
oração, ou orações completas, para denunciá-las como connexas
ou oppostas.

Interjeição é uma palavra que implicitamente abrange
todos os elementos de uma proposição ou pensamento.

17. Destas dez especies de palavras chamão-se variaveis
as seis primeiras, e invariaveis as quatro ultimas.

São variaveis as palavras que, sem sahirem de sua
especie, passão por uma ou mais alterações de letras e pronuncia.
Desta ordem são as palavras do seguinte exemplo :
« O nosso ’primeiro pai foi creado feliz » ; pois, sem sahir de
sua especie, cada uma dellas é alteravel nas suas letras e
pronuncia : « Os nossos primeiros pais forão creados felizes. »

São invariaveis as palavras que, a não sahirem do
sua especie, não podem passar por nenhuma alteração de
letras nem de pronuncia. Desta ordem são as palavras do
seguinte exemplo : « Desgraçadamente, porém, não para sempre » ;
pois, de todas ellas, a unica passivel do uma transformação
e desgraçadamente, que, deixando de ser adverbio, apresenta-se
como verbo em desgraçar, como substantivo em desgraça,
e como participio em desgraçado, mas permanece a mesma
como adverbio.

18. Da distincção das palavras em variaveis e invariaveis
torna-se obvio que a mór parte das regras grammaticaes
versa sobre as primeiras, visto como, por effeito
mesmo de sua immutabilidade, as segundas não podem originar
nenhuma dificuldade de maior alcance.

Observação. Hão é inopportuno fazer notar desde já
que, dentre as palavras variaveis, bastante numerosas são
4as que, já o uso, já uma particularidade do conformação
ou do sentido inhibe do assumir as inflexões da variabilidade.
Assim ó que o substantivo , o adjectivo simples o
o pronome que não passão por nenhuma das alterações
proprias das classes a que pertencem. Taes excepções,
porém, por isso mesmo que são excepções, não invalidão
a declaração de variaveis que caracterisa as mais palavras
das mesmas classes, por ser este o cargo predominante de
sua indole.

19. As causas que promovem a variabilidade, são
cinco : os numeros, os generos, os modos, os tempos e as pessoas.
Não se entenda, todavia, que todas ellas actuem conjunctamente
em cada uma das diversas especies de palavras :
longe disto. O verbo é variavel em numero, modos, tempos
o pessoas. o substantivo é só variavel em numero. Emfim
o artigo, o adjectivo, o pronome e o participio são variaveis
em numero e genero.

20. As alterações que produz a variabilidade, recahem
geralmente sobre a ultima ou as ultimas syllabas da palavra,
que, por este motivo, sóem ser designadas pelo appellido
de terminação, ou, ás vezes, em relação aos verbos,
pelo de inflexão.

21. Numero é a propriedade que têm todas as palavras
variaveis de accusar a unidade ou a pluralidade.
Dizem-se, no primeiro caso, de numero singular, e, no segundo,
de numero plural. Só dous são, portanto, os numeros
grammaticaes em portuguez. Linguas ha, entretanto, como
as eslavonicas e o grego que têm mais.

22. Genero é a propriedade que têm as palavras variaveis
de accusar uma distincção que recorda a differença
dos sexos. De genero masculino dizem-se portanto, as palavras
que, como varão e leão, adduzem ao espirito a idéa
de um ente macho ; e, de genero feminino, todas as que,
como mulher e leóa, adduzem a de um ente fémea. Quanto
ás palavras cuja significação fica alheia a toda e qualquer
distincção de sexos, o genero que tomão é determinado
por uma inducção do terminação ou de etymologia : assim
é que são masculinos pensamento e sol, e femininos idéa e
lua. Os mesmos verbos, no modo chamado infinitivo, não
são desamparados desta propriedade ; sómente o genero que
accusão, é um só : o masculino : assim o comer e o beber.
muitas linguas, e entre as antigas o latim e o grego, têm
mais um genero, o neutro, que ficou geralmente supprido
em portuguez pelo masculino.

23. Modo é a propriedade que os verbos têm, de denunciar
a sua dependencia ou independencia reciproca.5

24. Tempo é a propriedade que os verbos têm, de declarar
uma das tres epocas da duração : o presente, o passado
e o futuro.

25. Pessoa é a propriedade que os verbos têm, de, na
maior parte dos casos, accusar, a sua sujeição ás tres personalidades
do discurso, representadas syntheticamente pelos
seis pronomes seguintes : eu e nós, — tu e vós, — elle
(ella)
e elles (ellas). Na primeira pessoa, o verbo denuncia
quem falla ; na segunda, a quem se falla ; na terceira,
do quem ou o de que se falla.

Capitulo I
Do verbo

26. Verbo é uma palavra variavel que enuncia um
facto ; ora trabalhamos é palavra enunciando um facto :
portanto trabalhamos é verbo.

27. Discrimina-se, aliás, praticamente um verbo de
outra qualquer especie de palavras por lhe competir exclusivamente
a faculdade de se conjugar, isto é, de se modificar
em terminação sob a influencia dos referidos pronomes
eu, tu, elle (ella), — nos, vos, elles (ellas). Ex. :

Eu trabalho | Nós trabalhamos
Tu Trabalhas | Vòs trabalhais
Elle trabalha | Elles trabalhão

28. Considerado em si, o facto reverte forçosamento
em uma das tres seguintes categorias : elle é de acção, de
estado ou de necessidade
.

Exemplo :

Basta que sejamos infelizes, para não contarmos muitos
amigos
.

Tres são os verbos que ahi concorrem á enunciação
do pensamento : basta, sejamos e contarmos ; cada um delles,
porém, pertence a uma categoria diversa : pois contarmos
(de contar) é verbo de acção ; sejamos (de ser), verbo de
estado
 ; o basta (de bastar), verbo de necessidade.

Os fundamentos em que se baseia esta triplice divisão,
virão opportunamente declarados, bem como as importantes6deducções que della se tirão, mórmente na parte syntaxica.
Todavia, sendo possivel tornar desde já saliente o mais attendivel
dos caracteristicos que os distinguem, convem
tanto mais já agora expô-lo, pois que constitue um ponto de
doutrina diversamente explicado, embora só se compadeça
com uma unica solução.

Reassumindo-se, como termos de experimentação, os
tres verbos acima referidos, vê-se que dous delles : contar e
ser se prestão no exemplo adduzido, a formar sentido com
um dos pronomes distinctivos da conjugação : Basta que
nós sejamos infelizes, para nós não contarmos muitos amigos.
Vê-se mais, que os dous mesmos verbos se não recusão a
formular o mesmo pensamento com outros pronomes da
mesma classe : Basta que tu sejas infeliz, para tu não contares
muitos amigos
. Porém, seja qual for a modificação
introduzida na expressão deste pensamento, nunca será
possivel sujeitar o verbo basta á influencia do pronome
que sua terminação parece avocar : elle (ella), e menos
ainda á de outro qualquer.

Portanto o que se póde e deve concluir desta exposição,
é que os verbos de acção e de estado se deixão
coadunar em sentido com os pronomes conjugativos ; porém
os verbos de necessidade, nunca. Estes só se assemelhão
aos procedentes pela faculdade de apparecerem, nas evoluções
da conjugação, com a terminação propria da terceira
pessoa do singular (Basta. — Elle (ella) trabalha).

29. Junto á significação que a cada um é peculiar, os
verbos despertão ainda, na enunciação dos pensamentos,
quatro idéas accessorias, que lhes constituem outras tantas
feições : ellas são de modo, de tempo, de numero e de
pessoa
. As duas primeiras são inherentes a todas as manifestações
do verbo ; as duas ultimas, nem sempre.

Tendo geralmente os grammaticos confundido as feições
com as formas do verbo, não será fóra de proposito extremar
o sentido que a cada um destes termos compete.

As formas do verbo são a sua mera manifestação pela
elocução ou pela escripta. Na elocução, ellas constão de
vozes ; na escripta, de letras. Assim é que « trabalho »
é uma só e unica forma do verbo trabalhar ; não é, porém,
uma feição.

As feições são os diversos conceitos que dimanão conjunctamente
de uma só e mesma forma. Assim é que, em
« trabalho », depara-se cora uma feição de modo, que é a
do indicativo ; com uma feição de tempo, que é a do presente ;
com uma feição de numero, que é a do singular ;
emfim com uma feição de pessoa, que é a da primeira : em
summa, quatro feições jorrando do uma só forma.7

Fuja-se, portanto, da definição dos modos, tempos, numeros
e pessoas por este teor, que, embora seja o da tradição,
não deixa de ser perfeitamente illogico : « O modo é
a fôrma que toma o verbo
… » — « O tempo é a fôrma que
toma o verbo
… » — «  O numero é a fôrma que toma o verbo… »
— « a pessoa é a fôrma que toma o verbo… »

Dos modos

30. Não ó possivel emittir um pensamento sem que
nelle occorra, expressa ou tacitamente, ao menos um verbo.
Todos os outros tempos podem falhar ; elle, não. Ex. Chove.

31. O verbo preside, portanto, a todo e qualquer pensamento,
e, em virtude desta funcçao, serve-lhe analyticamente
de representante. a sua mesma denominação é a
declaração concisa de sua primazia, pois verbo significa
etymologicamente palavra por excellencia.

32. Mas os pensamentos apparecem, no discurso, já
soltos, ja connexos, conforme se desamparão ou se ajudão
os verbos que os dominão.

Os pensamentos apresentão-se soltos quando de tal
modo se deixão apartar, que cada um póde subsistir de
per si só sem obscuridade nem falseamento de sentido.
Ex. Deos creou o céo e a terra. — Tudo proclama a omnipotencia
de Deos
.

Os pensamentos apresentão-se connexos quando de tal
modo se prendem pelos verbos que os representão, que
não se deixão apartar sem obscuridade ou falseamento do
sentido, Ex. Infelizmente não poucos são os homens — que
denegão a Deos o culto — que se lhe deve, — como se assim
se
subtrahissem a seu poder.

Ninguem ha que, applicando a estas duas ordens de
pensamentos os criterios expendidos, deixe de reconhecer,
na primeira, dous pensamentos soltos ou independentes, e,
na segunda, quatro pensamentos connexos ou dependentes
uns dos outros.

33. Como, porém, sob esta dupla influencia de colligação
ou do apartamento dos pensamentos, os verbos ostentão
series de formas bastante variadas, indagou-se das
causas que as originavão, e achou-se que erão cinco, conferindo
cada uma ao facto uma feição especial. a estas
cinco series ou grupos de formas deu-se a denominação de
modos, e a coordenação geralmente adoptada na sua exposição
foi a seguinte : o indicativo, o condicional, o imperativo,
o subjunctivo e o infinitivo
.

O primeiro apresenta o facto como effectivo ; o segundo,
8como condicional ; o terceiro, como mandado ; o
quarto, como hypothetico ; o quinto, como indeterminado.

Porém as relações mutuas dos modos jogão com tantos
outros quesitos grammaticaes, que não podem ser devidamente
aquilatados senão na parte syntaxica.

34. Todavia, pela sua summa importancia, cumpre
ter como desde já estabelecido um principio que domina
toda a theoria dos verbos, e vem a ser o seguinte : O verbo
só se torna representante de um pensamento em um dos
quatro primeiros modos ; no quinto, ou infinitivo, nunca o
é, porque, neste ultimo caso, suas principaes funcções são
sempre as de um mero substantivo. Por isso é, por exemplo,
que « ciiove » enuncia de per si só um pensamento, ao
passo que « chover » enuncia apenas uma idéa, isto é, um
dos elementos do um pensamento, mas não um pensamento.

Dos tempos

35. Todo e qualquer facto, humanamente fallando,
realisa-se no tempo. Fóra desta condição, o homem não
concebe nada directa e affirmativamente ; pois, para elle, a
eternidade é uma idéa indirecta e negativa : « O que não
principia nem acaba. O tempo é assim a successão das
cousas. a successão das cousas abrange, sem mais nem
menos, tres epocas, chamadas epocas da duração : o presente,
o passado e o futuro. a recordação de tempo é,
portanto, inseparavel da enunciação de facto.

36. Por associação de idéas, todo e qualquer Conjuncto
de formas verbaes recordando uma mesma época da duração
veiu a ser chamado em Grammatica tempo do
verbo
.

Os tempos são assim as feições mediante as quaes os
verbos indicão, dentro dos modos, as tres epocas da duração.

37. a’ vista desta consideração, talvez deduza-se antecipadamente
a consequencia que, em cada modo, devão
ser sómente tres, e sempre tres os tempos verbaes, a saber :
um conjuncto de formas para o presente, outro para o passado,
o outro, emfim, para o futuro. Na realidade não é
assim, e em nenhuma lingua existe tão systematica disposição.
Em portuguez, notavelmente, os tempos são oito
no indicativo, quatro no condicional, um no imperativo,
oito no subjunctivo, e seis no infinitivo.

38. As razões donde dimana tal desigualdade, são
duas. a primeira consiste em que, n’um mesmo modo,
9dous ou mais tempos alludem iterativamente a uma mesma
época, ao passado, por exemplo : estive hontem incommodado,
— como já o
estivera antes de hontem, — como o tenho
estado
todos os annos nesta mesma estação. a segunda consiste
em que, pelo contrario, um só e mesmo tempo pode
alludir a duas, ou até ás tres epocas da duração, sendo em
tal caso determinada a época precisa por meio de um
termo accessorio, como agora, hontem, amanhã, etc. Ex. Eu
desejára que Vm
. estivesse agora em sua casa, — estivesse
hontem
em sua casa, — estivesse amanhãa em sua casa —
para providenciar ácerca deste assumpto
.

39. Para ter, aliás, dos tempos do verbo, uma noção
exacta, importa considerá-los sob o tríplice aspecto do seu
alcance, da sua fôrma e da sua procedencia.

40. Em relação ao seu alcance, os tempos podem
aventar, ou uma só, ou duas, ou até as tres epocas da duração.
Os dous referidos exemplos verificárão antecipadamente
esta allegação.

41. Em relação á sua forma, os tempos são simples
ou compostos. São simples quando constão de uma só palavra,
assim em ler, leio, lí, léra, lerei, etc. São compostos
quando constão de mais de uma palavra, assim em ter lido,
tenho lido, tenho sido lido, hei de ler, estou lendo
, etc.

42. Em relação á sua procedencia, todos os tempos,
salvas poucas excepções, se deduzem da de suas formas
simples cuja significação é a mais indeterminada, e constitue
por si só, na ordem das series conjugativas, o primeiro
tempo do infinitivo
, cabendo-lhe por isso a denominação
de tempo primordial. O seu caracteristico é acabar forçosamente
em ar, er ou ir, com excepção tão somente do
verbo por, e dos que delle se derivão, como compor, depôr,
propor
, etc.

Todavia, tendo-se observado, em um certo numero de
verbos, que alguns tempos simples se deixão deduzir, por
uma filiação mais natural, de outros tempos que não do
primordial
, — assim em caber, os tempos coubera, coubesse,
couber
de coube ; — em poder, os tempos pudera, pudesse,
puder
de pude ; — julgou-se de algum proveito o substabelecimento
de uma divisão dos tempos em primitivos e em
derivados, para sujeitar, á lei da regularidade até as formas
anormaes de alguns verbos excepcionaes. Desta divisão
trata-se em lugar opportuno.

43. Sendo as vozes ar, er, ir do tempo primordial a
unica porção da palavra que, na mór parte dos verbos,
soffre as alterações denunciando as feiçõos do modo, tempo,10numero e pessoa, assentou-se em designá-la pelo nome de
terminação, por opposição á porção geralmente inflexível,
que ficou denominada radical (de raiz). Assim é que em
amar, render, punir, o radical consta de am, rend, pun ; ao
passo que a terminação se entende, não só de ar, er, ir,
senão tambem do todas as transformações por que passão
estas vozes no correr da conjugação.

Tabella synoptica dos tempos do verbo

Indicativo

1.° tempo : Presente.
2.° tempo : Passado imperfeito.
3.° tempo : Passado perfeito.
4.° tempo : Passado perfeito composto.
5.° tempo : Passado mais que perfeito.
6.° tempo : Passado mais que perfeito composto.
7.° tempo : Futuro.
8.° tempo : Futuro composto.

Condicional

1.° tempo : Presente-passado-futuro proprio.
2.° tempo : Passado proprio.
3.° tempo : Presente-passado-futuro supplementar.
4.° tempo : Passado supplementar.

Imperativo

Tempo unico : Futuro.

Subjunctivo

1.° tempo : Presente-futuro.
2.° tempo : Presente-passado-futuro proprio.
3.° tempo : Presente-passado-futuro supplementar.
4.° tempo : Preterito perfeito.
5.° tempo : Passado mais que perfeito proprio.
6.° tempo : Passado mais que perfeito supplementar.
7.° tempo : Futuro.
8.° tempo : Futuro composto.

Infinitivo

1.° tempo : Presente-passado-futuro impessoal.
2.° tempo : Presente-passado-futuro pessoal.
3.° tempo : Passado impessoal.
4.° tempo : Passado pessoal.
5.° tempo : Gerundio simples.
6.° tempo : Gerundio composto.11

Advertencia. Não se compadecendo bem, por mais
de uma consideração, o estiramento inevitavel de algumas
denominações de tempos com a concisão reclamada pelas
evoluções dos processos analyticos, preferivel é designar
cada tempo por sua ordem numérica. Em vez do Passado
mais que ’perfeito composto do indicativo
, diga-se, portanto,
simplesmente : Sexto tempo do indicativo, e assim dos demais.

44. Pela inspecção desta tabella deve-se notar que,
com excepção do imperativo, todos os mais modos são susceptíveis
de indicar, por um ou mais tempos, as tres epocas
da duração. a razão que faz com que o imperativo só
tenha um tempo, e com que este unico tempo seja sempre
um futuro, funda-se na consideração de ser a sua funcção
especial a enunciação de um mando ou rogo, do um conselho
ou de uma concessão. Ora, não sendo nenhum destes
actos concebivel em relação a um facto já perpetrado, ou
em via de perpetrar-se, claro é que um verbo no imperativo
forçosamente allude ao futuro, mas nunca, como alguns
pretendem, ao presente, e menos ainda ao passado. Pois,
dizendo alguem : « Sahe ou Sahí ! » por mais depressa que
se cumpra a ordem, o facto nunca deixará de se dar posteriormente
ao mando. Desta observação originão-se, em
outras partes da Grammatica, varias considerações do interesse
pratico. Ex. Lançai os olhos por todo o mundo, e
vereis (não : vêdes) que todo elle vem a resolver-se em buscar
pão para a boca
. (P. Ant. Vieira).

Das pessoas e dos numeros no verbo

45. Quem attende á significação e ao emprego dos
pronomes conjugativos já repetidamente mencionados, nota
que quatro delles : eu e tu, — nós o vós, — só se prestão
a representar pessoas. Pois eu e tu podem ser joão ou
maria ; nós e vós, João e Maria ; porém, em todo o qualquer
caso, não se entendem senão de homens, ou, quando
muito, de entes accidentalmente afigurados como homens.
Os outros pronomes da mesma classe : elle (ella), e elles
(ellas)
, dotados de alcance mais amplo, tanto podem representar
pessoas como tambem cousas, ou mesmo abstracções.
Assim é, com effeito, que elle e ella, não se
se podem substituir a João e Maria, que são pessoas,
como a ceo e terra, que são cousas, como em fim a vicio
e virtude, que são abstracções. do mesmo modo podem
elles o ellas substituir, tanto a João e Pedro, a Joanna
e maria, como a ceos e terras, a vicios e virtudes. Da
12circumstancia de assim competirem todos estes pronomes
a pessoas, e a mór parte exclusivamente a pessoas, originou-se
a sua denominação gonerica de pronomes pessoaes.

46. Além da idéa de personalidade, os mesmos pronomes
aventão duas outras : uma de numero, manifesta em
eu, tu, elle (ella) para o singular, em nós, vós, elles (ellas)
para o plural ; e outra de genero, occulta em eu e tu, —
nós e vós
, e manifesta em elle e ella, — elles e ellas.

47. Ora indagando-se qual seja a relação que entre
os referidos pronomes se estabelece, e o verbo adduzido
para com elles formar sentido, depara-se que o verbo, como
por deferencia aos mesmos pronomes, muda de terminação
a medida que passa do uma pessoa para outra, e de um
numero para outro.

tableau Singular | Plural
1.ª P. Eu fallo (o) | Nós fallamos (amos)
2.ª P. Tu fallas (as) | Vós fallais (ais)
3.ª P. Elle (ella) falla(a) Elles (ellas) fallão (ão)

Porquanto, nos dous unicos tempos em que todos os
verbos dispensão o concurso dos mesmos pronomes, isto é,
no 1.° e no 3.° do infinitivo, nenhuma semelhante mudança
se dá, a forma permanece uma só, e esta forma não desperta
idéa alguma de pessoa nem de numero. Ex.

tableau Amar. | Render. | Punir.
Ter amado. | Ter rendido. | Ter punido.

Portanto as idéas de numero e do pessoa não preexistem
no verbo, não lhe são necessariamente inherentes
como as de modo e de tempo, mas vão-lhe impostas pelos
pronomes conjugativos.

Assim se explica tambem porque os verbos de necessidade
não ostentão em cada tempo senão uma unica forma,
a da terceira pessoa do singular : « Chove, choveu, choverá… »,
forma essa tão despida da feição de numero, como da de
pessoa, pelo simples motivo que não lhe vai imposta, nem
por elle ou ella, nem por outra qualquer palavra.

Numero e pessoa no verbo são assim um mero reflexo
da pessoa e do numero dos pronomes conjugativos.

48. Entretanto, urgidos pela necessidade de designar
por uma expressão peculiar a acção destes pronomes sobre
o verbo, os antigos grammaticos assentarão em attribuir-lhes
neste particular a funcção de sujeitos do verbo. Ora,
como, em vez de se sujeitarem ao verbo, o verbo é que a
elles se sujeita, impossivel era escolher uma denominação13mais desacertada. Porém, vindo reproduzida desde seculos
em todas as grammaticas, enraizou-se ella de tal modo na
nomenclatura litteraria, que não é já licito substitui-la pela
de regentes que fôra entretanto mais adequada.

Observação. Destas considerações sobre as pessoas
verbaes
decorre naturalmente que, assim como não cabe ao
imperativo
senão um unico tempo, tambem não lhe cabe
senão uma unica pessoa : a segunda do singular, e a segunda
do plural ; porque não se concebe, em these geral, um acto
de mando, rogo, conselho ou concessão senão como dirigido
a quem é representado por tu ou vos, isto é, á pessoa ou
ás pessoas a quem se falla.

É, porém, particularidade da lingua portugueza que
não se compadeção as mesmas formas do imperativo com
nenhum vocabulo implicando negação, como não, nunca,
etc., sendo, em tal caso, substituidas polas formas correspondentes
de 1.° tempo do subjunctivo. Ex. « O’ meu amado
Senhor !
fallai-me por vós mesmo ; não me falleis pelas
vossas creaturas
 ! » (P. Man. Bernardes). — « Comei vós outros,
pobres estrangeiros, e
não vos desconsoleis por vos verdes
dessa maneira
. » (Fernão Mendes Pinto).

Do sujeito

49. sujeito é a palavra ou conjuncto de palavras que
rege ao verbo em numero e pessoa.

50. Conforme a significação do verbo, o sujeito se
apresenta, ou como o autor do facto, assim em elle julga,
ou como o objecto do facto, assim em elle é julgado.
Porém, neste, como naquelle caso, é distinctivo delle que
imponha ao verbo a concordancia em pessoa e numero :
portanto rege-o. Basta, com effeito, para verificar a exactidão
deste principio, mudar o numero do sujeito, para
que, da mesma feita, lhe corresponda no verbo uma modificação
adequada. Ex. Elles julgão. — elles são julgados.

51. O sujeito póde constar do uma ou de mais palavras ;
porém, seja qual for o seu numero, ellas pertencem
restrictámente, ou á classe dos substantivos, ou a dos pronomes,
ou á dos verbos em um dos quatro primeiros
tempos do infinitivo. Cumpre attender, além disso, que
com excepção dos pronomes eu e tu, nós e vós, todas as
mais palavras avocão necessariamente no verbo a terceira
pessoa do singular ou a terceira do plural.

52. Discrimina-se, aliás, praticamento o sujeito, fazendo-se
com o verbo a pergunta : « Quem é que… ? » para14as pessoas, e : « Que é o que… ? » para as cousas ou’as
abstracções. a palavra ou conjuncto de palavras que acóde
naturalmente em resposta, abrange o sujeito. ’

Exemplos :

Deos disse : — « Faça-se a luz ! » — e a luz foi feita. —
Quem é que disse ? Deos. — Que é o que se havia de fazer ?
a luz ! — Que é que foi feito ? a luz. (Sujeitos de substantivos).

Não só nós passamos, — como tudo passa. — Quem é
que passa ? Nós. — Que é o que passa ? tudo. (Sujeitos de
pronomes
).

O dar e o premiar são cousas muito diferentes. (P. Ant.
Vieira). — Que é o que são cousas muito differentes ? O dar
e o premiar. (Sujeitos de infinitivos).

Não se fazerem Mercês é faltar com o premio à virtude.
(P. Ant. Vieira). — Que é o que se deve fazer ? Mercês.
— Que é faltar com o premio á virtude ? Não se fazerem
Mercês.

Nota. O que ha de mais attendivel neste ultimo
exemplo, é que o infinitivo pessoal fazerem, por isso mesmo
que é pessoal, tem um sujeito no substantivo Mercês, ao
passo que o infinitivo faltar, por ser impessoal, não tem
nenhum. Porém o mesmo infinitivo fazerem, actuando
por sua vez sobre o verbo é, constitue-lhe o sujeito.

53. Constando o sujeito de um pronome pessoal, não
é só licito, como ate preferivel omittí-lo todas as vezes que
da sua suppressão não fica prejudicada, nem a clareza do
pensamento, nem a euphonia da dicção. Assim é que se
depara com uma bem justificada omissão dos referidos pronomes
no seguinte exemplo :

« Ama o teu inimigo, porque, se o não queres amar porque
é teu inimigo, déve-lo amar porque é homem. » (P. Ant.
Vieira). Com o restabelecimento dos pronomes, tornar-se-hia
a dicção insoffrivel : « Ama tu o teu inimigo, porque, se
tu o não queres amar porque elle é teu inimigo, tu o deves
amar porque
elle é homem. »

Nest’outro exemplo, porém, torna-se obvia, pelo motivo
contrario, a conveniencia da enunciação dos mesmos pronomes:
« Esse mesmo inimigo é mais verdadeiro amigo teu
que os teus amigos
 : elle estranha e condemna os teus defeitos,
e
elles os adulão e lisonjeião. » (P. Ant. Vieira).

Outrosim serve esta ultima oração para demonstrar
ainda que um só e mesmo sujeito póde actuar sobre dous
ou mais verbos (elle estranha e condemna… elles adulão
e lisonjeião…
).15

Dos complementos

54. Se todos os verbos de acção e de estado são caracterisados
pela regencia de um sujeito expresso ou occulto,
e os verbos de necessidade, pela deficiência de todo e qualquer
sujeito, quer expresso, quer occulto, uns e outros
adquirem, da assistencia ou da falta de um complemento,
novos distinctivos para uma classificação que, embora diversa,
torna-se, na pratica, tão indispensavel como a anterior.

55. Complemento é a palavra ou conjuncto de palavras
que, junto a um verbo, inteira-lhe o sentido. Exemplo :
« Emenda-te, »

56. Inteirando-lhe o sentido sem preposição, o complemento
é directo : (Ama teu proximo) ; inteirando-lh’o
com preposição, o complemento é indirecto (Ama de Coração).

57. O complemento directo consta de substantivos,
de pronomes, ou de verbos em um dos quatro primeiros
tempos do infinitivo ; o complemento indirecto consta de
substantivos, de pronomes, de verbos em seja qual for o
tempo do infinitivo, e emfim de adverbios ou de locuções
adverbiaes.

58. Os complementos directos de substantivos ou pronomes
competem só e unicamente a certas classes de verbos,
e por isso constituem um distinctivo ; os complementos directos
de infinitivo
competem a todas as classes de verbos,
e por isso não constituem nenhum distinctivo didactico.

Os complementos indirectos, de alcance mais amplo que
os directos, competem, não só a todos os verbos, como
ainda aos substantivos, adjectivos, pronomes, participios, e
até aos adverbios ; delles não tira, portanto, a theoria do
verbo nenhuma inducção particular. O seu caracteristico
resume-se, aliás, no seguinte aphorismo grammatical : E’
complemento indirecto toda a palavra regida de uma preposição
expressa, occulta ou implícita
.

59. Sendo assim complementos directos de substantivos
ou pronomes
os unicos de cuja noção não póde
prescindir a lexicologia, importa saber que se discriminão
praticamente accrescentando-se ao verbo, sob forma de pergunta,
as palavras : « Que pessoa ? » ou « Que cousa ? » Os
substantivos ou pronomes prestando-se a uma resposta
idonea constituem o referido complemento. Ex. Teu inimigo
estranha os teus
defeitos, e teus amigos os adulão. —
16Teu inimigo estranha que cousa ? Os teus defeitos ?Teus
amigos adulão que cousa ?
Os (os teus defeitos).

60. Os complementos podem, aliás, constar, junto a
um mesmo verbo, de uma ou de mais palavras : Ex. a
usura destroe as casas e famílias. e, por correlação, um
só e mesmo complemento pode competir a dous ou mais
verbos successivos. Ex. a usura destroe as casas e famílias,
— e
as empobrece, despeja e affronta. (P. Man.
Bernardes). — Este mesmo exemplo proporciona ainda o
ensejo de verificar que, ao contrario dos sujeitos, os complementos
têm por caracteristico de nunca influir sobre o numero
dos verbos aos quaes se ajuntão ; pois, ao passo que,
ahi, todos os mesmos complementos accusão o plural (casas
e famílias
, — as), todos os verbos denuncião a feição singular
do seu sujeito usura (destroe, — empobrece, despeja e
affronta
).

61. Os complementos directos de substantivos ou pronomes
competem a grande numero de verbos de acção, e
mesmo a verbos de necessidade ; nunca, porém, aos verbos
de estado.

Do predicado

62. O predicado, a que a maior parte dos grammaticos
chamão attributo, é a palavra ou conjuncto de palavras
que enuncia uma qualidade, propriedade ou situação
do sujeito mediante um verbo de estado. Ex. O maior tyranno
foi Herodes ; mas os seus aduladores ainda forão
maiores
tyrannos, porque o rei foi tyranno dos vassallos, e
os aduladores forão
tyrannos dos reis. (P. Ant. Vieira).

63. A feição caracteristica do predicado, feição que
terminantemente o discrimina do complemento directo, é uma
constante tendencia a concordar em genero e numero com
o sujeito ao qual se refere. Ex. Os pobres são os banqueiros
de Deos. (P. Ant. Vieira). — Um homem antes da
união é
um. (P. Ant. Vieira). — Não fazerem Mercês os reis
seria não
serem reis. (P. Ant. Vieira). — Nenhuma semelhante
tendencia de accôrdo existe entre o complemento
directo e o sujeito ; e, quando ambos se encontrão n’um
mesmo genero e numero, não é pela reciproca influencia, e
sim por mero acaso. Pois indifferente é dizer : « Teu amigo
lisonjeia teus defeitos, » ou Teus amigos lisonjeião teus defeitos. »

64. Apezar de, os tres predicados serem, nos tres
exemplos acima adduzidos, um substantivo (banqueiros),
um pronome (um), e um verbo no infinitivo (serem), são17estas as especies de palavras as menos idoneas, para constituir
o termo de que se trata. As que mais especialmente
se prestão a esta funcção, são os adjectivos e os participios,
porque, pela sua flexibilidade em genero e numero,
melhor se accommodão á concordancia solicitada pelo sujeito.
Ex. Se os homens vos são ingratos, não sejais vós ingratos
a Deos. (P. Ant. Vieira). — Os aduladores são parecidos
aos quatro animaes do Apocalypse. (P. Ant. Vieira).

65. Assim como os sujeitos e os complementos, tambem
póde o predicado constar de uma ou de mais palavras.
Ex. Doeg disse a Saul que David era prudente, guerreiro,
,
esforçado, gentil-homem, virtuoso, e dotado de outras
tantas boas partes !
(P. Ant. Vieira).

66. Sendo os predicados incompativeis por indole com
os verbos acompanhados de um complemento directo de
substantivo ou de pronome, a sua assistencia junto a um
verbo dénuncia-o como verbo de estado. Ex. um é affeiçoado
á caça; e, quando os cães andão luzidios e anafados,
ver-lhe-heis os criados pallidos, e mortos a fome. (P. Ant.
Vieira).

Da apposição

67. Embora seja a apposição uma funcção que nenhuma
influencia exerce sobre o verbo, nem tão pouco delle nenhuma
recebe, não deixa de haver opportunidade em definí-la
desde já, ainda que não fosse senão para a discriminar
da de sujeito, de complemento ou de predicado, e prevenir
assim toda e qualquer confusão no jogo reciproco das palavras
dentro da oração.

68. Apposição é a palavra ou conjuncto de palavras
variaveis que se associa a um sujeito, complemento,
predicado ou até a outra apposição para a determinar ou
qualificar. Assim é que, no ultimo trecho do precedente
exemplo : « … e ver-lhe-heis os criados pallidos, e mortos a
fome
, » — apparecem tres apposições : a do artigo os, a do
adjectivo pallidos, e a do participio mortos, que todas,
por uma referencia visivel ao complemento directo criados,
seguem-lhe servilmente a sorte.

69. E’ distinctivo das apposições o concordarem, ou,
pelo menos, o tenderem a concordar em genero e numero
com a palavra por ellas amparada. Por isso é que as especies
de palavras essencialmente idoneas a exercer esta
funcção são os artigos, os adjectivos o os participios. Os
artigos até não têm nem podem ter outra funcção.

Porém esta mesma funcção não fica alheia, nem aos18substantivos, nem aos pronomes, nem aos verbos no infinitivo,
justificando-se assim a allegação de ser propria de
todas as especies de palavras variaveis. Ex. Outros comparão
os aduladores ao espelho
, retrato natural e reciproco
de quem nelle se vê. (P. Ant. Vieira). Ahi e o substantivo
retrato apposição do complemento indirecto ao espelho,
como, outrosim, são apposições da mesma apposição os adjectivos
natural e reciproco, que a ella se referem, e com
ella concordão. — Os nossos ministros, ainda quando vos
despachão bem, fazem-vos os mesmos tres damnos
 : o do dinheiro,
porque o gastais
 ; o do tempo, porque o perdeis ; o das
passadas porque as multiplicais
. (P. Ant. Vieira). Ahi é o
pronome — o — tres vezes a apposição do complemento directo
damnos, ao qual se refere com toda a evidencia, mas
com o qual só é-lhe licito concordar em genero. — El rei
Dario
, sendo ainda homem particular, recebera de um grego
uma capa de grãa
. (P. Man. Bernardes. Ahi ó o gerundio
sendo, que constituo uma das formas do infinitivo de ser,
a apposição do sujeito dario, porque a elle tende por uma
referencia tão exclusiva, que elimina qualquer possibilidade
de equivoco, embora não possa, por falta de variabilidade,
patentear a sua annexação pela concordancia.

Da ligação

70. Ligação é a palavra ou conjuncto do palavras
servindo a consociar, por intorposição, palavras ou pensamentos.
Ex. Cuida a providencia politica que os reinos se
conservão com feno
e com bronze, e sobretudo com ouro e
com prata ; mas é engano. (P. Ant. Vieira). Ahi consocia
a conjuncção que o pensamento representado pelo facto
cuida com o pensamento representado pelo facto conservão ;
a primeira conjuncção e consocia dous substantivos formando
um complemento indirecto (com ferro e com bronze) ; a segunda
conjuncção e consocia, com o pensamento anterior,
um pensamento representado pelo facto occulto se conservão
(e que se conservão sorretudo…) ; o terceiro e
consocia novamente dous substantivos formando um complemento
indirecto (com ouro e com prata), emfim a conjuncção
mas consocia, por opposição, o ultimo pensamento
representado pelo facto é, com todos os anteriores.

71. As palavras essencialmente idoneas para constituir
uma ligação não são tão sómente as conjuncções, senão
tambem todos os adjectivos, pronomes e adverbios abrangendo
aberta ou disfarçadamente que. Porém, neste ultimo
caso, os mesmos adjectivos, pronomes o adverbios cumulão
sempre com a funcção de ligação uma das outras funcções19que são proprias da especie de palavras a que pertencem,
isto é, formão outrosim outros tantos sujeitos, complementos,
predicados ou apposições.

72. As ligações exercem nos verbos uma notavel influencia
pelas relações que entre elles estabelecem ; mas,
por isso mesmo, subtrahem-se a um exame mais detido
nesta parte da grammatica, que só trata da natureza e das
formas das palavras. A exposição doutrinal das considerações
a que se prestão, constitue, conjunctamente com a
theoria das outras funcções, o thema especial da syntaxe,
sendo estas aqui tão sómente esboçadas porque, da sua
noção previa, não é possivel abstrahir para firmar categoricamente
numerosas e importantes innovações de classificação
lexicologica.

Classificação dos verbos

73. Considerados no seu alcance, isto é, no modo por
que se prendem ás outras especies de palavras, todos os
verbos são factos de acção, do estado ou de necessidade.
Considerados no seu desenvolvimento, isto é, na variação
de suas formas, os verbos recebem outra classificação, dividindo-se
primariamente em elementares e em combinados.

Verbos elementares são os que, no decurso da conjugação,
têm tempos simples e tempos compostos. Verbos
combinados são os que, no decurso da conjugação, só têm
tempos compostos.

Por conjugação entende-se a coordenação methodica
de todas as modificações do verbo.

74. Os verbos elementares não differem originariamente
dos combinados, porquanto, em uns e outros, o
radical é o mesmo. Mas, na ordem da procedencia, os
primeiros servem a formar os segundos, e esta é a razão
de sua denominação de elementares. Assim é que os verbos
amar, render e punir, que, sem sahirem do mesmo desenvolvimento
conjugativo, fazem ter ou haver amado, ter
ou haver rendido e ter ou haver punido
, constituem
verbos elementares ; porquanto, em um tempo, patenteião
uma forma simples, e, em outro, uma forma composta.
Porem os verbos ser ou estar amado, — ter ou haver
de render, — estar para render, — estar punindo
, que
tambem, sem sahirem do mesmo desenvolvimento conjugativo,
fazem ter ou haver sido ou estado amado, — ter ou
haver tido ou havido de render, — ter ou haver estado
para render, — ter ou haver estado punindo
, constituem
20verbos combinados ; porquanto, nestes dous tempos, como
em todos os mais, não patenteião senão formas compostas.

75. Assim como consta dos referidos exemplos, as
formas compostas constituem-se, nos verbos elementares,
pelo concurso dos verbos ter ou haver ; nos verbos combinados,
pelo concurso, não só de ter ou haver, como
tambem de ser ou estar. A esta circumstancia deverão
todos estes quatro verbos o appellido significativo de verbos
auxiliares
, sendo este todavia restricto aos casos em que
se confundem em sentido com o verbo auxiliado ; pois, fóra
da combinação, são elementos como outros quaesquer.

Dos verbos elementares

76. Os verbos elementares subdividem-se em activos,
neutros, pronominaes o impessoaes
.

77. O verbo activo tem um complemento directo de
substantivo ou pronome, e é convertivel em passivo, um
dos verbos combinados. Ex. Teu inimigo estranha e condemna
os teus defeitos, e teus amigos os adulão e lisonjeião.
Teus defeitos são estranhados e condemnados por teu
inimigo, e
são adulados e lisonjeados per teus amigos.

O que ha do mais notavel nesta conversão, é que, ficando
illeso o pensamento apezar do transtorno das funcções
e das formas, o complemento directo do verbo activo torna-se
sujeito do verbo passivo, e o sujeito do verbo activo,
complemento indirecto do verbo passivo.

78. O verbo neutro não tem complemento directo do
substantivo ou pronome, e assim, falto do termo que só
póde formar um sujeito por inversão do funcções, não é
convertivel em passivo. Ex. A preguiça do Brazil anda
devagar, mas anda ; a de Portugal e seus ministros a cada
passo
para e dorme. (P. Man. Bernardes).

Dahi se deduz a consequencia que, achando-se por
acaso falto de complemento directo de substantivo ou pronome,
um verbo, embora activo por natureza, deve ser
capitulado do accidentalmente neutro, porque fallece-lhe
a possibilidade do se transmudar em passivo. Ex. « amemos
o proximo espiritual e santamente ; não amemos de palavra
e de mostras, senão com verdadeiro coração e obras
. »
(D. Frei Bartholomeo dos Martyros). Ahi é o primeiro
amemos um verbo activo, por ter um complemento directo
em proximo, o ser assim convertivel em passivo (Seja o
proximo
amado de nós…) ; é, porém, accidentalmente neutro
o segundo, pelo motivo opposto.21

Por contraposição, deve ser tido como accidentalmente
activo
todo e qualquer verbo que, embora neutro
por natureza, appareça occasionalmente acompanhado de
um complemento directo de substantivo ou pronome. Ex.
viver vida folgadadormir o somno da indolência -
. —
Os Hespanhóes navegão a prata, e os estrangeiros a logrão.
(P. Ant. Vieira). Assim viveu Duarte Pocheco vida indigente.
(Hist. de D. Manoel).

79. O verbo pronominal tem por distinctivo o conjugar-se
com dous pronomes da mesma pessoa.

Exemplo : queixar-se.

tableau Eu me queixo | Nós nos queixamos
Tu te queixas | Vós vos queixais
Elle (ella) se queixa | Elles (ellas) se queixão.

Servindo-lhe de sujeito, o primeiro pronome póde ser
eliminado por amor da brevidade ou da euphonia ; não o
póde, porém, o segundo, porque sorve-lhe indispensavelmente
de complemento.

tableau Queixo-me | Queixamo-nos
Queixas-te | Queixais-vos
Queixa-se | Queixão-se.

Gcralraento é directo o complemento formado pelo
segundo pronome. Mas, dando-se o caso, como se dá, do
ser indirecto, encontra-se, em outra palavra, um complemento
directo ; pois delle não póde prescindir este verbo.
Ex. Quem se vinga, arroga-se um direito de Deos. — Quem
vinga
sua pessoa (compl. dir.), arroga a sua pessoa (compl.
ind.) um direito de Deos (compl. dir.). Todavia, nesta
como naquella hypothese, não é o verbo pronominal convertivel
em passivo.

Aliás são pouco numerosos os verbos que, conjugando-se
exclusivamente por esta forma (como suicidar-se, atrever-se,
esvair-se, etc.), lograrão por isso o appellido de essencialmente
pronominaes. a mór parte, procedentes de verbos
activos, como gabar-se de gabar, e alguns de verbos neutros,
como succeder-se de succeder, são tidos como accidentalmente
pronominaes. Ex. O infante D. Henrique foi-se
viver entre o ruido das ondas, nas praias mais remotas do
reino. (P. Ant. Vieira). — (foi-se — ir-se)

80. O verbo impessoal tem por distinctivo o ser unicamente
conjugavel sob a forma propria da terceira possoa
do singular. Ex. chove.

Muito diminuto é o numero dos verbos essencialmente22impessoaes, porquanto limita-se á enunciação de alguns
phenomenos naturaes cujo agente ou motor escapa a toda
e qualquer designação : relampeja, troveja, neva, graniza, etc.
Porém extensissimo é o numero dos accidentalmente impessoaes,
visto que nelle se alistão, tanto dentre os outros
elementares, como dentre os combinados, todos os verbos
que, fugindo á responsabilidade, apresentão o facto sob a
capa do anonymo. Ex. (Do activo fazer) : faz frio. Quem
faz… ? — (Do neutro carecer) : carece andar. Quem carece… ?
— (Do pronominal seguir-se) : seque-se que fará frio. Quem é,
Ou que é o que se segue que… ? — (Dos passivos ser sabido, —
estar visto
) : e’ sabido que… — está visto que… etc.

Dahi decorre que, conforme a sua procedencia, os accidentalmente
impessoaes, apparecem, já com ou sem complemento
directo de substantivo ou pronome, já com ou
sem predicado ; porém o que a todos absolutamente fallece,
é um sujeito, quer expresso, quer occulto. Ex. Se, no outro
mundo, não
houvera inferno, e, neste mundo, não houvera
justiça, era
muito bom. (P. Ant. Vieira). Ahi tem o primeiro
houvera um complemento directo no substantivo
inferno, e o segundo, um igual complemento em justiça,
como era tem um predicado no adjectivo bom ; porém a
nenhum delles é possivel assignar um sujeito.

Por todas estas considerações vê-se que a expressão
do verbos impessoaes allude meramente á conjugação truncada
dos verbos de necessidade, e que uns e outros são exactamente
os mesmos.

Entretanto os essencialmente impessoaes não são estremes
de uma anomalia já assignalada nas anteriores classes de
verbos, vindo ella a ser que ; por assumirem occasionalmento
um sujeito, tornão-se accidentalmente neutros ou mesmo
activos, conforme se dá nelles deficiência ou assistencia de
um complemento directo de substantivo ou pronome. Ex.
« troveje em vão mavorte sobre a serra ! » Januario da
Cunha Barbosa). — As nuvens choverão sangue. — e, por
uma consequencia natural de gozarem, ainda que mui excepcionalmente,
da faculdade de se tornar activos, os
mesmos verbos não ficão inhibidos de assumir a forma
passiva. Ex. Os penedos daquella serrania, parece que estão
ameaçando ruina, e que
forão chovidos, ou feitos á mão por
industria humana
. (Duarte Nunes de Leão).

Dos verbos combinados

81. Os verbos combinados subdividem-se em passivos,
prepositivos e gerundiaes
.23

82. Os verbos passivos ficão constituidos pela reunião
do um dos dous auxiliares ser ou estar com o participio
variavel do um verbo activo. Ex. Por mais cercado que
esteja de guardas o palacio dos reis, a adulação se sabe introduzir
subtilissimamente, sem
ser sentida. (P. Ant. Vieira).

Chamão-se passivos porque o facto por elles enunciado
apresenta-se, não como perpetrado pelo sujeito, e sim como
recahindo nelle. Ex. Muitas graças sejão dadas a Deos,
que, para remedio deste grande mal, não só temos justiça na
terra, senão justiça de sol, como diz Malachias
. (P. Ant.
Vieira). — O triste que anda em juizo, ainda não esta
executado
nem sentenciado, e já esta comido. (P. Ant.
Vieira).

Convém notar que, embora de sentido bastante diverso,
ser e estar não deixão do constituir promiscuamente
verbos passivos, por originarom relações identicas, e, entre
ellas, a da concordancia em genero e numero do seu participio
com o sujeito (Muitas graças sejão dadas… — O

triste não está executado nem sentenciado, e já está
comido).

83. Os verbos prepositivos ficão constituidos, na primeira
categoria, pela reunião de ter ou haver, mediante
a proposição de ; e, na segunda categoria, pela reunião de
estar, mediante a preposição para, com o tempo primordial
(1.° do infinitivo) de qualquer verbo elementar ou mesmo
passivo.

Exemplos da primeira categoria :

(V. activo) : | Eu o tenho ou hei de chamar.
(V. neutro) : | Eu tenho ou hei de sahir.
(V. pronominal) : | Eu tenho ou hei de me queixar.
(V. impessoal) : | Tem ou ha de chover.
(V. passivo) : | Eu tenho ou hei de ser chamado.

Exemplos da segunda categoria :

(V. activo) : | Eu estou para o chamar.
(V. neutro) : | Eu estou para sahir.
(V. pronominal) : | Eu estou para me queixar.
(V. impessoal) : | Está para chover.
(V. passivo) : | Eu estou para ser chamado.

Nota. Os prepositivos da segunda categoria não admittem,
por causa da redundancia, os infinitivos passivos
constituidos com estar. Pois insoffrivel seria dizer : Eu
estou para
estar chamado,

84. Os verbos gerundiaes ficão constituidos pela
24reunião de estar com o gerundio simples de qualquer
verbo elementar ou mesmo passivo com ser.

Exemplos :

(V. activo) : | Eu o estou chamando.
(V. neutro) : | Eu estou sahindo.
(V. pronominal) : | Eu me estou queixando.
(V. impessoal) : | Está chovendo.
(V. passivo) : | Eu estou sendo chamado.

Dos verbos auxiliares

85. Dos quatro auxiliares, ter e haver são por natureza
activos, pois são convertiveis em passivos (Eu sou
tido
ou havido por…) ; ser e estar, pelo motivo opposto,
são por natureza neutros. e assim é tambem que devem
ser analyticamente capitulados todas as vezes que não
formão, por colligação com outros verbos, um tempo composto.

Como auxiliares ficão caracterisados por se confundirem
indissoluvelmente em sentido com o verbo auxiliado.

Porém, esta mesma propriedade, compartem-na com
elles occasionalmente alguns outros verbos, a que, por tal
motivo, compete merecidamente o appellido de auxiliares
supplementares
. Os que occorrem dentre os activos, são :
deixar, dever e levar ; assim : O que deixo (hei) escripto…
— o que levo (tenho) dito… — « Logo, se os aduladores
não são os que sómente vêm de fóra as paredes do palacio
,
devem de ser (têm de ser) sem duvida os que as frequentão
de dentro
. » (P. Ant. Vieira). — Os que occorrem dentre os
neutros, são : andar, ficar, ir, sahir o vir ; assim : ando
(estou) agastado… — Fico (estou) sabendo… — Vou (estou)
experimentando… — sahiu (foi) ferido… — veiu (foi)
traslado… — ft Quereis ver um Job destes ? Vêde um
homem desses que
andão (estão) perseguidos de pleitos, ou
accusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. » (P.
Ant. Vieira). — a formosura é um bem frágil, e, quanto mais
se vai (se está) chegando aos annos, tanto mais vai (está)
diminuindo e desfazendo em si, e fazendo-se menor. (P.
Ant. Vieira.

Das conjugações

86. Da crcumstancia do todos os verbos, com excepção
de pôr o seus congeneres, acabarem, na sua forma primordial
em ar, er ou ir, originou-se a sua distribuição em25tres conjugações, sob as rubricas de primeira para os
os verbos em ar, de segunda para os verbos em er, e do
terceira para os verbos om ir.

87. Chamão-se paradigmas os verbos que, em cada
conjugação, servem de norma ou modelo para as successivas
inflexões da terminação. Os escolhidos nesta grammatica,
são : amar, render e punir.

88. Considerados em relação aos seus paradigmas, os
verbos se distinguem em regulares, irregulares e defectivos.

Regulares são os que, em todos os seus modos, tempos,
numeros e pessoas, se conjugão conforme o seu paradigma.

Irregulares são os que, em algum modo, tempo, numero
ou pessoa, divergem de seu paradigma.

Defectivos são os em que se dá uma deficiência do
modo, tempo, numero ou pessoa.

Todos os verbos que não vierem adiante assignalados
como irregulares ou defectivos, devem ser tidos como regulares.

89. Todavia as conjugações dos quatro auxiliares antecipão-se
naturalmente a todas as outras, porque em todas
é indispensavel o concurso de uns ou outros destes verbos
para a formação dos tempos compostos. A esta consideração
accresce a de suas numerosas anomalias, que, tornando-os
summamente irregulares, fazem do seu completo
desenvolvimento conjugativo uma necessidade indeclinavel.

Tabella conjugativa dos verbos
ter e haver

Indicativo

1.° Tempo
(Presente)

tableau Eu tenho | Eu hei
Tu tens | Tu has
Elle tem | Elle ha
Nós temos | Nós havemos
Vós tendes | Vós haveis
Elles têm | Elles hão
26

2.° Tempo
(Pass. imperf.)

tableau Eu tinha | Eu havia
Tu tinhas | Tu havias
Elle tinha | Elle havia
Nós tinhamos | Nós haviamos
Vós tinheis | Vós haveis
Elles tinhão | Elles havião

3.° Tempo
(Pass. perf.)

tableau Eu tive | Eu houve
Tu tiveste | Tu houveste
Elle teve | Elle houve
Nós tivemos | Nós houvemos
Vós tivestes | Vós houvestes
Elles tiverão | Elles houverão

4.° Tempo
(Pass. perf. comp.)

tableau Eu tenho ou hei | tido ou havido
Tu tens ou has | tido ou havido
Elle tem ou ha | tido ou havido
Nós temos ou havemos | tido ou havido
Vós tendes ou haveis | tido ou havido
Elles têm ou hão | tido ou havido

5.° Tempo
(Pass. m. q. perf.)

tableau Eu tivera | Eu houvora
Tu tiveras | Tu houveras
Elle tivera | Elle houvera
Nós tiveramos | Nós houveramos
Vós tivereis | Vós houvereis
Elles tiverão | Elles houverão

6.° Tempo
(Pass. m. q. perf. comp.)

tableau Eu tinha ou havia | tido ou havido
Tu tinhas ou havias | tido ou havido
Elle tinha ou havia | tido ou havido
Nós tinhamos ou haviamos | tido ou havido
Vós tinheis ou havieis | tido ou havido
Elles tinhão ou havião | tido ou havido
27

7.° Tempo
Futuro

tableau Eu terei | Eu haverei
Tu terás | Tu haverás
Elle terá | Elle haverá
Nós teremos | Nós haveremos
Vós tereis | Vós havereis
Elles terão | Elles haverão

8.° Tempo
(Fut. comp.)

tableau Eu terei ou haverei | tido ou havido
Tu terás ou haverás | tido ou havido
Elle terá ou haverá | tido ou havido
Nós teremos ou haveremos | tido ou havido
Vós tereis ou havereis | tido ou havido
Elles terão ou haverão | tido ou havido

Condicional

1.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. prop.)

tableau Eu teria | Eu haveria
Tu terias | Tu haverias
Elle teria | Elle haveria
Nós teriamos | Nós haveriamos
Vós terieis | Vós haverieis
Elles terião | Elles haverião

2.° Tempo
(Pass. prop.)

tableau Eu teria ou haveria | tido ou havido
Tu terias ou haverias | tido ou havido
Elle teria ou haveria | tido ou havido
Nós teriamos ou haveriamos | tido ou havido
Vós terieis ou haverieis | tido ou havido
Elles terião ou haverião | tido ou havido

3.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. suppl.)

tableau Eu tivera | Eu houvera
Tu tiveras | Tu houveras
Elle tivera | Elle houvera
Nós tiveramos | Nós houveramos
Vós tivereis | Vós houvereis
Elles tiverão | Elles houverão
28

4.° Tempo
(Pass. suppl.)

tableau Eu tivera ou houvera | tido ou havido
Tu tiveras ou houveras | tido ou havido
Elle tivera ou houvera | tido ou havido
Nós tiveramos ou houveramos | tido ou havido
Vós tivereis ou houvereis | tido ou havido
Elles tiverão ou houverão | tido ou havido

Imperativo

Tempo único
(Futuro)

tableau Tem (tu) | Ha (tu)
Tende (vós) | Havei (vós)

Subjunctivo

1.° Tempo
(Pres.-fut.)

tableau Eu tenha | Eu haja
Tu tenhas | Tu hajas
Elle tenha | Elle haja
Nós tenhamos | Nós hajamos
Vos tenhais | Vós hajais
Elles tenhao | Elles hajão

2.° Tempo
(Pres.-pass.-fut.)

tableau Eu tivesse | Eu houvesse
Tu tivesses | Tu houvesses
Elle tivesse | Elle houvesse
Nós tivessemos | Nós houvessemos
Vós tivesseis | Vós houvesseis
Elles tivessem | Elles houvessem

3.° Tempo
(Pres.-pass.-fut.-suppl.)

tableau Eu tivera | Eu houvera
Tu tiveras | Tu houveras
Elle tivera | Elle houvera
Nós tiveramos | Nós houveramos
Vós tivereis | Vós houvereis
Elles tiverão | Elles houverão
29

4.° Tempo
(Pass. perf.)

tableau Eu tenha ou haja | tido ou havido
Tu tenhas ou hajas | tido ou havido
Elle tenha ou haja | tido ou havido
Nós tenhamos ou hajamos | tido ou havido
Vós tenhais ou hajais | tido ou havido
Elles tenhão ou hajão | tido ou havido

5.° Tempo
(Pass. m. q. perf.)

tableau Eu tivesse ou houvesse | tido ou havido
Tu tivesses ou houvesses | tido ou havido
Elle tivesse ou houvesse | tido ou havido
Nós tivessemos ou houvessemos | tido ou havido
Vós tivesseis ou houvesseis | tido ou havido
Elles tivessem ou houvessem | tido ou havido

6.° Tempo
(Pass. m. q. perf. suppl.)

tableau Eu tivera ou houvera | tido ou havido
Tu tiveras ou houveras | tido ou havido
Elle tivera ou houvera | tido ou havido
Nós tiveramos ou houveramos | tido ou havido
Vós tivereis ou houvereis | tido ou havido
Elles tiverão ou houverão | tido ou havido

7.° Tempo
(Futuro)

tableau Eu tiver | Eu houver
Tu tiveres | Tu houveres
Elle tiver | Elle houver
Nós tivermos | Nós houvermos
Vós tiverdes | Vós houverdes
Elles tiverem | Elles houverem

8.° Tempo
(Fut. comp.)

tableau Eu tiver ou houver | tido ou havido
Tu tiveres ou houveres | tido ou havido
Elle tiver ou houver | tido ou havido
Nós tivermos ou houvermos | tido ou havido
Vós tiverdes ou houverdes | tido ou havido
Elles tiverem ou houverem | tido ou havido
30

Infinitivo

1.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. impess.)

tableau Ter | Haver

2.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. pess.)

tableau Eu ter | Eu haver
Tu teres | Tu haveres
Elle ter | Elle haver
Nós termos | Nós havermos
Vós terdes | Vós haverdes
Elles terem | Elles haverem

3.° Tempo
(Pass. impess.)

tableau Ter ou haver tido | Ter ou haver havido

4.° Tempo
(Pass. pess.)

tableau Eu ter ou haver | tido ou havido
Tu teres ou haveres | tido ou havido
Elle ter ou haver | tido ou havido
Nós termos ou havermos | tido ou havido
Vós terdes ou haverdes | tido ou havido
Elles terem ou haverem | tido ou havido

5.° Tempo
(Gerundio simp.)

Tendo | eu, nós | tu, vós | elle, elles
Havendo | eu, nós | tu, vós | elle, elles

6.° Tempo
(Gerundio comp.)

Tendo ou Havendo / eu, nós | tu, vós | elle, elles
tido | Tendo ou Havendo / eu, nós | tu, vós | elle, elles / havido31

Participios

Part. invariavel

tableau Tido | Havido

Part. variavel

tableau Tido, a, os, as. | Havido, a, os, as.

Nota. Pelo verbo ter conjugão-se os derivados abster-se,
ater-se, conter, deter, entreter, manter, obter, reter e suster
.

Por haver conjuga-se o derivado rehaver.

Tabella conjugativa dos verbos
ser e estar

Indicativo

1.° Tempo
(Presente)

tableau Eu sou | Eu estou
Tu és | Tu estás
Elle é | Elle está
Nós somos | Nós estamos
Vós sois | Vós estais
Elles são | Elles estão

2.° Tempo
(Pass. imperf.)

tableau Eu era | Eu estava
Tu eras | Tu estavas
Elle era | Elle estava
Nós eramos | Nós estavamos
Vós ereis | Vós estaveis
Elles são | Elles estão

3.° Tempo
(Pass. perf.)

tableau Eu fui | Eu estive
Tu foste | Tu estiveste
Elle foi | Elle esteve
Nós fomos | Nós estivemos
Vós fostes | Vós estivestes
Elles forão | Elles estiverão
32

4.° Tempo
(Pass. perf. comp.)

tableau Eu tenho ou hei | sido ou estado
Tu tens ou has | sido ou estado
Elle tem ou ha | sido ou estado
Nós temos ou havemos | sido ou estado
Vós tendes ou haveis | sido ou estado
Elles têm ou hão | sido ou estado

5.° Tempo
(Pass. m. q. perf.)

tableau Eu fôra | Eu estivera
Tu fôras | Tu estiveras
Elle fôra | Elle estivera
Nós foramos | Nós estiveramos
Vós foreis | Vós estivereis
Elles forão | Elles estiverão

6.° Tempo
(Pass. m. q. perf. comp.)

tableau Eu tinha ou havia | sido ou estado
Tu tinhas ou havias | sido ou estado
Elle tinha ou havia | sido ou estado
Nós tinhamos ou haviamos | sido ou estado
Vós tinheis ou havieis | sido ou estado
Elles tinhão ou havião | sido ou estado

7.° Tempo
(Futuro)

tableau Eu serei | Eu estarei
Tu serás | Tu estarás
Elle será | Elle estará
Nós seremos | Nós estaremos
Vós sereis | Vós estareis
Elles serão | Elles estarão

8.° Tempo
(Fut. comp.)

tableau Eu terei ou haverei | sido ou estado
Tu terás ou haverás | sido ou estado
Elle terá ou haverá | sido ou estado
Nós teremos ou haveremos | sido ou estado
Vós tereis ou havereis | sido ou estado
Elles terão ou haverão | sido ou estado
33

Condicional

1.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. prop.)

tableau Eu seria | Eu estaria
Tu serias | Tu estarias
Elle seria | Elle estaria
Nós seriamos | Nós estaríamos
Vós serieis | Vós estarieis
Elles serião | Elles estarião

2.° Tempo
(Pass. prop.)

tableau Eu teria ou haveria | sido ou estado
Tu terias ou haverias | sido ou estado
Elle teria ou haveria | sido ou estado
Nós teriamos ou haveriamos | sido ou estado
Vós teriois ou haverieis | sido ou estado
Elles terião ou haverião | sido ou estado

3.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. suppl.)

tableau Eu fôra | Eu estivera
Tu fôras | Tu estiveras
Elle fôra | Elle estivera
Nós foramos | Nós estiveramos
Vós foreis | Vós estiverois
Elles forão | Elles estiverão

4.° Tempo
(Pass. suppl.)

tableau Eu tivera ou houvera | sido ou estado
Tu tiveras ou houveras | sido ou estado
Elle tivera ou houvera | sido ou estado
Nós tiveramos ou houveramos | sido ou estado
Vós tivereis ou houvereis | sido ou estado
Elles tiverão ou houverão | sido ou estado

Imperativo

Tempo unico
(Futuro)

tableau Sê (tu) | Está (tu)
Sêde (vós) | Estai (vós)
34

Subjunctivo

1.° Tempo
(Pres.-fut.)

tableau Eu seja | Eu esteja
Tu sejas | Tu estejas
Elle seja | Elle esteja
Nós sejamos | Nós estejamos
Vós sejais | Vós estejais
Elles sejão | Elles estejão

2.° Tempo
(Pres.-pass.-fut.)

tableau Eu fosse | Eu estivesse
Tu fosses | Tu estivesses
Elle fosse | Elle estivesse
Nós fossemos | Nós estivessemos
Vós fosseis | Vós estivesseis
Elles fossem | Elles estivessem

3.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. suppl.)

tableau Eu fôra | Eu estivera
Tu foras | Tu estiveras
Elle fora | Elle estivera
Nós foramos | Nós estiveramos
Vós foreis | Vós estivereis
Elles forão | Elles estiverão

4.° Tempo
(Pass. perf.)

tableau Eu tenha ou haja | sido ou estado
Tu tenhas ou hajas | sido ou estado
Elle tenha ou haja | sido ou estado
Nós tenhamos ou hajamos | sido ou estado
Vós tenhais ou hajais | sido ou estado
Elles tenhão ou hajão | sido ou estado

5.° Tempo
(Pass. m. q. perf.)

tableau Eu tivesse ou houvesse | sido ou estado
Tu tivesses ou houvesses | sido ou estado
Elle tivesse ou houvesse | sido ou estado
Nós tivessemos ou houvessemos | sido ou estado
Vós tivesseis ou houvesseis | sido ou estado
Elles tivessem ou houvessem | sido ou estado
35

6.° Tempo
(Pass. m. q. perf. suppl.)

tableau Eu tivera ou houvera | sido ou estado
Tu tiveras ou houveras | sido ou estado
Elle tivera ou houvera | sido ou estado
Nós tiveramos ou houveramos | sido ou estado
Vós tivereis ou houvereis | sido ou estado
Elles tiverão ou houverão | sido ou estado

7.° Tempo
(Futuro)

tableau Eu fôr | Eu estiver
Tu fôres | Tu estiveres
Elle fôr | Elle estiver
Nós formos | Nós estivermos
Vós fordes | Vós estiverdes
Elles forem | Elles estiverem

8.° Tempo
(Fut. comp.)

tableau Eu tiver ou houver | sido ou estado
Tu tiveres ou houveres | sido ou estado
Elle tiver ou houver | sido ou estado
Nós tivermos ou houvermos | sido ou estado
Vós tiverdes ou houverdes | sido ou estado
Elles tiverem ou houverem | sido ou estado

Infinitivo

1.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. impess.)

tableau Ser | Estar

2.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. pess.)

tableau Eu ser | Eu estar
Tu seres | Tu estares
Elle ser | Elle estar
Nós sermos | Nós estarmos
Vós serdes | Vós estardes
Elles serem | Elles estarem

8.° Tempo
(Pass. impess.)

tableau Ter ou haver sido | Ter ou haver estado36

4.° Tempo
(Pass. pess.)

tableau Eu ter ou haver | sido ou estado
Tu teres ou haveres | sido ou estado
Elle ter ou haver | sido ou estado
Nós termos ou havermos | sido ou estado
Vós terdes ou haverdes | sido ou estado
Elles terem ou haverem | sido ou estado

5.° Tempo
(Gerundio simp.)

Sendo / eu, nós | tu, vós | elle, elles
Estando / eu, nós | tu, vós | elle, elles

6.° Tempo
(Gerundio comp.)

Tendo ou Havendo / eu, nós | tu, vós | elle, elles / sido
Tendo ou Havendo / eu, nós | tu, vós | elle, elles / estado

Participios

Part. invariavel

tableau Sido | Estado

Part. variavel

(Falta).

Nota. Por estar conjuga-se o derivado sobreestar.

Primeira conjugação
dos verbos elementares regulares
Paradigma dos verbos em ar
Amar

Indicativo

1.° Tempo
(Presente)

tableau Eu amo | Nós amamos
Tu amas | Vós amais
Elle ama | Elles amão
37

2.° Tempo
(Pass. imperf.)

tableau Eu amava | Nós amavamos
Tu amavas | Vós amaveis
Elle amava | Elles amavão

3.° Tempo
(Pass. perf.)

tableau Eu amei | Nós amámos
Tu amaste | Vós amastes
Elle amou | Elles amarão

4.° Tempo
(Pass. perf. comp.)

tableau Eu tenho ou hei | amado
Tu tens ou has | amado
Elle tem ou ha | amado
Nós temos ou havemos | amado
Vós tendes ou haveis | amado
Elles têm ou hão | amado

5.° Tempo
(Pass. m. q. perf.)

tableau Eu amara | Nós amaramos
Tu amaras | Vós amareis
Elle amara | Elles amarão

6.° tempo
(Pret. m. q. perf. comp.)

tableau Eu tinha ou havia | amado
Tu tinhas ou havias | amado
Elle tinha ou havia | amado
Nós tinhamos ou haviamos | amado
Vós tinheis ou havieis | amado
Elles tinhão ou havião | amado

7.° Tempo
(Futuro)

tableau Eu amarei | Nós amaremos
Tu amarás | Vós amareis
Elle amará | Elles amarão
38

8.° Tempo
(Fut. comp.)

tableau Eu terei ou haverei | amado
Tu terás ou haverás | amado
Elle terá ou haverá | amado
Nós teremos ou haveremos | amado
Vós tereis ou havereis | amado
Elles terão ou haverão | amado

Condicional

1.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. prop.)

tableau Eu amaria | Nós amariamos
Tu amarias | Vós amarieis
Elle amaria | Elles amarião

2.° Tempo
(Pass. prop.)

tableau Eu teria ou haveria | amado
Tu terias ou haverias | amado
Elle teria ou haveria | amado
Nós teriamos ou haveriamos | amado
Vós terieis ou haverieis | amado
Elles terião ou haverião | amado

3.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. suppl.)

tableau Eu amara | Nós amaramos
Tu amaras | Vós amareis
Elle amara | Elles amarão

4.° Tempo
(Pass. suppl.)

tableau Eu tivera ou houvera | amado
Tu tiveras ou houveras | amado
Elle tivera ou houvera | amado
Nós tiveramos ou houveramos | amado
Vós tivereis ou houvereis | amado
Elles tiverão ou houverão | amado
39

Imperativo

Tempo unico
(Futuro)

tableau Ama (tu) | Amai (vós)

Subjunctivo

1.° Tempo
(Pres.-fut.)

tableau Eu ame | Nós amemos
Tu ames | Vós ameis
Elle ame | Elles amem

2.° Tempo
(Pres.-pass.-fut.)

tableau Eu amasse | Nós amassemos
Tu amasses | Vós amasseis
Elle amasse | Elles amassem

3.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. suppl.)

tableau Eu amara | Nós amaramos
Tu amaras | Vós amareis
Elle amara | Elles amarão

4.° Tempo
(Pass. perf.)

tableau Eu tenha ou haja | amado
Tu tenhas ou hajas | amado
Elle tenha ou haja | amado
Nós tenhamos ou hajamos | amado
Vós tenhais ou hajais | amado
Elles tenhão ou hajão | amado

5.° Tempo
(Pass. m. q. perf.)

tableau Eu tivesse ou houvesse | amado
Tu tivesses ou houvesses | amado
Elle tivesse ou houvesse | amado
Nós tivessemos ou houvessemos | amado
Vós tivesseis ou houvesseis | amado
Elles tivessem ou houvessem | amado
40

6.° Tempo
(Pass. m. q. perf. suppl.)

tableau Eu tivera ou houvera | amado
Tu tiveras ou houveras | amado
Elle tivera ou houvera | amado
Nós tiveramos ou houveramos | amado
Vós tivereis ou houvereis | amado
Elles tiverão ou houverão | amado

7.° Tempo
(Futuro)

tableau Eu amar | Nós amarmos
Tu amares | Vós amardes
Elle amar | Elles amarem

8.° Tempo
(Fut. comp.)

tableau Eu tiver ou houver | amado
Tu tiveres ou houveres | amado
Elle tiver ou houver | amado
Nós tivermos ou houvermos | amado
Vós tiverdes ou houverdos | amado
Elles tiverem ou houverem | amado

Infinitivo

1.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. impess.)

tableau Amar

2.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. pess.)

tableau Eu amar | Nós amarmos
Tu amares | Vós amardes
Elle amar | Elles amarem

3.° Tempo
(Pass. impess.)

tableau Ter ou haver amado41

4.° Tempo
(Pass. pess.)

tableau Eu ter ou haver | amado
Tu teres ou haveres | amado
Elle ter ou haver | amado
Nós termos ou havermos | amado
Vós terdes ou haverdes | amado
Elles terem ou haverem | amado

5.° Tempo
(Gerundio simpl.)

tableau Amando
eu, nós | tu, vós | elle, elles

6.° Tempo
(Gerundio comp.)

tableau Tendo ou havendo
eu, nós | tu, vós | elle, ellos
amado

Participios

Part. invariavel

tableau Amado

Part. variavel

tableau Amado, a, os, as.

Segunda conjugação
dos verbos elementares regulares
Paradigma dos verbos em er
render

Indicativo

1.° Tempo
(Presente)

tableau Eu rendo | Nós rendemos
Tu rendes | Vós rendeis
Elle rende | Elles rendem
42

2.° Tempo
(Pass. imperf.)

tableau Eu rendia | Nós rendíamos
Tu rendias | Vós rendieis
Elle rendia | Elles rendião

3.° Tempo
(Pass. perf.)

tableau Eu rendí | Nós rendemos
Tu rendeste | Vós rendestes
Elle rendou | Elles rendêrão

4.° Tempo
(Pass. perf. comp.)

tableau Eu tenho ou hei | rendido
Tu tens ou has | rendido
Elle tem ou ha | rendido
Nós temos ou havemos | rendido
Vós tendes ou haveis | rendido
Elles têm ou hão | rendido

5.° Tempo
(Pass. m. q. perf.)

tableau Eu rendêra | Nós rendêramos
Tu rendêras | Vós rendêreis
Elle rendêra | Elles rendêrão

6.° Tempo
(Pass. m. q. perf. comp.)

tableau Eu tinha ou havia | rendido
Tu tinhas ou havias | rendido
Elle tinha ou havia | rendido
Nós tinhamos ou haviamos | rendido
Vós tinheis ou havieis | rendido
Elles tinhão ou havião | rendido

7.° Tempo
(Futuro)

tableau Eu renderei | Nós renderemos
Tu renderás | Vós rendereis
Elle renderá | Elles renderão
43

8.° Tempo
(Fut. comp.)

tableau Eu terei ou haverei | rendido
Tu terás ou haverás | rendido
Elle terá havera | rendido
Nós teremos ou haveremos | rendido
Vós tereis ou havereis | rendido
Elles terão ou haverão | rendido

Condicional

1.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. prop.)

tableau Eu renderia | Nós renderiamos
Tu renderias | Vós renderieis
Elle renderia | Elles renderião

2.° Tempo
(Pass. prop.)

tableau Eu teria ou haveria | rendido
Tu terias ou haverias | rendido
Elle teria ou haveria | rendido
Nós teriamos ou haveriamos | rendido
Vos terieis ou haverieis | rendido
Elles terião ou haverião | rendido

3.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. suppl.)

tableau Eu rendêra | Nós rendêramos
Tu rendêras | Vós rendêreis
Elle rendêra | Elles rendêrão

4.° Tempo
(Pass. suppl.)

tableau Eu tivera ou houvera | rendido
Tu tiveras ou houveras | rendido
Elle tivera ou houvera | rendido
Nós tiveramos ou houveramos | rendido
Vós tivereis ou houvereis | rendido
Elles tiverão ou houverão | rendido44

Imperativo

Tempo unico
(Futuro)

tableau Rende (tu) | Rendei (vós)

Subjunctivo

1.° Tempo
(Pi-es.-fut)

tableau Eu renda | Nós rendamos
Tu rendas | Vós rendais
Ella renda | Elles rendão

2.° Tempo
(Pres.-pass.-fut)

tableau Eu rendesse | Nós rendéssemos
Tu rendesses | Vós rendesseis
Elle rendesse | Elles rendessem

3.° Tempo
(Pres.-pass.-fut.-suppl.)

tableau Eu rendêra | Nós rendêramos
Tu rendêras | Vós rendêreis
Elle rendêra | Elles rendêrão

4.° Tempo
(Pass. perf.)

tableau Eu tenha ou haja | rendido
Tu tenhas ou hajas | rendido
Elle tenha ou haja | rendido
Nós tenhamos ou hajamos | rendido
Vós tenhais ou hajais | rendido
Elles tenhão ou hajão | rendido

5.° Tempo
(Pass. m. q. perf.)

tableau Eu tivesse ou houvesse | rendido
Tu tivesses ou houvesses | rendido
Elle tivesse ou houvesse | rendido
Nós tivessemos ou houvessemos | rendido
Vós tivesseis ou houvesseis | rendido
Elles tivessem ou houvessem | rendido45

6.° Tempo
(Pass. m. q. perf, suppl.)

tableau Eu tivera ou houvera | rendido
Tu tiveras ou houveras | rendido
Elle tivera ou houvera | rendido
Nós tiveramos ou houveramos | rendido
Vós tivereis ou houvereis | rendido
Elles tiverão ou houverão | rendido

7.° Tempo
(Futuro)

tableau Eu render | Nós rendermos
Tu renderes | Vós renderdes
Elle render | Elles renderem

8.° Tempo
(Fut. comp.)

tableau Eu tiver ou houver | rendido
Tu tiveres ou houveres | rendido
Elle tiver ou houver | rendido
Nós tivermos ou houvermos | rendido
Vós tiverdes ou houverdes | rendido
Elles tiverem ou houverem | rendido

Infinitivo

1.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. impess.)

tableau Render

2.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. pess.)

tableau Eu render | Nós rendermos
Tu renderes | Vós renderdes
Elle render | Elles renderem

3.° Tempo
(Pass. impess.)

tableau Ter ou haver rendido46

4.° Tempo
(Pass. pess.)

tableau Eu ter ou haver | rendido
Tu teres ou haveres | rendido
Elle ter ou haver | rendido
Nós termos ou havermos | rendido
Vós terdes ou haverdes | rendido
Elles terem ou haverem | rendido

5.° Tempo
(Gerundio simp.)

tableau Rendendo
eu, nós | tu, vós | elle, elles

6.° Tempo
(Gerundio comp.)

tableau Tendo ou havendo
eu, nós | tu, vós | elle, elles
rendido

Participios

Part. invariavel

tableau Rendido

Part. variavel

tableau Rendido, a, os, as.

Terceira conjugação
dos verbos elementares regulares
Paradigma dos verbos em ir
Punir

Indicativo

1.° tempo
(Presente)

tableau Eu puno | Nós punimos
Tu punes | Vós punis
Elle pune | Elles punem
47

2.° Tempo
(Pass. imperf.)

tableau Eu punia | Nós puníamos
Tu punias | Vós punieis
Elle punia | Elles punião

3.° Tempo
(Pass. perf.)

tableau Eu puní | Nós punímos
Tu puniste | Vós punistes
Elle puniu | Elles punirão

4.° Tempo
(Pass. perf. comp.)

tableau Eu tenho ou hei | punido
Tu tens ou has | punido
Elle tem ou ha | punido
Nós temos ou havemos | punido
Vós tendes ou haveis | punido
Elles têm ou hão | punido

5.° Tempo
(Pass. m. q. perf.)

tableau Eu punira | Nós puníramos
Tu puniras | Vós puníreis
Elle punira | Elles punirão

6.° Tempo
(Pass. m. q. perf. comp.)

tableau Eu tinha ou havia | punido
Tu tinhas ou havias | punido
Elle tinha ou havia | punido
Nós tinhamos ou haviamos | punido
Vós tinheis ou havieis | punido
Elles tinhão ou havião | punido

7.° Tempo
(Futuro)

tableau Eu punirei | Nós puniremos
Tu punirás | Vós punireis
Elle punirá | Elles punirão
48

8.° Tempo
(Fut. comp.)

tableau Eu terei ou haverei | punido
Tu terás ou haverás | punido
Elle terá ou haverá | punido
Nós teremos ou haveremos | punido
Vós tereis ou havereis | punido
Elles terão ou haverão | punido

Condicional

1.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. prop.)

tableau Eu puniria | Nós puniriamos
Tu punirias | Vós punirieis
Elle puniria | Elles punirião

2.° Tempo
(Pass. Prop.)

tableau Eu teria ou haveria | punido
Tu terias ou haverias | punido
Elle teria ou haveria | punido
Nós teriamos ou haveriamos | punido
Vós terieis ou haverieis | punido
Elles terião ou haverião | punido

3.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. suppl.)

tableau Eu puníra | Nós puníramos
Tu puníras | Vós puníreis
Elle puníra | Elles punírão

4.° Tempo
(Pass. suppl.)

tableau Eu tivera ou houvera | punido
Tu tiveras ou houveras | punido
Elle tivera ou houvera | punido
Nós tiveramos ou houveramos | punido
Vós tivereis ou houvereis | punido
Elles tiverão ou houverão | punido

Imperativo

Tempo unico
(Futuro)

tableau Pune (tu) | Puní (vós)49

Subjunctivo

1.° Tempo
(Pres.-fut.)

tableau Eu puna | Nós punamos
Tu punas | Vós punais
Elle puna | Elles punão

2.° Tempo
(Pres.-pass.-fut.)

tableau Eu punisse | Nós puníssemos
Tu punisses | Vós punisseis
Elle punisse | Elles punissem

3.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. suppl.)

tableau Eu puníra | Nós puníramos
Tu puníras | Vós puníreis
Elle puníra | Elles punírão

4.° Tempo
(Pass. perf.)

tableau Eu tenha ou haja | punido
Tu tenhas ou hajas | punido
Elle tenha ou haja | punido
Nós tenhamos ou hajamos | punido
Vós tenhais ou hajais | punido
Elles tenhão ou hajão | punido

5.° Tempo
(Pass. m. q. perf.)

tableau Eu tivesse ou houvesse | punido
Tu tivesses ou houvesses | punido
Elle tivesse ou houvesse | punido
Nós tivessemos ou houvessemos | punido
Vós tivesseis ou houvesseis | punido
Elles tivessem ou houvessem | punido

6.° Tempo
(Pass. m. q. perf. suppl.)

tableau Eu tivera ou houvera | punido
Tu tiveras ou houveras | punido
Elle tivera ou houvera | punido
Nós tiveramos ou houveramos | punido
Vós tivereis ou houvereis | punido
Elles tiverão ou houverão | punido
50

7.° Tempo
(Futuro)

tableau Eu punir | Nós punirmos
Tu punires | Vós punirdes
Elle punir | Elles punirem

8.° Tempo
(Fut. comp.)

tableau Eu tiver ou houver | punido
Tu tiveres ou houveres | punido
Elle tiver ou houver | punido
Nós tivermos ou houvermos | punido
Vós tiverdes ou houverdes | punido
Elles tiverem ou houverem | punido

Infinitivo

1.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. impess.)

tableau Punir

2.° Tempo
tableau Eu punir | Nós punirmos
Tu punires | Vós punirdes
Elle punir | Elles punirem

3.° Tempo
(Pass. impess.)

tableau Ter ou haver punido

4.° Tempo
(Pass. pess.)

tableau Eu ter ou haver | punido
Tu teres ou haveres | punido
Elle ter ou haver | punido
Nós termos ou havermos | punido
Vós terdes ou haverdes | punido
Elles terem ou haverem | punido
51

5.° Tempo
(Gerundio simp.)

tableau Punido
eu, nós | tu, vós | elle, elles

6.° Tempo
(Gerundio comp.)

tableau Tendo ou havendo
eu, nós | tu, vós | elle, elles
punido

Participios

Part. invariavel

tableau Punido

Part. variavel

tableau Punido, a, os, as.

Tabella synoptica
Das inflexões normaes das tres conjugações nos
tempos simples
Terminação primordial
ar | er | ir

Indicativo

1.° Tempo
(Presente)

tableau o | o | o
as | es | es
a | e | e
amos | emos | imos
ais | eis | ís
ão | em | em
52

2.° Tempo
(Pass. imperf.)

tableau ava | ia | ia
avas | ias | ias
ava | ia | ia
avamos | iamos | iamos
aveis | ieis | ieis
avão | ião | ião

3.° Tempo
(Pass. perf.)

tableau oi | í | í
aste | este | iste
ou | eu | iu
ámos | êmos | ímos
astes | estes | istes
árão | êrão | írão

5.° Tempo
(Pass. m. q. perf.)

tableau ára | êra | íra
áras | êras | iras
ára | êra | íra
áramos | eramos | íramos
áreis | éreis | íreis
árão | êrão | írão

7.° Tempo
(Futuro)

tableau arei | erei | irei
aras | erás | irás
ará | erá | irá
aremos | eremos | iremos
areis | ereis | ireis
arão | erão | irão

Condicional

1.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. prop.)

tableau aria | eria | iria
arias | erias | irias
aria | eria | iria
ariamos | eriamos | iriamos
arieis | erieis | irieis
arião | erião | irião
53

3.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. suppl.)

tableau ára | êra | íra
áras | êras | íras
ára | êra | íra
áramos | êramos | íramos
áreis | êreis | íreis
árão | êrão | írão

Imperativo

Tempo unico
(Futuro)

tableau a | e | e
ai | ei | í

Subjunctivo

1.° Tempo
(Pres.-fut.)

tableau e | a | a
es | as | as
e | a | a
emos | amos | amos
eis | ais | ais
em | ão | ão

2.° Tempo
(Pres.-pass.-fut.)

tableau asse | esse | isse
asses | esses | isses
asse | esse | isse
assemos | essemos | issemos
asseis | esseis | isseis
assem | essem | issem

3.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. suppl.)

tableau ára | êra | íra áras | êras | íras ára | êra | íra áramos | êramos | íramos
árcis | êreis | íreis
árão | êrão | írão
54

7.° Tempo
(Futuro)

tableau ar | er | ir
aros | eres | ires
ar | er | ir
armos | ermos | irmos
ardes | erdes | irdes
arem | erem | irom

Infinitivo

1.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. impess.)

tableau ar | er | ir

2.° Tempo
(Pres.-pass.-fut. pess.)

tableau ar | er | ir
aros | eres | ires
ar | er | ir
armos | ermos | irmos
ardes | erdes | irdes
arem | erem | irem

5.° Tempo
(Gerundio simp.)

tableau ando | endo | indo

Participios

Part. invariavel

tableau ado | ido | ido

Part. variavel

tableau ado, a, os, as. | ido, a, os, as. | ido, a, os, as.

Dos tempos primitivos, e dos tempos
derivados

90. Se todos os verbos fossem regulares, nenhuma
opportunidade haveria em discriminar-lhos os tempos em
primitivos o derivados ; porquanto, ao contrario do que succede
55em outras muitas linguas, da forma primordial de cada
conjugação deduzem-se em portuguez, com bastante facilidade,
todas as mais inflexões : haja vista a tabella synoptica
do todos os tempos simples.

Porém os verbos irregulares perturbão este harmonico
desenvolvimento de modificações, já porque nelles altera-se
a terminação, já porque nelles altera-se o radical, já porque
nelles, emfim, altera-se conjunctamente o radical e a terminação :
assim em Eu houve, do haver, que regularmente
faria Eu havi (Eu rendi), e em que, portanto, se manifesta
alteração, tanto no radical, como na terminação.

Todavia essas mesmas anomalias, que fazem dos verbos
irregulares o que são, não deixão de originar, pela sua vez,
uma regularidade relativa, por meio da filiação constante
do certos tempos a outros tempos. Assim é que, do mesmo
houve se deduzem por filiação, com toda a propriedade,
os tempos houvera, houvesse e houver, como de estive
se deduzem estivera, estivesse, estiver, etc.

Portanto a distincção dos tempos em primitivos e derivados
é um mero artificio de methodo para systemar formas
anormaes, porém artificio util, porque fornece o meio de resolver
logicamente mais de uma dissidencia entre os grammaticos.
Assim é que, por exemplo, sem sahir dos casos
de derivação já alludidos, não se comprehende como os irregulares
poder e por appareção, na mór parte das grammaticas,
sob as formas poderá, podesse, poder, e pozera,
pozesse, pozer
, quando procedendo de pude e puz, pela lei
que se verifica em todos os outros irregulares, têm forçosamente
a sua expressão correcta em pudera, pudesse
,
puder e puzera, puzesse, puzer. Haja vista, além dos
quatro auxiliares, os irregulares caber, dizer, fazer, querer,
,
trazer, ver, etc., de que mais adiante se trata, e em que
a mesma lei se verifica.

91. Salvas algumas excepções isoladas, os verbos mais
irregulares não ostentão mais de quatro formas differentes
de radical, das quaes deduzem-se todas as derivações, quer
normaes, quer anormaes : quatro são, portanto, os tempos
primitivos, a sabor :

A. O 1.° tempo do infinitivo (tempo primordial),

B. O 1.° tempo do indicativo,

C. O 3.° tempo do indicativo,

D. O participio invariavel.

92. Do 1.° Tempo do infinitivo derivão-se os cinco
seguintes :56

1.° — O 2.° tempo do infinitivo. Ex. Eu ter. — Eu
haver. — Eu ser. — Eu estar. — Eu pôr
. Etc.

2.° — O 5.° tempo do infinitivo (gerundio simples). Ex
tendo. — havendo. — sendo. — estando. — pondo. Etc.

3.° — O 2.° tempo do indicativo. Ex. Estava. — havia.
Etc. As exçepções são : punha (de pór), — era (de ser), —
tinha (de ter), — e vinha (de vir).

4.° — O 7.° Tempo do indicativo. Ex. terei. — haverei.
— serei. — estarei. — porei
. Etc. As excepções
são : direi (de dizer), — - farei (de fazer), e trarei (do
trazer).

5.° — O 1.° tempo do condicional. Ex. teria. — haveria.
— seria, — estaria. — poria
. Etc. As excepções
são : diria (de .dizer, — faria (de fazer) — e traria (de
trazer).

93. Da primeira pessoa do singular do 1.° Tempo do
indicativo
deriva-se :

1.° — O primeiro tempo do subjunctivo. Ex. Tenho,
tenha (de ter). caibo, caiba (de caber). — Ponho, ponha
(de por). — sirvo, sirva (de servir). Etc. As excepções
são : hei, haja (de haver), — sou, seja (de ser), — estou,
esteja (de estar), — quero, queira (de querer), — sei, saiba
(de saber), — e vou, (de- ir).

E das segundas pessoas do mesmo 1.° tempo do indicativo,
derivão-se :

2.° — As mesmas pessoas - do imperativo, pela suppressão
do s final. Ex. haveis ; ha, havei (de haver).
Estás, estais ; esta, estai (de estar). — Pões, pondes ;
põe, ponde (de pôr). — Lês, lêdes ; lê, lêde (de ler). Etc.
As excepções são : tu tens, tem (tu), de ter ; — tu vens,
vem (tu), de vir;  ; — tu és, vós sois ; (tu), sêde (vós),
do ser.

94. Da primeira, ou mais exactamente ainda, da segunda
pessoa do 3.° Tempo do indicativo derivão-se, sem
excepção :

1.° — O 5.° tempo do indicativo. Ex. Eu tive, tu tiveste ;
eu tivera. — Eu houve, tu houveste ; eu houvera. —
Eu fui, tu foste ; eu fora. — Eu estive, tu estiveste ; eu estivera.
Eu puz, tu puzeste ; eu puzera. — Eu pude, tu
pudeste
 ; eu pudera. Etc.

2.° — O 3.° tempo do condicional, identico de formas
com o precedente.

3.° — O 3.° tempo do subjunctivo, igualmente identico
de formas com o anterior.57

4.° — O 2.° tempo do subjunctivo. Ex. Eu tive, tu tiveste ;
eu tivesse. — Eu houve, tu houveste ; eu houvesse. —
Eu fui, tu foste ; eu fosse. — Eu estive, tu estiveste ; eu estivesse.
Eu puz, tu puzeste ; eu puz esse. Etc.

5.° — O 7.° tempo do subjunctivo. Ex. Eu tive, tu tiveste ;
eu tiver. — Eu houve, tu houveste ; eu houver. —
Eu fui, tu foste ; eu for. — Eu estive, tu estiveste ; eu estiver.
Eu puz, tu puzeste ; eu puzer. Etc.

95. O participio invariavel, indissoluvelmente unido
a ter ou haver em todas as suas manifestações, constitue,
com um ou outro destes dous auxiliares, os tempos compostos
dos verbos elementares.

Observação. O participio variavel é geralmente identico
de forma com o invariavel. Todavia um e outro
apresentão algumas irregularidades, que vêm mencionadas
no capitulo : Do participio.

Do processo da substituição

96. Dentre as difficuldades que se podem originar da
applicação das tabellas conjugativas, aos exercicios analyticos,
nenhuma se ostenta mais saliente do que a determinação
dos tempos que o acaso fez perfeitamente identicos
do formas, embora, por pertencerem a modos differentes,
tenhão assim necessariamente um alcance diverso de sentido.
Depara-se, com effeito, que em todos os verbos, quer
regulares, quer irregulares, o 5.° tempo do indicativo, o 3.°
do condicional, e o 3.° do subjunctivo não apresentão discrepancia
alguma por onde possão ser discriminados. O
mesmo succede em todos os verbos regulares, e em grande
numero dos irregulares, com relação ao 7.° tempo do subjunctivo,
e ao 2.° do infinitivo ; pois ahi tambem produz-se
uma semelhança perfeita. Entretanto, na declaração de
uma forma verbal, é condição rigorosa, não só assignar-lhe
o competente modo, como ainda basear esta selecção em
um motivo terminante. O criterio que tão azada quão seguramente
satisfaz a esta necessidade, é o processo da
substituição.

97. Se se attende a que toda e qualquer palavra
preenche necessariamente uma funcção na enunciação do
pensamento (porquanto, a não ser assim, nenhum seria o
seu prestimo) ; se se attende, outrosim, que todas as mesmas
funcções, com excepção tão sómento da que compete á interjeição,
se reduzem ás de facto, do sujeito, do complemento,
58de predicado, de apposição e de ligação, forçoso é
admittir : 1.°, que duas palavras prestando-se, em identidade
de circumstancias, a collocar-se uma em logar da outra ;
ou, 2.°, a unir-se por uma das tres conjuncções copulativas
e, nem, ou, para constituir uma mesma funcção, devem
pertencer a uma mesma especie, e ter exactamente igual
alcance de significação.

Pois nisto cifra-se o processo da substituição.

A uma palavra de classificação duvidosa, veja-se que
outra de classificação determinada, se lhe ageita, quer por
substituição, quer por annexão ; e, se não se desavirem
neste acto de aferição, prova é que são da mesma especie,
ou que têm, em significação, um alcance identico.

Os seguintes exemplos applicados á duvida que suscitou
esta exposição, domonstrão plenamente uma das faces
desta these.

Os apostolos só receberão cinco pães ; se quizerão
comer os seus cinco pães, sahíra menos de meio pão a cada
um
. (P. Ant. Vieira).

Obvio é que os tres verbos : receberão, quizerão e sahíra
podem caber por suas formas, no 5.° tempo do indicativo,
no 3.° do condicional, ou no 3.° do subjunctivo ; porém, em
qual delles é que realmente cabem ? Uma simples substituição
do tempos, que deixa illeso o pensamento, o dá a
conhecer.

Os apostolos só tinhão recebido cinco pães ; se quizessem
comer os cinco jiães, sahiria menos de meio pão a
cada um
.

Evidencía-se assim que receberão pertence ao 5.° tempo
do indicativo, por ser supprivel pelo 6.° do mesmo modo ;
que quizerão pertence ao 3.° do subjunctivo, por ser supprivel
pelo 2.° do mesmo modo ; emfim que sahíra pertence
ao 3.° do condicional, por ser supprivel polo 1.° do mesmo
modo.

Para discriminar o 7.° tempo do subjunctivo, do 2.° do
infinitivo, modifica-se o expediente, porém sem violação do
principio ; e eis-ahi em que se baseia o processo.

É notavel que, em todos os verbos auxiliares, o 7.°
tempo do subjunctivo, ao contrario do que succede em
todos os regulares, discrepa formalmente do 2.° tempo do
infinitivo. Pois aproveita-se esta circumstancia para de
prompto chegar á determinação de um tempo destes : basta
converter o verbo duvidoso em verbo combinado, para ver
apparecer no auxiliar o tempo procurado.59

Exemplos :

Se considerarmos particularmente as cousas, qual haverá
que, sem letras divinas ou humanas, se possa fazer ?
(João do
Barros).

Se tivermos de considerar… (Não : se termos…). Portanto
está considerarmos no 7.° tempo do subjunctivo.

Para verificarmos isto, faremos uma parábola. (João
do Barros).

Para isto ser verificado… (Não : para isto for…). Portanto
está verificarmos no 2.° tempo do infinitivo.

Analoga é a duvida que póde occorrer em relação á
terceira pessoa do plural do 3.° tempo do indicativo, e á
mesma pessoa do 5.° tempo do mesmo modo, que, em todos
os verbos, são exactamente iguaes. Ahi basta mentalmente
transmudar o plural em singular, dando-se ao verbo um
sujeito adequado, para ver appareccr uma das duas formas
denotando, ou o 3.°, ou o 5.° tempo do indicativo.

Exemplo :

D. Luiz e D. Affonso se sahírão já de noite com tochas,
e, do meio da sala onde primeiro se
vírão, se despediu el rei.
de França
. (Duarte Nunes do Leão).

L. Affonso se sahiu… da sala onde se víra com o rei
Portanto está se sahírão no 3.° tempo do indicativo, e se
vírão no 5.° do mesmo modo.

98. Não é sem estranheza que se nota como o principio
da substituição, um dos mais valiosos promotores
hodiernos do progresso nas sciencias physicas, adapta-se
com o mesmo acerto e proficiência aos estudos philologicos,
verificando-se assim novamente a superioridade do methodo
experimental
sobre o dogmatico. Apenas empregado, nos
casos alludidos, a desfazer duvidas de importancia secundaria,
elle se torna dahi em diante um auxiliar indispensavel
em todas as questões intrincadas, não deixando
difficuldade alguma sem solução satisfactoria.

Dos verbos irregulares

99. As irregularidades nos verbos são de duas especies :
umas, apparentes ; outras, reaes.

Apparentemente irregulares são os verbos em que
só se dá uma troca de signaes graphicos, nenhuma, porém,
do pronuncia ; assim em fujo, do fugir ; e em careco, de
carecer.60

Realmente irregulares são os verbos em que, junto
a uma troca do signaes graphicos, dá-se tambem uma differença
de pronuncia ; assim em digo, por dizo, de dizer ;
o em perco, por perdo, de perder.

Obvio é que todas estas irregularidades só affectão os
tempos simples dos verbos ; porquanto as que podem interessar
aos tempos compostos, têm a sua exposição natural
no capitulo ; Do participio.

Dos verbos apparentemente irregulares

100. As irregularidades desta especie procedera todas
de quatro series de sonoridades, em que certas consoantes
não conservão, ante a e o, a mesma articulação como ante
e o i.

Destas sonoridades, duas são rudes, e duas, brandas.
Ahi vão ellas exaradas em uma tabella synoptica que
torna de mais facil apreciação o modo porque se effectua
a respectiva troca do signaes graphicos.

1.ª serie (sonoridade rude) | ca | que | qui | co
2.ª serie (sonoridade branda) | ça | ce | ci | ço
3.ª serie (sonoridade rude) | ga | gue | gui | go
4.ª serie (sonoridade branda) | ja | ge | gi | jo

101. A regra que d’ahi se deduz, é que, conforme se
apresenta rude ou branda a sonoridade terminativa de um
verbo no seu tempo primordial, branda ou rude deve ella
igualmente ficar em todo o decurso da conjugação. Sirvão
os seguintes verbos de outros tantos paradygmas em cada
uma das tres conjugações.

1.ª conjug. | 2.ª conjug. | 3.ª conjug.
car : Ficar. | cer : Torcer. | cir : Resarcir.
çar : Caçar. | guer : Erguer. | guir : Distinguir.
gar : Pagar. | ger : Reger. | gir : Fingir.

Applicação

Primeira conjugação

102. Nos verbos em car troca-se o c por qu todas as
vezes que a inflexão adduz-lhe em seguida e, caso este que
se verifica na primeira pessoa do singular do 3.° tempo do
indicativo, e em todas as pessoas do 1.° tempo do subjunctivo :61

Ex. Ficar. Eu fiquei. Eu fique, etc.

Nos verbos em çar troea-se o ç por c nos mesmos
casos.

Ex. Caçar. Eu cacei. Eu cace, etc.

Nos verbos em gar troca-se o g por gu nos mesmos
casos.

Ex. Pagar. Eu paguei. Eu pague, etc.

Segunda conjugação

103. Nos verbos em cer troca-se o e por ç todas as
vezes que a inflexão adduz-lhe em seguida a ou o, caso
este que se verifica na primeira pessoa do singular do
1.° tempo do indicativo, e em todas as pessoas do 1.° tempo
do subjunctivo.

Ex. Torcer. Eu torço. Eu torça, etc.

Nos verbos em guer troca-se gu por j nos mesmos
casos.

Ex. Erguer. Eu ergo. Eu erga, etc.

Nos verbos em ger troca-se o g por j nos mesmos
casos.

Ex. Reger. Eu rejo. Eu reja, etc.

Terceira conjugação

104. Nos verbos em cir troca-se o c por ç todas as
vezes que a inflexão adduz-lhe em seguida a ou o, caso
este que se verifica na primeira pessoa do singular do 1.°
tempo do indicativo, e em todas as pessoas do 1.° tempo
subjunctivo

Ex. Resarcir. Eu resarço. Eu resarça, etc.

Nos verbos em guir troca-se gu por g nos mesmos
casos.

Ex. Distinguir. Eu distingo. Eu distinga, etc.

Nos verbos em GIR troca-se o g por J nos mesmos
casos.

Ex. Fingir. Eu finjo. Eu finja, etc.

Observação. Dentre os verbos em guir, os em que
esta terminação consta de duas syllabas (gu-ir), são regulares ;
assim arguir e redarguir.62

Dos verbos realmente irregulares

105. As irregularidades reaes são, ou proprias de um
só e unico verbo, como em dar, caber, poder, querer, etc. ;
ou communs a dous ou mais verbos, como em pedir, pelo
qual se conjugão despedir, expedir, impedir, medir e remedir.
Neste ultimo caso, um dos mesmos verbos preenche, em
relação aos demais, o officio de paradigma.

Aliás ter-se-ha por assentado que os tempos omissos
nas seguintes tabellas, são de conjugação regular.

Irregulares da primeira conjugação

dar

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo

tableau Eu dou | dei | déra
Tu dás | déste | déras
Elle dá | deu | déra
Nós damos | dêmos | dêramos
Vós dais | déstes | dêreis
Elles dão | dérão | dérão

Imperativo

tableau Dá (tu) | Dai (vós)

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu dê | désse | der
Tu dês | désses | deres
Elle dê | désse | der
Nós dêmos | dessemos | dermos
Vós deis | desseis | derdes
Elles dêm | dessem | derem
63

Cear

Indicativo | Imperativo | Subjunctivo

1.° Tempo | Tempo unico | 1.° Tempo

tableau Eu ceio | | Eu ceie
Ta ceias | Ceia (tu) | Tu ceies
Elle ceia | | Elle ceie
Nós ceamos | | Nós ceêmos
Vós ceais | Ceai (vós) | Vós ceeis
Elles ceião | | Elles ceiem

Assim se conjugão os verbos em ear, como pear, apear,
ladear, lisonjear, nomear
, etc.

Negociar

Indicativo | Imperativo | Subjunctivo

1.° Tempo | Tempo unico | 1.° Tempo

tableau Eu negoceio | | Eu negoceie
Tu negoceias | Negoceia (tu) | Tu negoceie
Elle negoceia | | Elle negoceie
Nós negociamos | | Nós negociemos
Vós negociais | Negociai (vós) | Vós negocieis
Elles negoceião | | Elles negoceiem

Assim se conjugão mediar, odiar, premiar e remediar,
talvez por ter-lhes sido antigamente dada a terminação
ear, ou simplesmente para prevenir uma possivel ambiguidade
com os substantivos odio, premio e remedio, e com o
adjectivo medio, media.

Porém os demais verbos em iar, como chiar, criar
fiar, piar, adiar, arripiar
, etc. conjugão-se regularmente.

Nota. Com os referidos verbos não se devem confundir
os que, procedentes do um substantivo em eio,
apresentão-se no seu tempo primordial com a terminação
eiar ; assim, de passeio, passeiar ; de receio, receiar, etc.
Estes são de conjugação regular.64

Irregulares da segunda conjugação

Caber

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo

tableau Eu cáibo | coube | coubera
Tu cabes | coubeste | couberas
Elle cabe | coube | coubera
Nós cabemos | coubemos | couberamos
Vós cabeis | coubestes | coubereis
Elles cabem | couberão | couberão

Imperativo

(Falta)

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu cáiba | coubesse | couber
Tu cáibas | coubesses | couberes
Elle cáiba | coubesse | couber
Nós caibamos | coubessemos | coubermos
Vós caibais | coubesseis | couberdes
Elles cáibão | coubessem | couberem

Comprazer-se

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo

tableau Eu me comprazo | comprouve | comprouvera
Tu te comprazes | comprouveste | comprouveras
Elle se compraz | comprouve | comprouvera
Nós nos comprazemos | comprouvemos | comprouveramos
Vós vos comprazeis | comprouvestes | comprouvereis
Elles se comprazem | comprouverão | comprouverão

Imperativo

(Falta)65

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu me compraza | comprouvesse | comprouver
Tu te comprazas | comprouvesses | comprouveres
Elle se compraza | comprouvesse | comprouver
Nós nos comprazamos | comprouvessemos | comprouvermos
Vós vos comprazeis | comprouvesseis | comprouverdes
Elles se comprazão | comprouvessem | comprouverem

Assim se conjugão prazer, aprazer e desprazer, porém
só na terceira pessoa do singular, por serem impessoaes.

Crer

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo

tableau Eu creio | crí | crera
Tu crês | creste | creras
Elle crê | creu | crêra
Nós cremos | crêmos | crêramos
Vós credes | crestes | crêreis
Elles crêm | crêrão | crêrão

Imperativo

tableau Crê (tu) | Crêde (vós)

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu creia | cresse | crer
Tu creias | cresses | creres
Elle creia | cresse | crer
Nós creiamos | cressemos | crermos
Vós creiais | cresseis | crerdes
Elles creião | cressem | crerem

Assim se conjugão ler, reler e tresler.66

Dizer

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu digo | disse | dissera | direi
Tu dizes | disseste | disseras | dirás
Elle diz | disse | dissera | dirá
Nós dizemos | dissemos | dissêramos | diremos
Vós dizeis | dissestes | dissereis | direis
Elles dizem | disserão | disserão | dirão

Condicional

1.° Tempo

tableau Ea diria | Nós diriamos
Tu dirías | Vós dirieis
Elle diria | Elles dirião

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu diga | dissesse | disser
Tu digas | dissesses | disseres
Elle diga | dissesso | disser
Nós digamos | disséssemos | dissermos
Vós digais | dissésseis | disserdes
Elles digão | dissessem | disserem

Participios

tableau Invar. Dito. | Variav. Dito, a, os, as

Assim se conjugão bemdizer, condizer, contradizer, desdizer,
interdizer, maldizer o predizer
.

Fazer

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu faço | fiz | fizera | farei
Tu fazes | fizeste | fizeras | farás
Elle faz | fez | fizera | fará
Nós fazemos | fizemos | fizeramos | faremos
Vós fazeis | fizestes | fizereis | fareis
Elles fazem | fizerão | fizerão | farão
67

Condicional

1.° Tempo

tableau Eu faria| Nós fariamos
Tu farias | Vós farieis
Elle faria | Elles farião

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 3.° Tempo

tableau Eu faça | fizesse | fizer
Tu faças | fizesses | fizeres
Elle faça | fizesse | fizer
Nós façamos | fizessemos | fizermos
Vós façais | fizesseis | fizerdes
Elles fação | fizessem | fizerem

Participios

tableau Invar. Feito. | Variav. Feito, a, os, as.

Assim se conjugão afazer, contrafazer, desafazer, desfazer,
malfazer, perfazer, rarefazer, refazer e satisfazer
.

Jazer

indicativo

1.° Tempo

tableau Eu jazo | Nós jazemos
Tu jazes | Vós jazeis
Elle jaz | Elles jazem.

A forma antiquada jouve, do 3.° tempo do indicativo,
cahiu em desuso, a não ser no estylo poetico.

Perder

indicativo / subjunctivo

1.° Tempo / 1.° Tempo

tableau Eu perco | Nós perdemos / Eu perca | Nós percamos
Tu perdes | Nós perdeis / Tu percas | Vos percais
Elle perde | Elles perdem / Elle perca | Elles percão
68

Poder

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo

tableau Eu posso | pude | pudera
Tu podes | pudeste | puderas
Elle póde | póde | pudera
Nós podemos | pudemos | puderamos
Vós podeis | pudestes | pudereis
Elles podem | puderão | puderão

Imperativo

(Falta)

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu possa | pudesse | puder
Tu possas | pudesses | puderes
Elle possa | pudesse | puder
Nós possamos | pudessemos | pudermos
Vós possais | pudesseis | puderdes
Elles possão | pudessem | puderem

Querer

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo

tableau Eu quero | quiz | quizera
Tu queres | quizeste | quizeras
Elle quer | quiz | quizera
Nós queremos | quizemos | quizeramos
Vós quereis | quizestes | quizereis
Elles querem | quizerão | quizerão

Imperativo

(Falta)69

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu queira | quizesse | quizer
Tu queiras | quizesses | quizeres
Elle queira | quizesse | quizer
Nós queiramos | quizessemos | quizermos
Vós queirais | quizesseis | quizerdes
Elles queirão | quizessem | quizerem

Participios

tableau Invar. Querido. | Variav. Querido, a, os, as.

Este verbo conta mais um participio variavel : quisto,
a, os, as
, que não sóe ser empregado senão junto a um
dos dous adverbios bem ou mal. Ex. Quem a ninguem quer
bem, de todos é
mal quisto.

Requerer

indicativo / subjunctivo

1.° Tempo | 1.° Tempo

tableau Eu requeiro | Eu requeira
Tu requeres | Tu requeiras
Elle requer | Elle requeira
Nós requeremos | Nós requeiramos
Vós requereis | Vós requeirais
Elles requerem | Elles requeirão

Saber

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo

tableau Eu sei | soube | soubera
Tu sabes | soubeste | souberas
Elle sabe | soube | soubera
Nós sabemos | soubemos | souberamos
Vós sabeis | soubestes | soubereis
Elles sabem | souberão | souberão
70

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu sáiba | soubesse | souber
Tu sáibas | soubesses | souberes
Elle sáiba | soubesse | souber
Nós saibamos | soubessemos | soubermos
Vós saibais | soubesseis | souberdes
Elles sáibão | soubessem | souberem

Trazer

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu trago | trouxe | | trouxera | trarei
Tu trazes | trouxeste | trouxeras | trarás
Elle traz | trouxe | trouxera | trará
Nós trazemos | trouxemos | trouxeramos | traremos
Vós trazeis | trouxestes | trouxereis | trareis
Elles trazem | trouxerão | trouxerão | trarão

Condicional

tableau Eu traria | Nós traríamos
Tu trarias | Vós trarieis
Elle traria | Elles trarião

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu traga | trouxesses | trouxer
Tu tragas | trouxesse | trouxeres
Elle traga | trouxesse | trouxer
Nós tragamos | trouxessemos | trouxermos
Vós tragais | trouxesseis | trouxerdes
Elles tragão | trouxessem | trouxerem
71

Valer

Indicativo / Imperativo / Subjunctivo

1.° Tempo

tableau Eu valho | (Falta) | Eu valha
Tu vales | Tu valhas
Elle valo | Elle valha
Nós valemos | Nós valhamos
Vós valeis | Vós valhais
Elles valem | Elles valhão

Ver

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo

tableau Eu vejo | vi | vira
Tu vês | visto | viras
Elle vê | viu | vira
Nós vemos | vímos | víramos
Vós vêdes | vistes | víreis
Elles vêm | virão | virão

Imperativo

Tempo unico

tableau Vê (tu) | Vêde (vós)

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu veja | visse | vir
Tu vejas | visses | vires
Elle veja | visse | vir
Nós vejamos | víssemos | virmos
Vós vejais | visseis | virdes
Elles vejão | vissem | virem

Participios

tableau Invar. Visto. | Variav. Visto, a, os, as.

Assim se conjugão antever, entrever, prever, prover
rever
, com a reserva, todavia, que, em prover, ambos
participios são regulares ; — provido, a, os, as.72

Irregulares da terceira conjugação

Cobrir

indicativo / subjunctivo

1.° Tempo

tableau Eu cubro | Nós cobrimos / Eu cubra | Nós cubramos
Tu cobres | Vós cobris / Tu cubras | Vós cubrais
Elle cobre | Elles cobrem / Elle cubra | Elles cubrão

Assim se conjugão descobrir, encobrir o dormir.

Frigir

indicativo

1.° Tempo

tableau Eu frijo | Nós frigimos
Tu freges | Vós frigis
Elle frege | Elles fregem

Imperativo

tableau Frege (tu) | Frigí (vós)

Ir

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo

tableau Eu vou | fui | fôra
Tu vais | foste | fôras
Elle vai | foi | fora
Nós vamos | fomos | foramos
Vós ides | fostes | foreis
Elles vão | forão | forão

Imperativo

tableau Vai (tu) | Ide (vós)73

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu vá | fosse | fôr
Tu vás | fosses | fôres
Elle vá | fosse | for
Nós vámos | fossem | formos
Vós vades | fosseis | fordes
Elles vão | fossem | fôrem

Observação. — Para de prompto discriminar, nos exercicios
analyticos, os tempos de ir, que, por identidade de
formas, podem vir a ser confundidos com alguns de ser,
basta, soccorrendo-se ao processo da substituição, trocá-los
por outros em que os dous verbos tenhão formas divergentes.
Ex. Em Hespanha, os Romanos não forão conquistar
os homens, senão as minas ; porque as minas
forão o motivo
da guerra
. (P. Ant. Vieira). — Em Hespanha, os Romanos
não
tinhão ido conquistar os homens, senão as minas; porque
as minas
tinhão sido o motivo da guerra. — Portanto o primeiro
forão é de ir, e o segundo de ser.

Luzir

indicativo

1.° Tempo

tableau Eu luzo | Nós luzimos
Tu luzes | Vós luzís
Elle luz | Elles luzem

Assim se conjugão todos os verbos em uzir :

tableau adduzir | eduzir, | produzir, | reluzir,
conduzir, | induzir, | reconduzir, | reproduzir,
deduzir, | introduzir, | reduzir, | seduzir,
traduzir, | transluzir
.74

Ouvir

Indicativo / Subjunctivo

1.° Tempo / 1.° Tempo

tableau Eu ouço | Nós ouvimos / Eu ouça | Nós ouçamos
Tu ouves | Vós ouvis / Tu ouças | Vós ouçais
Elle ouve | Elles ouvem / Elle ouça | Elles oução

Pedir

Indicativo / Subjunctivo

1.° Tempo / 1.° Tempo

tableau Eu peço | Nós pedimos / Eu peça | Nós peçamos
Tu pedes | Vós pedis / Tu peças | Vós peçais
Elle pede | Elles pedem / Elle peça | Elles peção

Assim se conjugão despedir, expedir, impedir, medir,
remedir e descomedir-se
.

Prevenir

Indicativo / Imperativo / Subjunctivo

1.° Tempo | Tempo unico | 1.° Tempo

tableau Eu previno | Eu previna
Tu prevines | Previne (tu) | Tu provinas
Elle previne | Elle previna
Nós prevenimos | Nós previnamos
Vós prevenis | Prevení (vós) | Vós previnais
Elles previnem | Elles previnão

Assim se conjugão denegrir e redemir.75

Rir

Indicativo / Imperativo / Subjunctivo

1.° Tempo | Tempo unico | 1.° Tempo

tableau Eu rio | Eu ria
Tu rís | Rí (tu) | Tu rias
Elle rí | Elle ria
Nós rimos | Nós riámos
Vós rides | Ride (vós) | Vós riais
Elles riem | Elles rião

Assim se conjuga sorrir-se.

Sahir

Indicativo / Subjunctivo

1.° Tempo / 1.° Tempo

tableau Eu saio | Nós sahimos / Eu sáia | Nós saiamos
Tu sahes | Vós sahís / Tu sáias | Vós saiais
Elle sahe | Elles sahem / Elle sáia | Elles sáião

Assim se conjugão :

tableau abstrahir, | decahir, | embahir, | retrotrahir,
attrahir, | descahir, | extrahir, | sobresahir,
cahir, | detrahir, | recahir, | subtrahir,
contrahir, | distrahir, | retrahir, | trahir.

Servir

Indicativo / Subjunctivo

1.° Tempo / 1.° Tempo

tableau Eu sirvo | Nós servimos / Eu sirva | Nós sirvamos
Tu serves | Vós servis / Tu sirvas | Vós sirvais
Elle serve | Elles servem / Elle sirva | Elles sirvão

Assim se conjugão :

tableau advertir, | desferir, | impellir, | proseguir,
aferir, | desinvestir, | indeferir, | referir,
76

tableau adredir, | desmentir, | inferir, | reflectir,
assentir, | despir, | inserir, | repellir,
auferir, | desservir, | investir, | repetir,
compellir, | differir, | mentir, | revestir,
competir, | digerir, | perseguir, | seguir,
conferir, | dissentir, | preferir, | sentir,
conseguir, | divertir, | presentir, | subseguir-se,
consentir, | expellir, | proferir, | transferir,
deferir, | derir, | progredir, | vestir.

Sortir

Indicativo | Imperativo | Subjunctivo

1.° Tempo | Tempo unico | 1.° Tempo

tableau Eu surto | Eu surta
Tu surtes | Surte (tu) | Tu surtas
Elle surte | Elle surta
Nós sortimos | Nós surtamos
Vós sortís | Sortí (vós) | Vós surtais
Elles surtem | Elles surtão

Assim se conjugão cortir, embotir, ordir e sordir.

Subir

indicativo

1.° Tempo

tableau Eu subo | Nós subimos
Tu sobes | Vós subis
Elle sobe | Elles sobem

Assim se conjugão acudir, bulir, construir, cuspir, desentupir,
destruir, engulir, entupir, fugir, sacudir, tussir e
sumir
, com excepção, todavia, de assumir, consumir e resumir,
que são regulares.77

Vir

indicativo

1.° Tempo | 3.° Tempo | 5.° Tempo

tableau Eu venho | vim | viera
Tu vens | vieste | vieras
Elle vem | veiu | viera
Nós vimos | viemos | vieramos
Vós vindes | viestes | viereis
Elles vêm | vierão | vierão

Imperativo

Tempo unico

tableau Vem (tu) | Vinde (vós)

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu venha | viesse | vier
Tu venhas | viesses | vieres
Elle venha | viesse | vier
Nós venhamos | viessemos | viermos
Vós venhais | viesseis | vierdes
Elles venhão | viessem | vierem

Participios

tableau Invar. Vindo. | Variav. Vindo, a, os, as.

Assim se cónjugão avir, contravir, convir, desavir, desconvir,
intervir, provir, reconvir e sobrevir
.

Pôr

Observação. A terminação excepcional deste verbo
fá-lo-hia, com bastante propriedade, o paradigma de uma
quarta conjugação, e com esto predicamento inscrevêmo-lo
na primeira edição desta obra. Porém, considerando que,
além de se desenvolver em modificações pouco harmônicas,
só serve de norma a verbos que delle procedem, preferimos
apresentá-lo como irregular avulso.78

Indicativo

1.° Tempo / 2.° Tempo

tableau Eu ponho | Nós pomos / Eu punha | Nós punhamos
Tu pões | Vós pondes / Tu punhas | Vós punhois
Elle põe | Elles põem / Elle punha | Elles punhno

3.° Tempo / 5.° Tempo

tableau Eu puz | Nós puzemos / Eu puzera | Nós puzeramos
Tu puzeste | Vós puzestes / Tu puzeras | Vós puzereis
Elle pôz | Elles puzerão / Elle puzera | Elles puzerão

7.° Tempo

tableau Eu porei | Nós poremos
Tu porás | Vós poreis
Elle porá | Elles porão

Condicional

1.° Tempo

tableau Eu poria | Nós poríamos
Tu porias | Vós porieis
Elle poria | Elles porião

Imperativo

Tempo unico

tableau Põe (tu) | Ponde (vós)

Subjunctivo

1.° Tempo | 2.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Eu ponha | puzesse | puzer
Tu ponhas | puzesses | puzeres
Elle ponha | puzesse | puzer
Nós ponhamos | puzessemos | puzermos
Vós ponhais | puzesseis | puzerdes
Elles ponhão | puzessem | puzerem

Infinitivo

1.° Tempo

tableau Pôr79

2.° Tempo

tableau Eu pôr | Nós pormos
Tu pôres | Vós pordes
Elle pôr | Elles pôrem

5.° Tempo

tableau Pondo

Participios

tableau Invar. Posto. | Variav. Posto, a, os, as.

Assim se conjugão :

tableau appôr, | decompôr, | indispôr, | recompôr
antepôr, | descompôr, | interpôr, | repôr,
compôr, | dispôr, | oppôr, | superpôr,
contrapôr, | expôr, | pospôr, | suppôr,
depôr, | impôr, | propôr, | transpôr
.

Verbos defectivos

106. Além dos verbos cuja significação obsta a que
recebão todo o seu desenvolvimento conjugativo, como
caber, poder, querer, valer, etc., aos quaes falta o imperativo
por ser contrario á razão mandar a alguem que cáiba,
possa, queira, valha
, etc., são defectivos os seguintes :

1.° Na segunda conjugação, feder e precaver, porque não
se sóe dar-lhes as inflexões adduzindo immediatamente após
o radical as vogaes a ou o :

2.° Na terceira conjugação, os infrascriptos, porque
tambem não se sóe dar-lhes as inflexões que não adduzem
immediatamente após o radical a vogal i :

tableau abolir, | carpir, | exhaurir, | munir,
adherir, | colorir, | exinanir, | polir,
banir, | demolir, | inherir, | remir,
brandir, | discernir, | latir, | submergir
.

Observação. Para supprir as formas que a estes defectivos
fallecem, costuma-se usar de synonymos ou de circumloquios.

synonymos são os vocabulos do mesmo sentido. Assim
80é que, sendo vedado dizer : Eu bano, nada obsta a que se
diga por substituição : Eu desterro.

Circumloquios são complexos de palavras equivalendo
a uma só. Assim é que, sendo vedado dizer : O navio se
submerge
, diz-se com toda a propriedade : O navio vai a
pique
.

Da conjugação dos verbos pronominaes

O systema conjugativo dos verbos pronominaes abrange
duas ordens parallelas de modificações : a primeira normal ;
a segunda, anormal. Na pratica, indifferente é usar, quer
de uma, quer de outra : escolhe-se a que com mais propriedade
acóde aos requisitos do estylo ; em sentido, porém,
não ha divergencia.

Normal é a conjugação em que ambos os pronomes
pessoaes vão antepostos aos verbos. Ex. Eu me queixo.

Anormal é a conjugação em que, por omissão do pronome
sujeito, o pronome complemento passa para depois
do verbo. Ex. Queixo-me. Chama-se anormal porque, em
quatro dos seus tempos : o 7.° e o 8.° do indicativo, e o 1.°
e o 2.° do condicional, dá-se o caso da tmesis, uma das figuras
de dicção, por interpolação dos pronomes complementos
dentro da terminação. Ex. Queixar-me-hei, — ter-me-hei
queixado. — Queixar-me-hia, — ter-me-hia queixado
. —
Dá-se nelle ainda outra anomalia, a da apócope, igualmente
uma das figuras do dicção, por suppressão da consoante
final s na primeira pessoa do plural. Ex. Queixamo-nos.

Entretanto, não sendo possivel apresentar, como conviría,
ambas estas ordens de conjugação em parallelismo,
por causa do nimio estiramento das formas, ani vão ellas
em duas tabellas separadas.

Queixar-se

Ordem normal

1.° Tempo

tableau Eu me queixo | Nós nos queixamos
Tu te queixas | Vós vos queixais
Elle se queixa | Elles se queixão
81

2.° Tempo

tableau Eu me queixava | Nós nos queixavamos
Tu te queixavas | Vós vos queixaveis
Elle se queixava | Elles se queixavão

3.° Tempo

tableau Eu me queixára | Nós nos queixámos
Tu te queixáras | Vós vos queixastes
Elle se queixára | Elles se queixárão

4.° Tempo

tableau Eu me tenho | ou hei
Tu te tens | ou has
Elle se tem | ou ha
Nós nos temos | ou havemos
Vós vos tendes | ou haveis
Elles se têm | ou hão
queixado

5.° Tempo

tableau Eu me queixára | Nos nos queixáramos
Tu te queixáras | Vós vos queixáreis
Elle se queixára | Elles se queixárão

6.° Tempo

tableau Eu me tinha | ou havia
Tu te tinhas | ou havias
Elle se tinha | ou havia
Nós nos tinhamos | ou haviamos
Vós vos tinheis | ou havieis
Elles se tinhão | ou havião
queixado

7.° Tempo

tableau Eu me queixarei | Nós nos queixaremos
Tu te queixarás | Vós vos queixareis
Elle se queixará | Elles se queixarão

8.° Tempo

tableau Eu me terei | ou haverei
Tu te terás | ou haverás
Elle se terá | ou haverá
Nós nos teremos | ou haveremos
Vós vos tereis | ou havereis
Elles se terão | ou haverão
queixado
82

Condicional

1.° Tempo

tableau Eu me queixaria | Nós nos queixaríamos
Tu te queixarias | Vós vos queixarieis
Elle se queixaria | Elles se queixarião

2.° Tempo

tableau Eu me teria | ou haveria
Tu te terias | ou haverias
Elle se teria | ou haveria
Nós nos teriamos | ou haveriamos
Vós vos terieis | ou haverieis
Elles se terião | ou haverião
queixado

3.° Tempo

tableau Eu me queixára | Nós nos queixáramos
Tu te queixáras | Vós vos queixáreis
Elle se queixara | Elles se queixárão

4.° Tempo

tableau Eu me tivera | ou houvera
Tu te tiveras | ou houveras
Elle se tivera | ou houvera
Nós nos tiveramos | ou houveramos
Vós vos tivereis | ou houvereis
Elles se tiverão | ou houverão
queixado

Imperativo

Tempo unico

tableau Queixa-te (tu que…) | Queixai-vos (vós que…)

Subjunctivo

1.° Tempo

tableau Eu me queixasse | Nós nos queixemos
Tu te queixasses | Vós vos queixeis
Elle se queixasse | Elles se queixem

2.° Tempo

tableau Eu me queixasse | Nós nos queixássemos
Tu te queixasses | Vós vos queixásseis
Elle se queixasse | Elles se queixassem
83

3.° Tempo

tableau Eu me queixára | Nós nos queixáramos
Tu te queixáras | Vós vos queixáreis
Elle se queixára | Elles se queixárão

4.° Tempo

tableau Eu me tenha | ou haja
Tu te tenhas | ou hajas
Elle se tenha | ou haja
Nós nos tenhamos | ou hajamos
Vós vos tenhais | ou hajais
Elles se tenhão | ou hajão
queixado

5.° Tempo

tableau Eu me tivesse | ou houvesse
Tu te tivesses | ou houvesses
Elle se tivesse | ou houvesse
Nós nos tivessemos | ou houvessemos
Vós vos tivesseis | ou houvesseis
Elles se tivessem | ou houvessem
queixado

6.° Tempo

tableau Eu me tivera | ou houvera
Tu te tiveras | ou houveras
Elle se tivera | ou houvera
Nós nos tiveramos | ou houveramos
Vós vos tivereis | ou houvereis
Elles se tiverão | ou houverão
queixado

7.° Tempo

tableau Eu me queixar | Nós nos queixarmos
Tu te queixares | Vós vos queixardes
Elle se queixar | Elles se queixarem

8.° Tempo

tableau Eu me tiver | ou houver
Tu te tiveres | ou houveres
Elle se tiver | ou houver
Nós nos tivermos | ou houvermos
Vós vos tiverdes | ou houverdes
Elles se tiverem | ou houverem
queixado
84

Infinitivo

1.° Tempo

tableau Queixar-
me, nos | te, vos | (se, se)

2.° Tempo

tableau Eu me queixar | Nós nos queixarmos
Tu te queixares | Vós vos queixardes
Elle se queixar | Elles se queixarem

3.° Tempo

tableau Ter - ou Haver-
me, nos | te, vos | se, se
queixado

4.° Tempo

tableau Eu me ter | ou haver
Tu te teres | ou haveres
Elle se ter | ou haver
Nós nos termos | ou havermos
Vós vos terdes | ou haverdes
Elles se terem ou haverem
queixado

5.° Tempo

tableau Queixando-
me, nos | te, vos | se, se

6.° Tempo

tableau Tendo- ou Havendo-
me, nos | te, vos | se, se
queixado

Participios

tableau Invar. Queixado. | Variav. (Falta).

Ordem anormal

Indicativo

1.° Tempo | 2.° Tempo

tableau Queixo-me | Queixamo-nos
Queixas-te | Queixais-vos
Queixa-se | Queixão-se
85

2.° Tempo

tableau Queixava-me | Queixavamo-nos
Queixavas-te | Queixaveis-vos
Queixava-se | Queixavão-se

3.° Tempo

tableau Queixei-me | Queixámo-nos
Queixaste-te | Queixastes-vos
Queixou-se | Queixárão-se

4.° Tempo

tableau Tenho | ou hei-me
Tens | ou has-te
Tem | ou ha-se
Temos | ou havemo-nos
Tendes | ou haveis-vos
Têm | ou havião-se
queixado

5.° Tempo

tableau Queixára-me | Queixáramo-nos
Queixára-te | Queixáreis-vos
Queixára-se | Queixárão-se

6.° Tempo

tableau Tinha | ou havia-me
Tinhas | ou havias-te
Tinha | ou havia-se
Tinhamos | ou haviamo-nos
Tinheis | ou havieis-vos
Tinhão | ou havião-se
queixado

7.° Tempo

tableau Queixar-me-hei | Queixar-nos-hemos
Queixar-te-has | Queixar-vos-heis
Queixar-se-ha | Queixar-se-hão

8.° Tempo

tableau Ter | ou haver-me-hei
Ter | ou haver-te-has
Ter | ou haver-se-ha
Ter | ou haver-nos-hemos
Ter | ou haver-vos-heis
Ter | ou haver-se-hão
queixado
86

Condicional

1.° Tempo

tableau Queixar-me-hia | Queixar-nos-hiamos
Queixar-te-hias | Queixar-vos-heis
Queixar-se-hia | Queixar-se-hão

2.° Tempo

tableau Ter | ou haver-me-hia
Ter | ou haver-te-hias
Ter | ou haver-se-hia
Ter | ou haver-nos-hiamos
Ter | ou haver-vos-hieis
Ter | ou haver-se-hião
queixado

3.° Tempo

tableau Queixára-me | Queixáramo-nos
Queixáras-te | Queixáraveis-vos
Queixára-se | Queixárão-se

4.° Tempo

tableau Tivera | ou | houvera-me
Tiveras | ou | houveras-te
Tivera | ou | houvera-se
Tiveramos | ou | houvoramo-nos
Tivereis | ou | houvereis-vos
Tiverão | ou | houverão-se
queixado

Imperativo

Tempo unico

tableau Queixa-te | Queixai-vos

Subjunctivo

1.° Tempo

tableau Queixe-me | Queixemo-nos
Queixes-te | Queixeis-vos
Queixe-se | Queixem-se

2.° Tempo

tableau Queixasse-me | Queixassemo-nos
Queixasses-te | Queixasseis-vos
Queixasse-se | Queixassem-se
87

3.° Tempo

tableau Queixára-me | Queixáramo-nos
Queixáras-te | Queixareis-vos
Queixára-se | Queixárão-se

4.° Tempo

tableau Tenha | ou haja-me
Tenhas | ou hajas-te
Tenha | ou haja-se
Tenhamos | ou hajamo-nos
Tenhais | ou hajais-vos
Tenhão | ou hajão-se
queixado

5.° Tempo

tableau Tivesse | ou houvesse
Tivesses | ou houvesses
Tivesse | ou houvesse
Tivéssemos | ou houvessemos
Tivesseis | ou houvesseis
Tivessem | ou houvessem
queixado

6.° Tempo

tableau Tivera | ou houvera-me
Tiveras | ou houveras-te
Tivera | ou houvera-me
Tiveramos | ou houvoramo-nos
Tivereis | ou houvereis-vos
Tiverão | ou houvorão-se
queixado

7.° Tempo

tableau Queixar-me | Queixarmo-nos
Queixares-te | Queixardes-vos
Queixar-se | Queixarem-se

8.° Tempo

tableau Tiver | ou houver-me
Tiveres | ou houveres-te
Tiver | ou houver-se
Tivermos | ou houvermo-nos
Tiverdes | ou houverdes-vos
Tiverem | ou houvorem-se
queixado

Infinitivo

1.° Tempo

tableau Queixar-
me, nos | te, vos | se, se
88

2.° Tempo

tableau Queixar-me | Queixarmo-nos
Queixares-te | Queixardes-vos
Queixar-se | Queixarem-se

3.° Tempo

tableau Ter- ou Haver-
me, nos | te, vos | se, se
queixado

4.° Tempo

tableau Ter-me | ou haver-me
Teres-te | ou haveres-te
Ter-se | ou haver-se
Termo-nos | ou havermo-nos
Terdes-vos | ou haverdes-vos
Terem-se | ou haverem-se

5.° Tempo

tableau Queixando
me, nos | te, vos, | se, se

6.° Tempo

tableau Tendo- ou Havendo-
me, nos | te, vos | se, se
queixado

Participios

tableau Invar. -Queixado | Variav. (Falta).

Por estas duas tabellas conjugão-se todos os verbos
quer essencial, quer accidentalmente pronominaes, resguardadas
as formas peculiares do cada conjugação, tanto regular,
como irregular.

E’ de notar, outrosim, que o emprego da tmesis não
lhes cabe exclusivamente, mas é commum a todos os verbos
logo que se intenta transferir, de diante para depois de um
d’elles, um pronome pessoal qualquer, fazendo funcção do
complemento sem proposição expressa. Ex. Dir-te-hei. — Ternos-ha
visto. — Mandar-lhe-hiamos. — Ter-me-hião approvado. —
Confessar-vo-lo-hemos
.89

Paradigma do verbo impessoal

Ventar

Indicativo

1.° Tempo | 5.° Tempo

tableau Venta | Ventára

2.° Tempo | 6.° Tempo

tableau Ventava | Tinha ou havia ventado

3.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Ventou | Ventará

4.° Tempo | 8.° Tempo

tableau Tem ou ha ventado | Terá ou haverá ventado

Condicional

1.° Tempo | 3.° Tempo

tableau Ventaria | Ventára

2.° Tempo | 4.° Tempo

tableau Teria ou haveria ventado | Tivera ou houvera ventado

Imperativo

tableau (Falta)

Subjunctivo

1.° Tempo | 5.° Tempo

tableau Vento | Tivesse ou houvesse ventado

2.° Tempo | 6.° Tempo

tableau Ventasse | Tivera ou houvera ventado

3.° Tempo | 7.° Tempo

tableau Ventára | Ventar

4.° Tempo | 8.° Tempo

tableau Tenha ou haja ventado | Tiver ou houver ventado90

Infinitivo

1.° Tempo | 4.° Tempo

tableau Ventar | (Falta)

2.° Tempo | 5.° Tempo

tableau (Falta) | Ventando

3.° Tempo | 6.° Tempo

tableau Ter ou haver ventado | Tendo ou havendo ventado

Participio

tableau Invar. Ventado

Dos verbos combinados

108. Entre as tres especies do verbos combinados (os
passivos, os prepositivos e os gerundiaes
), os primeiros sómente
é que merecêrão aos grammaticos uma menção especial,
porque delles tambem tratão as grammaticas latinas, e as
francezas. Porém, dos propositivos e dos gerundiaes, que,
por enunciarem tão expedita quão ingenuamente o que,
em outros idiomas, só se consegue formular mediante circumloquios
mais ou menos entesados, constituem uma das
bellezas da lingua portugueza, apenas aventárão-se algumas
das suas formas, para serem cunhadas á viva força dentro
dos verbos elementares, e produzirem assim uma confusão
summamente prejudicial aos estudos philologicos.

Pois, quando se considera que o systema conjugativo,
quer de uns, quer do outros, se desenvolve, em modos,
tempos, numeros e pessoas, por um teor de frisante analogia
com o dos verbos elementares, repugna desconhecer-lhes
o predicamento de verbos independentes, só porque a
indole que lhes é propria, desconcerta preconceitos mal cabidos.
Assim é que, por exemplo, parece inadmissivel a
alguns que, nos verbos prepositivos da primeira categoria,
a forma « Sei de sahir » constitua o 1.° tempo do indicativo,
quando a sua feição, por ser de futuro, de modo algum
condiz com a feição de presente que caracterisa o mesmo
tempo nos verbos elementares : « Sáio ». Porém quem attender
ao muito que ha de relativo nas denominações dos
tempos, como aliás demonstrar-se-ha na parte syntaxica,
não prestará a semelhante observação senão o valor que
merece ; pois o mesmo « Sáio », posto que capitulado por
todos os grammaticos de presente, não deixa de em mais
91de um caso alludir com toda a propriodade ao futuro :
« saio amanhãa para fora da cidade. »

Em relação aos prepositivos o aos gerundios, outros allegão,
como motivo de repulsa, a omissão dos tempos em
que o auxiliar teria de apparecer composto.

Porém torna-se até intuitivo que. tal suppressão tem a
sua causa, monos n’uma impropriedade original dos mesmos
verbos, no que no estiramento demasiado das formas om
que o auxiliar sahiria composto, formas essas, outrosim,
sempre suppriveis pelas em que o auxiliar apresenta-se

Outros emfim notão, com o mesmo intento, a falta de
um modo ; o imperativo, não só nos mesmos prepositivos,
como ainda nos gerundiaes. Mas esta deficiência, por proceder
igualmente da indole dos mesmos verbos, em que o
facto não póde ser mandado, constitue um simples accidente
de significação, como em caber, poder, querer, ete., aos quaes,
por igual motivo, fallece tambem o mesmo modo.

Os verbos combinados justificão assim de sua entidade
pela conjugação, e do seu appellido pela indissolubilidade
de sentido que caracterisa suas formas sempre compostas.

Conjugação dos verbos passivos

109. A conjugação dos verbos passivos consta meramente
da conjugação integral de um dos auxiliares ser ou
estar
junto a um participio variavel, o qual concorda
constantemente em genero e numero com o sujeito.

Porém o emprego de um ou de outro destes dous auxiliares
não ó facultativo como o é o de ter e haver, o
sim adstricto a dous modos distinctos de intuição. ser
apresenta o facto como perenne ; estar o apresenta como
transitorio. Assim é que um homem de idade é alquebrado
pelos annos ; ao passo que um homem, depois de vehementes
esforços, esta alquebrado de cansaço.

110. Segue-se d’ahi que, se muitos verbos passivos
podem, em virtude de uma significação ampla, conjugar-se,
já com ser, já com estar, a outros fica negada esta faculdade
por uma significação que se restringe unicamente a
ser, ou unicamente a estar, sendo, aliás, a selecção geralmente
determinada pelo uso, antes do que por qualquer
indagação mais intrinseca.

Na seguinte tabella, a conjugação do paradigma fica
limitada, por amor da brevidade, ao concurso de ser, podendo-se-lhe
substituir estar sem outra alteração.92

Ser amado

Indicativo

1.° Tempo

tableau Eu sou
Tu es
Elle (a) é | amado ou amada
Nós somos
Vós sois | amados ou amadas
Elles (as) são

2.° Tempo

tableau Eu era
Tu eras | amado ou amada
Elle (a) era
Nós eramos
Vós ereis | amados ou amadas
Elles (as) erão

3.° Tempo

tableau Eu fui
Tu foste | amado ou amada
Elle (a) foi
Nós fomos
Vós fostes | amados ou amadas
Elles (as) forão

4.° Tempo

tableau Eu tenho | ou hei sido
Tu tens | ou has sido | amado ou amada
Elle (a) tem | ou ha sido
Nós temos ou havemos sido
Vós tendes | ou haveis sido
amados ou amadas
Elles (as) têm | ou hão sido

5.° Tempo

tableau Eu fôra
Tu foras | amado ou amada
Elle (a) fora
Nós foramos
Vós foreis | amados ou amadas
Elles (as) forão
93

6.° Tempo

tableau Eu tinha | ou havia sido
Tu tinhas | ou havias sido | amado ou amada
Elle (s) tinha | ou havia sido
Nós tinhamos | ou haviamos sido
Vós tinheis | ou havieis sido | amados ou amadas
Elles (as) tinhão | ou havião sido

7.° Tempo

tableau Eu serei
Tu serás | amado ou amada
Elle (a) será
Nós seremos
Vós sereis | amados ou amadas
Elles (as) serão

8.° Tempo

tableau Eu terei | ou haverei sido
Tu terás | ou haverás sido | amado ou amada
Elle (a) terá | ou haverá sido
Nós teremos | ou haveremos sido
Vós tereis | ou havereis sido | amados ou amadas
Elles (as) terão | ou haverão sido

Condicional

1.° Tempo

tableau Eu seria
Tu serias | amado ou amada
Elle (a) seria
Nós seriamos
Vós serieis | amados ou amadas
Elles (as) serião

2.° Tempo

tableau Eu teria | ou haveria sido
Tu terias | ou haverias sido | amado ou amada
Elle (a) teria | ou haveria sido
Nós teriamos | ou haveriamos sido
Vós terieis | ou haverieis sido | amados ou amadas
Elles (as) terião | ou haverião sido
94

3.° Tempo

tableau Eu fôra
Tu fôras | amado ou amada
Elle (a) fôra
Nós foramos
Vós foreis | amados ou amadas
Elles (as) fôrão

4.° Tempo

tableau Eu tivera | ou houvera sido
Tu tiveras | ou houveras sido | amado ou amada
Elle (a) tivera | ou houvera sido
Nós tiveramos | ou houveramos sido
Vós tivereis | ou houvereis sido | amados ou amadas
Elles (as) tiverão | ou houverão sido

Imperativo

Tempo unico

tableau Sê (tu) amado ou amada
Sêde (vós) amados ou amadas

Subjunctivo

1.° Tempo

tableau Eu seja
Tu sejas | amado ou amada
Elle (a) seja
Nós sejamos
Vós sejais | amados ou amadas
Elles (as)

2.° Tempo

tableau Eu fosse
Tu fosses | amado ou amada
Elle (a) fosse
Nós fossemos
Vós fosseis | amados ou amadas
Elles (as) fossem
95

3.° Tempo

tableau Eu fôra
Tu fôras | amado ou amada
Elle (a) fôra
Nós foramos
Vós foreis | amados ou amadas
Elles (as) forão

4.° Tempo

tableau Eu tenha | ou haja sido
Tu tenhas | ou hajas sido | amado ou amada
Elle (a) tenha | ou haja sido
Nós tenhamos | ou hajamos sido
Vós tenhais | ou hajais sido | amados ou amadas
Elles (as) tenhão | ou hajão sido

5.° Tempo

tableau Eu tivesse | ou houvesse sido
Tu tivesses | ou houvesses sido | amado ou amada
Elle (a) tivesse | ou houvesse sido
Nós tivessemos | ou houvessemos sido
Vós tivesseis | ou houvesseis sido | amados ou amadas
Elles (as) tivessem | ou houvessem sido

6.° Tempo

tableau Eu tivera | ou houvera sido
Tu tiveras | ou houveras sido | amado ou amada
Elle (a) tivera | ou houvera sido
Nós tiveramos | ou houveramos sido
Vós tivereis | ou houvereis sido | amados ou amadas
Elles (as) tiverão | ou houverão sido

7.° Tempo

tableau Eu fôr
Tu fôres | amado ou amada
Elle (a) fôr)
Nós formos
Vós fordes | amados ou amadas
Elles (as) forem
96

8.° Tempo

tableau Eu tiver | ou houver sido
Tu tiveres | ou houveres sido | amado ou amada
Elle (a) tiver | ou houver sido
Nós tivermos | ou houvermos sido
Vós tiverdes | ou houverdes sido | amados ou amadas
Elles (as) tiverem | ou houverem sido

Infinitivo

1.° Tempo

tableau Ser amado, a, os, as

2.° Tempo

tableau Eu ser
Tu seres | amado ou amada
Elle (a) ser
Nós sermos
Vós serdes | amados ou amadas
Elles (as) serem

3.° Tempo

tableau Ter sido amado, a, os, as

4.° Tempo

tableau Eu ter | ou haver sido
Tu teres | ou haveres sido | amado ou amada
Elle (a) ter | ou haver sido
Nós termos | ou havermos sido
Vós terdes | ou haverdes sido | amados ou amadas
Elles (as) terem | ou haverem sido

5.° Tempo

tableau Sendo | eu
tu | amado ou amada
elle (a)
nós
vós | amados ou amadas
elles (as)
97

6.° Tempo

tableau Tendo ou havendo | eu
tu | sido amado ou amada
elle (s)
nós
vós | sido amados ou amadas
elles (as)

Conjugações dos verbos prepositivos

111. Assim como já veiu declarado, os verbos desta
classe se dividem em duas categorias. Da primeira são
todos os verbos que, permanecendo no seu tempo primordial,
associão-se á conjugação do ter ou haver mediante
a preposição de. Da segunda são todos os verbos que,
permanecendo tambem no mesmo tempo primordial, associão-se
á conjugação de estar mediante a preposição para. Da
assistencia destas duas preposições veiu-lhes o appellido de
prepositivos.

Justifica-se a conveniencia desta classificação nova em
grammatica, pela mui valiosa consideração que, sem embargo
da sua complexidade em palavras, os referidos verbos denuncião
unidade de sentido, mostrando-se absolutamente
refractarios a toda e qualquer decomposição analytica. Pois,
em « Tenho ou hei de ir », como em « Estou para sahir »,
quer ter ou haver, de um lado ; quer estar, de outro lado,
perderão a significação que lhes é propria quando soltos,
para apenas assumir o valor accessorio de feição, assim
que lhes acontece todas as vezes que passão a ser meros
auxiliares (Tenho ou hei amado. — Estou cansado.) Ora, se,
tanto naquelle como neste caso, o seu officio é de auxiliares,
por concorrerem á formação de tempos compostos ; e se se
desenvolvem, de outra parte, junto ao infinitivo colligido,
em um systema completo do conjugação, nada obsta a que
os prepositivos se encostem aos passivos na fileira dos
verbos combinados ; pois a uns o outros assistem os mesmos
predicamontos geraes.

Mas, por isso mesmo que ella é fundada em principio,
tal classificação torna-se summamente proveitosa na pratica,
já porque elimina na analyse difficuldades insolúveis,
já porque fundamenta em syntaxe regras importantes.98

Paradigma
dos prepositivos da primeira categoria

Ter ou Haver de Ir

Indicativo

1.° Tempo

tableau Eu tenho | ou hei
Tu tens | ou has
Elle tem | ou ha | de ir
Nós temos | ou havemos
Vós tendes | ou haveis
Elles têm | ou hão

2.° Tempo

tableau Eu tinha | ou havia
Tu tinhas | ou havias
Elle tinha | ou havia | de ir
Nós tinhamos | ou haviamos
Vós tinheis | ou havieis
Elles tinhão | ou havião

3.° Tempo

tableau Eu tive | ou houve
Tu tiveste | ou houveste
Elle teve | ou houve | de ir
Nós tivemos | ou houvemos
Vós tivestes | ou houvestes
Elles tiverão | ou houverão

5.° Tempo

tableau Eu tivera | ou houvera
Tu tiveras | ou houveras
Elle tivera | ou houvera | de ir
Nós tiveramos | ou houveramos
Vós tivereis | ou houvereis
Elles tiverão | ou houverão

7.° Tempo

tableau Eu terei | ou haverei
Tu terás | ou haverás
Elle terá | ou haverá | de ir
Nós teremos | ou haveremos
Vós tereis | ou havereis
Elles terão | ou haverão
99

Condicional

1.° Tempo

tableau Eu teria | ou haveria
Tu terias | ou haverias
Elle teria | ou haveria | de ir
Nós teriamos | ou haveriamos
Vós terieis | ou haverieis
Elles terião | ou haverião

3.° Tempo

tableau Eu tivera | ou houvera
Tu tiveras | ou houveras
Elle tivera | ou houvera | de ir
Nós tiveramos | ou houveramos
Vós ti vereis | ou houvereis
Elles tiverão | ou houverão

Imperativo

tableau (Falta).

Subjunctivo

1.° Tempo

tableau Eu tenha | ou haja
Tu tenhas | ou hajas
Elle tenha | ou haja | de ir
Nós tenhamos | ou hajamos
Vós tenhais | ou hajais
Elles tenhão | ou hajão

2.° Tempo

tableau Eu tivesse | ou houvesse
Tu tivesses | ou houvesses
Elle tivesse | ou houvesse | de ir
Nós tivessemos | ou houvessemos
Vós tivesseis | ou houvesseis
Elles tivessem | ou houvessem

3.° Tempo

tableau Eu tivera | ou houvera
Tu tiveras | ou houveras
Elle tivera | ou houvera | de ir
Nós tiveramos | ou houveramos
Vós tivereis | ou houvereis
Elles tiverão ou houverão
100

7.° Tempo

tableau Eu tiver | ou houver
Tu tiveres | ou houveres
Elle tiver | ou houver | de ir
Nós tivermos | ou houvermos
Vós tiverdes | ou houverdes
Elles tiverem | ou houverem

Infinitivo

1.° Tempo

tableau Ter ou haver do ir

2.° Tempo

tableau Eu ter | ou haver
Tu teres | ou haveres
Elle ter | ou haver | de ir
Nós termos | ou havermos
Vós terdes | ou haverdes
Elles terem | ou haverem

5.° Tempo

tableau Tendo ou havendo
eu, nós | tu, vós | de ir | elle, elles

Paradigma
dos prepositivos da segunda categoria

Estas para Sahir

Indicativo

1.° Tempo

tableau Eu estou | Nós estamos
Tu estás | para sahir | Vós estais | para sahir
Elle esta | Elles estão

2.° Tempo

tableau Eu estava | Nós estavamos
Tu estavas | para sahir | Vós estaveis | para sahir
Elle estava | Elles estavão
101

3.° Tempo

tableau Eu estive | Nós estivemos
Tu estiveste | para sahir | Vós estivestes | para sahir
Elle esteve | Elles estiverão

5.° Tempo

tableau Eu estivera | Nós estiveramos
Tu estiveras | para sahir | Vós éstivereis | para sahir
Elle estivera | Elles estiverão

7.° Tempo

tableau Eu estarei | Nós estaremos
Tu estarás | para sahir | Vós estareis | para sahir
Elle estará | Elles estarão

Condicional

1.° Tempo

tableau Eu estaria | Nós estaríamos
Tu estarias | para sahir | Vós estarieis | para sahir
Elle estaria | Elles estarião

3.° Tempo

tableau Eu estivera | Nós estiveramos
Tu estiveras | para sahir | Vós estivereis | para sahir
Elle estivera | Elles estiverão

Imperativo

tableau (Falta)

Subjunctivo

1.° Tempo

tableau Eu esteja | Nós estejamos
Tu estejas | para sahir | Vós estejais | para sahir
Elle esteja | Elles estejão

2.° Tempo

tableau Eu estivesse | Nós estivessemos |
Tu estivesses | para sahir | Vós estivesseis | para sahir
Elle estivesse | Elles estivessem
102

3.° Tempo

tableau Eu estivera | Nós estiveramos
Tu estiveras | para sahir | Vós estivereis | para sahir
Elle estivera | Elles estiverão

7.° Tempo

tableau Eu estiver | Nós estivermos
Tu estiveres | para sahir | Vós estiverdes | para sahir
Elle estiver | Elles estiverem

Infinitivo

1.° Tempo

tableau Estar para sahir

2.° Tempo

tableau Eu estar | Nós estarmos
Tu estares | para sahir | Vós estardes | para sahir
Elle estar | Elles estarem

5.° Tempo

tableau Estando | eu, nós
tu, vós
elle, elles | para sahir

Observações. O que, de ambas as tabellas dos prepositivos,
ressumbra como mais digno de reparo, é que, seja
qual fôr o infinitivo entrando na combinação, em caso
algum póde elle abandonar a forma impessoal para assumir
a pessoal. Entretanto, por uma falsa apreciação das relações
syntaxicas, não é raro encontrar, nos escriptores
modernos, flagrantes violações desta regra, porém quasi
exclusivamente relativas aos infinitivos de verbos pronominaes
ou passivos, o mais habitualmente ao emprego da
primeira pessoa do plural.

Portanto, para firmar esta doutrina em um assento
que se preste ulteriormente á dissertação, ahi vão exemplos
ao prepositivos constituidos por verbos pronominaes e
verbos passivos.

1.ª Categoria

tableau Eu tenho | ou hei de me
Tu tens | ou has de te
Elle tem | ou ha de se
Nós temos | ou havemos de nos
Vós tendes | ou haveis de vos
Elles têm | ou hão de se | queixar
103

tableau Eu tonho ou hei | nomeado ou nomeada
Tu tens ou has | de Ser
Elle (a) tem ou ha
Nós temos ou havemos | nomeados ou nomeadas
Vós tendes ou haveis | de Ser
Elles (as) têm ou hão

2.° Categoria

tableau Eu estou | para me
Tu estás | para te
Elle está | para se | Queixar
Nós estamos | para nos
Vós estais | para vos
Elles (as) estão para se

tableau Eu estou
Tu estás | para Ser | nomeado ou nomeada
Elle (a) está
Nós estamos
Vós estais | para Ser | nomeados ou nomeadas
Elles (as) estão

Quanto aos propositivos, em cuja constituição entrão
verbos impessoaes, torna-se obvio que, com elles, não podem
os auxiliares formar liga, senão sob a condição de abdicarem
tambem toda e qualquer personalidade.

1.ª Categoria

tem ou ha de chover ou de ter chovido.

2.ª Categoria

Está para chover.

Conjugação dos verbos gerundiaes

Paradigma :
Estar tratando

Indicativo

1.° Tempo

tableau Eu estou | Nós estamos
Tu estás | tratando | Vós estais | tratando
Elle está | Elles estão
104

2.° Tempo

tableau Eu estava | Nós estavamos
Tu estavas | tratando | Vós estaveis | tratando
Elle estava | Elles estavão

3.° Tempo

tableau Eu estive | Nós estivemos
Tu estiveste | tratando | Vós estivestes | tratando
Elle esteve | Elles estiverão

5.° Tempo

tableau Eu estivera | Nós estiveramos
Tu estiveras | tratando | Vós estivereis | tratando
Elle estivera | Elles estiverão

7.° Tempo

tableau Eu estarei | Nós estaremos
Tu estarás | tratando | Vós estareis | tratando
Elle estará | Elles estarão

Condicional

1.° Tempo

tableau Eu estaria | Nós estaríamos
Tu estarias | tratando | Vós estarieis | tratando
Elle estaria | Elles estarião

3.° Tempo

tableau Eu estivera | Nós estiveramos
Tu estiveras | tratando | Vós estivereis | tratando
Elle estivera | Elles estiverão

Imperativo

tableau (Falta)

Subjunctivo

1.° Tempo

tableau Eu esteja | Nós estejamos
Tu estejas | tratando | Vós estejais | tratando
Elle esteja | Elles estejão
105

2.° Tempo

tableau Eu estivesse | Nós estivessemos
Tu estivesses | tratando | Vós estivesseis | tratando
Elle estivesse | Elles estivessem

3.° Tempo

tableau Eu estivera | Nós estiveramos
Tu estiveras | tratando | Vós estivereis | tratando
Elle estivera | Elles estiverão

7.° Tempo

tableau Eu estiver | Nós estivermos
Tu estiveres | tratando | Vós estiverdes | tratando
Elle estiver | Elles estiverem

Infinitivo

1.° Tempo

tableau Estar tratando

2.° Tempo

tableau Eu estar | Nós estarmos
Tu estares | tratando | Vós estardes | tratando
Elle estar | Elles estarem

5.° Tempo

tableau Estando | eu, nós
tu, vós
elle, elles | tratando

Capitulo II
Do substantivo

112. Substantivo ou nome é uma palavra variavel que
designa os entes e as abstracções.

Ente é tudo o que tem uma existencia real, quer fora
da natureza, como Deos, anjo, alma, demonio, etc., quer
dentro da natureza, como homem, fera, céo, tena, rochedo,
planta, ar, agua
, etc.106

Abstracção é uma mera concepção de nossa intelligencia,
sem existencia real, quer dentro, quer fora da natureza,
como vicio, virtude, sofrimento, alegria, comprimento,
qualidade, numero, quantidade
, etc.

Os entes da natureza occupão um espaço ; as abstracções,
nenhum. Os mesmos entes são accessiveis aos sentidos
pola extensão, pelo peso, pela côr, pelo sabor ou pelo cheiro ;
as abstracções não o são.

113. Os substantivos são proprios ou communs. São
proprios quando designão um ente segregadamente dos da
mesma especie. São communs quando designão um ente
promiscuamente com os da mesma especie, ou quando designão
um ente que não constitue especie, ou emfim quando
designão uma abstracção.

Sendo proprios, inicião-se com uma letra maiuscula ;
sendo communs, com uma minuscula, a não ser que encetem
uma oração, caso em que toda e qualquer primeira
letra deve ser uma maiuscula.

114. São assim substantivos proprios :

1.° O nome do Deos, por ser o do Ente Supremo, o bem
assim todas as denominações que o substituem, como o
Senhorio Omnipotente, o Eterno, a Providencia, etc. ;

2.° Os nomes individuaes de entes sobrenaturaes, como
Gabriel, Raphael, — Lucifer, Belzebuth ; — de divindades ou
sores fabulosos, como Júpiter, Juno, — o Cerbero, a Chimera ;

3.° Os nomes individuaes de homens, com os prenomes
o cognomes que por ventura se lhes accrescentem, como
Adão, Eva, Christovão Colombo, Scipião o Africano ;

4.° Os appellidos individuaes do animaes, como Bucephalo
(cavallo de Alexandre Magno), Apis (boi adorado
pelos Egypcios) ;

5.° As denominações peculiares de monumentos o artefactos,
como o Colyséo (amphitheatro de Roma), a Alhambra
(palacio mourisco om Granada), o Bucentauro (navio do
gala em Veneza), a Durindana (espada legendária de Orlando),
a náo Bartholomeo Dias, a corveta Bahiana ;

6.° As denominações peculiares de localidades geographicas,
como a Europa, o Brazil, Portugal, os Alpes, os
Andes, o Tejo, o Amazonas, o Recôncavo, Pindamonhangaba
 ;

7.° As denominações peculiares de constellações, como
o Cruzeiro, a Virgem, o Sagitario, a Loba ;

8.° Os nomes dos mezes o dos dias festivos, embora
107sejão abstractos, como Janeiro, Fevereiro, — o Natal, a
Paschoa
.

115. São, pelo contrario, substantivos communs :

1.° Os nomes de entes múltiplos de sua especie, como
o anjo, a alma, o homem, a mulher, o animal, a planta, o palacio,
a choupana, o reino, a republica, o rio, a montanha
 ;

2.° Os nomes de entes ou substancias unicas de sua
especie, como o universo, a luz, o céo, a terra, o sol, a lua,
o ar, a agua, o ouro, a prata, o calorico, a electricidade
 ;

3.° Os nomes de abstracções, como a fé, a esperança, a
caridade, a prudencia, a justiça, a fortaleza, a temperança
, —
a não ser, todavia, que, vindo a ser personificadas, passem
para a classe dos substantivos proprios, caso em que assumem
a maiuscula ; assim no seguinte exemplo : « Vião-se
naquelle quadro, sob as figuras de tres santas mulheres, a Fé,
a Esperança e a Caridade
 ; ou — (Variamente pintarão os antigos
o a que élles chamarão
fortuna. — P. Ant. Vieira).

4.° Os nomes proprios empregados por antonomasia,
isto ó, como appellidos comparativos, caso em que conservão,
todavia, a maiuscula originaria. Ex. E’ necessario
que haja
saues liberaes para que haja Davids animosos. (P.
Ant. Vieira). — Vejo dous prelados santos e religiosos, convertidos
hoje em
Platões e Tullios, formando republicas gentilicas.
(Fr. Luiz de Souza).

116. Considerados na sua forma, os substantivos, quer
proprios, quer communs, são simples ou compostos.

São simples quando constão de uma só palavra, assim
em Cesar, Marcos, Maria, — Roma, Constantinopla, Lisboa,
— rei, guarda, arco, pimenta, lapis, turba, prima
.

São compostos quando constão de mais de uma palavra,
assim em Cesar Augusto, Marco Aurélio, Maria Theresa, —
Ouro Preto, Rio de Janeiro, S. Salvador da Bahia de Todos
os Santos, — vice-rei, guarda-mór, arco-iris, hortelãa-pimenta,
lapis-lazuli, turba-multa, prima-co-irmãa
.

117. Dentre os substantivos simples, não poucos ha
que, mediante accrescimos determinados pelo uso, prestão-se
a significar, nos entes designados, proporções, já maiores,
já menores do que as ordinarias : os primeiros cbamão-se
augmentativos ; os segundos, diminutivos. Assim é que,
do homem, mulher, moço, moça, procedem os augmentativos
homemzarrão, mulherona, mocetão, mocetona ; e os diminutivos
homemzinho, mulherzinlia, mocinho, mocinha. Ex. Aman era aquelle
grande valido e primeiro
ministraço de el rei Assuero. (P.
108Ant. Vieira). Os mesmos substantivos proprios não se
negão a semelhantes alterações. Ex. Foi o mestre de campo
Francisco Rebello facilmente igual aos famosos capitães do seu
tempo em valor e em prudencia. Chamavão-lhe, como por antonomasia
,
o Rebellinho, por ser de menos avultada estatura.
(Fr. Franc. de S. Maria).

118. Duas propriedades, porém, a todos os substantivos
inherentes são as de genero e de numero ; pois que
nenhum ha cuja enunciação deixe de juntamente avocar
uma feição de masculino ou de feminino, e outra de singular
ou de plural.

119. Em alguns, todavia, dá-se certa complexidade do
numero bastante notavel pela diversidade de relações syntaxicas
que della dimanão ; porquanto, mesmo sob a manifestação
do singular, implicão uma pluralidade de entes ou
do concepções de igual natureza. Dá-se-lhes a denominação
de collectivos. Desta especie são por exemplo : multidão,
infinidade, tropa, rebanho, enxame, selva
, etc. — Uma multidão
de pensamentos. — Uma infinidade de supposições. — Uma
tropa de cavalleiros. — Um rebanho de carneiros. — Um enxame
de invejosos. — Uma selva de lanças
.

Do genero nos substantivos

120. Embora o substantivo não appareça necessariamente
precedido de um artigo em todas as suas manifestações,
basta, para determinar-lhe praticamente a especie,
que se lhe possa antepor um artigo. Em tal caso será
masculino quando admittir o, os ou um, uns, e feminino
quando admittir a, as ou uma, umas. Ex. O João, o pai,
os Andes, os annaes, um Alexandre, um filho, uns andurriaes
 ;
a Maria, a mãi, as Antilhas, as trevas, uma Cleopatra,
uma filha, umas preces
.

121. Nos substantivos do entes animados cuja distincção
sexual importava á propriedade da linguagem, o
genero ficou determinado pelo sentido, vindo assim a ser
masculinos os nomes de machos, e femininos os de femeas.
Ex. O pai, a mãi ; — o avô, a avó;  ; —- rei, a rainha;  ; — o
leão, a leôa; -
 ; — o cavallo, a egua; -  ; — o carneiro, a ovelha.

122. Desapparecendo, porém, a opportunidade da distincção
sexual, caso que se dá com a maior parte dos
animaes, um unico substantivo, já masculino, já feminino,
abrangeu o macho e a femea de cada especie, e então o
109genero ficou fixado pela terminação. Ex. O elephante, a
girafa; -
 ; — o condor, a aguia; -  ; — o tubarão, a balêa; -  ; — o gafanhoto,
a formiga
.

A estes e semelhantes substantivos costuma-se dar o
distinctivo do epicenos, porque, no caso do tornar-se necessaria
a designação sexual, carece accrescer-lhes um ou
outro dos vocabulos macho, macha, — ou femea (sendo repudiado
o masculino femeo). Ex. Um elephante macho, uma
girafa macha; -
 ; — um condor femea, uma aguia femea.

Observação. Tendo os naturalistas ampliado a distincção
sexual mesmo aos vegetaes, muitos nomes de
plantas vierão assim a ser tambem epicenos. Ex. O cânhamo
macho
ou femea; -  ; — a mangueira macha ou femea.

123. Aos substantivos de entes inanimados ou de abstracções,
o genero veiu-lhes communicado pela terminação
ou pela etymologia.

Etymologia é a declaração da procodencia ou da
constituição complexa do uma palavra.

Pela etymologia é que, por exemplo, estabélece-se a
origem latina dos vocabulos Deos, sol, terra, agua, porquanto
são em latim Deus, sol, terra, aqua. Do mesmo modo
demonstra-se a origem e constituição da palavra etymologia,
porquanto prócede dos dous vocabulos hellenicos
etymos (verdadeira), logos (palavra).

Sendo assim um processo de indagação essencialmente
applicavel a cada palavra em particular, a etymologia não
é do dominio da Grammatica, sciencia de generalisação :
pertence exclusivamento á lexicographia, que é a arte de
compôr os diccionarios. Ahi é que a etymologia deve ser
consultada, quer para perscrutar a significação mais genuína
das expressões, quer para verificar a propriedade
das letras e signaes com que se devão escrever. Quanto
aos dados que ella fornece em referencia ao caso vertente,
reduzem-se ás duas seguintes observações :

1.° Quando um substantivo não tira o seu genero do
sentido ou da terminação, tira-o da etymologia. Sendo
assim, por exemplo, os substantivos chá e pó masculinos
em virtude de sua terminação, como logo se verá, e
, que com elles têm toda a analogia, achão-se femininos
pela unica razão do provirem do duas palavras que em
latim tinhão este genero : pala, mola ;

2.° Faltando ao portugucz o genero neutro do grego o
do latim, o masculino é que foi geralmente incumbido de
supprí-lo nas palavras d’alli extrahidas. Por isso são maculinos,
110por exemplo, os substantivos néctar e dogma, que,
tanto em latim como em grego, erão neutros.

O que, portanto, destas considerações ressumbra como
summario, é que o genero dos substantivos fica regularmente
fixado pelo sentido ou pela terminação, e irregularmente
pela etymologia.

124. As terminações que, por avultarem em quantidade
nos substantivos, podem ser tidas como as normaes, são o
e a. Todos os substantivos da primeira são masculinos ;
assim : corpo. a maxima parte dos da segunda são femininos
assim : alma. Os exemplos desta ultima classe são
os que em latim ou em grego erão masculinos ou neutros ;
assim : anagramma, anáthema, cometa, dia, diaphragma, dilemma,
diorama, dogma, drama, gramma, lemma, mappa,
panorama, planeta, programma, sophisma, systhema, thema,
theorema
, e mais analogos.

125. São outrosim masculinos em virtude de sua terminação
os substantivos que acabão :

1.° Em á, é, í, ó, ú, y, como cará, rapé, siri, cipó, bahú
tilbury
, com excepção de pá, — chaminé, fé, libré, maré, ralé,
ré, sé, — avó, enxó, filhó, ilhó, mó
 ;

2.° Em ai, áo, éo, eu, oi, como ai, páo, chapéo, breu,
comboi
 ;

3.° Em al, el, il, ol, ul, como fanal, papel, funil, lençol,
paul
, com excepção de cal, capital (cidade principal) e
vestal ;

4.° Em em, im, om, um, como bem, fim, som, jejum, com
excepção de adem, nuvem, ordem e da maior parte dos
substantivos em gem (coragem, homenagem, imagem, linguagem,
linhagem, origem, viagem
, etc.)j

5.° Em an, en, in, on, como iman, germen, gruin, colon ;

6.° Em ar, er, ir, or, ur, como altar, prazer, porvir, calor,
catur
, com excepção de colher, — côr, dôr, flôr ;

7.° Em az, ez, iz, oz, uz, como ananaz, arnez, nariz,
arroz, arcabuz
, com excepção do paz, — fez, rez, tez, vez, —
cerviz, cicatriz, codorniz, matriz, perdiz, raiz, sobrepelliz
, — foz,
noz, voz, — cruz, luz
 ;

8.° Em is, us, como lápis, virus, com excepção do bilis,
cutis e oásis
.

9.° Em ão quando augmentativos, como caixão (de
caixa), casarão (de casa), portão (de porta), etc. Quanto
aos outros substantivos em ao, são masculinos ou femininos
111conforme a etymologia ; assim o coração (do lat. cor, neutro),
a multidão (do lat. multitudo, feminino).

Os substantivos que acabão em e, são igualmente masculinos
ou femininos conforme a etymologia ; assim o carcere
(do lat. carcer, masculino), a virtude (do lat. virtus,
feminino).

126. São outrosim femininos em virtude de sua terminação
os substantivos que acabão :

Em ãa, áu, ê, ei, como lãa, náu, mercê, lei.

O substantivo tribu encontra-se, já como masculino, já
como feminino ; parece, todavia, que este ultimo genero
deveria prevalecer. Ex.

Não querendo Roboão condescender no que tão justamente
pedião os povos
, dos doze tribus de que constava todo o reino,
os dez lhe negarão obediência. (P. Ant. Vieira).

Mas, como Roboão não désse ouvidos a uma tão justificada
queixa, rebellados, os mesmos vassallos lhe negarão obediência,
e, de doze
tribus de que constava o reino, perdeu em um
dia
as dez, as quaes, nem nos dias do mesmo Roboão, nem
nos de todos os seus descendentes se unirão ou sujeitárão á
mesma coroa
. (P. Ant. Vieira).

127. Todavia um certo numero de substantivos, por
serem dotados de accepções bastante diversas, mudão de
genero, mudando de accepção : são os ambiguos. Assim é
que conjuge e consorte vêm a ser, já masculinos, já femininos,
conforme designão o marido ou a mulher. — o caixa
é, n’uma casa de negocio, o empregado responsável pela
caixa. — Um capital
é uma quantia de dinheiro posta a
premio, ao passo que uma capital é a metropole de uma
nação, ou a principal cidade de uma provincia. — o lente
ensina em uma academia, e a lente é um mero vidro de
augmentar. — o lingua é um interprete encarregado de
verter de prompto o que se dizem dous interlocutores que
não fallão a mesma lingua. — o corneta, o flauta, o trombeta
são outros tantos tocadores dos instrumentos chamados a
trombeta, a flauta, a corneta
. Etc., etc.

Do numero dos substantivos

128. a formação do plural nos substantivos é regular
quando se effectua pelo simples accrescimo de s á terminação
do singular ; e irregular quando se effectua de outro
qualquer modo.112

129. Com excepção dos substantivos que acabão pelo
diphthongo Ão, a formação do plural é regular em todos
aquelles cuja ultima letra é uma vogal ou a consoante n.
Ex. Rosa, rosas ; — bote, botes ; — siri, siris ; — vento, ventos;
- ;
tribu, tribus ; — tilbury, tilburys ; — gruin, gruins. Todavia
canon (lei ecclesiastica) faz cânones, e ademan, ademanes ;

130. Nos demais substantivos, a formação do plural
effectua-se como se segue :

1.° Os terminados em s não mudão passando para o
plural. Ex. O pires, os pires ; o lapis, os lapis. Todavia
deos (na accepção gentilica) faz deoses, — simples (herva medicinal),
simplices, — e gurupés, gurupeses ;

2.° Os terminados em r ou z tomão mais es. Ex. O
licor, os licores ; o nariz, os narizes
 ;

3.° Os terminados em m trocão esta letra por ns. Ex.
O bem, os bens ; o jardim, os jardins ;

4.° Os terminados em al, ol, ul trocão L por es. Ex.
O canal, os canaes ; o lençol, os lençóes ; o paul, os paúes.
Todavia cônsul, proconsul, vice-consul, mal e real (unidade
monetaria) fazem cônsules, proconsules, vice-consules, males e
reis ;

5.° Os terminados em el trocão esta terminação pela
de eis. Ex. O papel, os papeis ;

6.° Os terminados em il trocão esta terminação pela
de ís. Ex. O funil, os funís ;

7.° Os terminados em x, que são apenas calix (tambem
caliz), appendix (tambem appendice) e index (tambem indice),
fazem calices, appendices e índices ;

8.° Os terminados em Ão, seja qual for o seu genero,
trocão geralmente esta terminação pela de ões. Ex. O coração,
os corações ; a nação, as nações
.

Alguns todavia, formão o seu plural regularmente em
Ãos, e outros irregularmente em ães.

Em ãos / Em ães :

tableau acórdão, | acórdãos. / allemão, | allemães.
aldeão, | aldeãos. / alão, | alães.
anão, | anãos. / cão, | cães.
ancião, | anciãos. / capellão, | capellães.
benção, | bênçãos. / capitão, | capitães.
castellão, | castellãos. / catalão, | catalães.
christão, | christãos. / charlatão, | charlatães.
cidadão, | cidadãos. / deão, | deães.
113

tableau cortezão, | cortezãos. / ermitão, | ermitães.
grão, | grãos. / escrivão, | escrivães.
irmão, | irmãos. / guardião, | guardiães.
mão, | mãos. / massapão, | massapães.
órgão, | órgãos. / pão, | pães.
órphão, | órphãos. / rufião, | rufiães.
pagão, | pagãos. / sachristão, | sachristães.
rábão, | rábãos. / soldão, | soldães.
sótão, | sótãos. / tabellião, | tabelliães.
vão, | vãos. / truão, | truães.
villão, | villãos. / volcão, | volcães
zangão, | zangãos. / ou volcões

131. Em alguns substantivos, o uso ; em outros a sinificação
tolhe-lhes a faculdade de variar em numero.
ssim é que não passão do singular afan, dó, esmero, estima,
ganancia, mocidade, socego
, etc. como não revertem do
plural alviçaras, ambages, annaes, entranhas, exequias, trevas,
viveres
, etc.

132. Outros substantivos, emfim, têm, no plural, duas
accepções, uma das quaes não se compadece com o singular ;
assim arma, prenda, dote, etc.

Exemplos :

« Para um homem destemido, qualquer arma serve, —
quaesquer armas servem. — As armas do Brazil são uma
esphera armillar ; as do Portugal, as quinas. »

« O retrato do pai é a melhor prenda, — os retratos
dos pais são as melhores prendas para um bom filho. —
Para o goloso, porém, nenhumas prendas prevalecem sobre
as de um bom cozinheiro. »

« Quanta moça por ahi anda que, tendo dinheiro, mas
nenhuma educação, casar-se-ha graças ao dote, mas não aos
dotes. »

Capitulo III
Do artigo

133. Artigo é uma palavra variavel que, antepondo-se
essencialmente aos substantivos, e accidentalmente a pronomes,
114ou mesmo a verbos no infinitivo, torna-lhes o sentido
mais preciso.

134. Os artigos são só dous :

O definito : o, a, os, as ;

O indefinito : um, uma, uns, umas.

135. Que o artigo vai anteposto a substantivos, a
pronomes, e até a verbos no infinitivo, demonstra-se pelos
tres seguintes exemplos :

Que meio se póde dar para um homem, em toda a sua
vida ter o pão certo ? (P. Ant. Vieira).

Quem póde o mais, póde o menos. (Aphorismo).

A natureza fez o comer para o viver ; e a gula fez o
comer muito para o viver pouco. (P. Ant. Vieira).

136. Que a propriedade essencial do artigo é a de
conferir maior precisão ao sentido, deprehende-se facilmente
desta exposição comparativa : em comer o pão, ha uma designação
geral ; em comer um pão, ha uma designação
parcial ; emfim, em comer pão, já não ha senão uma desisignação
de substancia, mas nenhuma de quantidade, quer
absoluta, quer relativa.

137. Porém muito mais apreciavel é, na pratica, a faculdade
inherente a ambos os artigos de previamente determinar,
por suas formas caracteristicas, o genero e numero
das palavras a que pe prendera pela concordancia. Pois o
e um com a e uma assignalão com toda a clareza, no singular,.
os generos que os e uns com as e umas denuncião
no plural, obviando, deste modo, a numerosos equivocos.

Observação. Prescinde-se assaz geralmente do artigo
indefinito no plural (uns, umas), a não ser que o substantivo
seja falto de singular, como neste exemplo : Caminhava
a turca mettida em
umas ondas douradas por dentro e por
fóra
. (Pantaleão de Aveiro). — Não raras vezes fica mero
substitutivo do adjectivo indefinito algum. Ex. Ponde os
olhos em uma açucena, e vede a sua brancura, e do modo que
o talo vestido de
umas pequenas folhas sóbe ao alto, que
depois vem rematar-se, na summidade, em uma feição de taça
ou cópo, dentro do qual tem
uns grãos como de ouro, de tal
maneira cercados e defendidos, que de ninguem podem receber
damno
. (Fr. Luiz de Granada).115

Da contracção dos artigos

138. a contracção designa em Grammatica dous accidentes
de linguagem, que são ás vezes facultativos, outras
vezes obrigatorios. O primeiro consiste no encurtamento
de uma palavra, assim em hemos e mór por havemos e
maior ; o segundo na juncção de duas palavras em uma só,
em voce e comnosco por Vossa Mercê e com nós.

Ambos os artigos são sujeitos a contracções da ultima
especie, porém não em casos absolutamente identicos.

139. O artigo definito, quando regido das preposições
a, de, em e por, com ellas se contrahe dos seguintes
modos :

tableau ao por a o (ao vento) | á por a a (á chuva).
aos por a os (aos ventos). | ás por a as (as chuvas).
do por de o (do vento). | da por de a (da chuva).
dos por de os (dos ventos). | das por de as (das chuvas).
no por em o (no vento). | na por em a (na chuva).
nos por em os (nos ventos). | nas por em as (nas chuvas)
pelo por per o (pelo vento). | pela por per a (pela chuva).
pelos por per os (pelos ventos). | pelas por per as (pelas chuvas).

1.ª Observação. A contracção no, na, nós, nas é facultativa ;
pois, tanto se póde. dizer : Nos primeiros dias do
mez
…, como em os primeiros dias do mez… As demais são
obrigatorias.

2.ª Observação. A contracção pelo, pela, pelos, pelas,
originou-se da circumstancia de empregarem os antigos indifferentemente
as preposições per e por, o que os levava
a usar tambem indifferentemente da contracção referida,
como da de polo, pola, polos, polas. Ex. Não hei medo,
116mas receio, e não tanto pola sua pelle, como pola minha.
(Vasconcellos. Da com. Euphrosina).

Succedendo, porém, que cahisse per em desuso como
substitutivo de por, nem por isso deixou de sobreestar a
sua contracção. Mas, por uma compensação singular, permanecendo
por, desappareceu a sua contracção (polo, pola,
polos, polas
).

3.ª Observação. Dentre os erros de orthographia que
mais a miudo occorrem, sobreleva-se o que diz respeito ao
emprego do accento sobre a ou as ; porquanto encontra-se
com a mesma frequencia indevidamente apposto, como indevidamente
omisso. Entretanto o processo da substituição
resolve tão azada quão expeditamente o caso. Cumpre,
porém, para que a solução seja completa, antecipar, ainda
que perfunctoriamente, sobre ulteriores desenvolvimentos.

O vocabulo a tem ingresso em quatro classes de palavras :
é preposição, artigo, pronome pessoal, ou pronome
demonstrativo
. O vocabulo as só tem ingresso nas tres
ultimas.

Porém a condição que unicamente legitima nelles o
emprego do accento, é a de haver contracção. Ora este
caso só se dá quando ambos os vocabulos, sendo artigos ou
pronomes demonstrativos, cahem sob a regencia da preposição
a, que, para si mesma, repelle o accento, contrariamente
ao que se pratica em francez. Como pronomes
pessoaes, nunca podem a e as formar contracção.

Sendo assim a apposição do accento limitada á unica
circumstancia em que á e ás correspondem exactamente a
seus congoneres masculinos ao e aos, percebe-se que, em
qualquer caso duvidoso, basta mentalmente substituir, por
um masculino, o substantivo feminino do texto, para verificar
se avoca simplesmente o ou os, ou se avoca a contracção
ao ou aos, em que cabe o accento. Ex. Quão bem
comparou o propheta Isaias
as traças dos mãos á armação
de teias de aranha ! (Fr. João de Ceuta). — por substituição :
Quão bem comparou o propheta Isaias os inventos
do » máos ao laço de teias de aranha ! (… as traçasá
armação).

Outro meio, igualmente certo o expedito, consiste em
associar um substantivo masculino, por via de uma conjugação
copulativa (e, nem, ou), ao feminino que origina a
duvida ; porque a identidade de relação lhes communica ou
tira igualmente a ambos a contracção. Ex. a lepra pegase
aos vestidos e ás casas. (P. Man. Bernardes). — por
associação
 : a lepra e os miasmas pegão-se aos vestidos
e ás casas. - Ás galas de Salomão, o mesmo Christo lhes
117chamou gloria. (P. Ant. Vieira). — por associação : Ás
galas e aos esplendores de Salomão, …

O mesmo processo dá a conhecer que, no seguinte excerpto,
equivocou-se o revisor do livro na collocação de
um accento : Outros dirão que, para ter muito, o melhor remedio
é tê-lo, guardar, poupar, não gastar, morrer de fome, e
matar Á fome
. (P. Ant. Vieira). Pois o sentido em que o
P. Ant. Vieira ahi usou da locução matar a fome equivale
ao de matar a ferro, a fogo, a cutiladas, a pedradas, etc.,
em que a se ostenta como uma preposição. Reproduz-se a
mesma equivocação nest´outro excerpto : Um é affeiçoado á
caça ; e, quando os cães andão luzidios e anafados, ver-lhe-heis
os criados pallidos, e mortos Á fome
. (P. Ant. Vieira). —
(Correctamente : mortos a fome).

140. O artigo indefinito só se contrahe com a preposição
em :

tableau num por em um (num caso). | numa por em uma (numa casa).
nuns por em uns (nuns casos). | numas por em umas (numas casas).

Porém a mesma contracção é outra voz meramente facultativa ;
pois igualmente licito é dizer em um caso, como
num caso ; — em uma casa, como numa casa.

Observação. Embora ninguem cuide em assignalar
pelo apostropho a contracção correlativa (n’o, n’a, n’os,
n’as
), nem tão pouco nenhuma das outras que se formão
com o artigo definito, muitos grammaticos não hesitão em
adoptar a intervenção do apostropho em relação ao indefinito,
escrevendo n’um, n’uma, n´uns, n’umas. Ora, não se
baseando tal discrepancia em motivo algum plausivel, parece
ser mais acertado sujeitar todas as contracções desta
especie a uma só e mesma feição orthographica ; pois a
conformidade, quando iguaes são as circumstancias, é um
dos requisitos da logica.

Capitulo IV
Do adjectivo

141. Adjectivo é uma palavra variavel que se accrescenta
mediata ou immediatamente aos substantivos, aos
118pronomes, e até aos verbos no infinitivo, para os qualificar
ou determinar. Ex. a maior pensão com que Deos creou o
homem é o comer. Lançai os olhos por
todo o mundo, e vereis
que
todo elle vem a resolver-se em buscar pão para a bocca.
(P. Ant. Vieira). — O pregador que não possuir um artificioso
dizer
, que espera conseguir ? (Fr. João Pacheco).

142. Assim como o artigo, o adjectivo não tem de
per si genero nem numero, mas toma um e outro á palavra
ou palavras a que se prende pelo sentido. Ex. Tirai o
pensamento dos homens, e lançai-o por
todas as outras cousas
deste mundo, achareis que todas ellas estão servindo a este
fim ou pensão do sustento humano. (P. Ant. Vieira). —
Vêdes vós todo aquelle bulir ? Vêdes todo aquelle andar ?

e, que se segue deste tão desordenado querer ? (P. Ant.
Vieira).

143. Actuando, porém, diversamente sobre as palavras,
os adjectivos dividem-se em duas especies : os determinativos
e os qualificativos.

Os determinativos denuncião uma idéa de numeração,
de situação, de pertença, ou de quantidade indecisa. Ex. Um,
dous, tres
… — Este, esse, aquelle. — Meu, teu seu. — Algum,
muito, pouco, todo
.

Os qualificativos despertão absoluta ou relativamento
uma idéa de agrado ou de desagrado, conforme enuncião
uma qualidade ou um defeito, quer moral, quer physico.
Ex. Bom, máo ; — formoso, feio ; — grande, pequeno ; — amarello,
roxo ; — respeitável, desprezivel ; — fresco, quente
 ; —
util, inútil.

144. Discriminão-se theoricamente os primeiros dos
segundos por isso que, vindo uns e outros a actuar simultaneamente
sobre uma mesma palavra, os determinativos
vão necessariamente, até em numero crescido, antepostos
aos qualificativos. Ex. dez valentes soldados. — Nossos dez
valentes soldados. — estes nossos dez valentes soldados. —
todos estes nossos dez valentes soldados. — (Não, porém :
Valentes dez soldados, etc.).

Achando-se, outrosim, todos os determinativos ahi
adiante expressameuto declarados, ter-se-hão como qualificativos
os demais.

145. Uns e outros são, aliás, simples quando, como os
anteriormente relatados, constão de uma só palavra ; e
compostos quando, como os seguintes, constão de mais de
uma : outro tanto, todo e qualquer, — surdo-mudo, auri-verde,
recem-maduro
, etc.119

Dos adjectivos determinativos

146. Os adjectivos determinativos, assim chamados
por uma frisante analogia de funcção com os artigos, dividem-se,
conforme a sua respectiva significação em numeraes,
demonstrativos, possessivos e indefinitos
.

1. Adjectivos numeraes

147. Adjectivo numeral é todo aquelle que enuncia ou
recorda um numero certo. Abrange tres classes principaes :
os cardeaes, os ordinaes e os multiplicativos.

148. Os cardeaes são : um, dous, tres, quatro, cinco,
seis, sete, oito, nove, dez
… até o indefinito ; porquanto não é
concebível numero algum ao qual se não possa accrescer
mais um. Chamão-se cardeaes de uma palavra etymologicamente
latina que, equivalendo a principaes, os denuncia
assim como os vocabulos donde se originão todos os outros
numeraes.

149. Os cardeaes são simples quando constão do uma
só palavra, ainda que nesta, constituída por contracção,
sejão mui perceptíveis os elementos de sua formação, assim
em dezaseis, dezasete, dezoito e dezanove. São compostos
quando, constando de mais do uma palavra, apresentão
uma quantidade agrupada, assim em vinte e um, trinta e
dous, quarenta e tres, quinhentos e sessenta e nove mil oitocentos
e cincoenta e seis
, etc.

150. Os unicos cardeaes variaveis em genero (pois
que, como ó obvio, ficão inabalaveis em numero) são um
(uma) o dous (duas), com os múltiplos de cem (duzentos,
trezentos, quatrocentos, quinhentos, seiscentos, setecentos,
oitocentos, novecentos
).

1.ª Observação. Um (uma) é tido como adjectivo numeral
cardeal quando, compadecendo-se com a adjuncção
de só ou unico, avoca intencionalmente uma idéa de numeração
precisa, e tem, por plural, dous, tres ou qualquer
outro cardeal. Ex. Digo que menos mal será um ladrão que
dous. (P. Ant. Vieira). — (… um só, um unico ladrão). —
Se quatro imperios com uma se desunião se arruinão e acabão,
um reino, e não muito grande, dividido em muitas desuniões,
que se póde temer delle ?
(P. Ant. Vieira). — E’ tido
como artigo indefinito quando, implicando o sentido do
qualquer, tem, por plural, uns, umas. Ex. Se víssemos que
um mercante de Lisboa, embarcando-se a commerciar, para
120Angola carregasse de marfim, para a índia, de canella, e para
o Brazil, de assucar, não o teriamos por louco?
(P. Ant.
"Vieira). — (Se víssemos que uns mercantes…).

2.ª Observação. Não obstante entrarem na computação
por cardeaes, os vocabulos um milhão, um conto, um bilhão,
etc. são, assim como uma duzia, um cento, um milheiro, etc.,
meros substantivos, já porque admittem o artigo, já porque
são variaveis em numero como a generalidade dos substantivos.

151. Os ordinaes são : primeiro, segundo, terceiro, quarto,
quinto, sexto, setimo, oitavo, nono, décimo, undecimo, duodecimo

até centesimo nonagésimo nono (199°) ; porquanto, deixando
de haver dahi em diante expressões adequadas,
forçoso é soccorrer-se á numeração por cardeaes. Ex. Leia-se
desde a pagina
centesima nonagesima nona até à pagina
duzentos e um. — Chamão-se aliás, ordinaes por designarem
um lugar determinado em uma ordem ou serie numérica.

152. Assim como os cardeaes, os ordinaes são simples
quando constão de uma só palavra (primeiro, vigésimo, centesimo),
e compostos quando constão de mais de uma (décimo
terceiro, trigesimo quinto, centesimo quinquagesímo quarto
).
Dotados, porém, da variabilidade, não só em genero, como
tambem em numero, assemelhão-se, nas suas relações syntaxicas,
aos adjectivos qualificativos.

Observação. Com a substituição de meio a segundo,
e de terço a terceiro, os ordinaes, quando simples, constituem
as expressões idoneas para a enunciação das fracções ou
quebrados. Ex. 1/2 kilog. (meio kilogramma) ; — 2/3 lb (duas
terças partes de uma libra) ; — 8/10 (oito décimos) ; — 16/20
(dezaseis vigésimos). — Sendo, porém, compostos, força e
supprí-los pelos cardeaes correspondentes, com o accrescimo
avos. Ex. 15/22 (quinze vinte e dousavos) ; — 33/44 (trinta
e tres quarenta e quatravos).

153. Os multiplicativos são : singelo, duplo, triplo,
quádruplo, quintuplo, sextuplo, septuplo, octuplo, nonuplo, decuplo

e centuplo, todos variaveis em genero e numero. Ex. a quantidade
decupla de oito é oitenta (8X10=80). Tirão o seu
appellido da circumstancia de constituirem os multiplicadores
de numeros pouco complexos.

Observação. Os quatro primeiros multiplicativos ficão
frequentemente substituidos por simples, duplice, tríplice e
quadruplice. Ex. As pétalas daquella flor são simples ou singelas.
Mas, fóra de sua accepção numerativa, simples e
121singelo recahem na classe dos qualificativos. Ex. Um vestido
simples. Uma alma singela.

Quanto ás expressões numéricas dobro e tresdobro, são
meros substantivos. Ex. O dobro de seis equivale ao tresdobro
de quatro, isto é : a doze, (6x2 = 4x3 = 12).

154. Em accrescentamento a estas tres classes de numeraes,
ainda cumpre mencionar os adjectivos de senilidade,
que designão por decennios, a idade das pessoas desde cincoenta
até cem annos (quinquagenario, sexagenário, septuagenário,
octogenário, nonagerio e centenário
) ; — e os distributivos
cada e ambos (ambas), com os adventicios binário,
trinario, quaternário e quinario ; — primário, secundário;
-
 ; —
uno, trino, etc.

2. Adjectivos demonstrativos

155. Demonstrativos são os adjectivos cuja significação
implica um aceno. São tres simples, e tres compostos, todos
caracteristicos de genero e numero.

Demonstrativos simples

tableau Singular | Plural
Este, esta | Estes, estas
Esse, essa | Esses, essas
Aquelle, aquella | Aquelles, aquellas.

Demonstrativos compostos

tableau Singular | Plural
Est’outro, est’outra | Est’outros, est’outras
Est’outro, est’outra | Est’outros, est’outras
Aquell’outro, aquell’outra | Aquell’outros, aquell’outras

156. Uns e outros, do mesmo modo e nas mesmas
circumstancias que os artigos, contrahem-se com as preposições
de e em.

tableau Deste, a, es, as | Neste, a, es, as
Desse, a, es, as | Nesse, a, es, as
Daquelle, a, es, as | Naquelle, a, es, as

tableau Dest’outro… | Nest’outro…
Dess’outro… | Ness’outro…
Daquell’outro… | Naquell’outro…

Porém, assim como nos artigos, facultativa é a contracção
com em (em este... em esse... em aquelle…).122

157. Todavia os demonstrativos aquelle o aquell’outro
ficão sujeitos a mais uma contracção, a qual, por se constituir
com a preposição a, só se manifesta pela superposição
do accento agudo ao a.

tableau Singular | Plural
Áquelle (por a aquelle) | Áquelles (por à aquelles)
Áquella (por a aquella) | Áquellas (por a aquellas)
Áquell’outro, a, os, as (por a aquell’outro, a, os, as).

Dando-se o caso de alguma duvida sobre se se deve
applicar ou omittir o accento, basta, para de prompto resolvê-la,
substituir aquelle por este ou esse ; porquanto não
póde então o sentido da oração deixar de avocar expressamente,
ou de excluir a preposição contractiva. Ex. Vêdes
aquelles livros e aquellas estampas : pois hão de se dar
em premio
aquelle menino ou aquella menina que mais
correctamente escrever o dictado
. — (Vêdes estes livros e estas
estampas : pois hão de se dar a esse menino ou a essa menina
que
…).

Outro exemplo. E a este Judas, e aquelle Pedro
será justo, Senhor, que vós trateis com a mesma igualdade?

(Iris classico, pag. 225). — (… a esse Pedro…).

3. Adjectivos possessivos

158. Possessivos são os adjectivos que, simultaneamente
com uma idéa de pertença, aventão uma de pessoa,
por virem derivados dos pronomes me, te, se, nos, vos, se,
sendo, aliás, todos caracteristicos de genero e numero.

tableau Singular | Plural
Meu, minha | Meus, minhas
Teu, tua | Teus, tuas
Sou, sua | Seus, suas.
Nosso, nossa | Nossos, nossas
Vosso, vossa | Vossos, vossas
Seu, sua | Seus suas.

4. Adjectivos indefinitos

159. Indefinitos são os adjectivos que, por enunciarem
uma quantidade geralmente indecisa, ou até negativa, não
se deixão rubricar com mais precisão. Pela maior parte,
são caracteristicos de numero e genero, como muito, muita,
muitos, muitas
. Alguns só o são do numero, como qual,
123quaes. Outros, emfim, como que, não o são, nem de numero,
nem de genero.

Tabella dos adjectivos indefinitos

tableau singular | plural
Masc. | Fem. | Masc. | Fem.
1. | Algum, | alguma, | alguns, | algumas.
2. | Bastante, | bastante, | bastantes, | bastantes.
3. | Certo, | certa, | certos, | certas.
4. | Cujo, | cuja, | cujos, | cujas.
5. | … | … | demais, | demais.
6. | Fulano, | fulana, | fulanos, | fulanas.
7. | Mais, | mais, | mais, | mais.
8. | Menos, | menos, | menos, | menos.
9. | Mesmo, | mesma, | mesmos, | mesmas.
10. | Muito, | muita, | muitos, | muitas.
11. | Nenhum, | nenhuma, | nenhuns, | nenhumas.
12. | Outro, | outra, | outros, | outras.
13. | Pouco, | pouca, | poucos, | poucas.
14. | Qual, | qual, | quaes, | quaes.
15. | Qualquer, | qualquer, | quaesquer, | quaesquer.
16. | Quanto, | quanta, | quantos, | quantas.
17. | Que, | que, | que, | que.
18. | Quejando, | quejanda, | quejandos, | quejandas.
19. | Sicrano, | sicrana, | sicranos, | sicranas.
20. | Só, | só, | sós, | sós.
21. | Tal, | tal, | taes, | taes.
22. | Tanto, | tanta, | tantos, | tantas.
23. | Todo, | toda, | todos, | todas.

Da combinação de alguns destes adjectivos entre si,
ou com outros determinativos formão-se adjectivos indefinitos
compostos, taes como outro tanto, qual um, qual outro,
taes e quejandos, todo e qualquer, um e outro
, etc. Ex. Se
bem olhamos a differença das vozes e harmonias que o rouxinol
faz com a sua garganta, que Plinio por
outra tanta
diversidade
de palavras explicou, acharemos que todas as
proporções da musica estão encerradas no papo de um tão pequeno
animal como é este passarinho
. (João de Barros).

Observações
sobre os adjectivos determinativos

160. O que formalmente caracterisa os determinativos
como adjectivos, é a sua referencia, na qualidade de apposições
124ou de predicados, a um substantivo, pronome ou infinitivo
da mesma proposição. Porém, logo que, desligados
de uma ou outra destas tres especies de palavras, constituem
do per si mesmos um sujeito ou um complemento, ou ainda
quando, constituindo um predicado, apparecem precedidos
de um artigo, signal é que deixárão de ser adjectivos, e
passárão a pronomes.

Exceptuão-se tão sómente, dentre os numeraes os que
não são cardeaes ; porque, conchegados por feitura e indole
aos qualificativos, com estes transmigrão para a classe dos
substantivos quando deixão de ser adjectivos.

A conveniencia de discriminar tão terminantemente os
casos em que uma mesma palavra passa de uma classe
para outra, não é nenhuma superfluidade apparatosa de
subtilezas analyticas ; é sim uma consequencia indeclinavel
da incumbência que tem a Grammatica de explicar,
pelos meios mais consentaneos com a logica, anomalias ou
divergencias que, sem taes distincções, ficarião incomprehensiveis.
Haja vista, como prova desta allegação, o que
se deduz de um exame comparativo instituido sobre os
dous seguintes trechos.

« E’ certo que todos desejais o descanço ; é certo que
todos o buscais com grande trabalho. » (P. Ant. Vieira).

« sejão ouvidos nesta causa todos, pois toca a todos.
Que é que dizem ?
todos repugnão ; todos reclamão ; todos
se alterão ; todos se unem e conjurão em odio e ruina do
inimigo
. » (P. Ant. Vieira).

A anomalia que ahi resalta á primeira intuição, é que,
sob a regencia do mesmo vocabulo todos, os verbos do
primeiro excerpto estão na segunda pessoa do plural, e os
o segundo na terceira, o que não póde deixar de parecer
inconciliavel.

Entretanto, se se attende que, por ser geralmente facultativa
a enunciação dos pronomes eu e tu, nós e vós,
este ultimo, embora omisso, é o sujeito effectivo dos verbos
do primeiro exemplo (e’ certo que todos [vos] desejais…),
basta ver em todos uma mera apposição de vós para que
o espirito não relucte em considera-lo ahi como adjectivo
indefinito
. Vindo, porém, todos, no segundo exemplo, a
constituir de per si mesmo o sujeito dos verbos em que
actúa, força é attribuir-lhe o caracter de uma das tres especies
de palavras a que só compete formular sujeitos : o
substantivo, o pronome e o infinitivo ; e tudo concorre
para que a unica qualificação que desta vez lhe caiba, seja
a de pronome indefinito.125

161. Sendo assim demonstrado que, nas palavras,
menos é a forma do que a funcção o que serve a determinar-lhes
a natureza, esta indicação sobreleva-ee em importancia
para com os indefinitos; porquanto, não se
imitando muitos dentre elles a ser adjectivos ou pronomes,
mas tendo ainda ingresso em outras classes, e nomeadamente
na do adverbio, só a funcção que eventualmente
exercem, póde regular a sua classificação. Ora, como, em
alguns, a circumstancia do não serem caracteristicos, nem
de genero, nem de numero, augmenta-lhes as causas de
ambiguidade, o “processo da substituição apresenta-se como o
unico proprio para deslindar todas as incertezas.

Assim é que um indefinito desta ultima especie será
tido como adjectivo quando supprivel por um adjectivo,
como pronome quando supprivel por um substantivo, como
adverbio quando supprivel por um adverbio ou um complemento
indirecto, etc.

Algum. nenhum

162. algum e nenhum são adjectivos ou pronomes.
(adj.) Sabeis porque vos querem mal vossos inimigos ?
Ordinariamente é porque vêm em vós
algum bem que elles
quizerão ter, e lhes falta
. (P. Ant. Vieira).

Nenhuns serviços paga Sua Majestade hoje com mais
liberal mão que os do Brazil
. (P. Ant. Vieira).

(Pron.) alguns cuidão que estes são os meios de ter
pão, mas enganão-se
. (P. Ant. Vieira).

Se Deos vos fez estas mercês, fazei pouco caso das outras,
que
nenhuma val o que custa. (P. Ant. Vieira).

Deste modo, com todos estou bem, nenhum me faz mal.
(Lobo).

Apparecendo posposto ao substantivo, algum toma o
sentido negativo do nenhum.

Ex. Em nenhuma flôr podem os maiores sabios do mundo
emendar
cousa alguma. (P. Man. Bernardes). — (Em flôr
alguma… — cousa nenhuma
).

algum tanto constitue uma locução adverbial. Ex.
Annibal teve a barba sobre loura, e algum tanto crespa. (Fr.
Bernardo de Brito). — (… e levemente crespa).

El rei D. Duarte tinha os olhos algum tanto molles.
(Duarte Nunes de Leão). — (… levemente molles).

nenhum e nem um, embora de constituição apparentemente
identica, não são todavia exactamente equivalentes
126em sentido. O primeiro corresponde a algum, e o segundo,
ao cardeal um ; pois este tolera a associação de só e único,
que aquelle rejeita, e leva-lhe assim vantagem em energia
de negação. Ex. Para derribar um reino, e muitos reinos
onde falta união, não são necessarios exercitos, não são necessarias
batalhas, não são necessarios cavallos, não são necessarios
homens
, nem um homem, nem um braço, nem uma mão:
 :
lápis sine manibus. (P. Ant. Vieira). — (… nem um só
homem, nem um só braço, nem uma se mão..,). Porém absolutamente
impropria seria ahi a substituição de nen um
por nenhum.

Bastante

163. Bastante é adjectivo com o sentido do suficiente,
pronome com o de porção suficiente, adverbio com o de
suficientemente ou assaz.

(Adj.) Não ha thesouros bastantes para prover ás extravagancias
do pródigo
. — (… thesouros sufficientes…).

Que artifice fôra bastante para crear tanta variedade
de cousas tão formosas, senão Elle ?
(Fr. Luiz de Granada).

(Pron.) Havemos de tudo bastante para não invejarmos
nada a ninguem
. — (…porção sufficiente de tudo…).

(Adv.) E’ sempre bastante caro o que custa tempo, e
nada aproveita
. — (… sufficientemente, — assaz caro…).

Certo

164. Certo é, já adjectivo indefinito, já adjectivo qualificativo.

Como indefinito, vai, não só sempre junto, senão tambem
impreterivelmente anteposto a um substantivo, sendo
então o seu sentido insupprivel por qualquer outra expressão.
Ex. De certos homens da casta daquelles de quem
dizia Socrates que não comião para viver, mas só vivião para
comer, diz a Sagrada Escriptura que, exhortando-se de commum
consentimento, dizião : Comamos e bebamos porque amanhãa
havemos de morrer
. (P. Ant. Vieira).

Como qualificativo, implica o sentido de seguro e fica
então sujeito a todas as leis que regem os adjectivos desta
especie. Ex. Que meio vos parece que se póde dar para um
homem, em toda a sua vida, ter o
pão certo, sem nunca lhe
haver de faltar?
(P. Ant. Vieira). — Dar por amor de Deos,
não ha mais
certa negociação, não ha mais certo Meio de
ajuntar fazenda
. (P. Ant, Vieira), — Estai certos que só a127vossa desunião póde matar o reino. (P. Ant. Vieira). —
(Estai (vós) certos…).

Cujo

165. Cujo é sempre adjectivo, por se referir constantemente,
como apposição ou predicado, a um substantivo
ou pronome da mesma proposição, e com elle concordar
em genero e numero.

Exemplo :

Donde sahiu tanta variedade, senão de vós, Senhor, cujo
ser
encerra com eminencia infinitos seres ! (P. Man. Bernardes).

Cujas são tantas terras conquistadas no Oriente ? cujas
as armadas que navegão e cobrem aquelles mares ? cujos os
portos que se enriquecem com os commercios e tributos que o
Indo e Ganges só pagavão ao Tejo ?
(P. Ant. Vieira).

D. João de Castro viu á porta de um alfaiate um gibão
riquíssimo, e perguntou
cujo era. (P. Man. Bernardes). —
(… cujo era elle).

Demais

166. Demais é adjectivo ou pronome ; porém, em um
como no outro caso, não comporta a feição do singular.

(Adj.) Entre todas as excéllencias que Christo teve como
mestre e doutor, uma foi singular, porque os
demais doutores
podem propor a verdade, e ensinar por fóra, mas não podem
interiormente allumiar o entendimento
. (João Franco Barreto).
— (…os outros doutores…).

(Pron.) Era Affranio Burrho homem de grave e maduro
juizo, mestre ou aio que tinha sido, com Seneca, do mesmo
Nero. E, quando todos os outros fazião grandes applausos ás
mudanças, saltos e gestos do imperador citharédo, como se
forão outros tantos triumphos, só Affranio estava triste, mas
tambem louvava como
os demais. (P. Ant. Vieira). — (… como
os outros).

167. Fulano e sicrano são, já adjectivos, já pronomes,
conforme andão ou não andão juntos a um substantivo.

(Adj.) Respondeu mansamente o cordeiro : « Senhor fulano
lobo
, como posso eu turvar a Vossa Mercê a fonte, se ella
corre de cima, e eu estou cá mais abaixo ?
 » (P. Man. Bernardes).128

(Pron.) Cuja é esta caveira ? E’ de fulano. Viveu rico,
e morreu pobre
. (P. Ant. Vieira).

Mais. menos

168. mais e menos são adjectivos, pronomes ou adverbios.

1.° São adjectivos quando outro adjectivo os póde
supprir, ou a elles associar-se na mesma qualidado de apposição
ou de predicado.

Ex. Entre todas as idades, a puericia e a adolescência
estão expostas a
mais riscos. (Fr. Man. Consciencia). —
(… a mais e maiores riscos).

Se faltão alguns fructos da Europa, a inércia é que faz
menos a abundancia. (Franc. de Brito Freire). — (… que
faz a
abundancia menor).

Quando lhe perguntavão por sua vida, costumes e doutrina,
respondia Christo como Deos ; e, ás
mais interrogações,
dizem os evangelistas sagrados que se calava. (Luiz Torres
de Lima). — (… e ás outras interrogações…).

De outras cidades se lavrão, semeião e plantão os mesmos
lugares, sem
mais vestigios de haverem sido, que os que encontrão
os arados quando rompem a terra
. (P. Ant. Vieira). — *(…
sem outros vestigios…).

Se os homens se comerão depois de mortos, parece que era
menos horror e menos materia de sentimento.’ (P. Ant.
Vieira). — (… menor horror e menor materia…).

« Amigo, subí para cima ! » e então ficareis com gloria
entre
os mais convidados. (P. J. B. de Castro). — (… entre
os outros convidados).

Assim não têm lugar, entre os Chins, os queixumes que
nesta parte já fazia, e com muita razão, da nossa Europa
Junio Moderato Columella, quando ainda havia
menos annos
que os arados andavão nas mãos dos Camillos, Curios e Cincinnatos.
(P. João de Lucena). — (… quando ainda havia
poucos annos que…)

O mais corpo do garracicão é revestido de um pardo
muito gracioso
. (P. Balthasar Telles). — (O sobejo corpo…).

Deixo outros membros de menos nome. (P. Ant. Vieira).
— (… de inferior nome, — nomeada).

Não faz menos representação de grandeza a torre dos
129sinos e relogio. (Fr. Luiz de Souza). — (… menor representação…).

2.° São pronomes quando outro pronome ou um substantivo
de quantidade indecisa os póde supprir na mesma
funcção, sendo então frequentemente amparados pelo artigo
definito.

Ex. Quem quer mais do que lhe convem, perde o que
quer, e o que tem
. (P. Ant. Vieira). — (… cousa maior…).

O menos é que, por quererem o que não podem, venhão
os homens a não poder o que podião
. (P. Ant. Vieira). — (a
menor cousa
é…).

Bem disse S. Ambrosio, que mais valia um dinheiro tirado
do pouco, do que um thesouro tirado do máximo
. (P. Man.
Bernardes). — (… maior preço…).

No que toca a todos, consulte os mais. (P. Ant. Vieira).
— (… os outros).

Nestes dous jogos ou latrocínios da cobiça, o menos que
se perde, é o dinheiro
. (P. Ant. Vieira). — (… o menor
bem…
).

Se os Apostolos tiverão doze pães, então não era necessario
mais. (P. Ant. Vieira). — (… maior quantidade não
era necessaria
).

Na batalha campal dos Allemães contra os Hespanhóes
junta a Ravenna, matou uma peça, com um só tiro
, mais de
cincoenta Allemães
. (P. Ant. Vieira). — (… numero superior
a cincoenta…).

Quem póde o mais, póde o menos. (Aphorismo). — (Quem
consegue fazer
uma cousa difficil, faz uma cousa facil).

No mesmo ponto cahiu a estatua, desapparecérão os metaes,
e não ficarão della e delles
, mais que o lugar. (P. Ant.
Vieira). — (… e não ficárão outros vestigios della e
délles
…).

Não falta na China muita gente de rostos compridos,…
que por serem os menos, parecem descendentes dos estrangeiros
que houve no mesmo reino
. (P. João de Lucena).

3.° São adverbios quando, antepostos a um participio,
adjectivo ou outro adverbio, conferem-lhe o gráo comparativo
ou superlativo ; ou ainda quando, modificando em alcance
a significação de um verbo, deixão-se converter em
outro adverbio, ou em complemento indirecto.130

Ex. Ama o teu inimigo porque, ou elle é mais poderoso
que tu, ou menos : se é menos poderoso, perdoa-lhe a elle ; se
é
mais poderoso, perdoa-te a ti. (P. Ant. Vieira).

Como estas são as mercadorias que só têm valor e preço
no céo, vêde se os que
mais carregados e sobrecarregados
se vêm destas felicíssimas drogas, tanto mais preciosas quanto
mais pesadas, vêde se têm razão de se entristecer ! (P. Ant.
Vieira).

« Tenho-me em maior conta, e me julgo nascido para
cousas
mais elevadas do que ser criado de meu corpo. (Fr.
Luiz de Souza).

Eis-aqui todo o juizo dos homens : amárão mais, ou
amárão menos. (P. Ant. Vieira). — (… amarão extremosamente,
ou amarão comedidamente).

Dá, pois, muitas graças á estreiteza de tua meza ; porque
sendo certo que todos hão de chegar á sepultura sem nenhum
remedio
, só tu, por comer menos, chegarás á sepultura mais
tarde
, e só tu, por comer menos, serás nella menos comido.
(P. Ant. Vieira). — (… por comer em menor proporção…).

Quando as mesmas frotas voltavão carregadas de ouro e
prata, nada disto era para allivio ou remedio dos povos, senão
para
mais se encherem e incharem os que tinhão mando sobre
elles
. (P. Ant. Vieira). — (… para com maior demasía ou
demasiadamente se encherem e incharem…).

Os homens se vão mais sepultar que viver naquella escura
e perpetua noite
. (P. Ant. Vieira). — (... se vão antes sepultar
que viver
…).

Sem esta união, tudo perde o nome, e, mais, o ser. (P.
Ant. Vieira). — (… e, para remate, o ser).

Cousa dificultosa parece que houvessem de bastar poucos
homens para dentro em sua propria casa destruir em o imperador,
e
mais o imperio. (P. Ant. Vieira). — (… e para destruirem,
alem disso, o imperio).

Os dez tribus fizerão outro rei, e outro reino que nunca
mais se sujeitou nem restituiu aos herdeiros de Salomão. (P.
Ant. Vieira). — (… que nunca jamais se sujeitou…).

A natureza de Vossa Alteza não é Flandres nem Castella,
mas Portugal onde reinou quarenta e cinco annos, pouco
mais
ou menos. (D. Hieronymo Ozorio, bispo de Silves).

Mesmo

169. Mesmo é adjectivo, pronome ou adverbio.131

1.° E’ adjectivo quando apposição.

Ex. Que faz a mesma natureza, toda movida e governada
pelo
mesmo Deos ? (P. Ant. Vieira).

Não cabe em si mesmo o mundo com quatro vapores insensíveis !
(P. Ant. Vieira).

A mentira é filha primogênita do ocio. Vêde como se
forma dentro em
vós mesmos este monstruoso parto! (P. Ant.
Vieira).

2.° E’ pronome, não só quando faz a funcção de sujeito
ou de complemento, senão tambem quando faz a do
predicado, porque nunca prescinde então do artigo.

Ex. Quando os premios se dão aos que merecem, os
mesmos que os murmurão com a bocca, os approvão com o
coração
. (P. Ant. Vieira).

O mesmo podemos dizer das planicies, valles e montes.
(P. Ant. Vieira).

Os Romanos tornárão a ser vencidos dos mesmos que
tinhão vencido e dominado
. (P. Ant. Vieira).

Bem se póde dizer que o juizo é o mesmo que o entendimento,
porém é um entendimento solido
. (Mathias Ayres da
Silva de Eça).

E´ particular circumstancia e honra da verdade ser sempre
uniforme e
uma mesma sem variedade nem alteração. (Fr.
Luiz de Souza). — (… ella ser sempre uniforme e a
mesma…
).

3.° E’ adverbio quando supprivel por até.

Ex. Aqui mesmo, navegando junto á praia, tive occasião
de. ver um quadro que me encantou o espirito
. (D. Fr. Caet.
Brandão).

Muito. pouco

170. Muito e pouco são adjectivos, pronomes ou adverbios.

1.° São adjectivos quando apposições ou predicados.

Ex. O coração do homem é mui generoso, e o da mulher,
mui delicado : quer, por
pouco bem, muito premio, e, por
muito mal, nenhum castigo. (P. Ant. Vieira).

Na côrte, muitos são os malsins, poucos são os amigos.132

2.° São pronomes quando sujeitos ou complementos.

Ex. Lembre-se Vossa Alteza que, nesta sua partida (o
que Deos não permitia), no temporal se ganha
pouco, e no
espiritual se perde
muito. (D. Hieronymo Ozorio).

muitos querem ensinar com razões ; com exemplos poucos
ensinão.

O roubar pouco é culpa ; o roubar muito é grandeza !
(P. Ant. Vieira). — (… quantia pequena…. quantia
grossa…
).

Assim como é natureza da união, de muitos fazer um
assim é milagre da união
, de poucos fazer muitos. (P. Ant.
Vieira).

3.° São adverbios quando, modificando em alcance a
significação de um verbo, participio, adjectivo ou outro
adverbio, resolvem-se em complemento indirecto, ou em adverbio
declarado pela terminação mente.

Ex. a natureza fez o comer para o viver ; a gula fez o
comer muito para o viver pouco. (P. Ant. Vieira). —
(… comer em demasiada proporção, — vorazmente… viver
em um curto lapso de tempo, — brevemente…).

Se alguem pensa que, sendo assolado o reino, póde a sua
casa ficar em pé, engana-se
muito enganado. (P. Ant. Vieira).
— (… engana-se excessivamente enganado).

Consideremos primeiro que cousa é nascer, e philosophemos
um pouco. (P. Ant. Vieira). — (… e philosophemos por um
instante
).

Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros ?
muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os
brancos
. (P. Ant. Vieira). — (… consideravelmente maior
desproporcionadamente mais…).

Pouco nos desvanece o ter juizo, e muito nos lisongeia
o ter entendimento. . (Mathias Ayres da Silva de Eça). —
(fracamente nos desvanece…. extremamente nos lisongeia…).

Pouco a pouco é uma locução adverbial por equivaler
a vagarosamente.

Ex. O grande imperio que os Portuguezes fundarão na
índia, acabou como o dos Gregos e Romanos
, pouco a pouco
e por partes. (P. Ant. Vieira).133

Outro

171. Outro é adjectivo ou pronome.

Ex. (adj.) Os reis podem dar titulos, rendas, estados;
 ;
mas, animo, valor, fortaleza, constancia, desprezo da vida, e as
outras virtudes de que se compõe a verdadeira honra, não
podem
. (P. Ant. Vieira).

(Pron.) Se Deos nos fez estas Mercês, fazei pouco caso
das outras. (P. Ant. Vieira).

Como bem disse o outro, as magnetes attrahem o ferro, e
os magnates, o ouro
. (P. Ant. Vieira).

um e outro, nem um nem outro, quer appareção como
adjectivos, quer como pronomes, devem ser tidos como indefinitos
compostos
. Pois, aparentando-se, mesmo quando
dissociados, em genero o numero, ainda soem assignalar a
sua correlação por uma mesma funcção syntaxica.

Ex. Este é o mundo em que vivemos : antes e depois de
Noé, sempre foi diluvio
 : uns para uma parte, outros para
outra, todos cansando-se em buscar o descanso, e todos cansados
de o não achar
(P. Ant. Vieira).

O mesmo podemos dizer das planicies, valles e montes
donde se levantavão ás nuvens aquelles vastissimos corpos de
casas, muralhas e torres
 : de umas se não sabem os lugares
onde estiverão
 ; de outras se lavrão, semeião e plantão os
mesmos lugares
. (P. Ant. Vieira).

Ha dous generos de inimigos : uns que perseguem, outros
que adulão. (P. Ant. Vieira).

Qual

172. Qual é adjectivo indefinito, pronome relativo,
pronome indefinito, ou interjeição.

1.° E’ adjectivo quando, apposição ou predicado, concorda
em genero o numero com o substantivo ou pronome
da mesma proposição.

Ex. Logo disse missa o P. Ant. Vieira em um altar ricamente
ornado, á
qual missa assistirão os gentios de joelhos,
com grande devoção
. (P. Ant. Vieira).

Aqui vereis qual é o fructo das minas… — As causas
naturaes destes effeitos tão lamentaveis não são ordinariamente
outras senão as mesmas que precederão o reinado de Salomão.
e
, quaes forão estas ? (P. Ant. Vieira).134

Quereis saber qual é a dureza de um não ? (P. Ant.
Vieira).

Pythagoras e Socrates forão ambos famosissimos mestres
da republica mais politica
, qual foi a de Athenas. (P. Ant.
Vieira).

2.° E’ pronome relativo quando, necessariamente precedido
do artigo indefinito (o, a, os, as), o fazendo o officio
de sujeito ou de complemento, refere-se declaradamente ao
substantivo ou pronome de uma proposição anterior, com
elle concordando, não só em genero e numero, senão tambem
em pessoa.

Ex. A que compararia S. Pedro Damião os aduladores ?
Comparou-os ás
andorinhas de Tobias, — as quaes, fazendo
o ninho em sua casa, lhe pagarão a hospedagem com lhe tirar
a vista
. (P. Ant. Vieira).

Se tantos são os bens que traz comsigo o dia do nascimento,
— os quaes todos funesta, consome e acaba o dia da
morte, que motivo teve o juizo de Salomão para antepor o dia
da morte ao do nascimento ?
(P. Ant. Vieira).

Affonso de Albuquerque empregou a noite inteira em considerar
mui poderosamente nas cousas da
eternidade, cujos
suburbios parecia que avistava, e
a qual religiosamente passou
ante a manhãa
. (Vida de el rei D. Manoel).

3.° E’ pronome indefinito quando, precedido ou não do
artigo definito, e fazendo, aliás, o officio de sujeito ou de
complemento, resolve-se analyticamente em que pessoa ou
que cousa, ou
ainda que pessoas ou que cousas.

Ex. Por isso eu lá dizia que não sei qual lhe fez sempre
maior mal, ao Brazil, se a infermidade, se as trevas
. (P. Ant.
Vieira). — (… não sei que cousa lhe fez…).

Se quizermos particularmente considerar as cousas, qual
haverá que, sem letras divinas ou humanas, se possa fazer ?
(João de Barros). — (… que cousa haverá que…).

« Julga agora, continuou Christo, qual destes tres teve
aquelle enfermo por proximo
. » (P. J. B. de Castro). — (…que
homem, que pessoa…
).

Não sei ao qual de vós eu tenha de responder.

4.° E’ interjeição, o conseguintemente invariavel, quando,
não se referindo a nada, prorompe no discurso como expressão
de despeito.135

Ex. Não ha dia que a morte não nos advirta ; mas, qual !
nada nos póde demover de contar com o porvir.

Cada qual é pronome indefinito composto.

Ex. Notão os curiosos da natureza que algumas aranhas,
na primeira ordidura, deitão quatro fios como fundamento de
toda a teia, e
cada qual destes vão depois tecendo e enchendo
de outros vinte
. (Fr. João de Coita).

Qualquer

173. Qualquer é adjectivo quando apposição ou predicado,
pronome quando sujeito ou complemento.

Ex. (Adj.) Alguns autores comparão estes aduladores ao
cameleão, que não tendo côr certa nem propria, se reveste e
pinta de todas as côres
, quaesquer que sejão as do objecto
vizinho. Outros os comparão á sombra, que não tem outra acção,
figura ou movimento que do corpo interposto á luz, do qual
nunca se aparta, e sempre e para
qualquer parte o segue.
(P. Ant. Vieira).

(Pron.) Basta então, Senhor, qualquer dos outros desacatos
ás cousas sagradas, para uma severíssima demonstração
vossa
. (P. Ant. Vieira).

Tanto. quanto

174. tanto o quanto são adjectivos, pronomes ou adverbios.

1.° São adjectivos quando apposições ou predicados.

Ex. Cleópatra, rainha do Egypto, que, quantas acções
fez, tantas pyramides deixou erigidas á posteridade, umas de
lascívia, outras de vaidade, fez que o seu Marco Antonio pescasse
por sua mão peixes fritos
. (P. Man. Bernardes).

Como ninguem póde servir a dous senhores sem amar a
um, e ser inimigo do outro, provado fica sem replica que
, quantos
forem nos palacios os amigos de seus interesses, tantos são
os inimigos dos reis. (P. Ant. Vieira).

Antigamente estavão os ministros ás portas das cidades;
 ;
agora estão as cidades ás portas dos ministros. tanto coche !
tanta liteira ! tanto cavallo ! (que os de pé não fazem
conto, nem delles se faz conta)\
(P. Ant. Vieira).

quantos principes dão a alma, e tantas almas ao demonio
136por uma cidade, por uma fortaleza ! quantos titulos,
por uma villa! quantos nobres, por uma quinta, por uma
vinha, por uma casa
 ! (P. Ant. Vieira).

2.° São pronomes quando sujeitos ou complementos.

Ex. quantos fôrão mais venturosos com seus erros, que
outros com seus acertos l
(P. Ant. Vieira).

Outro discreto, fazendo conta aos bens que possuia, dizia :
« Tenho tanto em raizes, tanto em moveis, tanto em escravos,
e
tanto em amigos, » achando, e com razão, que esta ultima
addição merecia igual ou melhor lugar que as outras
.
(P. Man. Bernardes).

Este é o primeiro privilegio dos pobres, a quem a Providencia
Divina
, quanto nega de abundancia e regalo, tanto
accrescenta de vida. (P. Ant. Vieira). — (… accrescenta tão
grande porção
de vida, quão grande porção de abundancia
e regalo ella nega
).

Se em todas as mesas se bebêra por esta taça, não se comera
em tantas o pão alheio. e, se, no Brazil, dêramos em
desenterrar caveiras
, em quantas pudêramos escrever a mesma
letra
 ! (P. Ant. Vieira).

3.° São adverbios quando modificativos de um verbo,
participio, adjectivo ou outro adverbio.

Ex. quanto sobe violentamente o querer para cima, tanto
desce
, sem querer, o poder para baixo. (P. Ant. Vieira).

quanto menos nos resta de vida, tanto mais devemos
procurar seja honesta
. (P. Man. Bernardes). — (Devemos procurar
que seja a vida
tanto mais honesta, quanto menor
porção
desta mesma vida nos resta).

O mesmo Salomão foi o que destruiu o que tanto ennobreceu
e exaltou. (P. Ant. Vieira). — (… tão afanosamente…).

Quanto melhor lhe fôra, ao voador, mergulhar por baixo
da quilha
 ! (P. Ant. Vieira). — bem mais proveitoso…).

Tanto que constituo uma locução conjunctiva.

Ex. Todo o curioso tomara ser na poesia um Homero;
 ;
mas, tanto que se reflecte no trabalho com que se vencem as
fraldas do Parnaso, já se não quer ser poeta
. (P. D. Raphael
Bluseau). — (… mas, logo que, desde que…).

quanto a constitue uma locução prepositiva.

Ex. quanto ás minas de ouro, vagamente por todas as
137partes, tirão todos, e tirárão sempre em grão e pó... maior
quantidade do que pareceu
. (Franc. do Brito Freire).

Que

175. Não ha em portugucz vocabulo de determinação
tão complexa como que, porquanto cabe em cinco classes
de palavras, sendo, conforme a sua funcção, adjectivo indefinito,
pronome relativo, pronome indefinito, adverbio ou
conjuncção.

1.° E’ adjectivo indefinito quando, apposição de um
substantivo ou pronome, deixa-se analyticamente resolver
em qual, quaes, ou, por assimilação, em quanto, quanta,
quantos, quantos
.

Ex. Vêde que segurança póde ter o merecimento, ou
que immunidade a innocencia em tal juizo ! (P. Ant. Vieira).
— (Vêde qual, quanta segurança… ou qual, quanta immunidade…).

« Não sei, Senhor, que tempos, nem que desgraça é
esta nossa!
 » (P. Ant. Vieira). — (… quaes tempos… qual
desgraça…
).

Se alguem, pois, colhendo uma flôr destas, a desfolhar,
que mão de official será tão poderosa, que faça outra que
iguale com ella ?
(Fr. Luiz de Granada). — (… qual mão…).

Mas, que alvitre vos parece que será este ? que meio
vos parece que se pode dar para um homem em toda a sua
vida ter o pão certo ?
(P. Ant. Vieira). — (… qual alvitre…
qual meio…
).

Se aquellas rumas de façanhas em papel forão conformes
aos seus originaes
, que mais queriamos nós ? (P. Ant. Vieira).
— (… qual outra cousa…).

2.° É’ pronome relativo quando, referindo-se declaradamente
ao substantivo ou pronome de uma proposição
anterior, e sendo convertivel em o qual, a qual, os quaes,
,
as quaes, faz o officio de sujeito ou de complemento.

Ex. Que homem ha que não busque o descanço ? (P.
Ant. Vieira). — (… Que homem ha — o qual não busque o
descanço ?
).

O tempo é o maior thesouro que a natureza fiou do
homem
. (P. Ant. Vieira). — (… o maior thesouro — o qual
a natureza…).138

S. Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer
a fealdade deste escandalo, mostrou-lh´o nos peixes; e
eu que
prego
aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é,
quero que o vejais nos homens.-
(P. Ant. Vieira). — (s. Agostinho,
o qual pregavae eu — o qual prego…).

3.° E’ pronome indefinido quando, não se referindo declaradamente
a nenhum substantivo ou pronome anterior,
e sendo convertivel em que cousa ou cousa que, faz o
officio de sujeito, do complemento, ou até de predicado.

Ex. Que se segue deste tão desordenado querer ? (P. Ant.
Vieira). — (que cousa se segue…).

Que faz o lavrador na terra, cortando-a com o arado ?
(P. Ant. Vieira). — (O lavrador faz que cousa… ?).

Que é o nascer senão o remedio de não ser ! (P. Ant.
Vieira). — (O nascer é que cousa…).

Ainda falta que ponderar, e é a coroa de tudo. (P. Ant.
Vieira). — (Ainda falta cousa que ponderar…).

Desta traça, dizião elles, não póde Christo escapar. Mas,
coitados ! armarão teias de aranha
, que vem a dizer : é tudo
nada
 ! (Fr. João de Ceita). — (… cousa que vem a dizer…).

4.° E’ adverbio quando, actuando como modificativo
em um participio, adjectivo ou adverbio, é convertivel em
quão.

Ex. Plinio disse estas notaveis palavras : « Que innocente,
que bemaventurada
e que deliciosa seria a vida
dos homens, se elles se contentarão com o que nasce sobre a
terra
 ! » (P. Ant. Vieira). — (… quão innocente, quão
bemaventurada
e quão deliciosa…).

Se alguem visse, desde um pôsto eminente, todas as mudanças
que no mundo succedem em espaço de meia hora
, que
admirado
ficára de ver a furia com que esta roda se revolve !
(P. Man. Bernardes). — (… quão admirado…).

Que alegre era o espirito do Çreador quando fez rir os
prados em tanta variedade de flores
 ! que liberal quando os
coroou de fructos
 ! (P. Man. Bernardes). — (quão alegre…
quão liberal…).

Note-se que artificioso, que prudente, e com que dissimulação
procede S. Paulo
 ! (Fr. João Pacheco.). — (Note-se
quão artificioso, quão prudente…).

O´ reis, ó monarchas do mundo ! que, por esta causa, e
139só por esta, é digna de compaixão a vossa suprema fortuna !
(P. Ant. Vieira). — (… quão digna de compaixão é…).

5.° E’ conjuncção quando, sendo inconvertivel em qualquer
outra expressão, ou sendo-o tão sómente em outra
conjuncção como senão, ou em uma locução conjunctiva
como do que, etc., serve de mero nexo entre palavras ou
proposições.

Ex. « Sei eu, Senhor, que, só por amor dos innocentes,
dissestes, alguma hora
, que não era bem castigar a Ninive. »
(P. Ant. vieira).

E’ certo que todos desejais o descanso ; é certo que todos
o buscais com grande trabalho por diversos caminhos, e
que
o não achais. (P. Ant. Vieira).

Será justo que possa mais comnosco o odio particular
que o amor publico ? (P. Ant. Vieira). — (…o odio particular
do que o amor publico ?).

Póde haver maior desgraça que não ter um homem bem
algum digno de inveja ?
(P. Ant. Vieira). — (… maior desgraça
do que não ter um homem…).

Muito ferro e muito bronze, muito ouro e muita prata
tinha a estatua ; mas, porque lhe faltou a união, não lhe servirão
de nada mais todos esses metaes bellicos e ricos
, que
de accrescentar maior peso para a cahida. (P. Ant. Vieira). —
(… senão de accrescentar…).

Equidade não é outra cousa que o dictame da razão natural
na mente ou na consciencia do bom varão
. (P. Man.
Bernardes). — (… senão o dictame…).

Quando o casamento não trouxera outro algum bem mais
que livrar de tantos males, justamente merecia o nome de santa
e doce vida
. (D. Franc. Man. de Mello). — (… do que livrar
senão livrar…).

Ora, alviçaras ! quelá vai tudo isto! (D. Franc. Man.
do Mello). — (… jã que — visto quelá vai…).

Quejando

176. Quejando, de uso pouco frequente, apenas differe
do tal em significação por um toque de ironia, o costuma
entretanto ir-lhe associado, por pleonasmo, junto a um
substantivo, na qualidade de adjectivo indefinito composto,
o com a funcção de apposição.

Ex. Taes e quejandas necedades dizem os matasanos,
que só quem os não entende, deixa de rir-lhes na cara
.140

177. Só — é adjectivo ou adverbio : adjectivo quando,
sendo relacionado com um substantivo ou pronome na
qualidade de apposição ou de predicado, deixa-se substituir
por sózinho, ou associar a unico ; adverbio quando convertivel
em sómente.

Ex. Bastou umadesunião para derribar e desfazer
quatro imperios
. (P. Ant. Vieira). — (… umae unica
desunião…).

Por isso, sendo a voz uma só, os rostos são muitos. (P.
Ant. Vieira). — (… sendo a voz uma só e unica…).

Ohomens / quea vossa união vos ha de conservar, e
a vossa desunião vos póde perder ! (P. Ant. Vieira). —
(…que sómente a vossa união e sómente a vossa desunião…).

A sós — constitue uma locução adverbial, com a qual
equipara-se em sentido a locução de mesma origem etymologica
a solas.

Tal

178. Tal é adjectivo quando apposição ou predicado,
e pronome quando sujeito ou complemento.

Ex. (adj.) A difficuldade está em achar taes amigos,
porque são mui raros. (P. Man. Bernardes).

Pois, como appeteceis o que não podeis ? Porque tal é a
cegueira de um entendimento ambicioso. (P. Ant. Vieira).

(Pron.) Amizade procedida de comer e beber e passear
juntos não merece o nome
de tal. (P. Man. Bernardes).

Cruzar-me-hei, se tal me mostrarem. (Fr. Luiz de Souza).

Podem-se estimar estas porcellanas dos maiores principes
por delicia e curiosidade, e
por tal se têm em Portugal.. (Fr.
Luiz de Souza).

Todo

179. todo é adjectivo quando apposição e é pronome
quando sujeito ou complemento.

Ex. (adj.) Lançai os olhos por todo o mundo, e vereis
que
todo elle vem a resolver-se em buscar pão. (P. Ant,
Vieira).141

Supposto, pois, que todos havemos de morrer (e todos
imos para a sepultura), o maior favor que Deos póde conceder
a um mortal, é que morra e chegue lá mais tarde
. (P. Ant.
Vieira). — (… que todos [nós] havemos de morrer, e todos
[nós] imos…).

(Pron.) Os reis são senhores de todos, mas são tambem
captivos
de todos : a todos mandão como reis, e de todos
são julgados como réos. (P. Ant. Vieira).

Dos adjectivos qualificativos

180. Em juxtaposição ás quatro especies de adjectivos
determinativos apresentão-se os qualificativos, mas com
a differença que estes, embora numerosíssimos, não se subdividem.

Entre as propriedades geralmente inherentes aos qualificativos,
como tambem aos participios variaveis, avulta a
que lhes proporciona o meio de, sob tres aspectos distinctos,
chamados grãos de significação, enunciar diversamente as
idéas do que são a expressão, e vem a ser, ou simplesmente
ou com comparação, ou em ponto subido. No primeiro caso,
o gráo diz-se positivo ; no segundo, comparativo ; no terceiro,
superlativo.

181. O adjectivo está no positivo quando sua significação
não apparece modificada em alcance por nenhum
adverbio de quantidade. Ex. Pão alvo. Fructa saborosa.

182. O adjectivo está no comparativo quando, sob a
influencia dos adverbios tão, mais ou menos, assume em
relação a outro termo, uma feição de igualdade, de superioridade
ou de inferioridade. Ex. Pão tão alvo… Pão
mais alvo… Pão menos alvo…

O comparativo do igualdade (tão) liga-se ao termo
subsequente por como ou quão, se este é tambem um adjectivo
qualificativo ou um participio variavel. Ex. Pão tão
alvo como ou quão saboroso
. — Rei tão amado como ou
quão respeitado
. — Se, porém, o segundo termo for de
outra especie de palavras, só se usa de como. Ex. Pão tão
alvo como este
, não ha no mercado. — Rei tão favorecido
como salomão
nunca houve. — a consequencia era tão barbara
e brutal como quem a inferia. (P. Ant. Vieira).

O comparativo de superioridade (mais), e o de inferioridade
(menos) ligão-se indifferentemente ao segundo
termo por que ou do que em todas as hypotheses. Ex.
Pão mais ou menos alvo que ou do que saboroso. — Rei
142mais favorecido e menos chorado que ou do que salomão,
nunca houve.

Excepção. Os quatro qualificativos : grande, pequeno,
,
bom e máo constituem irregularmente o seu comparativo
de superioridade, por o tirarem directamente da forma
latina :

maior | melhor,
menor | peior
.

Todavia o uso legitimou as duas locuções regulares
mais pequeno o mais máo. Ex. O imperio lusitano-indio
está reduzido a tão poucas terras e cidades, que se póde duvidar
se foi aquelle Estado
mais pequeno no principio do que
se vê no fim
. (Man. Godinho).

Observação. Os adjectivos anterior e posterior, exterior
o interior, superior e inferior, ulterior e citerior, que se assemelhão
aos quatro procedentes por identidade de origem, o
paridade de terminação, forãó, por isso tambem, assaz geralmente
declarados comparativos de superioridade irregulares,
ou de forma latina ; porém tal apreciação é de todo o ponto
errada.

Não ha duvida que os referidos vocabulos forão comparativos
de superioridade em latim ; mas, passando para
o portuguez, ahi apparecêrão como meros positivos. Duas
considerações o comprovão terminantemente :

1.° Ao passo que os quatro primeiros adoptão, com
toda a propriedade, como os mais comparativos da mesma
especie, a ligação que ou do que ante o termo subsequente,
os oito ultimos a rejeitão categoricamente. Pois, se
todos concordão em dizer, por exemplo : Este café é melhor
ou peior que ou do que aquelle, a ninguem occorrerá dizer,
por assimilação : Este café é superior ou inferior que ou
do que aquelle, e sim : é superior ou inferior aquelle.

2.° Se, por uma redundancia insoffrivel, é perfeitamente
illicito dizer : tão maior, tão menor ou mais melhor, menos
peior
, não o é, de modo algum, em relação ás locuções
tão superior, tão inferior ; — mais exterior, menos interior,
etc. Portanto são de per si simples positivos.

Os vocabulos junior o senior, tambem etymologicamente
comparativos do superioridade em latim, passárão
para o portuguez com o significado de meros cognomes, e,
nesta qualidade, não desistem da maiuscula inicial, porque
se confundem em um mesmo substantivo composto com os
143nomes proprios a que se ajuntão, o primeiro, com o sentido
de mais moço, e o segundo, com o de mais idoso.

183. O adjectivo está no superlativo quando, por um
accrescimo de palavras, ou uma modificação terminativa,
declara uma qualificação levada ao auge.

Sendo constituido por accrescimo de palavras, o superlativo
chama-se composto ; sendo-o por modificação terminativa,
chama-se de incremento.

184. Os superlativos compostos formão-se pela anteposição
ao adjectivo de algum adverbio do quantidade,
como mui, muito, pouco, excessivamente, extremamente,
etc., e tambem, o que merece especial reparo, pela anteposição
dos mesmos adverbios tão, mais e menos, constitutivos
dos tres comparativos, porém desta vez faltos de
um segundo termo com que se meção em igualdade, superioridade
ou inferioridade, e, conseguintemente, desacompanhados
das respectivas ligações como ou quão correlativamente
a tão, e que ou do que correlativamente a mais e
a menos.

Exemplos :

(Mui). O coração do homem é mui generoso, e o da
mulher
, mui delicado. (P. Ant. Vieira).

(Muito). Este meio, eu confesso que é muito bom. (P.
Ant. Vieira).

(Pouco). Diz o rei que quer fazer uma guerra ; e, ainda
que a empreza seja
pouco provavel, que respondem os echos?

Guerra ! guerra ! guerra !
(P. Ant. Vieira).

(Tão). Quem ha de restituir o tempo a quem perde o
tempo que havia mister ? Oh ! tempo
tão precioso e tão perdido !
(P. Ant. Vieira).

(Mais). Vem cá, Lucifer ! vem cá, Adão ! tu anjo, e o
mais sabio de todos os anjos; tu, homem, e o mais sabio de
todos os homens
 ! (P. Ant. Vieira).

S. Ambrosio diz que a peior terra é a mais esteril, e
o melhor campo é o que, na primavera, se mostra mais enfeitado
com os mais luzidos esmaltes das mais lindas
flores. (P. Balthazar Telles).

E os céos, a quem o propheta chamou livros, que contão
as obras
mais gloriosas do Creador, não deixão de ser bons
historiadores quando se mostrão, aos olhos
, mais estrellados,
e quando se ostentão, á vista, mais resplandescentes, (P. Balthazar
Telles).144

(menos). Taes são os aduladores de palacio, ainda os de
maiores obrigações, e de
menos corrupto juizo. (P. Ant.
Vieira),

Se, com um desengano dado a tempo, os homens ficão
menos queixosos, porque se ha de entreter o pobre pretendente ?
(P. Ant. Vieira).

Pois crêde-me! o banco de Veneza póde quebrar, como
está hoje
menos seguro com a guerra do Turco ; e o de Deos
não ha de quebrar nem quebrou nunca
. (P. Ant. Vieira).

Observação. Se a determinação dos gráos de significação
tem certa importancia pelos dados que fornece em
um systema arrazoado de pontuação, é mórmente em relação
a tão ; porquanto, concorrendo este vocabulo a formar
construcções bastante diversas, ora avoca a virgula, ora a
rejeita.

tão, correspondido por quão ou como, constitue um
comparativo ; não correspondido, constitue um superlativo.
Ambos os gráos de significação encontrão-se representados
no seguinte exemplo :

E’ possivel que uma cousa tão pequenia, tão branda,
tão leve e tão mudavel como a lingua
, (Comparativo)
tenha poder para vos pôr ás costas um jugo tão pesado,
tão duro e tão durador !
(Superlativo). — (P. Man. Bernardes).

Porém ainda forma um superlativo quando vai correspondido
por que. Ex. Isto de ter inimigos é uma semrazão
ou injuria
tão honrada que ninguem se deve doer ou offender
delle
. (P. Ant. Vieira). — « Foste tão mofino, que passaste
toda a vida sem ter inimigo
. » (P. Ant. Vieira). — « Ainda
não tenho feito acção
tão generosa e honrada, que me
grangeasse inimigos l
 » (P. Ant. Vieira).

Por isso é que o adjectivo tamanho, a, os, as, contracção
de procedencia latina (tam magnus) equivalendo a
tão grande, constitue sempre um superlativo ; pois nunca
lhe corresponde como nem quão. Ex. Mas forão meus peccados
tamanhos, que cerrárão os ouvidos á clemencia infinita
do Senhor
. (Fernão Mendes Pinto).

E, dado o caso que o mesmo se póde fazer em Castella,
por ventura a necessidade será lá
tamanha, e a esmola tão
bem empregada ?
(D. Hieronymo Ozono).

185. O superlativo de incremento se forma normalmente
pela conversão da syllaba terminal do adjectivo em
issimo, issima, issimos, issimas. Em significação, equivale
145ao superlativo composto por meio de mui ou muito. Ex.
Pão alvissimo. — Fruta saborosissima. — (Pão mui alvo.
Fruta mui saborosa).

Observação. Sendo o superlativo de incremento um
mero traslado do latim, succede que sua formação apresenta
numerosas anomalias, porque, na lingua originaria, o
incremento variava conforme a terminação do adjectivo, e
porque aquellas mesmas variedades muitas vezes se perpetuarão
tradicionalmente em portuguez ao lado da forma
normal (assim em paupérrimo de pauper, por pobríssimo do
pobre), ou a supplantárão totalmente (assim em miserrimo
de miser, cujo representante em portuguez : misero, não se
compadece com a forma normal).

Assim é que se explicão as formas felicissimo de
felix, félicis (feliz) ; — liberrimo de liber (livre) ; — nobilissimo
de nobilis (nobre) ; — sapientissimo de sapiens, sapientis
(sabio) ; — sacratissimo de sacratus (sagrado) ; — dulcissimo
de dulcis (doce) ; — acerrimo de acer (acre) ; — amabilissimo
de amabilis (amavel) ; — celeberrimo do celeber
(celebro) ; — humillimo de humilis (humilde) ; — christianissimo
de christianus (christão) ; — integerrimo de integer
(integro) ; etc.

Acontece até que os dous superlativos uberrimo e
feracissimo (mui fertil) carecem um e outro de positivo
em portuguez.

Os quatro positivos grande, pequeno, bom e máo são
cada um dotados de dous superlativos de incremento ; um
do formação normal, e outro, de procedencia latina : grandissimo,
,
maximo ; — pequenissimo, minimo ; — bonissimo,
,
optimo ; — malissimo, pessimo. — Não se sóe, todavia, empregar
indifferentemente uma forma por outra. Ex. Um
bonissimo presente. — Um optimo resultado. — Mas ahi só
póde a pratica dos bons autores, por via de assiduos exercios
de analyse, servir de inducção na escolha.

A mesma pratica dá igualmente a conhecer que um
numero assaz avultado de adjectivos se negão a constituir
superlativos de incremento, embora se prestem a formar
superlativos compostos. Assim é que o uso não tolera
exiguissimo, embora admitta mui exiguo.

186. Porém cumpre notar que todo e qualquer adjectivo
cuja significação é tão absoluta, que foge a uma
feição de diminuição ou de augmento, não passa do gráo
positivo. Deste genero são os adjectivos eterno, infinito, incommensuravel,
commensuravel, immenso, omnipotente, exsangue
, etc., como
146tambem todos os numeraes ordinaes, que a outros respeitos
podem ser equiparados aos qualificativos. Errou, portanto,
um escriptor, aliás bem conceituado, quando disse : « Nestas
praças havia innumeraveis munições de guerra, e
mais innumeraveis
petrechos de armada. » Pois, para um innumeravel
ser mais innumeravel do que outro innumeravel, forçoso
seria que fosse numeravel !

Acertou, porém, no mesmo caso João Franco Barreto
quando disse : « O Senhor quiz que sua doutrina fosse acompanhada
de
innumeraveis, proveitosíssimos e gravissimos milagres.
» Pois não se deixou induzir, pela colligação dos
superlativos proveitosissimos e gravissimos, a formar o
superlativo illogico do innumerabilissimos.

187. Outrosim não fallece aos adjectivos a propriedade
de se apresentar como augmentativos ou diminutivos, assim
em soberbaço de soberbo, em velhaquete de velhaco, etc.
Ex. Veiu depois uma pobrezinha viuva, e lançou dous ceitis
de cobre
. (P. Man. Bernardes). — Quem dirá que um bichinho
tamanhino, que quasi escapa da vista perspicaz e attenta,
qual é o chamado acarí, que se cria na cera corrupta, ha
lugar para a organisação de tantos membros, de que é força
confessar a razão que se compõe ?
(P. Man. Bernardes). —
Todavia este recurso litterario roça tão de perto a affectação,
que mal convem soccorrer-se a elle fora do estylo
familiar.

Formação do feminino
nos adjectivos qualificativos

188. O feminino dos adjectivos forma-se dos seguintes
modos :

1.° Os adjectivos terminados em — o — trocão esta letra
por a. Ex. Alvo, alva ; asperrimo, asperrima. — São exceptuados
máo, ilhéo, judéo e sandéo que fazem má, ilhôa,
judia, sandia. — Jáo
, não tendo feminino proprio, póde ser
substituido neste requisito por javanez, javaneza.

2.° Os adjectivos terminados em ez, ol, or e u tomão
mais a. Ex. Portuguez, portugueza ; hespanhol, hespanhola ;
vivificador, vivificadora ; cru, crua
. — São oxceptuados cortez,
montez, — maior, menor, melhor, peior, — exterior, interior,
superior,inferior, anterior, posterior, ulterior, citerior, — bicolor,
tricolor, multicidor o semsabor
, que não mudão passando
para o feminino.147

Observação. Cumpre não confundir com o adjectivo
melhor o substantivo melhora, mais habitualmente usado no
plural (O doente tem tido algumas melhoras) ; nem tão pouco
com o adjectivo superior o substantivo superior (de convento),
cujo feminino é superiorA (de convento).

3.° Os adjectivos terminados em e, al, el, il, ul, ar,
,
er, az, iz, oz, m, n e s não mudão passando para o feminino.
Ex. Assumpto ou cousa grave. — Caso ou questão
geral. — Criado
ou criada fiel. — Recurso ou intervenção util.
.
Panno ou seda azul. — Quarto ou casa particular. — Homem
ou mulher esmoler. — Espirito ou intelligencia perspicaz.
.
Acaso, ou circumstancia feliz. — Leão ou leôa feroz. — Negocio
ou especulação ruim. — Alfaiate ou costureira joven. —
Menino
ou menina simples. — Porém bom faz boa. — Quanto
aos adjectivos cabrum, ovelhum, vaccum, e mais alguns analogos,
não têm feminino determinado, por andarem exclusivamente
appostos ao substantivo gado.

4.° Dos adjectivos terminados em Ão, uns trocão este
diphthongo pelo de ãa, como são, sãa ; chão, chãa ; christão,
christãa
 ; outros pela terminação ona, como respingão, respingona;
 ;
chorão, chorona ; valentão, valentona ; outros emfim,
pela terminação ôa, como velhação, velhacôa, etc.

Appendice
sobre a formação do feminino nos substantivos

189. Um certo numero de substantivos têm com os
adjectivos a notavel analogia de variaveis, não só em numero,
senão tambem em genero, o que mais de uma vez
fê-los confundir, com summa impropriedade para a determinação
das funcçõcs syntaxicas, com os genuinos adjectivos.
Haja vista, a tal respeito, a tão elogiada grammatica
franceza de Noël e Chapsal, e outras do igual jaez, que
citão ingenuamente como adjectivos qualificativos : ambassadeur
(embaixador), gouverneur (governador), serviteur
(servidor), auteur (autor), professeur (professor)
, etc., etc., etc.
Só faltava accrescentar : pére (pai), empereur (imperador),
roi (rei)
… e quanto substantivo masculino tem correlativo
feminino. Taes substantivos são geralmente os que designão
as pessoas pelo seu estado social, e os animaes pelo
seu genero dentro da especie. Ex. senedicto, senedicta ; —
o esposo, a esposa ; — o irmão, a irmãa ; — o marquez, a
marqueza ; — o professor, a professora ; — o cozinheiro, a cozinheira ;
148— o gato, a gata ; — o coelho, a coelha ; — o leão, a
leóa
, etc.

190. Nesta assimilação de variabilidade entre substantivos
o adjectivos dá-se, todavia, uma excepção que merece
reparo ; pois, ao passo que os adjectivos terminados em e,
como leve, grave, etc., não mudão passando do masculino
para o feminino, os substantivos, no mesmo caso, trocão
geralmente e por a. Ex. O parente, a parenta ; — o mestre,
a mestra ; — o infante, a infanta
 ; — o hospede, a hospeda ;
— o freire, a freira
, etc.

191. Alguns outros substantivos da mesma categoria
formão o seu feminino por modos notavelmente irregulares ;
os principaes são : O autocrata, a autocratiz ; — o imperador,
a imperatriz ; o rei, a rainha ; — o sultão, a sultana ;
— o principe, a princeza ; — o duque, a duqueza ; — o conde,
a condessa ; — o visconde, a viscondessa ; — o barão, a baroneza ;
— o embaixador, a embaixatriz ; — o abbade, a abbadessa ;
— o prior, a prioreza ; — o propheta, a prophetiza ; — o sacerdote,
a sacerdotiza ; — o diacono, a diaconiza ; — o poeta,
a poetiza ; — o actor, a actriz ; — o patrão, a patroa ; — o
ladrão, a ladra, ladrôa ou ladrona
.

Da formação do plural
nos adjectivos qualificativos

192. Os adjectivos qualificativos formão o seu plural
como os substantivos de terminação correspondente. São
exceptuados :

1.° Os adjectivos em il, dos quaes só os do terminação
forte, como vil, hostil, pueril, infantil, etc., formão o seu
plural em ís, — vis, hostis, pueris, infantis, etc., ao passo
que os do terminação fraca, como debil, fertil, futil, habil,
etc., o formão em eis, — debeis, ferteis, futeis, habeis, etc.

2.° Os seguintes adjectivos em Ão que se desenvolvem
nas suas quatro formas polo modo que se segue :

tableau Singular | Plural
Masc. | Fem. | Masc. | Fem.
allemão, | allemãa, | allemães, | allemãas ;
catalão, | catalãa, | catalãos, | catalãas ;
chão, | cliãa, | chãos, | chãas ;
rabão, | rabona, | rabãos, | rabonas ;
são, | sãa, | sãos, | sãas ;
temporão, | temporãa, | temporãos, | temporãas
vão, | vãa, | vãos, | vãas.
149

Observações
sobre os adjectivos qualificativos

193. Assim como os determinativos deixando do ser
adjectivos passão a ser pronomes, assim tambem os qualificativos
doixando de exercer as funcções de apposição ou
do predicado para assumirem directamente as do sujeito
ou de complemento tornão-se substantivos. O seguinte
exemplo, tanto melhor se presta á demonstração do caso,
que, junto a dous adjectivos determinativos passados a
pronomes, adduz dous adjectivos qualificativos passados a
substantivos.

« O Senhor obrava os seus milagres em presença de
muitos e de poucos (pron.), de sabios e de ignorantes
(subst.). — (João Franco Barreto).

Com os qualificativos compartem a mesma propriedade
os participios variaveis. Ex. Vejão os odiados ou pensionados
do odio se se devem prezar ou offender de ter inimigos l
(P. Ant. Vieira).

Estes substantivos adventicios aceitão, aliás, o amparo
de outro qualificativo ou participio como apposição, ou o
do complemento indirecto proprio dos substantivos genuinos
(com a prepos. de). Ex. Não ha velha tão carregada
de annos, nem velho de tão podres membros que
não tenha o coração são para cuidar ruindades, e a lingua
inteira para dizer mentiras
. (P. Ant. Vieira). — « Oh ! Senhor !
como tudo isto me está, com mudas vozes, significando

o acertado de vossas disposições, o robusto de vosso
braço
, e o immovel de vosso throno ! (P. Man. Bernardes).

Entretanto, mesmo neste novo estado, não perdem
elles a faculdade inherente á sua qualidade originaria ou
adjectival de assumirem os diversos gráos de significação.

Ex. E todos os mais ricos e abundantes do mundo,
para onde vão ?
(P. Ant. Vieira).

Frei Thomaz da Costa fazia derreter em lagrimas até os
mais descompostos na vida. (Fr. Luiz de Souza).

194. Por uma compensação natural, os mais genuinos
substantivos podem vir a ser accidentalmente adjectivos
qualificativos. O caso se dá todas as vezes que, deixando
do designar um ente, passão a exprimir uma qualificação.
Ex. « Oh ! soldado mais valente, mais guerreiro, mais generoso,
mais prudente e
mais soldado que eu ! (P. Ant. Vieira).
Com mulheres não sabe o homem como ha de haver-se... se
150as frequenta, é mais que louco ; se não as frequenta, é menos
que
homem. (P. Ant. Vieira). — Tudo isto sahe do sangue e
do suor dos tristes indios, aos quaes trata como
tão escravos
seus
, que nenhum tem liberdade, nem para deixar de servir a
elle, nem para poder servir a outrem
. (P. Ant. Vieira). —
Os sujeitos de que fallamos, são mais declamadores que
ministros. (Duarte Ribeiro de Macedo). — Que tendes, que
possuís, que lavrais, que trabalhais que não houvesse de ser
necessario para o serviço de el rei, ou dos que se fazem mais
que
reis com este especioso pretexto ! No mesmo dia havieis
de começar a ser
feitores, e não senhores de toda a vossa
fazenda
. (P. Ant. Vieira).

Capitulo V
Do pronome

195. Pronome é uma palavra variavel que, substituindo-se
aos substantivos, e até a pronomes de especie
diversa, faz todas as funcções proprias do substantivo, com
a dupla vantagem de aclarar a dicção pela simplificação
das formas, e de suavisá-la pela eliminação de repetições
fastidiosas. Pois, a não haver pronomes, em vez de dizer-se,
por exemplo : « Horrorisado de si mesmo, o Iscariotes se
matou », forçoso seria dizer : « Horrorisado do mesmo Iscariotes,
o Iscariotes matou ao proprio Iscariotes
 », formula essa
que a usança dos pronomes torna simplesmente intoleravel.

196. Porém a substituição dos substantivos pelos pronomes
verifica-se de dous modos bem diversos : em uns
casos, determinadamente ; em outros, indeterminadamente.
Dahi duas especies de pronomes ; os instaveis e os estaveis.

1.° A substituição é determinada quando o pronome
allude claramente a um substantivo ou outro pronome anterior,
ou ainda a um pronome ou substantivo apenas subentendido.
Tres exemplos bastão para a demonstração
destas varias hypotheses.

Primeiro exemplo :

E houve algum homem tão mimoso da fortuna neste
mundo
, que, em alguma ou em todas as cousas delle, achasse
151o descanso que buscava ? nenhum. (P. Ant. Vieira). — Cada
um dos quatro pronomes ahi assignalados tem uma referencia
innegavel a algum substantivo anterior : pois o primeiro
que allude evidentemente ao substantivo homem (o
qual homem) ; — delle allude ao substantivo mundo (as
cousas do mundo
) ; — o segundo que allude ao substantivo
descanso (o qual descanso) ; — emfim nenhum allude não
menos claramente ao substantivo já uma vez substituido :
homem (Nenhum homem). — Os substantivos ou pronomes
assim representados por um pronome posterior chamão-se
antecedentes.

Segundo exemplo :

Uns para uma parte, outros para outra, todos estão
cansando-se em buscar o descanso, e
todos estão cansados de
o não achar
. (P. Ant. Vieira). — Embora os quatro pronomes
ahi particularmente assignalados : uns, outros, todos
e todos, não se refirão a nenhum substantivo ou pronome
anteriormente expresso, o espirito não vacilla, á vista do
teor da oração, em assignar-lhes, como antecedente, o substantivo
subentendido homens. Portanto, neste caso tambem,
póde-se considerar a substituição como determinada.

Terceiro exemplo :

Todos os que. andais cansados, vinde a mim, diz Christo,
e eu vos alliviarei
. (P. Ant. Vieira). — Restabelecidos na sua
ordem logica, os diversos pensamentos desta oração se succedem
como se segue : « Christo diz : Vinde (vós) a mim
todos os
que andais cansados, e eu vos alliviarei » — Embora
o trecho assim disposto não lucre nada em lucidez de expressão,
todavia presta-se melhor a demonstrar que o antecedente
de que é o subentendido pronome vós, sujeito
occulto de vinde (vós os quaes andais cansados…).

Ora, por uma lei que lhes é a todos commum, os pronomes
desta especie, isto é, os instaveis, concordão com
o seu antecedente, não só em genero e numero, senão tambem
em pessoa, para, por este modo, assignalar com mais
certeza a palavra por elles substituida.

Todavia esta concordancia só se patenteia irrecusavelmente
nos pronomes caracteristicos de genero e numero,
como o são delle e nenhum no primeiro exemplo, e uns,
,
outros e todos no segundo. Quando, porém, como que,
não são caracteristicos, nem de numero, nem de genero,
forçoso é, para destrinçar nelles a concordancia, soccorrer-se
ao processo da substituição (o qual, a qual, os quaes, as
quaes
), ou a outras considerações não menos concludentes.152

Assim é que o relativo que do terceiro exemplo não é só
masculino plural por ser convertivel em os quaes, mas ainda
porque o seu predicado cansados, que com elle necessariamente
concorda, ostenta o mesmo genero e numero. Além
disso deduz-se facilmente que o mesmo pronome assumiu a
segunda pessoa do plural por substituição a — vós, — pela
regencia que, como sujeito, exerce em andais, do mesmo
numero e pessoa. e assim se acha verificado o aphorismo :
Que todos os instaveis concordão com o seu antecedente
expresso ou subentendido, não só em genero e numero,
senão tambem em pessoa.

2.° O mesmo não se dá com os estaveis. Por falta
de um antecedente, quer expresso, quer subentendido, ao
qual se possão referir, ficão sendo tidos como substituindo
um substantivo indeterminado que em si mesmos encerrão ;
mas, por isso mesmo, incapazes de concordancia, permanecem
impreterivelmente addidos a um só genero e numero,
que, fóra dos pronomes numeraes, é sempre o masculino
singular.

Exemplo :

Quem trabalha, trata da sua vida ; quem está ocioso,
trata das alheias
. (P. Ant. Vieira).

Tudo é vaidade, excepto amar e servir a Deos. (P.
Ant. Vieira).

Vestiu-se o sol de sangue, e o ar de luto ; e quem diz
que viu
mais não viu nada. (Luiz Torres de Lima).

Alli ninguem se queixa, nem da pobreza, nem dos achaques,
nem das paixões da alma, nem das miserias do mundo
.
(P. Man. Consciencia).

Isto de ter inimigos é uma semrazão ou injuria tão honrada,
que
ninguem se deve doer ou offender della. (P. Ant.
Vieira).

197. Considerados, porém, em relação á sua significação,
os pronomes, quer instaveis, quer estaveis, repartem-se
em seis classes : os pessoaes, os numeraes, os demonstrativos,
os possessivos, os relativos e os indefinitos
.

Dos pronomes pessoaes

198. São pessoaes os pronomes que, como sujeitos, constituem
as tres pessoas da dicção, quer no singular, quer no
plural, e que, como complementos ou predicados, as estão
recordando.153

tableau Singular | Plural
1.ª pes. | 2.ª pes. | 3.ª pes. | 1.ª pes. | 2.ª pes. | 3.ª pes.
(1) | eu, | tu, | elle (ella) ; | nos, | vos, | elles (ellas).
(2) | me, | te, | se ; | nos, | vos, | se.
(3) | mim, | ti, | si ; | nos, | vos, | si.
(4) | … | … | o (a) ; | … | … | os (as)
(5) | … | … | lhe ; | … | … | lhes.
(6) | … | … | elle (ella) ; | … | … | elles (ellas).
(7) | o (estav.)

199. A primeira linha abrange os referidos pronomes
no estado do sujeito, havendo tão sómente de notar-se que
nós o vós, em tal caso, não prescindem do accento agudo.
Exemplo :

tableau Eu amo | Nós amamos
Tu amos | Vós amais
Elle (ella) ama | Elles (ellas) amão.

200. a segunda linha abrange pronomes no estado de
complemento directo ou indirecto, porém, nesta segunda
hypothese, com occultação da preposição a, sendo, aliás,
em um como no outro caso, obrigatoria a eliminação do
accento agudo em nos e vos. Ex.

Primeira hypothese

tableau Eu me gabo | (analyticamente) | Gabo minha pessoa
Tu te gabas | Gabas tua pessoa
Elle (ella) se gaba | Gaba sua pessoa
Nós nos gabamos | Gabamos nossas pessoas
Vós vos gabais | Gabais vossas pessoas
Elles (ellas) se gabão | Gabão suas pessoas.

Segunda hypothese

tableau Eu me attribuo um direito… | (analyt.) | á minha pessoa
Tu te attribues um direito… | á tua pessoa
Elle (ella) se attribuo um direito… | á sua pessoa
Nós nos attribuimos um direito… | ás nossas pessoas
Vós vos attribuís um direito… | ás vossas pessoas
Elles (ellas) se attribuem um direito… | ás suas pessoas

201. A terceira linha abrange pronomes no estado de
complemento indirecto do proposição expressa, sendo que,
154em tal caso, nós e e vós não prescindem de accento agudo.
Ex.

tableau Fallo em mim | Fallamos entre nós
Fallas de ti | Fallais contra vós
Falla por si | Fallão de per si.

Observação. Achando-se sob a regencia da preposição
com, os mesmos pronomes contrahem-se como se segue :

tableau commigo, | comtigo, | comsigo,
comnosco
, | comvosco, | comsigo.

202. O pronome da quarta linha (o, a, os, as), caracterisado
pela faculdade do se deixar antepor ou pospôr ao
verbo, não exerce senão uma unica funcção, a de complemento
directo, sendo por isso summamente proprio para a
discriminação dos verbos activos ; pois basta que possa ser
adduzido, em sentido complementario, junto a um verbo,
para valer-lhe esta qualificação. Ex.

Ama o teu inimigo ; porque, se o não queres amar porque
é inimigo, déve-
lo amar porque é homem. (P. Ant. Vieira). —
(… porque, se não queres amá-lo porque é inimigo, deves
amá-lo porque é homem).

Com mulheres não sabe o homem como ha de haver-se;
 ;
se não as ama, têm-no por néscio ; se as ama, por leviano;
 ;
se as deixa, por cobarde ; se as segue, por perdido ; se as
serve, não o estimão ; se as não serve, o aborrecem ; se as
quer, não o querem ; se as não quer, o perseguem. (P. Ant.
Vieira).

Nota. E’ peculiar deste pronome, não só ligar-se ao
verbo immediatamente anterior pela risca de união (E´ teu
inimigo, porém
ama-o), senão tambem apparecer em certos
e determinados casos, de que em outra parte tratar-se-ha,
sob as formas lo, la, los, las (… déve-lo amar…), e no,
,
na, nós, nas (… têm-No por néscio…), em virtude de duas
figuras de dicção chamadas anthitese e próthese.

203. O pronome da quinta linha (lhe, lhes), correspondendo
analyticamente ás locuções a elle, a ella, — a
elles, a ellas
, não é nem póde ser senão complemento
indirecto de preposição occulta. Ex.

Sabeis porque vos querem mal vossos inimigos ? Ordinariamente
é porque vêm em vós algum bem que elles quizerão
ter e
lhes falta (a elles).

A quem não tem bens, ninguem lhe quer mal (a elle).
— (P. Ant. Vieira).155

204. O pronome da sexta linha (elle, ella, — elles,
ellas
) ahi apparece segregado para significar que, sendo
tambem passivel da regencia de uma preposição, torna-se
neste estado, complemento indirecto. Ex.

Oh ! quanta verdade é que a figura deste mundo sempre
está passando, e nós
com ella. (P. Man. Bernardes).

Sendo de ou em as preposições que o regem, o mesmo
pronome com ellas se contrahe como se segue :

tableau delle, della, | delles, dellas,
nelle, nella, | nelles, nellas
.

Exemplos :

Taes são os bens da fortuna, que carecer delles é miseria,
e possuí-los, perigo
. (P. Ant. Vieira).

Cabe ira n´uma formiga; e basta que a natureza viva
naquelles atomos, para que
nelles offendida se dôa, nelles
aggravada morda, nelles tome satisfação de sua injuria. (P.
Ant. Vieira).

205. O pessoal isolado da setima linha (o estavel),
caracterisado, como o seu homonymo — o — instavel, pela
faculdade de ir anteposto ou posposto ao verbo, e neste
ultimo caso, de ligar-se a elle pela risca de união, emfim
de prestar-se igualmente á antíthese o á próthese, differe,
todavia do instavel, não só pela sua permanência no masculino
singular, como ainda por constituir, além do um
complemento directo junto a um verbo de acção, tambem
um predicado junto a um verbo de estado. Ex.

(Complem. dir.) Com estas abonações do juizo de Deos
entrou a luz no juizo dos homens : e, como vos parece que
sahiria delle ?
disse-o Christo no capitulo terceiro de S. João;
 ;
e foi preciso que o mesmo Christo o dissesse para que o créssemos.
(P. Ant. Vieira).

(Predicado). Oh ! que boa lembrança para a mesa dos
principes, e dos que o não
são ! (P. Ant. Vieira).

A differença fundamental que separa o pessoal instavel
— o — do seu homonymo estavel, deve ser procurada no
modo por que cada um delles procede na substituição
propria de todos os pronomes.

O instavel — o — sempre e necessariamente recorda um
substantivo ou outro pronome claramente determinado.
Ex.

Finalmente, o mesmo Deos condemna o meu inimigo porque
156é meu inimigo : pois, se Deos o condemna e aborrece,
porque o hei de amar eu ?
(P. Ant. Vieira). — Que ambos
os instaveis deste exemplo igualmente alludem ao substantivo
anterior « o meu inimigo », e com elle concordão em
genero e numero, torna-o evidente o processo da substituição :
« Finalmente, o mesmo Deos condemna os meus inimigos
porque são meus inimigos : pois, se Deos os condemna
e aborrece, porque
os hei de amar eu ? »

O estavel — o — , pelo contrario, quer seja complemento
directo, quer seja predicado, porta-se de modo muito diverso.

Como complemento directo, nunca se dirige pela referencia
a um substantivo ou pronome determinado, e sim a
um pensamento todo, ou ao menos a um conjuncto de palavras
onde nenhuma se presta a servir-lhe particularmente
de antecedente, sendo o mesmo pronome analyticamente
supprivel em tal caso, com bastante propriedade, pelo demonstrativo
tambem estavel isto, como mais adiante provar-se-ha.
Ex.

Accende e provoca esta batalha a trombeta da fama,
dizendo e bradando que é honra. Põe-se da parte do odio e
da vingança o mundo todo, que assim o manda, que assim
o
julga, que assim o applaude, que assim o tem estabelecido por
lei
. (P. Ant. Vieira). — (… que assim manda isto, que assim
julga
isto, que assim applaude isto, que assim tem estabelecido
isto por lei). — e tanto se verifica a nenhuma referencia
do mesmo pronome a algum substantivo determinado, que,
sendo todos os mencionados substantivos transferidos para
o plural, com nenhum delles vem a concordar o estavel — o.
« Põem-se da parte dos odios e das vinganças os homens todos,
que assim o mandão, que assim o julgão, que assim o applaudem,
que assim o têm estabelecido por lei
. »

Sendo predicado, a condição em que se acha o mesmo
estavel é muito diversa ; pois representa ás vezes doterminadamente
uma palavra anterior, mas uma palavra da
indole das que são essencialmente proprias a constituir um
predicado, e vêm a ser um adjectivo, um participio variavel,
ou quando muito um substantivo adjectivado. Ex.

No P. Antonio Vieira, tudo é casto nos termos, tudo o é
na phrase
. (D. Franc. Alexandre Lobo). — (… tudo é casto
na phrase).

Autores ha que se persuadem não estar o céo privado
de semelhantes recreações ; mas, quando o esteja destas, bem
sabemos que tem outras muitas e maiores
. (P. Man. Consciencia).
— (… mas, quando esteja privado destas…).157

Esperava eu que Sua Magestade mandasse que se me
desse uma satisfação
publica, porque o tinha sido a affronta.
(P. Ant. Vieira). — (… porque publica tinha sido a affronta).

Por ventura, a seguinte oração, em que o P. Ant.
Vieira falla dos lisonjeiros, presta-se a confirmar a allegação
anteriormente aventada que, quando complemento directo,
o pessoal estavel — o — póde ser tido por mero equivalente
de isto. « e, se isto não vêm claramente todos os reis, é
porque é tal o doce veneno da lisonja, que, entrando pelos ouvidos,
lhes cega tambem os olhos
. » — Pois nada obstaría a
que se dissesse com a mesma propriedade : « e, se o não
vêm claramente todos os reis
… »

Dos pronomes numeraes

206. São pronomes numeraes os adjectivos numeraes
cardeaes, e mais o distributivo ambos, quando, estando desligados
de todo e qualquer substantivo ou outro pronome,
exercem de per si mesmos as funcções de sujeito ou de
complemento. Ex.

No capitulo 82 do Deuteronomio,… Deos diz assim : « Tal
será o animo que infundirei em vossos corações, e o esforço
com que armarei vossos braços, que
um de vós vença e ponha
em fugida a
mil, e dous, a dez mil. » (P. Ant. Vieira).

Oh ! generoso principe, e prudente general, que soubeste
seguir e aprender de teu soldado ! Oh ! valente e sabio soldado,
que soubeste ensinar a vencer o maior general
 ! ambos
tocarão a recolher a tempo, e, por isso, seguirão a maior victoria,
porque fizerão a seu tempo a retirada
. (P. Ant. Vieira).

207. Em relação á estabilidade ou instabilidade, os pronomes
numeraes são ambiguos, visto como pertencem, conforme
o caso, já a esta, já áquella categoria.

São estaveis quando, tomados em abstracto, não alludem
a nenhum antecedente. Ex.

Em um ha unidade, mas não póde haver união; em
dous, que são duas unidades, já póde haver união. (P. Ant.
Vieira).

São instaveis quando, tomados em concreto, correspondem
formalmente a um substantivo determinado, do
qual recebem o genero e numero. Ex.

Se houvesse dous homens de consciencia, e outros que lhes
succedessem, não haveria inconvenientes em estar o governo

158dividido. Mas, se não houver mais que um, venha um, que
governe tudo, e trate do serviço de Vossa Majestade
. (P. Ant.
Vieira).

Se um só destes poderosos tendes experimentado tantas
vezes, que bastou para assolar o Estado, que farião tantos !

(P. Ant. Vieira).

Dos pronomes demonstrativos

208. São pronomes demonstrativos, não só os mesmos
adjectivos demonstrativos quando desligados de todo e qualquer
substantivo ou outro pronome, senão tambem mais
alguns vocabulos que com elles se aparentão pelo sentido,
ou delles procedem por derivação. Uns são instaveis ; os
outros estaveis.

209. Os instaveis são :

1.°

tableau este, a, es, as ; | est’outro, a, os, as.
esse, a, es, as ; | ess’outro, a, os, as.
aquelle, a, es, as ; | aquell’outro, a, os, as.

Exemplos :

Tudo está fervendo em movimentos que acabão e começão :…
aquelles cantão, e dalli a pouco chorão ; est’outros
chorão, e dalli a pouco cantão. (P. Man. Bernardes).

De que serve opprimir e afogar ao miseravel quando, por
mais que o apertem, não paga porque não tem ?
Por ventura,
a fome do pobre é prato do rico ? ou o padecer
aquelle,
é arrecadar este ? (P. Man. Bernardes).

2.°

tableau o, a, os, as.

Este vocabulo é pronome demonstrativo quando, sendo
analyticamente convertivel em aquelle, a, es, as, apparece
seguido do relativo que, ou inteirado por um complemento
indirecto. Differe, além disso, do seu homonymo pessoal,
que só pode constituir um complemento directo, pela faculdade
de exercer todas as funcçõos proprias dos pronomes
em geral, isto é, de ser sujeito, complemento directo ou
indirecto, predicado ou apposição. Ex.

Quantos forão mais venturosos com seus erros, que outros
159com seus acertos ! Algum que sempre errou, que nunca fez cousa
boa, nomeado, applaudido, premiado
 ! o que acertou, o que
trabalhou, o que subiu á trincheira, o que derramou o sangue,
enterrado, esquecido
, posto a um canto. (P. Ant. Vieira). —
(… aquelle que…).

Nos corpos inteiros e unidos, como era o do gigante, o
melhor tiro é á cabeça ; mas, em corpos onde ha desunião,
como era
o da estatua, o mais seguro tiro é ao desunido,
ainda que sejão os pés
. (P. Ant. Vieira). — (… aquelle do
gigante
aquelle da estatua").

Aliás o seguinte exemplo, em que o mesmo pronome
se encontra promiscuamente repetido com o seu homonymo
pessoal instavel, offerece o meio mais azado para praticamente
exercitar-se a discriminar um do outro :

Os nossos ministros, ainda quando vos despachão bem,
fazem-vos os tres mesmos damnos : o do dinheiro, porque
o
gastais ; o do tempo, porque o perdeis ; o das passadas, porque
as multiplicaes. (P. Ant. Vieira). — (… aquelle do dinheiro,
porque gastai-
lo ; aquelle do tempo, porque perdei-lo ; aquelle
das passadas, porque multiplicai-las).

Outrosim, embora immediatamente posposto ao verbo,
o demonstrativo instavel — o — a elle não se liga, como o
seu homonymo pessoal, pela risca de união, nem tão pouco
se presta ás modificações da antíthese ou da próthese. Ex.

E quem são os panegyristas destes louvores ? Não são os
que padecem o diluvio fora da arca ; não são os que morão
e morrem fóra das paredes do palacio, senão os que vivem e
reinão das portas a dentro
. (P. Ant. Vieira).

Eis-aqui o que vêm a não poder os que querem mais do
que podem
. (P. Ant. Vieira).

Outro Cornelio confirma a verdade de seu dito, com falta
de verdade, de que só
carecem os que são senhores de tudo.
(P. Ant. Vieira).

210. Todos os referidos pronomes são passiveis das
mesmas contracções a que ficão sujeitos, os primeiros, na
qualidade de adjectivos demonstrativos, e o segundo, na
de artigo definito.

1.°

tableau deste, a, es, as ; | dest’outro, a, os, as.
desse, a, es, as ; | dess’outro, a, os, as.
daquelle, a, es, as ; | daquell’outro, a, os, as.
neste, a, es, as ; | nest’ouiro, a, os, as.
nesse, a, es, as ; | ness’outro, a, os, as.
naquelle, a, es, as ; | naquell’outro, a, os, as.
áquelle, a, es, as ; | áquell’outro, a, os, as.
160

Ex. O que eu poupo, e o que não gasto, não é meu : é
daquelles a quem eu o hei de deixar, e depois o hão de
gastar muito alegremente
. (P. Ant. Vieira).

Destes dous mandamentos nascem todos os outros, porque
nestes estão todos encerrados. (D. Fr. Bartholomeu dos Martyres).

Entre todas as idades, como a puericia e a adolescência
estão expostas a mais riscos, tambem são as que mais necessitão
de documentos. Importa summamente
áquella o ter virtuosos
exordios
. (P. M. Consciencia).

2.°

tableau ao, | á, | aos, | ás.
do, | da, | dos, | das.
no, | na, | nos, | nas.
pelo, | pela, | pelos, | pelas.

Ex. a quem attribuir tudo isso? Aos lisonjeiros e aduladores
de dentro
 ; aos que têm as entradas francas, e as chaves
tão douradas como as linguas
 ; aos que participão os segredos
e arcanos da monarchia
. (P. Ant. Vieira).

O cornaca tinha um laço que mettia em uma das mãos ao
elephante bravo, e o enleiava Á do mesmo Ortelá, ficando
ambos presos
. (João Kibeiro).

Que diz Pythagoras ? « Gosta antes dos que te arguem,
que
dos que te adulão. » (P. Ant. Vieira).

« Não me admiro tanto, Senhor, de que hajais de consentir
semelhantes aggravos e affrontas nas vossas imagens, pois já
as permittistes em vosso sacratissimo corpo ; mas
, nas de
Maria
, nas de vossa santíssima Mãi, não sei como isto póde
estar com a piedade e amor de filho !
 » (P. Ant. Vieira).

Estes jogos e estes desenfados, sim; e o das cartas troque-se
pelo da carta. (P. Ant. Vieira).

211. Os estaveis são :

1.°

tableau isto, | isso, | aquillo.

Ex. Pois isto por que todos trabalhão, hei de ensinar
hoje o modo com que se possa alcançar sem trabalho
. (P. Ant.
Vieira).

Se o rei está benigno e humano, para isso tem rosto de
homem
. (P. Ant. Vieira).161

Aquillo que amaveis e admiraveis, não era o corpo, era
a alma
. (P. Ant. Vieira).

2.° — o.

Este vocabulo é pronome demonstrativo estavel quando,
sendo analyticamente convertivel em aquillo, apparece
seguido do relativo que, ou do um complemento indirecto.
Differe do seu homonymo pessoal, que só póde constituir
um complemento directo ou um predicado, pela faculdade
de exercer, não só estas, como todas as mais funcções
proprias dos pronomes em geral.

Ex. O que sustenta e conserva os reinos, é a união. (P.
Ant. Vieira). — (… aquillo que…).

No dia do nascimento, ninguem póde saber o para que
nasce. (P. Ant. Vieira). — (… aquillo para que…).

Os seguintes trechos, em que juntamente occorre o referido
pronome com o estavel pessoal, offerece o meio pratico
de discriminar um do outro.

O que eu poupo, e o que eu não gasto, não é meu : é
daquelles a quem eu o hei de deixar, e depois o hão de gastar
muito alegremente
. (P. Ant. Vieira). — (aquillo que eu poupo,
e
aquillo que eu não gasto, não é meu : é daquelles a quem
hei de deixa-
lo, e depois hão de gastá-lo mui alegremente).

O que desigualou o poder, póde-o supprir a arte ; o que
errou a mesma arte, póde
-o emendar a fortuna ; mas o que se
intentou sem conselho, ainda que o favoreça o acaso, nunca é
victoria
. (P. Ant. Vieira). — (aquillo que desigualou o poder,
póde supprí-
lo a arte ; aquillo que errou a mesma arte, póde
emenda-
lo a fortuna ; mas aquillo que se intentou sem conselho,
ainda que favoreça-
o o acaso, nunca é victoria).

Aliás reverte tambem a este pronome, como ao demonstrativo
instavel, a interdicção de se ligar ao verbo
anterior pela risca do união, assim como do se prestar á
antíthese ou á próthese. Ex.

(Ao pretendente), se lhe não podeis dar o que lhe negais,
quem lhe ha de
restituir o que lhe perdeis ? (P. Ant.
Vieira).

Estes são os aduladores, que louvão o que não deverão
louvar, e
applaudem o que não deverão applaudir, e ajudão
o que deverão estorvar. (P. Ant. Vieira).

212. Todos estes estaveis se contrahem do mesmo
modo e nas mesmas circumstancias como os instaveis com
que ficão aparentados pela procedencia :162

1.°

tableau disto, | disso, | daquillo ;
nisto, | nisso, | naquillo ;
áquillo.

No que reparo, é que o Senhor convocasse a seus discipulos
para que
nisso mesmo reparassem, e levassem doutrina.
(P. Man. Bernardes).

Com os dissimulados, não é tanto aquillo que dizem,
como
aquillo que calão, que convêm dar apreço.

2.°

tableau ao, | do, | no, | pelo.

Ex. Se, no nascimento de Judas e Dimas, se levantasse
figura certa
ao que cada um havia de ser em sua vida, a do
primeiro diria que havia de ser apostolo, e a do segundo, que
havia de ser ladrão
. (P. Ant. Vieira).

A dilação são dous males ; o desengano sem dilação é um
mal temperado com um bem, porque, se me não dais o que
peço, ao menos livrais-me
do que padeço. (P. Ant. Vieira).

Não nos enganara o demonio com o mundo, se nós víramos
e conhecêramos bem o que é a alma. Mas, já que não
a podemos ver em si, vejamo-la em nós
 ; no que o corpo ha de
ser, vejamos o que ella é
. (P. Ant. Vieira).

Bem disse S. Ambrosio que mais valia um dinheiro tirado
do pouco, que um thesouro tirado do máximo ; porque se ha
de fazer o computo não
pelo que se dá, senão pelo que remanesce.
(P. Man. Bernardes).

Dos pronomes possessivos

213. São pronomes possessivos os mesmos adjectivos
possessivos quando, desligados de todo e qualquer substantivo
ou pronome, exercem de per si mesmos as funcções
de sujeito ou de complemento, já com anteposição do artigo
definito, já sem elle.

Assim é que, no seguinte exemplo, onde se agglomerão
nada menos de seis possessivos, um só, por constituir o sujeito
163de um verbo elidido, póde ser qualificado do pronome ;
os outros cinco são meros adjectivos, um como apposição,
os demais como predicados.

(No jogo) perde-se a amizade, porque, quando jogamos
com um amigo, a nossa tenção é que o que é seu, seja nosso;
 ;
e a sua, que o que é nosso, seja seu. (P. Ant. Vieira). —
(… a nossa tenção é — que aquillo seja nosso, — que é seu ;
e a sua (é) — que aquillo seja seu, — que é nosso).

214. Em relação á instabilidade ou estabilidade, os pronomes
possessivos são ambiguos, visto como pertencem já
á primeira, já á segunda destas categorias conforme alludem
ou não alludem a um antecedente expresso ou subentendido.

Exemplos :

(Posses, estav.) No principio do mundo, como gravemente
pondera Seneca, porque não houve guerras ? Porque
usavão os homens da terra como do céo. O sol, a lua, as estreitas,
e o uso da sua luz é commum a todos ; e assim era a
terra no principio. Porém, depois que a terra se dividiu em
diferentes senhores, logo houve guerras e batalhas, e se acabou
a paz porque houve
meu e teu. Que direi dos meios e dos
remedios, das industrias, das artes e instrumentos que os homens
têm inventado para que cada um podesse possuir e lograr
o
seu, segura e quietamente, mas sem proveito ? (P. Ant.
Vieira).

(Posses, instav.) Para guardar os reinos e os imperios,
inventarão as armadas por mar, e os exercitos por terra:
 :
tantos mil soldados a pé, tantos mil a cavallo, com tanta
ordem e disciplina, com tanta variedade de armas, com tantos
artificios e machinas bellicas. Mas nenhum destes apparatos
tão estrondosos e formidaveis tem bastado, nem para que os
Assyrios guardassem o seu imperio dos Persas, nem os Persas

o seu dos Gregos, nem os Gregos o seu dos Romanos, nem
os Romanos finalmente
o seu daquelles a quem o tinhão tomado,
tornando a ser vencidos dos mesmos que tinhão vencido
e dominado
. (P. Ant. Vieira).

Nós contámos então á honrada dona tudo o como se passára,
mas que não conhecêramos que gente era a que nos fizera
aquillo, nem sabiamos a razão por que no-lo fizera
. a isto
respondêrão
os seus que aquelle junco grande que diziamos,
era de um mouro guzarate
. (Fornão Mendes Pinto).164

Dos pronomes relativos

215. Os pronomes relativos são só tres : que, quem, e
o qual, a qual, os quaes, as quaes
.

Ex. Os ladrões que mais propria e dignamente merecem
este titulo, são aquelles
a quem os reis encommendão os exercitos
e legiões, ou o governo das provincias, ou a administração
das cidades
, os quaes, já com manha, já com força, roubão e
despojão os povos
. (P. Ant. Vieira).

216. Assim como o declara o seu appellido de relativos,
estes pronomes ficão terminantemente caracterisados por
uma imprescindível referencia a um antecedente expresso
ou apenas subentendido, sendo este necessariamente, ou um
substantivo, ou um pronome de especie diversa, ao qual
tomão, não só o genero e numero, senão tambem a pessoa.

Exemplo :

Donde tantos prestimos e utilidades, senão de vós, Senhor,
que não obrais cousa debalde, e vazia de virtude ! (P. Man.
Bernardes). — (… de vós que não obrais cousa debalde…).

217. São, portanto, instaveis por natureza, embora
só o ultimo seja caracteristico de numero e genero, graças
á adjuncção constante do artigo definito. Todavia mesmo
os dous primeiros não se negão a ser praticamente discriminados
de seus homonymos pelo processo da substituição :
pois, sendo analyticamente convertiveis em uma das quatro
formas do seu ultimo congenero (o qual, a qual, os quaes,
as quaes
), signal é que são relativos. (Os ladrões os quaes
mais propria e dignamente merecem este titulo, são aquelles
os quaes os reis encommendão…).

O seguinte exemplo completa a demonstração, apresentando
o caso de um antecedente apenas subentendido.

« Senhores meus, que tão desvelados andais todos, e tão
esfaimados por ter de comer, e por deixar de comer a vossos
filhos, seguí e serví a Christo, e eu vos asseguro da sua parte
que, nem a vós, nem a elles, lhes faltará pão
. » (P. Ant.
Vieira).

Ahi avoca tão claramente a interpellação « senhores
meus
 », a idéa que o discurso subsequente vai dirigido a
umas segundas pessoas do plural, que o espirito não hesita
em ajuntar mentalmente á mesma interpellação o pronome
— vós — , sujeito effectivo de dous imperativos « seguí e
serví », e, da mesma feita, antecedente de que, ao qual
confere assim as propriedades de vocabulo masculino, da
segunda pessoa do plural
, o que tudo ressumbra da concordancia,
165com o mesmo que, do verbo andais, e do predicado
desvelados (« Senhores meus, vós — (os quaes) que andais
tão desvelados
… — seguí e serví… »),

218. Dos tres referidos pronomes é que propriamente
o relativo por excellencia, pois tanto se presta a substituir
entes como abstracções, pessoas como cousas. Deve ser,
portanto, preferido todas as vezes que, do seu uso, não
póde resultar falta de lucidez ou de euphonia.

219. O relativo que cede do seu direito, para traspassá-lo
a quem, só e unicamente quando, tendo de representar
uma pessoa ou um ente personificado, haveria de
apparecer regido de uma preposição.

Exemplos :

Assim fazem os impios e maliciosos, a quem não ha innocencia
que satisfaça, nem desculpa que contente
. (P. Man.
Bernardes). — (… aos quaes não ha innocencia…).

Forão inventores destes jogos Hercules, Pytho, Theséo e
outros heroes
, de quem os tomarão os Gregos e Romanos.
(P. Ant. Vieira). — (… dos quaes os tomárão...).

Se um terceiro filho de el rei D. João o Primeiro foi o
que lançou a primeira pedra no edifício já tão levantado da
Igreja Oriental, o filho quarto de el rei D. Pedro o Segundo,
do mesmo sangue real, e de pais tão zelosos da propagação da
fé e piedade christãa, porque não será aquelle
para quem
Deos tenha guardado o fechar as abobadas do mesmo edifício ?
(P. Ant. Vieira). — (… porque não será aquelle para o
qual
Deos tenha guardado…).

Fóra destas tres condições : 1.° ser convertivel em o
qual, a qual, os quaes, as quaes
 ; — 2.° estar sob a regencia
de uma preposição ; — 3.° emfim ter um antecedente expresso,
quem não é mais pronome relativo, e sim pronome
indefinito
.

220. O relativo o qual se substituo a que ou quem
em seja qual for a funcção.

Exemplos :

Tal era aquelle rico avarento do Evangelho, o qual,
banqueteando-se todos os dias esplendidamente, nem se lembrava
de Deos, nem do pobre Lazaro que tinha diante de si
. (Fr.
Luiz de Granada).

Quizerão, diz a Sagrada Escriptura, as arvores fazer um
rei que as governasse, e forão offerecer o governo á oliveira
, a
qual
se excusou, dizendo que não queria deixar o seu oleo
166com que se ungem os homens, e se allumião os deoses. (P.
Ant. Vieira).

Tudo isto sahe do sangue e do suor dos tristes índios,
aos quaes trata como tão escravos seus, que nenhum tem liberdade,
nem para deixar de servir a elle, nem para poder
servir a outrem
. (P. Ant. Vieira).

Dos pronomes indefinitos

221. São pronomes indefinitos accidentaes :
1.° Os adjectivos de mesmo appellido quando desligados
de todo e qualquer substantivo ou pronome (V. § 159 e
observações subsequentes), resumindo-se o seu numero nos
vocabulos seguintes :

tableau Algum | Mesmo | Qualquer
Bastante | Muito | Quanto
Demais | Nenhum | Que
Fulano | Outro | Sicrano
Mais | Pouco | Tal
Menos | Qual | Tanto
Todos, todas.

2.° O vocabulo um, uma quando, desligado de todo e
qualquer substantivo ou pronome, e quando, repugnando á
associação do só ou unico, não se recusa á feição do plural
(uns, umas).

Exemplos :

um é affeiçoado á caça ; e, quando os cães andão luzidios
e anafados, ver-lhe-heis os criados pallidos e mortos a fome
.
(P. Ant. Vieira).

Oh ! que ponto este para os cubiçosos e para os avarentos !
Se eu os consultasse, a elles, do remedio para accrescentar
pão, para multiplicar fazenda
, uns havião de dizer que
negociar, e, melhor que tudo, negociar para o Maranhão
. (P.
Ant. Vieira).

3.° Os já referidos que, quem, qual.

(1) Que é pronome indefinito quando se deixa convertor
em que cousa ou cousa que… ; e, em tal ocurrencia,
é sempre estavel.

Exemplos :

Que são as perolas e os diamantes, senão uns vidros mais
duros ? Que cousa são as galas, senão um engano de muitas

167córes ? (P. Ant. Vieira). — (As perolas e os diamantes são
que cousa… ?).

Que tendes, que possuis, que lavrais, que trabalhais que
não houvesse de ser necessario para serviço de el rei, ou dos
que se fazem mais do que reis com este especioso pretexto ?

(P. Ant. Vieira). — (Vós tendes, possuís, lavrais, trabalhais
que cousa — a qual não houvesse de ser necessaria… ?).

E’ prognostico certo, confirmado pela experiencia, que não
virão a ter
que comer os que frequentarem o diabolico invento
do jogo
. (P. Ant. Vieira). — (… cousa que comer…).

Conta Plutarco que, passando um egypcio por uma rua
de Athenas, não sei com
que debaixo da capa, lhe perguntara
um atheniense
que era o que levava. (Diogo do Couto). —
(… que cousa…).

Nascemos sem saber para que nascemos. (P. Ant. Vieira).
— (… para que cousa nascemos).

Lucullo, cidadão romano, homem riquíssimo, mas muito
vanglorioso, gastava em cada cêa, com os seus convidados,
cinco mil philippéos
, que era um certo dobrão de ouro que
bateu Philippe, rei de Macedonia
. (P. Man. Bernardes). —
(… cousa que era um certo dobrão…).

E’ muito de notar que, alludindo por uma referencia
summaria a um pensamento anterior, o mesmo pronome
assume o artigo definito (o que), reproduzindo assim a
feição de um pronome demonstrativo seguido do seu relativo.
Porém facil é desfazer qualquer duvida a tal respeito :
pois, sendo o que resoluvel em aquelle que ou aquillo que,
signal é que a locução abrange os dous pronomes mencionados
no § 209, ou no § 211 ; sendo resoluvel em cousa
que
ou que cousa, signal é que a mesma locução não é
outra cousa senão o indefinito que precedido do artigo.

Exemplos :

A turca ia fallando com um mouro pobre, roto, esfarrapado
e descalço, sem alguma cousa na cabeça, mas uma grande
grenha e cabelleira
 ; o que a turca fazia por mostrar religião
e santidade
. (Pantaleão de Aveiro). — (… cousa que a
turca fazia
…).

Encontrárão-me dous mancebos mouros bem valentes, a
cavallo, e, porque me virão só, mui asperamente me mandárão
que me apeasse por lhes fazer reverencia ; o
que eu não querendo
fazer, se forão a mim indignados
. (Pantaleão do Aveiro).
— (… cousa que eu não querendo fazer…).168

Chegárão uns criados do turco a quem vinhamos encommendados,
e, juntamente com outros seus amigos, levando dos
alfanges, ferirão mui mal o turco e a seus companheiros
 ;
pelo que acudiu logo gente da caravana pelos seus e por nós.
(Pantaleão do Aveiro). — (… por que cousa acudiu logo
gente
…)

Além do artificio e regras de bem fallar, era el rei D.
Duarte naturalmente eloquente
, pelo que com sua humanidade
junta á eloquencia, attrahia a si os corações dos homens
.
(Duarte Nunes de Leão). — (… por que cousa attrahia
a si
).

Nota. Que esta explicação não é nenhum expediente
do circumstancia, e sim a exposição de um principio fundado,
demonstra-o de sobejo o seguinte exemplo :

« O infante D. Luiz rendia profundas obediências e venerações
a el rei seu irmão
, causa por que este o amou
sempre muito
. » (Fr. Franc. de S. Maria). — Pois nada obstaria
a que a locução ahi assignalada fosse substituída pelo
pronome indefinito que precedido do artigo : « … pelo que
este o amou sempre muito. »

(2) quem é pronome indefinito quando se deixa converter
analyticamente, ou em que homem, ou em homem
que
, ou em aquelle que.

Exemplos :

Se alcança mais este com o seu engano que o outro com
a sua verdade
, quem haverá que trabalhe ? quem haverá que
se arrisque ?
quem haverá que peleje ? (P. Ant. Vieira). —
(… que homem haverá…).

Quando David quiz sahir a pelejar com o gigante,…
então não havia no mundo
quem quizesse ser valente de graça.
(P. Ant. Vieira). — (… já então não havia no mundo homem
que
quizesse…).

quem não quer ser lobo, não lhe veste a pelle. (Proverbio).
— (… aquelle que não quer ser lobo…).

Ao contrario do seu homonymo relativo, o indefinito
quem não está adstricto á unica condição de regime de
uma preposição, mas exerce, e até duplamente pela decomposição
syntaxica, todas as funcções proprias dos pronomes
em geral, porque é vocabulo contracto.

Exemplos :

A quem não tem bens, ninguem lhe quer mal. (P. Ant.
169Vieira). — (Ninguem quer mal ao homem — que não tem
bens
).

Quem ha de governar bem, deixa as suas raizes ; quem
governa mal, arranca as dos subditos, etrata das suas.
(P. Ant. Vieira). — (aquelle deixa as suas raizes, — que
ha de governar bem ; — aquelle arranca as dos subditos, —
que governa mal…).

(3) Qual, como pronome indefinito, é mero substantivo
dos mesmos pronomes indefinitos que e quem todas
as vezes que o sentido destes, por nimiamente vago, deixaria
duvidoso o pensamento. Segue-se dahi que é elle
instavel.

Exemplos :

(Por substituição a que). Por isso eu lá dizia que não
sei
qual lhe fez sempre maior mal, ao Brazil, se a enfermidade,
se as trevas
. (P. Ant. Vieira). — (… não sei que
cousa de duas cousas
lhe fez…).

Se as cousas são pelos effeitos conhecidas, e elles testemunhão
a excellencia ou maldade dellas
, qual o foi de maiores
males e damnos na redondeza, e mettendo os homens em mais
perigosos trabalhos que o ouro ?
(Franc. Rodrigues Lobo). —
(… que cousa o foi de maiores males…).

(Por substituição a quem). Folgai, Antiocho, de terdes
experimentado os revezes da fortuna, e não julgueis ninguem
pelo que exteriormente parece
. quaes, se por ahi fordes, os
maiores servos de Deos, e os que com effusão de generoso
sangue, glorificárão seu unigenito Filho, vos parecerão mais
felizes ?
(D. Fr. Amador Arraes). — (quem, — que homens…
vos parecerão mais felizes ?).

222. São pronomes indefinitos essenciaes, e conseguintemente
sempre estaveis : alguem, ninguem, outrem, tudo,
nada
.

Ex. Houve alguem que dissesse á oliveira que havia de
deixar as suas azeitonas, nem á figueira os seus figos, nem á
vide as suas uvas ?
ninguem. (P. Ant. Vieira).

Sómente lhes disserão e propuzerão que quizessem aceitar
o governo. Pois, se isso foi
o que lhes disserão e offerecerão,
e
ninguem lhes fallou em haverem de deixar os seus fructos,
porque se excusão todas com os não quererem deixar ?
(P.
Ant. Vieira).

Saibamos agora, e não de outrem, senão das mesmas
arvores, se este bom governo, do modo que ellas o entendêrão
,
170se póde conseguir e exercitar com as raizes na terra. (P. Ant.
Vieira).

« O que vi, disse Salomão, e achei em tudo, é que tudo
é vaidade, e afflicção de animo. » (P. Ant. Vieira).

Despede-se o mundo sem dizer-nos nada. (P. Ant. Vieira).

Observações sobre tudo e nada.

223. Tudo passa a ser mero adjectivo indefinito todas
as vezes que, junto a um pronome estavel, vem a exercer
simplesmente a funcção de apposição, o que se averigua
pela circumstancia de se deixar então eliminar da oração
sem estorvo do pensamento.

Exemplos :

Tudo o que nasce na’ terra, o sol ou a chuva o cria.
(P. Ant. Vieira). — (O que nasce na terra…).

Tudo isto que vemos com os olhos, é aquelle espirito sublime,
ardente, grande, immenso : a alma
. (P. Ant. Vieira). —
(isto que vemos…).

Tudo quanto houve, passou ; e tudo quanto é, passa.
(P. Ant. Vieira). — (quanto houve, passou ; e quanto é,
passa
).

E assim se compõe aquella teia e casa de aranha de oitenta
fios
, o que tudo é para que nada lhe escape. (Fr. João
do Coita). — (…o que é para que nada lhe escape.

Verifica-se, aliás, do modo mais frisante, a allegação.
adduzida, pelo seguinte exemplo :

E’ o alheio pontualmente como o vomitorio. Receita-vos o
medico um vomitorio, e, que vos acontece depois que o tomais?
Lançai-lo, a elle, e
tudo o mais que tinheis dentro. Assim é
o alheio. Guardai-vos de o metter no estomago, porque, primeiramente,
não vo-lo ha de lograr, e ha-vos de puxar, e levar
comsigo
o mais que tiverdes nelle. (P. Ant. Vieira).

Pois, trocando-se um caso por outro, dir-se-hia com
mesma propriedade :

« … Lançai-lo, a elle, e o mais que tinheis dentro... e
ha-vos de puxar, e levar comsigo
tudo o mais que tiverdes
nelle
. »

Portanto é realmente tudo, nesta condição, não um
pronome, isto é, o representante de um substantivo, mas
um mero adjectivo, isto é, uma palavra até certo ponto
dispensavel.171

224. Nada, que lexicographos capitulão de substantivo,
e grammaticos, de adverbio, é por essencia pronome
indefinito, pela razão obvia que enuncia, em sentido negativo,
a mesma idéa que tudo enuncia em sentido afirmativo.

Exemplos :

Tudo me agrada. nada me agrada. — Queremos tudo.
Não queremos nada. — Fallão de tudo. Não fallão de
nada
.

Apenas passa este vocabulo a assumir, mas excepcionalmente,
a accepção substantival quando, precedido de um
artigo, designa cousa de pouca monta.

Ex. Quantos homens que se têm em conta de sérios, podem
divertir-se, como crianças, com
uns nadas !

Ha tambem um caso em que, por sua referencia a um
participio, adjectivo ou adverbio, nada arremeda as funcções
adverbiaes.

Ex. Os altares estão feitos de amethystas, cujo preço nada
é inferior. (P. Man. Consciencia).

Mas ahi reproduz-se uma das mais frequentes ellipses,
que é a da suppressão de uma preposição. Diz-se : nada
inferior
, por em nada inferior, como se sóe dizer : Dormir
toda a noite
, por durante toda a noite. E’, portanto, ahi
simplesmente complemento indirecto de preposição occulta.

O mesmo se dá com tudo no seguinte exemplo :

As abobadas, pilares e paredes são tudo cantaria. (Fr.
Luiz de Souza). — (… são em tudo cantaria).

225. Além dos referidos pronomes indefinitos, que,
por constarem de uma só palavra, são simples, notão-se
ainda alguns que, por constarem de mais de uma, são
compostos. Deste numero são cada qual, cada um, quem
quer que seja, o quer que seja
, etc.

Exemplos :

Em qualquer palmo de terra que consideres attentamente,
verás muitas e diferentes naturezas
, cada qual dotada de sua
bondade
. (P. Man. Bernardes). — (… cada qual é dotada…).

Se os Apostolos forão de animo avarento e acanhado, e
quizerão comer os seus cinco pães, sahíra menos de meio pão
a
cada um ; mas, porque cada um deu o seu pedaço de pão,
ficou com uma alcofa cheia
. (P. Ant. Vieira).172

Capitulo VI
Do participio

226. Participio é uma palavra, já variavel, já invariavel,
que, procedendo do verbo, a elle reverte muitas
vezes para a formação de tempos compostos, ou porta-se
em tudo como um mero adjectivo qualificativo.

Exemplos :

1.°

tableau Eu tenho | ou hei
Tu tens | ou has
Elle (ella) tem | ou ha | amado, rendido, punido.
Nós temos | ou havemos
Vós tendes | ou haveis
Elles (ellas) têm | ou hão

2.°

tableau Eu sou | ou estou
Tu es | ou estás | amado, a ; rendido, a ; punido, a.
Elle (ella) é | ou está
Nós somos | ou estamos
Vós sois | ou estais | amados, as ; rendidos, as ; punidos, as.
Elles (ellas) são | ou estão

3.° E, que faz a mesma natureza, toda movida e governada
pelo mesmo Deos ? Basta que viva naquelles atomos
para que, nelles
offendida, se dôa, nelles aggravada, morda.
(P. Ant. Vieira).

227. Na realidade são só dous os participios : o invariavel
e o variavel.

Advertencia. Por uma apreciação menos reflectida,
os gerundios vierão, na primeira edição desta obra, incluidos
no numero dos participios ; porém, mais detidamente examinados
nas suas relações syntaxicas, de tal modo se mostrárão
aparentados com as diversas formas do infinitivo,
como, aliás, opportunamente se verificará, que constituem-lhe,
nesta nova obra, o seu 5.° e 6.° tempo.

228. O participio é invariavel junto a ter ou haver
(V. a exemplificação anterior sob n.° 1).

O participio é variavel junto a ser ou estar (V. a
173exemplificação anterior sob o n.° 2), ou quando solto,
isto é, desprendido de todo e qualquer auxiliar (V. a exemplificação
anterior sob n.° 3.

229. Junto a ser ou estar, o participio variavel concorda
sempre em gcnero e numero com o sujeito dos
mesmos verbos, ou com o sujeito do verbo do que ser ou
estar
dependem como complementos, embora nem sempre
em tal occurrencia venhão os mesmos participios a constituir
um predicado, como infundadamente se pretende.
(V. a syntaxe do predicado).

Os lisongeiros e aduladores de dentro, os que são
admittidos
a dizer e a ser ouvidos, estes são os que mais
se devérão temer
. (P. Ant. Vieira).

A maior fatalidade dos reis é nascerem todos em signo
de ser louvados (P. Ant. Vieira).

230. Quando apposições ou predicados, os participios
variaveis são, como os adjectivos qualificativos, susceptiveis
de passar pelos diversos gráos de significação.

Exemplos :

Quantos vierão a servir porque quizerão ser mais servidos,
ou servidos de mais do que podião manter / (P. Ant. Vieira).

Subí do céo acima até ao mesmo Deos, e achareis que
elle é o que
mais occupado está que todos em nosso sustento.
(P. Ant. Vieira).

E, que maiores injurias da razão, da lei e da fé, que os
gentios convertidos a ella, por nos ficarem
mais sujeitos,
serem mais desprezados, mais opprimidos, mais captivos,
e talvez vendidos aos mesmos mouros ! (P. Ant. Vieira).

231. Por uma consequencia natural dessa assimilação
aos adjectivos qualificativos, os participios variaveis devem
tambem ser analyticamente tidos como substantivados logo
que passão a exercer de per si mesmos as funcções proprias
dos substantivos.

Exemplos :

Vejão os odiados, ou pensionados do odio se se devem
prezar ou offender de ter inimigos
. (P. Ant. Vieira).

Seja a colera do principe esperança dos opprimidos. (P.
Ant. Vieira).

Oh ! Creador amabilissimo ! como tudo isto me está, com
mudas vozes, significando
o acertado de vossas disposições !
(P. Man. Bernardes).174

Uma das cousas que mais assegurar podem a futura felicidade
dos casados, é a proporção do casamento. (D. Franc.
Manoel de Mello).

232. Considerados na sua forma, os participios, quer
variaveis, quer invariaveis, são regulares quando, na ordem
das tres conjugações normaes, acabão em ado, ido, ido
(amado, rendido, punido) ; acabando, porém, de outro
qualquer modo, são irregulares (dito, feito, posto).

Quanto aos vocabulos de terminação ante, ente ou
inte
, como estudante, exigente, ouvinte, que muitos grammaticos
não hesitarão incluir, sob varios appellidos, no numero
dos participios, de nenhum modo pertencem a esta
especie de palavras : são meros substantivos ou adjectivos,
conforme os seus prodicamentos particulares ou de funcção
lhes assignão esta ou aquella classe.

Porquanto a allegação que, por procederem de verbos,
devão os mesmos vocabulos ser tidos como participios, é
tão pouco concludente, que abrangeria por inducção um
sem numero de palavras reconhecidamente avessas a uma
tal classificação, como estudioso, exigivel, ouvidor, etc.

O que terminantemente caracterisa o participio, e o
discrimina de semelhantes palavras, é a propriedade de
formar, quando invariavel, um sentido analyticamente indissolúvel
com os auxiliares ter ou haver (tenho ou hei
amado, — rendido, — punido
), e a de apresentar frequentemente
a mesma indissolubilidade junto a ser ou estar,
isto é, de cada vez que, apezar de variavel, o participio
não constitue um predicado (somos havidos, fomos nomeados,
etc.). — V. a syntaxe do predicado.

233. a todos os verbos elementares compete necessariamente
o participio invariavel, porque todos os seus
tempos compostos se formão com o concurso do ter ou
haver
.

O participio variavel, porém, só compete normalmente
aos activos, porque só delles é que sabem os combinados
passivos, em que, no decurso todo da conjugação, o auxiliar
proeminente é ser ou estar (somos amados, —
Temos
sido amados, — estão rendidos, — Têm estado rendidos).

Aos neutros, portanto, como viver ; aos pronominaes
como queixar-se ; e aos impessoaes como trovejar fallece de
todo a forma variavel vivido, a, os, as, — queixado, a, os,
as, — trovejado, a, os, as
, — porque, nem combinada com
ser ou estar, nem solta como apposição de um substantivo
175ou pronome, tal forma acharia palavra com que travar
sentido.

Entretanto, por uma consequencia da volubilidade de
accepções a que se prestão muitos verbos, este principio
não é tão absoluto, que não tenha numerosas excepções.
Assim é que neutros como entrar, sahir, ir, vir, decahir,
nascer
, etc., ou pronominaes como arrepender-se, sentar-se,
etc., ou mesmo impessoaes como chover, etc., não excluem
peremptoriamente o participio variavel.

Exemplos :

Embarcações entradas ou sahidas…. Tempos idos….
Noticias vindas… Nação decahida…

estamos arrependidos… estavão sentados…

Papeis chovidos das janellas.

Quando a vida humana, pela demasiada idade, torna á
fraqueza da infancia; quando a lingua enfastiada não sente
já sabor nem gosto; os dentes, ou
são cahidos ou nadão na
bocca...
ninguem póde culpar que seja alliviado dos pesos
communs
. (Fr. Luiz de Souza).

Os penedos daquella serrania parece que estão ameaçando
ruina, e que
forão chovidos ou feitos á mão e por industria
humana
. (D. N. de Leão).

Mas, escapando a toda e qualquer formula theorica
que as enfeixe sob uma consideração commum, estas e semelhantes
excepções ficão do dominio exclusivo dos lexicographos,
a quem compete notificá-las nos diccionarios.

234. Outra difficuldade cuja solução, por accarretar
pormenores tão peculiares quão variados, se tem tambem
natural cabimento nas exemplificações da Lexicographia, é
a que diz respeito aos verbos dotados de duas formas de
participio, uma regular, e outra irregular.

Porquanto, em alguns verbos como pagar, a forma regular
pagado, embora menos usada do que a irregular
pago, tanto se presta a constituir o participio variavel,
como o invariavel.

Em outros, porém, como prender, a forma regular prendido
apresenta-se como exclusivamente propria do participio
invariavel (com ter ou haver), e a forma irregular preso,
como exclusivamente propria do participio variavel (com
ser ou estar).

Em outros, emfim, como surgir, a forma regular surgido
176envolve um sentido bastante arredío do da forma
irregular surto, e pede, portanto referencias diversas.

Porém o que estas mesmas considerações demonstrão,
é a conveniencia da discriminação dos participios em variaveis
e invariaveis, embora soja, na maior parte dos casos,
sua fôrma originaria uma mesma.

Tabella dos verbos
que têm participios irregulares.

tableau Verbos. | P. regul. | P. irregul.
Abrir, | abrido, | aberto.
Absolver, | absolvido, | absolto.
Absorver, | absorvido, | absorto.
Abstrahir, | abstrahido, | abstracto.
Accender, | accendido, | acceso.
Aceitar, | aceitado, | aceito.
Affligir, | affligido, | afflicto.
Cobrir, | cobrido, | coberto.
Concluir, | concluido, | concluso.
Conter, | contido, | conteúdo.
Contrahir, | contrabido, | contracto.
Contundir, | contundido, | contuso.
Convencer, | convencido, | convicto.
Corrigir, | corrigido, | correcto.
Corromper, | corrompido, | corrupto.
Dizér, | (Falta), | dito.
Eleger, | eligido, | eleito.
Entregar, | entregado, | entregue.
Envolver, | envolvido, | envolto.
Enxugar, | enxugado, | enxuto.
Erigir, | erigido, | crccto.
Escrever, | escrevido, | escripto.
Espargir, | espargido, | esparso.
Exceptuar, | exceptuado, | excepto.
Excluir, | excluido, | excluso.
Exhaurir, | exhaurido, | exhausto.
Expellir, | expellido, | expulso.
Extinguir, | extinguido, | oxtincto.
Fartar, | fartado, | farto.
Fazer, | (Falta), | feito.
Frigir, | frigido, | frito.
177

tableau Verbos. | P. regul. | P. irregul.
Gastar, | gastado, | gasto.
Imprimir, | imprimido, | impresso.
Incluir, | incluido, | incluso.
Incorrer, | incorrido, | incurso.
Infundir, | infundido, | infuso.
Interromper, | interrompido, | interrupto.
Introduzir, | introduzido, | introdueto.
Juntar, | juntado, | junto.
Manter, | mantido, | manteúdo.
Matar, | matado, | morto.
Morrer, | morrido, | morto.
Pagar, | pagado, | pago.
Pôr, | (Falta), | posto.
Prender, | prendido, | preso.
Querer, | querido, | quisto.
Revolver, | revolvido, | revolto.
Romper, | rompido, | rôto.
Salvar, | salvado, | salvo.
Submergir, | submergido, | submerso.
Sujeitar, | sujeitado, | sujeito.
Supprimir, | supprimido, | suppresso.
Surgir, | surgido, | surto.
Suspender, | suspendido, | suspenso.
Tingir, | tingido, | tinto.
Ver, | (Falta), | visto.
Vir, | (Falta), | vindo.

Os verbos que destes procedem por augmento, assumem
as mesmas formas de participios como seus primitivos ;
assim contrafazer (de fazer), contrafeito ; predizer (de dizer),
predito ; suppór (do pôr), supposto ; etc.

Capitulo VII
Da preposição

234. Preposição é uma palavra invariavel que se interpõe
entre outras de especie diversa para marcar uma
relação.178

Perscrutada no seu sentido etymologico (palavra anteposta),
a preposição designa fielmente a sua propriedade
mais caracteristica, que é a de não apresentar de per si
mesma uma idéa apreciavel, e sim tão sómente com a adjuncção
de uma palavra posterior, á qual se dá o appellido
de regime, e com a qual ella constitue um complemento
indirecto
.

Exemplo :

Só o saber do (de o) homem é livre destes (de estes)
perigos, porque nem o tempo o gasta, ou a morte o senhorêa;
 ;
e, com elle, mediante a graÇa divina, fazemos o caminho
para a gloria. (João de Barros).

Dahi o aphorismo grammatical : « Não ha preposição
sem regime, nem complemento indirecto sem preposição. »

235. As palavras essencialmente proprias para servir
de regime a uma preposição são : o substantivo, o pronome
ou um verbo no infinitivo
.

Exemplos :

Não ha homem sem coração, nem coração sem desejos.
(P. Ant. Vieira).

A cousa mais facil do mundo é dar conselho a outrem,
e a mais ardua é tomá-lo para si. (P. Ant. Vieira).

Despede-se o mundo sem dizer-nos nada, e saltêa-nos a
morte
sem chamar primeiro á porta. (P. Ant. Vieira).

236. A preposição ostenta-se tambem anteposta a um
adverbio
ou a uma conjuncÇão ; porém assentou-se geralmente,
para tornar mais expeditos os processos de analyse,
em chamar a taes conjunctos de palavras locuções adverbiaes
ou locuções conjunctivas.

Exemplos :

Que são as honras e dignidades ? Eça real : por fóra,
brazões e telas e luzes ; por dentro, ripas de pinho, e lixo.
(P. Man. Bernardes). — (… por fóra e por dentro, locuç.
adv.).

Ame-vos eu, Senhor, para que despreze o mundo ! Ame-vos
eu, Senhor, de todo o coração
, para que me sujeite á vossa
vontade
 ! (P. Man. Bernardes). — (… para que, locuç. conj.).

237. As preposições dividem-se em constantes e em
accidentaes.

São preposições constantes os vocabulos que, a não formarem
uma locução com outra palavra invariavel, em caso
179algum prescindem de um regime. Não excedem de vinte
uma :

tableau a, | dentre, | para,
afóra, | des, | per,
ante, | desde, | perante,
após, | durante, | por,
com, | em, | sem,
contra, | entre, | sob,
de, | mediante, | sobre.

São preposições accidentaes os vocabulos que, deixando
de actuar em um regime, revertem para uma especie de
palavras outra que a preposição. Seu numero é de oito :

tableau até, | salvo,
conforme, | segundo,
excepto, | supposto,
não obstante, | visto.

238. Vindo duas preposições a actuar conjunctamente
em um mesmo regime, ellas formão uma preposição composta.

Exemplos :

Mostremos no gesto modo grato e affavel para com todos,
sem tristeza, porém sem puerilidade ou chocarrice. (P. Man.
Bernardes).

Nas entranhas dos montes onde nasce o ouro, até as aguas
que
por entre as veias descem, sahem cruas. (Franc. Rodrigues
Lobo).

Observação. Alguns escrevem a fóra em lugar de
afóra ; esta ultima forma, porém, é mais consentanea com
as leis da lexicographia.

Ex. Não ha anno que, (alli) não naveguem de mil juncos
para cima
, afora outros navios pequenos. (Fernão Mendes
Pinto).

Observações sobre as preposições

239. A preposição com, seguida de uma palavra principiando
por vogal, com ella se deixa facultativamente
contrahir por archaismo, porém só no estylo poetico.
Exemplo :

O homem co’a a invenção supera o bruto,
O impulso das paixões co’a razão doma.
(Borges de Barros).180

Nota. Chamão-se archaismos, não só palavras ou
dicções antiquadas, como tambem certas reminiscencias do
latim ou do grego na construcção das orações.

Exemplo :

Venturoso tambem (inda que as musas
Não te hajão esmaltado o nome e a fama),
Cabral, que a vez primeira os mares cruzas
Recém-sulcados pelo illustre Gama !

(… inda = ainda).

Outra não pode competir com ella,
Região fértil, rica e deleitosa ;
lhe cedem a palma as celebradas
Media, Ophir, Tempe e as Ilhas Fortunadas.
(Ant. J. Viale).

(… té = até).

Supposto, pois, que todos havemos de morrer (e todos imos
para a sepultura), o maior favor que Deos póde conceder a
um mortal, é que morra e chegue lá mais tarde
. (P. Ant.
Vieira). — (… imos = vamos…).

Os archaismos, quando escolhidos com tino, e empregados
com sobriedade, não são, nem erros, nem descuidos,
o sim antes realce do estylo.

Ora archaismo é a alteração assignalada em referencia
a com, porquanto é mera reminiscencia da elisão que praticavão
os latinos na recitação dos versos, quando uma
palavra, acabando por vogal ou por m, vinha a topar com
outra principiando por vogal ou h.

Exemplo :

« Monstrum horrendum, informe, ingens, cui lumen ademptum. »

Pronunciado :

« Monst’ horrend’, inform’, ingens, cui lumen ademptum. »

240. Des, identico do sentido com desde, mal se encontra
fóra do estylo poetico, por ter cahido em desuso.

Ex. Ninguem póde culpar que seja alliviado dos pesos
communs quem
desde (ou des) a mocidade aturou o jugo
com constancia
. (Fr. Luiz de Souza).

241. Per, que em epocas não mui remotas, compartia
com por o officio de exprimir uma mesma relação (per
terras e mares, — por terras e mares), acabou por ser quasi
181totalmente supplantado pelo ultimo, a não ser nas locuções
em que, pospondo-se de, forma com elle uma preposição
composta (Faça cada um de per si o que não pode fiar dos
outros
). Entretanto o P. Ant. Vieira ainda disse : « Oh !
caso estupendo e inaudito ! ninguem pôz a mão na pedra;
ella
per si se despegou, cahiu e rodou do monte ! ».

242. Sobre assume um alcance adverbial quando, anteposto
a um adjectivo ou participio com o qual forma
locução indivisivel, significa excesso. E’ preposição quando
exerce regencia.

Ex. Este mesmo pardo sahe como sobre dourado, enriquecido
com mil esmaltes e retoques de encarnado, que avultão
mais
sob a cor parda do vestido. (P. Balthazar Telles).

243. Até é preposição com um regime.

Ex. O ferro, do joelho até os pés, significava o imperio
dos Romanos
. (P. Ant. Vieira).

Não consentia o infante D. Duarte que eu estivesse esperando
para entrarmos á lição, mas ordenou que eu não viesse
da minha pousada
ate não ser chamado. (André de Kezonde).

E’ adverbio com o sentido de mesmo.

Ex. Apoderou-se o ouro tanto de tudo o que na terra
havia, que veiu a ser preço
ate da liberdade dos homens,
contra o direito natural em que vivião
. (Franc. Rodrigues
Lobo). — (… que mesmo veiu a ser preço da liberdade…).

244. Conforme e segundo são adjectivos, e conseguintemente
variaveis, quando nada têm de commum em sentido.

Ex. Se aquellas rumas de façanhas em papel forão
conformes aos seus originaes, que mais queriamos nós ? já
não houvera Hellanda, nem França, nem Turquia : todo o
mundo fora nosso
. (P. Ant. Vieira).

São preposições, e conseguintemente invariaveis, quando
identicos em sentido, e por tanto suppriveis um por outro,
pedem um regime.

Ex. O reino e a primeira benção, segundo o uso dos
patriarchas, e
conforme a lei natural que ainda hoje se observa,
pertencia ao primogênito, que era Rubem
. (P. Ant.
Vieira).

Devemos dar correcção com espirito de brandura, e segundo
as regras
da prudencia. (P. Man. Bernardes). —
(… conforme as regras…)182

Conforme a é preposição composta.

Ex. Conforme, pois, a isto, em que predicamento poremos
a muitos homens ?
(Fr. Luiz de Granada).

Só faltarei com Vossa Alteza conforme á razão, pois
sei que della nunca fugiu
. (D. Hieronymo Ozorio, bispo de
Silves). — (… segundo a razão…).

245. Os quatro participios excepto, salvo, supposto
e visto passão a ser preposições, o conseguintemente invariaveis,
quando, deixando do constituir uma apposição
ou um predicado, vêm a exercer uma regencia.

Ex. Não devemos porfiar com alguem, nem contradizê-lo
directamente com empenho
, excepto os casos em que assim
importa em razão da mesma caridade
. (P. Man. Bernardes).
(… salvo os casos em que…).

Sobre os moimentos apparecem dous corpos deitados,… um
de el rei, que está armado de todas as armas
, salvo as da
cabeça
. (Fr. Luiz de Souza).

Supposto haver homens na lua, como contarão os dias,
mezes e annos ?

O Amazonas é o maior dos rios, visto exceder a todos
em comprimento e largura
.

246. Não obstante é proposição quando exerce uma
regencia.

Ex. Em que predicamento poremos a muitos homens ricos
e poderosos que, sentando-se cada dia á mesa, nem ainda lhes
passa pelo pensamento o lembrarem-se de tão liberal e magnifico
bemfeitor e provisor
, não obstante verem cada dia a
mesa cheia de seus beneficios ?
(Fr. Luiz de Granada).

Com a pronunciação foi tão unico Pisistrato em Athenas,
que
, não obstante ter por contrario a Solon, varão singularmente
douto, foi eleito á summa dignidade do imperio
. (Fr.
João Pacheco).

E’ adverbio quando não exerce regencia nenhuma.

Ex. O teimoso, embora convencido de erro, persiste não
obstante
, no seu proposito ; o cabeçudo nem presta sequer ouvidos
á persuasão. O primeiro pecca por orgulho ; o segundo,
por falta de guizo
.

Eis

247. O vocabulo eis apenas por analogia póde ser
capitulado de preposição, porquanto, na realidade, não cabe
183exactamente em nenhuma das especies de palavras, taes
como são declaradas.

Tem, como todas as preposições, a propriedade de
exercer uma regencia (Eis a verdade) ; e, como a mór
parte das preposições, a faculdade de formar, com uma ou
mais conjuncções posteriores, locuções conjunctivas (eis que…
eis como… eis senão quando…), como são as que formão
outras preposições : (a que… com que… em que… para
quando…
), etc.

Ex. Eis-aqui como se desterra o temor e o pejo. (P.
Man. Bernardes).

Differe, porém, de todas as preposições por dous predicamentos
terminantes, que vêm a ser : 1.° o regime de
eis nunca póde ser qualificado de complemento indirecto ;
porquanto, vindo a ser constituido por um pronome pessoal,
este recusa-se a assumir as formas proprias do mesmo complemento
(mim, ti, si, elle, ella, — nos, vós, si, elles, ellas),
para avocar impreterivelmente as do complemento directo
(eis-me, eis-te, ei-lo, ei-la, — ei-nos, eis-vos, ei-los, ei-las), sendo
que a intercalação da risca de união, tanto como da antíthese,
contribue para completar a demonstração ; 2.° ao
passo que nenhum complemento indirecto póde do per si só
enunciar um pensamento, visto como ; exprimindo uma mera
relação, forçosamente carece de um fado expresso ou occulto
para chegar a um sentido attendivel, o vocabulo eis póde
formar, e forma com o seu regime um pensamento completo,
qualificado até de proposição principal em analyse
logica ; « Eis a verdade ».

Ora todas estas anomalias encontrão uma explicação
natural na consideração que eis é simplesmente a terminação
do facto haveis, ao qual assim sobrou, em compensação
do sujeito, que lá se foi com o cabeçalho, quanto
bastava para acarretar um complemento : « ei-lo ».

O P. Man. Bernardes disse : « Aqui tendes mil e quinhentos
marcos de prata
 ». Diria com a mesma propriedade :
« eis-aqui mil e quinhentos marcos de prata ».

Por todos estes motivos, a designação analytica que
mais propriamente parece caber-lhe é a de preposição
verbal
.

Ex. Começa a sahir e a crescer o sol : eis o gesto agradavel
do mundo, e
a composição da mesma natureza toda
mudada
. (P. Ant. Vieira).

Outrosim reforça eis frequentemente a sua significação
por meio de um dos tres adverbios aqui, ahi, alli, quando
não vai seguido de um pronome pessoal,184

Ex. Eis aqui o meio termo : ouvir os aduladores, mas
não se mover por élles
. (P. Ant. Vieira).

Eis aqui o que vem a não poder os que querem mais do
que podem
. (P. Ant. Vieira).

248. A par das preposições andão as locuções prepositivas.

Locução prepositiva é todo o conjuncto do palavras
fazendo o officio de uma preposição. Tem por distinctivo
o ser a ultima das mesmas palavras uma preposição.

Lista das locuções prepositivas mais usadas

tableau abaixo de… | até a… | em pró de…
ácerca de… | atraz de… | em relação a…
acima de… | a troco de… | fora de…
á custa de… | á vista de… | junto a…
adiante de… | cerca de… | junto de…
a favor de… | debaixo de… | longe de
á frente de… | defronte do… | porto de…
além de… | dentro de… | por amor de…
ao contrario de… | de ordem de… | por baixo de…
ao envez de… | de parceria com… | por cima de…
a par de… | depois de… | por detraz de…
ao redor de… | detraz de… | por meio de…
apezar de… | em beneficio de… | por via de…
aquém de… | em consequencia de… | sem embargo do…
a respeito de… | em conta de… | etc., etc.

Capitulo VIII
Do adverbio

249. Adverbio é uma palavra invariavel que, ajuntando-se
a um verbo, participio, adjectivo, ou até a outro
adverbio, modifica-lhes o alcance de significação.

Se se attende ao seu sentido etymologico, apenas declara
elle que mais habitualmente actúa nos verbos.185

250. Quo o adverbio não modifica as palavras, evidencía-se
pela consideração que, nem lhes altera a forma,
nem lhes transtorna o sentido. Pois tanto canta o actor
que canta bem, como canta o actor que canta mal. Porém
o alcance de sentido que ao verbo confere o primeiro adverbio,
justifica os applausos que um grangeia, como o alcance
que lhe confere o segundo adverbio, motiva a pateada
que o outro venha por acaso a soffrer.

251. Seja, porém, qual for a palavra em que elle
actúa, o adverbio nunca deixa de ser analyticamente resoluvel
em um complemento indirecto amparado ou desamparado
de apposições. Esta é a sua feição caracteristica.

Ex. nunca chega o cubiçoso a ficar satisfeito. sempre
aguilhoado
por novos desejos, vai desprezando como mui somenos,
logo que os alcançou, os mesmos bens que mais ardentemente
almejara.

O primeiro adverbio deste exemplo actúa em um verbo
(nunca chega), e resolve-se em o complemento indirecto
« em tempo algum ».

O segundo, que actúa em um participio (sempre aguilhoado),
resolve-se em o complemento indirecto « a todo o
tempo
 ».

O terceiro, que actúa em um adjectivo (mui somenos),
resolve-se em o complemento indirecto « em subido gráo ».

O quarto, emfim, que actúa em outro adverbio (mais
ardentemente), resolve-se em complemento indirecto a com a
maior vehemencia
de ardor ».

252. Sendo assim na essencia o equivalente de um
complemento indirecto, sem todavia ostentar em caso
algum a preposição, o adverbio parece merecer com toda
a propriedade a designação analytica do complemento indirecto
implicito
, por opposição ao em que a preposição
é expressa (Fallai a vosso servo, Senhor !), ou simplesmente
occulta (Fallai-me, — isto é, — a mim). — (P. Man.
Bernardes).

253. Considerados na sua forma, os adverbios são de
incremento
quando terminados em mente, e sem incremento
quando terminados de outro qualquer modo.

254. Todos os adverbios de incremento ficão constituidos
do um adjectivo ou de um participio variavel, com
o simples accrescimo de mente á forma feminina do singular.186

Exemplos :

tableau sabia, | sabiamente. | audaz, | audazmente.
cortez, | cortezmente. | feliz, | felizmente.
exterior, | exteriormente. | feroz, | ferozmente.
levo, | levemente. | commum, | commummente.
| geral, | geralmente. | primeira, | primeiramente.
fiel, | fielmente. | dupla, | duplamente.
util, | utilmente. | só, | sómente.
particular, | particularmente. | mór, | mórmente.
declarada, | declaradamente, | aberta, | abertamente.

Ficão unicamente exceptuados os adverbios que se
formão dos adjectivos cujo feminino é ãa, porque, quando
deixa do ser terminativa, a mesma voz escreve-se an :
chrístãa, christanmente, — christandade.

Ex. « Digo chanmente, e declaro que, se os meus prebendados
desejão ouvir alvoradas de charamélas, e os fidalgos
de Braga querem ver passeios de ginetes formosos, e mulas
gordas e anafadas, e nuvens de pagens enfeitados e rugindo
sedas, desenganem-se, que nunca me verão tão desatinado, que
despenda com ociosos aquillo com que posso dar vida a muitos
pobres
 ». (Fr. Luiz de Souza).

255. Os adverbios sem incremento costumão ser repartidos
em diferentes categorias, cujo numero é mais ou
menos arbitrário, sem que de alguma divergencia a tal
respeito possa provir inconveniente algum ; porquanto tal
classificação é antes um recurso mnemonico, do que uma
disposição indispensavel para servir de assento a considerações
theoricas de importancia, tanto mais que alguns
adverbios, pela variedade de suas accepções, caberião repetidamente
em categorias diversas, o outros ficarião avulsos.

1.° Adverbios de lugar

tableau abaixo, | algures, | atraz, | donde,
acima, | alli, | avante, | fóra,
acolá, | aonde, | cá, | lá,
adiante, | aquém, | defronte, | longe,
ahi, | aqui, | dentro, | nenhures,
além, | arriba, | detraz, | onde,
perto | retro, etc,
187

2.° Adverbios de tempo

tableau agora, | depois, | já, | ora,
amanhãa, | então, | jamais, | presto,
antes, | hoje, | logo, | sempre,
cedo, | hontem, | nunca, | tarde, etc.

3.° Adverbios de quantidade

tableau ainda, | bastante, | muito, | só,
apenas, | demais, | outrosim, | sobretudo,
assaz, | mais, | pouco, | tanto,
até, | maxime, | quanto, | tão, etc.
menos, | quasi,

4.° Adverbios de modo

tableau adrede, | bem, | devagar, | recta,
alerta, | debalde, | mal, | rente,
assim, | depressa, | mesmo, | etc.

5.° Adverbios de affirmação e de negação

tableau devéras, | não, | nem, | sequer,
sim, etc.

6.° Adv. De interrogação ou de exclamação

tableau como ?! | porque ?! | quando ?! | quão ?!
que ?!

7.° Adverbios de duvida

tableau quiçá, | talvez.

Observações sobre os adverbios

256. O mesmo uso que a muitos adjectivos e participios
conferiu a faculdade de se converterem em adverbios
de incremento, denegou-a terminantemente a outros muitos,
sem que se possa atinar com a causa de semelhante desigualdade.
Assim é, por exemplo, que dos adjectivos branco,
azul, francez, encantador
, etc., e dos participios contado, fallado,
escripto
, etc., vedado é deduzir os adverbios brancamente,
azulmente, francezamente, encantadoramente, — contadamente,
falladamente, escriptamente
. Porém, com isso, nada
188perde a Grammatica : pelo contrario, ganha ella uma nova
demonstração do principio que faz de todos os adverbios
outros tantos complementos indirectos, visto como as expressões
por que costuma ser supprida a falta dos referidos
adverbios, reduzem-se, ou podem sempre ser reduzidas a
uma locução adverbial, ou a um circumloquio onde a assistencia
constante de uma preposição é declaração do complemento.

Ex. Pagina deixada em branco. — Sala alcatifada de
azul
. — Trajar Á franceza. — Fallar de modo a encantar.
Pagar a dinheiro de contado. — Enunciar-se em palavras. —
Declarar por escripto…

257. Desta consideração decorre outra consequencia
não menos digna de reparo, e vem a ser que, podendo um
adverbio actuar sobre outro adverbio, isto é, em um complemento
indirecto implicito, nada obsta a que o possa
igualmente fazer em um explicito, isto é, de preposição expressa,
pela simples razão que tanto vale um quanto vale
o outro.

Ex. « Se V. S., no que houver lugar, fór servido de
apadrinhar o merecimento do vigario-geral, além de ser obra
muito grata a Deos, e
muito do seu serviço, me fará V. S.
muito particular mercê
. » (P. Ant. Vieira).

Se a equidade ha de estar tanto na mente do juiz,
porque ha de estar
tão pouco no coração do credor ? (P.
Man. Bernardes).

Todo o universo não parece viu especies, nem mais em
numero
, nem mais formosas. (P. Simão do Vasconcellos).

O Condestavel não comeu senão algumas viandas mal cozinhadas,
sem pão, e disse com satisfação
 : « Nunca comí guizado
mais do meu gosto ». (Chron. do Condestavel).

O padre ficou como homem tomado de accidente de apoplexia,
que está vivo, e não sabe se vive, tão atalhado e
tão
sem conselho
, que não sabia formar umapalavra. (Fr.
Luiz de Souza).

Tomar o seu rumo mais para o sul, — menos para o
norte
.

258. Um numero diminuto de adjectivos qualificativos,
como caro, barato, etc., têm excepcionalmente a propriedado
inherente a muito, pouco, tanto, quanto, bastante, do converter-se
em adverbios sem assumir a terminação caracteristica
do incremento, o que dá frequentemente lugar a que escriptores
pouco afoitos aos habitos da analyse commettão
189o equivoco do sujeitá-los, quando adverbios, a uma concordancia
que só lhes compete quando adjectivos. Assim é
que raros são os periodicos onde não occorra : « Querendo
fulano vender
cara a sua vida… ou vender a sua vida
cara… », quando só seria legitima tal concordancia, se
houvera quem estivesse disposto a vender a sua cara vida.
Porém, no caso vertente, sendo caro o mero equivalente
do complemento indirecto « por alto preço », claro é que
passou a sor adverbio, e, por isso, palavra invariavel :
Vender caro a sua vida, — vender a sua vida caro, — visto
não ser admissível dizer caramente.

Com um certo numero de adverbios de igual procedencia,
indifferente é usar da terminação adjectival, ou
da de incremento.

Ex. Seguir o contrario disto era (se se havia de fallar
claro [claramente], e como entre amigos) um querer resuscitar
velhices
. (Fr. Luiz de Souza).

259. Outros adjectivos apresentão, na sua conversão
em adverbios, a singularidade de rejeitarem ou do aceitarem
o incremento segundo as palavras em que actúão,
se accommodão desta ou daquella forma. Assim é que se
diz : Cantar alto ; — estar altamente collocado. — Fallar
baixo ; — ser baixamente cruel. — Escrever fino ; — ser
finamente educado.

Porém estas o outras que taes locuções, por desprovidas
de um nexo synthetico, escapão ao regimento da
Grammatica, e só têm cabimento nas indicações da Lexicographia,
isto é, nos diccionarios.

260. Vindo dous ou mais adverbios de incremento a
actuar conjunctamente em uma mesma palavra, só ao ultimo
é que, por amor da euphonia, se confere o incremento.

Ex. Que direi dos meios e dos remedios, das industrias,
das artes e instrumentos que os homens têm inventado para
que cada um pudesse possuir e lograr o seu
segura e quietamente,
mas sem proveito ? (P. Ant. Vieira).

Conquistar a terra das tres partes do mundo a nações estranhas
foi empreza que os reis de Portugal conseguirão
muito
facil e muito felizmente
 ; mas repartir tres palmos de terra
em Portugal aos vassallos com satisfação delles foi impossivel
.
(P. Ant. Vieira).

Pois, que remedio para accrescentar a fazenda, util, discreta
e muito seguramente ?
(P. Ant. Vieira).190

261. Assim como os adjectivos donde procedem, os
adverbios podem geralmente assumir os mesmos tres gráos
de significação, que são o positivo, o comparativo e o superlativo ;
e, a não serem os adverbios bem e mal, derivados
do bom e mao, nenhuma observação peculiar se originaria
desta propriedade. Porém ambos apresentão no
seu comparativo de superioridade (que, como o de bom e do
mao, o tambem melhor e peior), um caso de anomalia tão
singular, que não pode ficar sem reparo.

Tendo de actuar, como comparativos de superioridade,
em um verbo, bem e mal convertem-se em melhor e peior.

Ex. Que motivo teve o juizo de Salomão para antepor o
dia da morte ao dia do nascimento ?
entendeu-o melhor que
todos, o maior interprete das Escripturas
. (P. Ant. Vieira).

Fizestes mal; porém quem vos aconselhou, fez peior.

Tendo de actuar, nas mesmas condições, sobre um
participio variavel, bem e mal dispensão a contracção latina,
para adoptar a formação regular mais bem e mais
mal
.

Ex. Nesta singular abundancia é Lisboa, não só a mais
bem provida
, mas tambem a mais deliciosa terra do mundo.
(P. Ant. Vieira).

Bastou uma só desunião para derribar e desfazer quatro
imperios dos mais valentes, dos mais poderosos, dos mais sabios
e dos
mais bem governados homens do mundo. (P. Ant.
Vieira).

Pois, se, com um desengano dado a tempo, os homens
ficão menos queixosos, o governo mais reputado, o rei mais
amado, e o reino
mais bem servido, porque se ha de entreter,
porque se ha de dilatar, porque não se ha de desenganar o
pobre pretendente ?
(P. Ant. Vieira).

Póde haver resolução mais mal entendida que lançar a
pique o navio em que sou embarcado, só para que meu inimigo
se afogue
 ! (P. Ant. Vieira).

E só nesta occasião sáhem estes passaros com sua musica,
que parece
mais bem empregada em festejar a saude alheia
que a do cysne, que tambem só a exercita em adivinhar a
morte propria
. (P. Balthazar Telles).

Theoricamente, a explicação mais plausível desta anomalia
parece ser a seguinte. Junto a um verbo, os adverbios
bem e mal, o conseguintemente os seus comparativos
melhor e peior, não têm lugar predeterminado, neste sentido
191que tanto podem ir antepostos como pospostos ao mesmo
verbo.

Ex. melhor mereceis vós outros todos a morte, que
este pobre homem
 ». (Garcia de Rezende).

O governador me respondeu em vozes. altas que tinha melhor
consciencia que os padres da Companhia, e
cria melhor
em Deus que eu. (P. Ant. Vieira).

E assim, naquelle desamparo e tormento, se apartou sua
alma santa daquelle atribulado e martyrisado corpo, que o
mesmo infante, com vigílias e jejuns, ainda
tratava peior.
(Duarte Nunes de Leão).

Porém, junto a um participio variavel, os mesmos adverbios
não prescindem da condição de lhe irem antepostos.

Ex. Seja este meu trabalho de vós favorecido, e eu o haverei
por
bem empregado. (Não : empregado bem). — (Franc.
Rodrig. Lobo).

Neste caso, por uma frisante analogia com o que se
dá cora querer bem, querer mal, e bem quisto, mal quisto;
 ;
ferir mal, e mal ferido, etc., os supracitados adverbios, de
tal modo vêm a prender-se em sentido com o participio
subsequente, que delle não se deixão desagregar para constituir
as contracções melhor e peior, vindo assim a ser
equiparados aos adjectivos bemdizente, maldizente, que sem
rebuço aceitão a modificação comparativa mais bemdizente,
mais maldizente.

Accresce, para confirmar esta supposição, que, vindo
por acaso o participio a deixar de topar com um ou outro
dos referidos adverbios, ou achando-se occasionalmento elidido,
as formas melhor e peior tomão a apparecer.

Ex. Oh ! saibamos fazer da necessidade, não digo já virtude,
mas ainda conveniencia ; que assaz conveniencia é escusar-se
a demandas ; poupar despezas de dinheiro e de tempo,
que são mais consideráveis ; conservar amigos e obrigados, e
ter
melhor e mais seguramente armada a conta para com
Deos, quando a pedir do que devemos
. (P. Man. Bernardes).
— (Não : … mais bem e mais seguramente armada…).

Nota. Com o referido adverbio mal não se deve confundir
outro, identico de sentido com apenas, e, por isso,
falto dos diversos gráos do significação.

Ex. Com estes fios tão finos, que ao principio mal
(apenas) se divisão, a aranha lança suas linhas, arma seus
teares, e toda a fabrica se vem a rematar em uma rede para
pescar e comer
. (P. Ant. Vieira).192

262. O vocabulo assaz, do sentido pouco dessemelhante
do de bastante, encontra-se nos classicos com os
mesmos predicamentos que fazem de bastante, já um adjectivo
indefinito, já um pronome indefinito, já um adverbio.
(V. § 164). Hoje, porém, mal apparece senão como
adverbio.

Ex. Oh ! saibamos fazer da necessidade, não digo já virtude,
mas ainda conveniencia ; que
assaz conveniencia é escusar-se
a demandas
… (P. Man. Bernardes). — (… assaz, — bastante, —
sufficiente conveniencia…).

Neste estylo escondeu Salomão os mysterios de nossa fé,
que estão nos cantares da esposa, escolhendo, para uma empreza
tão alta, e para uma poesia tão divina, uma semelhança
tão humilde, cujo exemplo era
assaz bastante para acreditar
estas artes com os homens de nossa idade
. (Franc. ítodrig.
Lobo).

Puderão ser de exemplo aos demais os vassallos honrados,
poderosos, e de autoridade e valor, que são os desta familia
,
assaz castigada com o muito que tem padecido e dispendido.
(P. Ant. Vieira).

263. logo é adverbio com o sentido de em breve, já
ou immediatamente ; é conjuncção com o de portanto.

Ex. A usura é vicio que logo se faz publico. (P. Man.
Bernardes). — (… que em breve se faz publico).

Christo diz que, na sua lei, e só na sua lei, se acha o
descanso
 : logo, se não buscais o descanso na lei de Christo,
é certo que não credes a Christo
. (P. Ant. Vieira). — (… portanto,
se não buscais…).

264. sim e não, só são adverbios quando actuão directamente
sobre um verbo, participio, adjectivo ou outro
adverbio.

Ex. Se o homem timido não tem coração, o teimoso não
tem
cabeça, porque não conhece que, sendo o errar um só
defeito, o sustentar o erro são dous
. (P. Ant. Vieira).

Vê, voador, como correu pela posta teu castigonão
contente
com ser peixe, quizeste ser ave ; e já não és ave
nem peixe
. (P. Ant. Vieira).

Toda a creatura dotada de vontade livre, não appetece
sempre ser mais do que é, senão tambem quer mais do que
póde
. (P. Ant. Vieira) ; — (… não sómente…).

Agora sim, disse então aquella cotovia astuta, agora
193sim, irmãas, levantemos o vôo, e mudemos a casa, que vem
quem lhe dóe a fazenda
. (P. Man. Bernardes).

Apparecendo, porém, soltos, sim e não são interjeições.
(V. o capit. da interjeição).

265. nem deve ser capitulado de adverbio quando se
apresenta como mero substitutivo de não.

Ex. Importa, pois, que não roube a negociação o que se
deve ao merecimento
 ;… que se qualifiquem papeis, que se examinem
certidões, que
nem todas são verdadeiras. (P. Ant.
Vieira). — (… visto que não todas…).

O mesmo vocabulo deve ser reputado conjuncção,
quando, ao seu sentido negativo, accresce o da conjuncção
e.

Ex. Vê, voador,… já não és ave nem peixe ; nem voar
poderás já
, nem nadar. (P. Ant. Vieira).

Comprova-se, neste caso, a intervenção occulta de e,
se, de conformidade com o processo de substituição, sabe
esta conjuncção quando as preposições, de negativas que
são, convertem-se por mera experimentação, em proposições
affirmativas : « … Já és ave e peixe ; e voar poderás já, e
nadar ». — Esta distincção torna-se necessaria por mais de
uma applicação, quer em syntaxe, quer na theoria da
pontuação.

266. Os vocabulos como, porque, quando, quão e que
são meros adverbios, lexicologicamente fallando, quando se
resolvem em um complemento indirecto.

Ex. Pois, Filho da Virgem Maria, se tanto cuidado tivestes
então do respeito e decoro de vossa mãi
, como consentis
agora que se lhe fação tantos desacatos f
(P. Ant. Vieira). —
(… por que razão consentis agora…).

Fóra de tal caso, são conjuncções.

267. a par dos adverbios andão as locuções adverbiaes.

Locução adverbial é todo o conjuncto de palavras
fazendo o officio de um adverbio. Tem por distinctivo o
ser resoluvel em um adverbio (por oraactualmente),
ou figurar um complemento indirecto (dahi em diantede
futuro
).194

Lista de algumas locuções adverbiaes

tableau a cavalleiro, | de chofre, | de tarde,
a cavallo, | de cima para baixo, | de todo,
a deshoras, | de cócaras, | de vez em quando,
á direita, | do cór, | nem sequer,
á esquerda, | de corrida, | outr’ora,
a torto, | de diante para traz, | para diante,
algum tanto, | de então em diante, | para sempre,
ao depois, | de graça, | para traz,
ao diante, | de hoje para amanhãa, | por acaso,
ao menos, | de improviso, | por acinte,
ás avessas, | de madrugada, | por atacado,
ás cegas, | de mais a mais, | por fortuna,
ás escancaras, | de novo, | por ora,
ás escuras, | de portas a dentro, | por ventura,
ás pressas, | de promptoj | pouco a pouco,
a varejo, | de proposito, | quando muito,
dahi a pouco, | de repente, | tintim por tintim, etc.

Capitulo IX
Da conjuncção

268. Conjuncção é uma palavra invariavel que liga
partes de uma oração, ou orações completas, para entre as
idéas ou os pensamentos assignalar, já connexão, já opposição.

Ex. Não houve rei tão opulento nem tão venturoso como
Salomão. entretanto délle é o juizo que tudo é vaidade excepto
amar
e servir a Deus.

Neste exemplo, a primeira conjuncção (nem) assignala
uma connexão entre as duas apposições opulento e venturoso.

A segunda (como) marca igualmente uma connexão
entre dous pensamentos, o segundo dos quaes é encurtado
por uma figura de syntaxe chamada ellipse : Não
houve rei tão opulento nem tão venturoso
como [venturoso e
opulento foi]
] Salomão.195

A terceira (entretanto), encetando uma nova oração,
predispõe o espirito a uma opposição entre os pensamentos
anteriores, e os que lhes succedem, opposição que se verifica
pelo contraste da felicidade de que gozou o rei israelita,
o da desoladora confissão que lhe arranca a sua
afflicção de animo.

A quarta (que) constitue o nexo entre o juizo annunciado,
e a materia deste juizo : a vaidade.

A quinta, emfim (e) estabelece a connexão que naturalmente
existe entre dous actos dirigidos para um mesmo
fim : amar a Deus, e servir a Deus.

269. A unica regencia que compete á conjuncção, é a
do avocar, já um, já outro dos modos de facto nos verbos ;
porém, nos outros termos da proposição, não exerce acção
nenhuma, porquanto não lhes dá nem lhes tira nada : e
nisto é que se differencía essencialmente, quer da proposição,
quer do adverbio.

Nem por isso deixa ella de representar um papel importante
na constituição da linguagem, mórmente com referencia
á pontuação, já identificando, já discriminando
termos e proposições. E tão importante é esto papel que,
do todas as especies do palavras, é a unica que se mostra
avessa a uma remoção do lugar que lhe assigna a logica.
Apenas algumas dentro as menos significativas são facultativamente
sujeitas a uma leve deslocação ; as que, porém,
servem do nexo imprescindivel entre as proposições, podem
vir a ser accidentalmente elididas, ou até transferidas com
toda a proposição por ellas encetada ; mas deslocadas, para
detraz do facto, nunca.

270. Consideradas em relação ao modo por que intervém
no discurso, as conjuncções formão as tres classes
bem distinctas de copulativas, subordinativas o preventivas.

271. As copulativas são só tres : e, nem, ou. Tanto
se encontrão dentro do uma proposição, como entre proposições,
o até entre orações.

Collocadas dentro de uma proposição, denuncião termos
compostos, ou ao menos de semelhante natureza.

Ex. O engano vestido de eloquencia e arte attrahe.
(Mathias Ayres da Silva de Eça).

Ahi constituem eloquencia e arte um unico complemento
indirecto, porém composto, sob a regencia da mesma preposição
de. (V. a syntaxe).

Collocadas entre proposições, denuncião-nas como sendo
da mesma especie. (v. a theoria da analyse logica).196

Ex. O engano vestido de eloquencia e arte attrahe, e a
verdade mal polida nunca persuade
. (Mathias Ayres da Silva
do Eça).

Collocadas entre orações, denuncião-nas como correlativas.
(V. a theoria da analyse logica).

Ex. O engano vestido de eloquencia e arte attrahe, e a
verdade mal polida nunca persuade
. e assim mais nos agrada
o discorrermos subtilmente do que o discorrermos com acerto
.
(Mathias Ayres da Silva de Eça).

Nota. Nesto ultimo exemplo tão somente, fez-se, na
ordem das duas orações, uma transposição que, sem obliterar
as opiniões do autor, torna a demonstração theorica
mais frisante.

272. As subordinativas são que e se, com todas as
mais conjuncções ou locuções conjunctivas implicando ostensivel
ou occultamente que ou se.

No jogo das diversas proposições que costumão concorrer
á formação da mór parto das orações, nenhumas
conjuncções se avantajão ás subordinativas, já pela importancia,
já pela simplicidade das indicações theoricas que
fornecem a bem da discriminação dos pensamentos complexos,
o de sua respectiva avaliação. Pois não ha encarecimento
em dizer que constituem a chave da analyse
logica, como esta constitue a introducção obrigatoria a
uma theoria racional da pontuação.

As conjuncções implicando ostensivel ou occultamente
os mesmos vocabulos são as dez seguintes :

tableau como, | porque,
conforme, | quando
embora, | quão
emquanto, | segundo,
porquanto, | senão.

As locuções conjunctivas assemelhaveis ás mesmas conjuncções
são todas as que, como as seguintes, constão de
um conjuncto do palavras acabando por uma subordinativa :

tableau afim que… | ao passo que… | comtanto que…
ainda bem que… | assim como… | despois que…
ainda que… | assim que… | desde que…
ainda se… | até que… | do que…
a não ser que… | como que… | excepto se…
antes que… | como se… | já que…
197

tableau logo que… | para que… | supposto que…
longe que… | posto que… | tanto que…
não obstante que… | salvo se… | visto como…
nem. que… | se bem que… | visto que…, etc.

Observações
sobre as conjuncções e locuções subordinativas

273. Que é conjuncção quando resiste a toda e qualquer
conversão, ou só se deixa converter em outra conjuncção
ou locução subordinativa. (V. § 175, art. 5.°).

274. Se, conjuncção, enceta necessariamente uma proposição,
e por isso, precede constantemente ao verbo sobre
o qual actúa, sem se prestar isoladamente a transposição
alguma, isto é, sem arrastar comsigo a proposição a que
serve de cabeçalho.

Ex. Se Deos vos fez estas Mercês, fazei pouco caso das
outras
. (P. Ant. Vieira). — (Fazei pouco caso das outras
Mercês
, se Deos vos fez estas).

Se, pronome pessoal, tanto se encontra anteposto como
posposto ao verbo. Indo-lhe, porém, anteposto, discrimina-se
da conjuncção por se ageitar sempre, com mais ou menos
propriedade de collocação, a uma transposição para traz
do verbo.

Ex. Se tendes posto muito perto ao rei, tudo se vos sujeita.
(P. Ant. Vieira). — (Se tendes posto muito perto ao
rei, sujeita-
se-vos tudo).

Outros exemplos :

Se o soldado se vê despido (vé-se despido), folgue de descobrir
as feridas, e de envergonhar a patria, por quem as
recebeu
. se, depois de tantas cavallarias, se vê a pé, (vê-se a
pé), tenha essa pela mais illustre carroça de seus triumphos.
e
, se, emfim, se vê morrer a fome (vê-se morrer a fome),
deixe-se morrer, e vingue-se. (P. Ant. Vieira).

275. Cumpre, porém, attender, não só em relação á
grammatica geral, senão tambem porque dahi se deduz uma
notavel divergencia de pontuação, que são duas as conjuncções
se : uma condicional, e outra dubitativa.

O se condicional tem por distinctivo a propriedade de
ser çonvertivel em caso que, constrangendo então o verbo
198sobre o qual elle actúa, a passar para o subjunctivo, se
por acaso não se acha já neste modo.

Ex. se tendes posto muito perto ao rei, tudo se vos sujeita.
(P. Ant. Vieira). — (caso que tenhais posto muito
perto ao rei
,…).

Se cinco mil homens, com mulheres e filhos, entrassem de
repente em uma grande cidade, não haveria promptamente que
lhes dar de comer
. (P. Ant. Vieira). — (caso que cinco mil
homens, com mulheres e filhos
, entrassem em uma grande cidade,…).

O se dubitativo é inconvertivel em outra qualquer
expressão.

Ex. Vêde se foi grande favor, e providencia do Céo que
se não descobrissem minas
 ! (P. Ant. Vieira).

Havião os phariseos introduzido na casa um hydropico
para ver
se Christo o sarava em semelhante dia. (P. J. B.
de Castro).

Em relação á grammatica geral justifica-se a conveniencia
desta distincção por se negarem frequentemente as
mesmas conjuncções a ser vertidas em outras linguas por
uma só e mesma conjuncção. Assim é que o se condicional
fica reproduzido, em latim, por si, — e em allemão, por
Wenn ; — e o se dubitativo, em latim, por an, — e em allemão,
por ob. — Ambos, outrosim, se encontrão representados
nos seguintes exemplos :

Se Diogenes então perguntasse quaes erão os que passavão-se
os do triumpho, se os que estavão vendo, não ha duvida
que a pergunta parecería digna de riso
. (P. Ant. Vieira). —
(caso que Diogenes então perguntasse…).

O infante D. Duarte, se algumas vezes queria ir fóra
folgar e caçar, mandava-me recado
 : « Vai dizer a meu mestre
se me dá licença para ir. » (André de Resende). — (… caso
que
quizesse ir…).

276. Como, contracção do vocabulo latino quomodo,
corresponde, como conjuncção, á locução conjunctiva
« modo por que… » vindo a palavra « modo » a pertencer á
proposição anterior, o « por que » á posterior.

Ex. O’ Senhor, não sei como isto pode estar com a piedade
e amor de filho
. (P. Ant. Vieira). — (… não sei o
modo — por que isto póde estar…).

Assim como já veiu exposto, e mórmento quando o
mesmo vocabulo concorre a formar uma oração interrogativa
ou exclamativa, melhor é tê-lo então em conta do adverbio,
199porque representa analyticamente um complemento
indirecto.

Ex. Pois, Filho da Virgem Maria, como consentis agora
que se lhe fação tantos desacatos ?
(P. Ant. Vieira). — (… por
que motivo
consentis agora…).

Nas mesmas circumstancias, os vocabulos porque,
quando e quão
, por affectarem tambem mais ostensivelmente
as feições adverbiaes, devem ser tidos por adverbios.

Ex. Dizei-me, voadores : não vos fez Deos para peixes ?
Pois
, porque vos metteis a ser aves ? (P. Ant. Vieira). —
(… por que motivo vos metteis…).

Quando fazem os ministros o que fazem ? e, quando
fazem o que devem fazer 1 (P. Ant. Vieira). — (em que
tempo
fazem. :.).

Quão magnificas e hem ordenadas são, Senhor, todas
vossas obras t
(P. Man. Bernardes). — (em que extraordinaria
proporção
magnificas e bem ordenadas são…).

Observação. Que estes o semelhantes desmanchos
analyticos, de grande importancia em svntaxe, não são nenhuma
interpretação forçada das conjuncções subordinativas,
verifica-se polo seguinte exemplo, em que a locução
explicativa de como póde ser convertida nesta conjuncção,
o vice-versa, sem alteração de sentido.

Saibamos agora, e não de outrem, senão das mesmas arvores,
se este bom governo
, — do modo que (como) ellas o
entenderão, se póde conseguir com as raizes na terra. Assim
as que o offerecêrão
como (do mesmo modo que) as que o
não aceitarão, todas concordão que não
. (P. Ant. Vieira).

277. Os vocabulos, emquanto, porquanto, porque,
quando e quão
, em cuja contextura é mui perceptivel a
interferencia de que, resolvem-se analyticamente, na qualidade
de conjuncções, em dous termos, o primeiro dos quaes
pertence á proposição anterior, e o segundo constituido
sempre por que, á posterior.

Ex. Crescia aquella monarchia emquanto crescia a fé, e
crescia a fé
emquanto os ministros della erão assistidos dos
que o são dos reis, e
emquanto os mesmos reis tinhão por tão
suas as conquistas da Igreja, como a dilatação do proprio imperio
.
(P. Ant. Vieira). — (Crescia aquella monarchia na
proporção — em que
crescia a fé…).

Tambem lhe disse el rei de França que, porquanto tinha
por certo que, algumas vezes, os Castelhanos folgavão de vender

200fortalezas, elle haveria por mais barato comprá-las por dinheiro
que por guerra
. (Duarto Nunes de Leão). — (Tambem lhe
disse el rei de França que elle havia por mais barato comprar
fortalezas por dinheiro que por guerra
 ; na supposição
que tinha por certa…).

E’ a luz mais benigna que o sol, porque o sol não só
allumia, mas abraza
. a razão natural desta differença é porque
o sol (como dizem os philosophos), ou verdadeiramente é
fogo, ou de natureza mui semelhante ao fogo
. (P. Ant. Vieira).
— (E’ a luz mais benigna que o sol, por isso — que o sol
A razão desta differença é por isso — que o sol…).

Toda a consolação é escusada quando os males são sem
remedio
. (P. Ant. Vieira). — (Toda a consolação é escusada
na occasião — em que os males…).

Todos sabemos quão estreitas e quão limitadas são as
taxas que S. Thomaz pôz á casa, á familia e a todas as mais
despezas dos prelados
. (Fr. Luiz de Souza). — (Todos sabemos
a proporção — em virtude da qual tão estreitas e
tão limitadas
…).

Observação. Como certas considerações syntaxicas,
do que em outra parte fallar-se-ha, tornão opportuna a
discriminação dos vocabulos como, porque, quando, quão o
que
, já em adverbios, já em conjuncções, cumpre novamente
ter presente que a primeira destas qualificações lhes
compete mais habitualmente nas orações directamente interrogativas
ou exclamativas, e a segunda, nos outros
casos.

Ex. A mãi dá a maçãa ao filhinho, e esconde-lhe a faca.
porque ? (Adverbio) — porque quer que côma, mas não quer
que se fira
. (Conjuncção). — (P. Ant. Vieira).

278. Conforme e segundo passão de proposições a
conjuncções quando, igualmente suppriveis uma por outra,
e deixando de actuar em um regime, servem de mero nexo
a duas proposições, tornando-se em tal caso conjuncções
subordinativas, por adduzir nellas a decomposição analytica
constantemente que.

Ex. Daquellas figuras, umas erão de maior estatura,
outras de mediana, e outras mais pequenas
, conforme se offereceu
achá-las
. (P. Man. Bernardes). — (… segundo se offereceu…).

Nesta terra ha de tirar N. do N. mais de cem mil cruzados
em tres annos
, segundo (conforme) se lhe vão logrando
bem as industrias
, (P. Ant. Vieira), — (Nesta terra ha de
201tirar N. do N. mais de cem mil cruzados em tres annos,
modo — dor que
lhe vão…).

Quando cuidamos, pelas flores que de uma região conhecemos,
que poucas mais haverá nas outras, apparecem novos
exercitos da florida primavera
, segundo (conforme) são novos
os climas e terrenos que se descobrem
. (P. Man. Bernardes).
— (… apparecem novos exercitos da florida primavera na
ordem — em que
são novos os climas…).

Em umas o feitio é tão exquisito, que parece que seu Artifice
estava então curioso e applicado. Em outras dirieis que
se valeu do pincel
, segundo (conforme) as salpicou de varios
matizes
. (P. Man. Bernardes). — (Em outras dirieis que se
valeu do pincel
, pelo modo — por que as salpicou…).

279. Embora é conjuncção com o sentido do posto
que, ainda que
, o então vai naturalmente anteposto ao
verbo.

Ex. Embora todos te reneguem, eu nunca te renegarei.
— (Eu nunca te renegarei, ainda que (posto que) todos te
reneguem).

Posposto ao verbo, o mesmo vocabulo é mero adverbio
do concessão, pois póde ser, em tal caso, modificado por
outro adverbio. (seja embora como querem ; — seja muito
embora…
!).

Ex. Mas isto passe embora porque é damno particular.
(P. Ant. Vieira).

Sob a forma plural, é substantivo synonymo de parabéns.

Ex. Aceite as minhas embóras.

280. Senão, mera contracção da conjuncção se com o
adverbio não, já acharia, nesta unica consideração, motivo
sufficiente para ser tido como conjuncção subordinativa,
quando não tivesse outro na propriedade de se resolver
analyticamente em que, ou n’uma locução cuja ultima palavra
é quea não ser que

Ex. Que é o nascer senão o remedio de não ser ? (P.
Ant. Vieira). — (Que é o nascer, se não é o remedio de não
ser
 : — a não ser que seja o remedio de não ser ?).

Não têm ás vezes mais de prudencia os máos em seus
conselhos
, que de coserem a bocca. (Fr. João do Couta). —
(… senão de coserem a bocca).

Por estes desmanchos analyticos percebe-se que a circumstancia
provocando a contracção senão é simplesmente
202a omissão do facto em que terião de actuar as duas partes
constitutivas deste vocabulo (senão o remedio : — se não é
o remedio).

Toda a nobreza e excellencia do homem consiste no livre
alvedrio ; e o servir
, se não é perder o alvedrio, é captivá-lo.
(P. Ant. Vieira).

Umas leves alterações em outros trechos igualmente
extrahidos do P. Ant. Vieira prestão-se a confirmar esta
allegação.

« Use o principe de doçura, domará elephantes ; se de
violencia
, irritará cordeiros ». — Use o principe de doçura,
domará elephantes
 ; senão, irritará cordeiros. — Isto é : Use
o principe de doçura, domará elephantes
 ; se não usar de doçura
(a não ser que use de doçura), irritará cordeiros).

« No que toca a todos, consulte os mais ; se não acertar,
errará acreditado ». — No que toca a todos, consulte os mais ;
senão, errará desacreditado. — (… se não consultar…
a ser que não consulte…).

« Que cousa é o ouro e a prata, senão uma terra de
melhor côr ? E, que são as perolas e os diamantes
, senão
uns vidros mais duros ? Que cousa são as galas, senão um
engano de muitas côres?
 » — Isto é : Que cousa é o ouro e a
prata
, se não são uma terra de melhor côr ? E, que são as
perolas e os diamantes
, se não são uns vidros mais duros ?

Que cousa são as galas
, se não são um engano de muitas
côres ?

Nisto é que se cifrão as principaes observações a que
cumpre attender para escrever com acerto senão e se
não
.

Cumpre ainda notar que os classicos empregão frequentemente
o mesmo vocabulo com o sentido da locução
hoje mais usada e sim.

Ex. Agora não vos peço admiração, senão (e sim) pasmo.
(P. Ant. Vieira).

O que dahi decorro, é que, com este sentido, senão
deixa de ser conjuncção subordinativa, o passa a ser preventiva,
com o sentido de mas.

281. Muito convem discriminar a locução conjunctiva
do que das tres locuções pronominaes do que.

As locuções pronominaes são essencialmente convertiveis
em daquelle que…. daquillo que…. ou de que
cousa
.

Ex. Que direi do que, para sahir um dia aos touros, e
203ostentar cincoenta lacaios vestidos de tela, empenhou o morgado
e as commendas por muitos annos ?
(P. Ant. Vieira). — (Que
direi
daquelle que…).

Quem não se guarda do que receia, não se espante quando
vir o que teme
. (P. Ant. Vieira). — (Quem não se guarda
daquillo que receia…).

E, porque a canna delgada não poderia suster o peso da
espiga, esta se reforça, com as camisas das folhas de que está
vestida, e muito mais com os nós que de espaço em espaço tem
distribuidos, os quaes são como os liadouros de tijolo nas paredes
de taipa para firmá-las
, do que carece a aveia, que,
como não tem, no alto, peso, não teve deste reforço necessidade
.
(Fr. Luiz de Granada). — (… de que cousa carece a
aveia
…).

A locução do que é conjunctiva quando, por substituição
a que, invertem entre os dous membros de uma
comparação.

Ex. Mais louvavel é evitar as injurias do que (que)
vingar-se dellas
. (P. Ant. Vieira).

Um avarento não faz cousa mais acertada em toda a sua
vida
do que (que) sahir-se della. (P. Man. Bernardes).

Isto é o que se escreve, e se escreve muito menos do que
(que) verdadeiramente é. (P. Ant. Vieira).

282. Importa igualmente não confundir o complemento
indirecto para que com a locução conjunctiva para
que
.

No primeiro caso deixa-se que resolver em todas as
formas analyticas que designão este vocabulo, já como adjectivo
indefinito, já como pronome relativo, já como pronome
indefinito.

Ex. Não nos é dado saber para que fins creou Deos
tudo o que vemos
. — (… para quaes fins…).

Quando se publica e se sabe o felicissimo e altissimo fim
para que nasceu Maria, então se solemnisa e festeja com
razão o dia do seu nascimento
. (P. Ant. Vieira). — (… para
o qual…
).

Nascemos sem saber para que nascemos ; e bastava só
esta ignorancia para fazer a vida pesada, quando não tivera
tantos encargos sabidos
. (P. Ant. Vieira). — (… para que
cousa…
).

No segundo caso resolve-se para que em afim que,
ou em outra locução conjunctiva do mesma categoria.204

Ex. De umas cidades se não sabem os lugares onde estiverão;
 ;
de outras se lavrão, semeião e plantão os mesmos lugares,
sem mais vestigios de haverem sido que os que encontrão
os arados quando rompem a terra
 : para que os homens,
compostos de carne e sangue, se não queixem da brevidade da
vida (pois tambem as pedras morrem), e
para que ninguem
se atreva a negar que tudo quanto houve, passou, e tudo
quanto é, passa
. (P. Ant. Vieira). — (… afim que…).

Aos cães, deixa-se-lhes sopa para que não ladrem nem
mordão
. (P. Man. Bernardes). — (… afim que…).

283. Entre as locações conjunctivas de mesma ordem
merece especial reparo a que fica constituida dos vocabulos
por o que, visto apresentar a singularidade de apparecer
sempre disgregada por uma interpolação em que se encontra
necessariamente um participio, adjectivo ou adverbio,
ou palavra originariamento adjectival.

Ex. Não ha caso, por perdido que seja, que, posto na
mão de um sabio, delle não esperemos remedio ; e não ha caso
,
por ganhado que seja, que, posto na mão de algum simples,
não se espere perdê-lo
. (P. Ant. Vieira).

por desprezivel que seja qualquer pessoa, póde ser mui
util ou mui nociva a qualquer outra de alto estado e dignidade
.
(P. Man. Bernardes).

Terrivel palavra é um non. Não tem direito nem avesso ;
por qualquer lado que o tomeis, sempre sôa e diz o mesmo
por qualquer parte que o tomeis, sempre é serpente, sempre
morde, sempre fere, sempre leva o veneno
por mais que
confeiteis um não, sempre amarga ; por mais que o enfeiteis,
sempre é feio
 ; por mais que o doureis, sempre é de ferro.
(P. Ant. Vieira).

Verifica-se, aliás, a unidade de sentido desta locução,
apezar da dissociação que lhe impõe a sua natureza, pela
faculdade de, em todas as hypotheses, ser resoluvel em
uma ou outra das tres expressões synonymas embora, ainda
que, posto que
.

Não ha caso, embora seja perdidoembora seja ganhado

Ainda que seja desprezivel qualquer pessoa,…

Embora tomeis o não por qualquer lado... por qualquer
parte
embora o confeiteis muito,… o enfeiteis muito,… o
doureis muito

284. As conjuncções preventivas são vocabulos que,
por sua intorposição entre duas partes de um mesmo termo
205syntaxico, ou entre duas proposições, ou emfim entre duas
orações, não têm outra funcção senão a de encaminhar o
espirito a considerar as idéas ou pensamentos assim ligados,
como consenscientes ou dissidentes.

Exemplos :

(Entre partes de um mesmo termo) :

Lucullo, cidadão romano, homem riquissimo, mas muito
vanglorioso, gastava em cada ceia, com seus convidados, cinco
mil philippêos
. (P. Man. Bernardes).

(Entre proposições) :

O entendimento é a mesma parte que discorre, porem
póde discorrer mal. (Mathias Ayres da Silva de Eça).

(Entre orações) :

Póde haver maior desgraça que não ter um homem bem
algum digno de inveja ?
Pois é o que se segue de não ter inimigos.
(P. Ant. Vieira).

Verifica-se o caracter essencialmente accessorio das
conjuncções preventivas, e conseguintemente a sua menor
importancia, pela consideração que, sendo eliminadas, não
fica por isso o pensamento desvirtuado ; porém o sobresalto
que de sua suppressão recebe o espirito, é indicação frisante
de quanto servem para suavisar a linguagem. Basta,
para averiguá-lo, sujeitar a esta prova os tres exemplos
anteriores.

285. As conjuncções preventivas que mais a miudo
occorrem, são as seguintes :

tableau aliás, | logo, | pois,
comtudo, | mas, | porém,
emfim, | ora, | portanto,
entretanto, | outrosim, | todavia, etc.

Convem accrescer-lhes as iterativas :

tableau já… já… — ora… ora… — quer… quer…

286. Em opposição ás outras classes de conjuncções,
as preventivas podem ser consideradas como formas meramente
adverbiaes, ageitadas a servir do transição. Comprova-o,
não só a propriedade que algumas têm, como
todavia, entretanto, comtudo, etc., de se portar, de vez era
quando, junto a verbos, como verdadeiros adverbios, senão
206tambem a frequencia dos casos em que vocabulos constituindo
declaradamente adverbios ou locuções adverbiaes
fazem o officio de conjuncções preventivas ; assim finalmente
em vez de emfim, — conseguintemente, por conseguinte, por
consequencia
em vez de logo ou portanto, etc. Assim é que,
no seguinte exemplo, a conjuncção emfim faz o officio de
mero adverbio :

Quando Affonso de Albuquerque conheceu que as intrigas
tramadas pela inveja
tinhão emfim (finalmente) abalado o
coração de el rei, não se póde conter que não levantasse as
mãos ao céo
. (Vida de el rei D. Manoel).

Porém, nos seguintes exemplos, são a contrario adverbios
que fazem o officio de conjuncções, por se intrometterem
como vinculo entre orações :

Que cousa é a fama, senão uma inveja comprada ? uma
funda de David, que derriba o gigante com a pedra, e ao
mesmo David com o estalo. Que cousa é a prosperidade humana,
senão um vento que corre todos os rumos ? se diminue,
não é bonança ; se cresce, é tempestade
. finalmente, que
cousa é a mesma vida, senão uma alampada accesa ? vidro e
fogo : vidro que com um assôpro se faz, fogo que com um assôpro
se apaga
. (P. Ant. Vieira). — (… emfim, que cousa é
a mesma vida
…).

Saibamos agora, e não de outrem, senão das mesmas arvores,
se este bom governo, do modo que ellas o entenderão, se
póde conseguir e exercitar com as raizes na terra
. assim ás
que o offerecêrão, como as que o não aceitárão, todos concordão
que não
. (P. Ant. Vieira). — (Pois as que o offerecêrão…).

Mas vamos a esse inimigo. Já que esse inimigo e esse
odio é tão irreconciliavel, porque não matais esse inimigo ?

Responde a vossa bizania que o não matais porque não ha
causas para tanto
. agora vos convencí. Basta que a vossa desunião
não tem causas para matar um homem, e tem causas
para matar um reino
 ! (P. Ant. Vieira). — (… logo (portanto)
vos convencí…).

287. Dentre as referidas preventivas contão-se nove
que se deixão transferir para dentro da proposição que
lhes cabe logicamente iniciar :

tableau aliás, | entretanto, | porém,
comtudo, | logo, | portanto,
Emfim, | pois, | todavia.

Mas cumpre attender a que não convem afastá-las
207muito do logar que lhes é assignado por sua funcção, nem
intromettê-las entre termos que intimamente se prendem.

Ex. O peccado da usura, e a enfermidade da lepra parecem-se
em muitas cousas : não é
, logo, de admirar que esta
fosse a pena daquella
. (P. Man. Bernardes). — (… logo não
é de admirar
…).

Assim, pois, acontece aos soberbos, que, quando mais
ufanos e satisfeitos de suas prendas, andão a buscar o applauso
do mundo
. (P. Man. Bernardes). — (Pois assim acontece…).

Não diminuiu nada a dor de S. Ex. o não ter visto ao
senhor D. Theodosio, porque o via retratado nas suas cartas;
 ;
sei, comtudo, que deseja muito em retrato seu natural. (P.
Ant. Vieira). — (… comtudo sei que deseja…).

Forão inventores destes jogos Hercules, Pytho, Theséo e
outros heroes, de quem os tomárão os Gregos e Romanos, sendo
,
porem, o principal premio dos que vencião, não o dinheiro,
senão a honra e fama
. (P. Ant. Vieira). — (… porem sendo
o principal premio
…).

288. As conjuncções iterativas exprimem alternancia
ou opção.

Ex. Sahiu a pomba da Arca ; e diz o texto sagrado que,
ia, tornava, tomava para uma parte, para outra,
e que não achava onde descansar
. (P. Ant. Vieira).

Que é o que vês ?Tudo passando... as arvores sempre
remudando-se
, ora seccas, ora floridas, ora murchas. (P. Man.
Bernardes).

Seria cousa grande descer ao particular, quer de esmolas,
quer de donativos gratuitos. (P. Simão de Vasconcellos).

Capitulo X
Da interjeição

289. Interjeição é uma palavra invariavel que implicitamente
abrange todos os elementos do uma proposição ou
pensamento.

As mais perfeitas interjeições por sua significação categorica
são sim o não, quando representando por si sós
208um pensamento, servem de resposta peremptória a uma
interrogação.

Ex. Responde-me. Para onde vais ? vais para, a sepultura ?
sim. (P. Ant. Vieira). — (Tu vais para a sepultura).

Esta navegação, estas viagens, este caminho maritimo para
a India, China e toda a Asia, havia-o antigamente?
não :
nem rasto ou pensamento humano de tal caminho ; antes, mais
doutos e sabios entendimentos o tinhão por impossivel
. (P. Ant.
Vieira). — (não o havia).

290. As interjeições são de duas especies : proprias ou
improprias.

291. proprias são as interjeições que, constando das
vozes ou vocabulos que soltamos quando nos commove
algum affecto vivo, não podem reverter para nenhuma
outra especie de palavras. As mais usadas são ah ! e oh !
que, conforme a modulação com que sabem expressas,
enuncião sentimentos varios e até oppostos. O numero das
demais é relativamente diminuto ; e, com excepção de oxalá
(do arabe : « Praza a Deos »), poucas são as que passão do
estylo familiar.

Apage ! — Apre ! — Arre ! — Bofé ! — Caluda ! — Chiton !
— Eia ! — Hi ! hi ! hi ! — Hui ! — Hum ! — Irra ! — Olá l
— Olé ! — Rou-rou ! — Siu ! — Sus ! — Tá !
etc.

292. Improprias são as interjeições que, deixando de
enunciar implicitamente um pensamento, revertem para
outra especie de palavras.

Ex. Olhai, peixes, lá do mar para a terra. não ! não !
não ê isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os mattos
e para o sertão
 : para cá ! para cá ! para a cidade é que
haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns
aos outros ? Muito maior açougue é o de cá ; muito mais se
comem os brancos
 ! (P. Ant. Vieira).

Houve algum homem tão mimoso dá fortuna neste mundo,
que, em alguma ou em todas as cousas delle, achasse o descanso
que buscava ?
nenhum. (P. Ant. Vieira).

Para concluir este parecer, veiu um, e disse : « senhor,
alviçaras ! boa nova ! gran’ prognostico !
aguia real sobre
o campo de Vossa Alteza, rodeada de milhanos, signal certo
de vencimento, que o Céo nos mostra
. » (Luiz Torres de
Lima).

Correrão os terços portuguezes valorosamente, e com grande
209brio se gritou : « victoria ! victoria ! » (Luiz Torres de
Lima).

Se lhe não podeis dar, ao pretendente, o que lhe negais,
quem lhe ha de restituir o que lhe perdeis ?
oh ! restituições !
oh ! consciencias ! oh ! confissões ! Seja a ultima admiração,
esta; pois não louvo nem condemno, e só me admiro
 !
(P. Ant. Vieira).

293. No numero das interjeições improprias cabem
igualmente as palavras de interpellação, ou, como se sóe
dizer por imitação do latim, as palavras em vocativo ou
apostrophe, de que já veiu um exemplo no primeiro trecho
citado : « Olhai, peixes, lá do mar… »), quer appareção
precedidas do vocabulo expletivo — ó — , quer não.

Ex. Padre nosso, que estais no céo, sanctificado seja o
vosso nome
. (Evangelho).

O’ deos e senhor meu ! por vossa infinita bondade vos
rogo humildemente me concedais que vos ame de todo o coração
.
(P. Man. Bernardes).

Que quiz o anjo no céo, e que quiz o homem no paraíso ?

Ambos quizerão ser como Deos. Menos me admiro das suas
vontades que de seus entendimentos. Vem cá
, lucifer ; vem
, adão : tu anjo, e o mais sabio de todos os anjos ; tu homem,
e o mais sabio de todos os homens ! Não entendeis e
conheceis com evidencia que não podeis ser como Deos ?
(P.
Ant. Vieira).

Senhores meus, que tão desvelados andais todos, e tão
esfaimados por ter de comer, e por deixar de comer a vossos
filhos, seguí e serví a Christo, e eu vos asseguro da sua parte
que, nem a vós, nem a elles, lhes faltará pão
. (P. Ant.
Vieira).

294. Porém, vindo as interjeições a constar de mais
do uma palavra, póde-se-lhes chamar, em attenção á uniformidade
da nomenclatura analytica, locuções interjectivas.

Deste genero são, além de algumas já citadas, as expressões :

Pois sim ! — Pois não ! — Pois então ! — Já já ! — Ai de
nós ! — De certo que sim ! — De certo que não ! — Aqui de
el rei
 ! — Etc.

Ex. Aqui, levantando a voz, bradou el rei D. Henrique
III de Castelha
 : « olá ! olá ! gente da minha guarda ! »
(P. Man. Bernardes).210

Disse então o barão de Alvito a frei João da Silva :
« Pois, se assim é, pater noster pelo rei, pelo reino e
pelos vassallos !
 » (Luiz Torres de Lima).

Capitulo XI
Da analyse

295. Analyse é a investigação, em um todo composto,
não só das partes que o constituem, senão tambem das leis
que mantêm as partes em cohesão, para conseguir-se, do
mesmo todo, a noção mais exacta.

Assim é a analyse um meio, não um fim, como alguns
o parecem acreditar ; e até, se for do tal modo instituida,
que não leve para nenhuma conclusão pratica, torna-se
apenas uma pueril gymnastica intellectual, que não vale o
que custa. Porém, devidamente encaminhada, ella concorre,
mais do que qualquer outro methodo, á consecução da verdade,
e, por isso, é reputada em todas as doutrinas um
auxiliar indispensavel.

O seu principal escolho (pois ella não é mais isenta do
que tudo quanto é humano, á contingencia do erro) consiste
em ficar exposta a uma falsa apreciação do seu verdadeiro
alcance ; porquanto este, embora claramente determinado
em theoria, não deixa do requerer tino na pratica,
para não ser excedido. Assim é que, actuando a analyse
por decomposição, evidente fica que deve parar onde acaba
a divisibilidade ; porquanto, seja qual fôr a progressão divisória,
em se chegando a um, impossivel é achar-lhe dous.

Não são, todavia, tão poucos os abusos da analyse registrados
nos annaes das sciencias. Sómente, conforme tiverão
por objecto a materia ou uma abstracção bastante diversas
apparecem as consequencias.

No primeiro caso, o resultado não é nenhum, porque
a materia não se deixa violentar ; e por isso é que constantemente
fugiu aos alchimistas das éras transactas o ouro
que pretendião extrahir de tudo quanto não era ouro.

No segundo caso, o resultado é geralmente alguma
ficção, que, por mais esdruxula que sáia, sempre conseguo
grangear proselytos, graças ao especioso preconceito que
211faz aceitar como profundo o que desafia o entendimento,
como philosophico o que burla o bom senso. Haja vista,
em Grammatica, a tão preconisada theoria do verbo substantivo,
que, longe de explicar cousa alguma, de concluir
em cousa alguma, tudo enreda e obscurece, e apenas serve
para comprovar que, se fora o homem incumbido de crear
a linguagem, não só tê-la-hia feito feissima, como ainda
inintellegivel. Pois á mesma theoria do verbo substantivo
é que se deve, por exemplo, este transcendental achado,
que, no verbo combinado « Ando procurando, » onde a complexidade
da forma não abriga em realidade mais de uma
só e unica idea
, aninhão-se entretanto nada menos de quatro :
« Sou andante sendo procurante ! » Tal é, fielmente transcripta,
a mais extremada das formulas de um dogma grammatical
reputado supinamente orthodoxo aquém e além
mar, nesta e naquella lingua, e por quantos se prezão de
ter devassado os mysterios da analyse logica. Oh ! logica !
E’ o caso de exclamar com o P. Ant. Vieira : « Seja a
ultima admiração, esta
 ! pois não louvo nem condemno : só me
admiro l
 »

296. A analyse grammatical, por esta doutrina, consta
de tres processos distinctos, correspondentes ás tres principaes
soluções que á Grammatica incumbe dar no interesso
a correcção da linguagem, quer fallada, quer escripta.
Pelo primeiro inquire-se da natureza e formas das palavras ;
pelo segundo, de suas funcções dentro da proposição ;
pelo terceiro, da indole das proposições com referencia
á pontuação.

A analyse grammatical divide-se assim em lexicologica,
syntaxica e logica
.

Baseia-se na convicção ; aliás justificada pela experiencia,
que, sob a variedade accidental dos idiomas, a expressão
do pensamento não pode deixar de ficar inflexivelmente
subordinada a um certo numero de principios tão independentes
de nosso alvedrío, e portanto tão incommutaveis,
tão indestructiveis como o são as proprias faculdades de
nossa alma.

Pois estes principios são as funcções das palavras, representadas
pelos sete termos syntaxicos.

Quer isto dizer que, para acertar, em seja que lingua
for, na classificação das palavras, cumpre saber qual é, dos
elementos da proposição, o que por ellas é representado no
caso sujeito á analyse. Porquanto só a funcção é permanente,
universal, absoluta em Grammatica ; tudo o mais é
çontingente, illusivo, inconsistente.212

Não ha duvida que, mórmente com a pratica assidua
do exercicios analyticos, venha a desenvolver-se um certo
tino que permitta de, á primeira intuição, formar-se um
juizo seguro sobre a natureza das palavras pelos seus caracteres
extrinsecos ; porém, no caso do duvida, a solução pertence
de direito á funcção, como ver-se-ha pelo exame da
unica palavra mais do seguinte exemplo, que aliás virá novamente
reproduzido para outras e mais importantes domonstrações :

« Ha mais para onde subir ? Ainda ha mais. » (P. Ant.
Vieira).

O vocabulo mais é, conforme a sua funcção, adjectivo
indefinito, pronome indefinito ou adverbio. (V. § 168). Qual
será, no caso vertente, a classe em que legitimamente cabe ?

A deficiência, no trecho, de todo e qualquer substantivo
ao qual se possa prender como apposição, basta para
vedar que seja classificado como adjectivo ; e, além disso,
não sendo de estado o verbo de que depende (ha), escusado
é tambem ventilar a hypothese que seja adjectivo na
qualidade de predicado.

Sobrão assim as eventualidades de pronome o do adverbio,
que, a julgar perfunctoriamente, parecem igualmente
lhe convir, embora correspondão a termos syntaxicos absolutamente
inconciliáveis. Com effeito, sendo adverbio, mais
torna-se o equivalente de um complemento indirecto (V. § 251) ;
sendo pronome não regido de preposição, a sua funcção é
necessariamente de sujeito ou de complemento directo. Não é,
portanto, indifferente attribuir-lhe esta ou aquella qualificação.

E’ o caso do considerar attentamente o verbo junto ao
qual exerce uma funcção, para destrinçar a que lhe compete.
A primeira observação que se coibe, vem a ser que o
verbo ha, não constituindo ahi um auxiliar, pela ausencia
de todo e qualquer participio invariavel ou de infinitivo com
o qual forme um tempo composto, é forçosamento activo ou
impessoal, sendo que, em um como no outro caso, não prescinde
de um complemento directo de substantivo ou pronome.
Ora, apresentando-se mais como a unica palavra que se
póde incumbir desta funcção, evidente fica que é ahi mais
um pronome, por ser complemento directo.

A demonstração será completa ? Ainda não, porquo a
prova é apenas negativa. Se mais é pronome, representa
um nome ou substantivo com ou sem apposição, ou até
outro pronome : a prova, portanto, só será cabal, se, sendo
substituido, deixa mais reapparecer os seus constituintes.
Pois ó exactamente o que succede pela substituição :213

« Ha outro lugar para onde subir ? Ainda ha outro. »

Neste conjuncto architectonico que se chama Grammatica,
os termos syntaxicos formão assim o fecho do abobada
que segura todo o odificio.

Advertencia
sobre os exercicios analyticos.

297. Rollin, tratando do ensino litterario, omittiu a
opinião que, na escolha dos excerptos tendentes a comprovar
a doutrina, prevalecessem sempre as obras mais perfeitas,
visto este meio ser o unico capaz, não só de debellar as
loquelas espurias do vulgo, como ainda de apurar o gosto
pela infusão progressiva daquellas normas do bom fallar
que já não são do dominio da sciencia, isto é, da demonstração,
e sim do da arte ou imitação. A experiencia elevou
esta indicação á altura de um preceito. Versem, portanto,
os exercicios analyticos sobre trechos extrahidos dos mais
puros representantes da litteratura nacional, porque, mórmente
nos classicos portuguezes, raro é o caso em que a
belleza da expressão não sirva de vehiculo a um nobre pensamento,
consideração de summa importancia num systema
educativo assentado no ensino da lingua patria.

Todavia, se se fez, nesta obra, abstracção quasi completa
de exemplos tirados dos poetas, foi muito do proposito ;
porquanto, sendo a dicção poetica essencialmente diversa
da da prosa, por ser tambem diverso o seu fim, não
pareceu azado misturar estructuras que frequentemente se
contrarião, para abonar a que forma incontestavelmente o
objecto especial da Grammatica. Sem duvida não é licito
ao estylo poetico zombar das regras grammaticaes ; porém,
não é menos verdadeiro tambem, que á Grammatica não
compete, em uma citação de versos, cuidar do que constitue
geralmente o seu principal realce : uma contextura artificiosa
e delicada, que o escalpello da analyse grammatical
desnatura e profana.

298. Os exercicios analyticos podem ser praticados de
viva voz ou por escripto. Porém qualquer destes dous modos
do investigação, empregado com exclusão do outro, acarreta
inconvenientes. A analyse praticada só vocalmente tem o
defeito do alliviar os estudantes de uma tarefa que requer
meditação, o que lhes tira o merecimento de um trabalho
214espontaneo, ou a responsabilidade de um deleixo censuravel.
Desenvolvida só por escripto, a analyse mal se compadece
com a exposição de motivos que lhe serve de sancção, e
portanto fica tolhida do dar todo o seu fructo. Remove-se
a difficuldade por uma conciliação dos dous processos, que
consiste em assignar á tarefa escripta uma indicação summaria,
e ao exercicio oral a justificação das mesmas indicações.

Especimen de analyse lexicologica

Argumento

299. Salomão, o mais sabio de todos os que nascêrão,
faz uma comparação tão superior ao nosso juizo, que só
podia caber no seu. Compara o dia da morte com o do
nascimento ; e, na differença destes dous extremos, quem
não imaginará que se compara o dia com a noite, a luz
com as trevas, a alegria com a tristeza, a felicidade com a
desgraça, a cousa mais desejada com a mais temida, e, com
a mais terrivel, a mais amavel ? Sendo, porém, tão prenhe
de admiração a proposta, mais digna de espanto é a sentença.
Resolve Salomão que melhor é o dia da morte que
o dia do nascimento. E, que tem o dia da morte para ser
melhor que o dia do nascimento ?

O dia do nascimento não é o mais alegre, e o da
morto, o mais triste ? O do nascimento não é o que povôa
o mundo ; o da morte, o que abre o enche as sepulturas ?
o do nascimento, o que veste do gala as famílias e as côrtes ;
o da morte, o que as cobre de luto ? A morte não é o
maior inimigo da vida, e o nascimento não é o que, sendo
ella mortal, a immortalisa ? Que é o nascer senão o remedio
do não ser ? e, que seria do mundo, se, em lugar dos mortos,
não nascêrão outros que lhes succedessem ? Até em
Deos necessita de nascimento a mesma Trindade, porque,
sendo só a pessoa Padre innascivel, Deos, sem nascimento,
seria um, mas não seria trino. Pois, se tantos são os bens
c felicidades que traz comsigo o dia do nascimento, os
quãos todos funesta, consumo e acaba o dia da morte, que
motivo teve o juizo do Salomão para antepôr o dia da
morte ao dia do nascimento ? Entendeu-o melhor que todos,
o maior interprete das Escripturas. « E’ melhor, diz S. Jeronymo,
o dia da morte que o dia do nascimento, porque,
no dia do nascimento, ninguem póde sabor o para que
nasce, e só no dia da morte se sabe o fim para que nasceu. »215

Se, no nascimento de Judas e Dimas, se levantasse figura
certa ao que cada um havia de ser em sua vida, a do primeiro
diria que havia de ser apostolo, e a do segundo, que
havia do ser ladrão : e assim forão na vida. Mas o verdadeiro
juizo do fim para que cada um delles nascera, ainda
estava incerto. Veiu finalmente o dia da morte, que foi o
mesmo em que ambos acabárão ; e esso dia declarou, com
assombro do mundo, que Judas nascêra para morrer enforcado
como ladrão, e Dimas, para confessar e prégar a
Christo como apostolo. (P. Ant. Vieira).

Declaração
da natureza das palavras

tableau Salomão | Subst. prop. m. s. / da | Art. def. cont. f. s.
o | Art. def. m. s. / morte | Subst. com. f. s
mais | Adv. / com | Prep.
sabio | Adj. qual. m. s. / o | Pron. dem. m. s.
de | Prep. / do | Art. def. cont. m. s.
todos | Adj. ind. m. p. / nascimento ; | Subst. com. m. s.
os | Pron. dem. m.p. / e, | Conj.
que | Pron. rel. m. p. / na | Art. def. cont. f. s.
nascérão | V. n. Ind. 8 T. / diferença | Subst. com. f. s.
faz | V. s. Ind. 1 T. / destes | Adj. dem. cont. m. p.
uma | Art. ind. f. s. / dous | Adj. num. card. m. p.
comparação | Subst. com. f. s. / extremos, | Adj. subst. m. p.
tão | Adv. / quem | Pron. indef. m. s.
superior | Adj. qual. f. s. / não | Adv.
ao | Art. def. cont. m. s. / imaginará | V. n. Ind. 7 T.
nosso | Adj. pos. m. s. / que | Conj.
juizo, | Subst. com. m. s. / se | Pron. pes. m. s.
que | Conj. / compara | V. p. Ind. 1 T.
| Adv. / o | Art. def. m. s.
podia | V. n. Ind. 2 T. / dia | Subst. com. m. s.
caber | V. n. Inf. 1 T. / com | Prep.
no | Art. def. cont. m. s. / a | Art. def. f. s.
seu | Pron. pos. m. s. / noite, | Subst. com. f. s.
Compara | V. a. Ind. 1 T. / a | Art. def. f. s.
o | Art. def. m. s. / luz | Subst. com. f. s.
dia | Subst. com. m. s. / com | Prep.
216

tableau as | Art. def. f. p. / a | Art. def. f. s.
trevas, | Subst. com. f. p. / sentença. | Subst. com. f. s.
a | Art. def. f. s. / Resolve | V. n. Ind. 1 T.
alegria | Subst. com. f. s. / Salomão | Subst. prop. m. s.
com | Prcp. / que | Conj.
a | Art. def. f. s. / melhor | Adj. qual. m. s.
tristeza, | Subst. com. f. s. / é | V. n. Ind. 1 T.
a | Art. def. f. s. / o | Art. def. m. s.
felicidade | Subst. com. f. s. / dia | Subst. com. m. s.
com | Prep. / da | Art. def. cont. f. s.
a | Art. com. f. s. / morte | Subst. com. f. s.
desgraça, | Subst. com. f. s. / que | Conj.
a | Art. def. f. s. / o | Art. def. m. s.
cousa | Subst. com. f. s. / dia | Subst. com. m. s.
mais | Adv. / do | Art. def. cont. m. s.
desejada | Part. var. f. s. / nascimento. | Subst. com. m. s.
com | Prcp. / E, | Conj.
a | Art. def. f. s. / que | Pron. ind. m. s.
mais | Adv. / tem | V. a. Ind. 1 T.
temida, | Part. var. f. s. / o | Art. def. m. s.
e, | Conj. / dia | Subst. com. m. s.
com | Prep. / da | Art. def. cont. f. s.
a | Art. def. f. s. / morte | Subst. com. f. s.
mais | Adv. / para | Prep.
terrivel, | Adj. qual. f. s. / ser | V. n. Inf. 1 T.
a | Art. def. f. s. / melhor | Adj. qual. m. s.
mais | Adv. / que | Conj.
amavel ? | Adj. qual. f. s. / o | Pron. dem. m. s.
Sendo, | Ger. simp. / do | Art. def. cont. m. s.
porem, | Conj. / nascimento ? | Subst. com. m. s.
tão | Adv. / o | Art. def. m. s.
prenhe | Adj. qual. f. s. / dia | Subst. com. m. s.
de | Prep. / do | Art. def. cont. m. s.
admiração | Subst. com. f. s. / nascimento | Subst. com. m. s.
a | Art. def. f. s. / não | Adv.
proposta, | Subst. com. f. s. / é | V. n. Ind. 1 T.
mais | Adv. / o | Art. def. m. s.
digna | Adj. qual. f. s. / mais | Adv.
de | Prep. / alegre, | Adj. qual. m. s.
espanto | Subst. com. m. s. / e | Conj.
é | V. n. Ind. 1 T. / o | Pron. dem. m. s.
217

tableau da | Art. def. cont. f. s. / morte, | Subst. com. f. s.
morte, | Subst. com. f. s. / o | Pron. dem. m. s.
o | Art. def. m. s. / que | Pron. rei. m. s.
mais | Adv. / as | Pron. pes. f. p.
triste ? | Adj. qual. m. s. / cobre | V. a. Ind. 1 T.
O | Art. def. m. s. / de | Prep.
dia | Subst. com. m. s. / luto ? | Subst. com. m. s.
do | Art. def. cont. m. / A | Art. def. f. s.
nascimento | Subst. com. m. s. / morte | Subst. com. f. s.
não | Adv. / não | Adv.
é | V. n. Ind. 1 T. / ê | V. n. Ind. 1 T.
o | Pron. dem. m. s. / o | Art. def. m. s.
que | Pron. rol. m. s. / maior | Adj. qual. m. s.
povôa | V. a. Ind. 1 T. / inimigo | Adj. subst. m. s.
o | Art. def. m. s. / da | Art. def. cont. f. s.
mundo ; | Subst. com. m. s. / vida, | Subst. com. f. s.
o | Pron. dem. m. s. / e | Conj.
da | Art. def. cont. f. s. / o | Art. def. m. s.
morte, | Subst. com. f. s. / nascimento | Subst. com. m. s.
o | Pron. dem. m. s. / não | Adv.
que | Pron. rei. m. s. / o | Pron. dem. m. s.
abre | V. a. Ind. 1 T. / que, | Pron. rei. m. s.
e | Conj. / sendo | Ger. simp.
enche | V. a. Ind. 1 T. / ella | Pron. pes. f. s.
as | Art. def. f. p. / mortal, | Adj. qual. f. s.
sepulturas ? | Subst. com. f. p. / a | Pron. pes. f. s.
o | Pron. dem. m. s. / immortalisa ? | V. a. Ind. 1 T.
do | Art. def. cont. m. / Que | Pron. ind. m. s.
nascimento, | Subst. com. m. s. / ê | V. n. Ind. 1 T.
o | Pron. dem. m. s. / o | Art. def. m. s.
que | Pron. rei. m. s. / nascer | V. n. Inf. 1 T.
veste | V. a. Ind. 1 T. / senão | Conj.
de | Prep. / o | Art. def. m. s.
gala | Subst. com. f. « . / remedio | Subst. com. m. s.
as | Art. def. f. p. / do | Art. def. cont. m. s.
familias | Subst. com. f. p. / não | Adv.
e | Conj. / ser ? | V. i. Inf. 1 T.
as | Art. def. f. p. / e, | Conj.
côrtes ; | Subst. com. f. p. / que | Pron. ind. m. s.
o | Pron. dem. m. s. / seria | V. i. Cond. 1 T.
da | Art. dem. cont. f. / do | Art. def. cont. m. s.
218

tableau mundo, | Subst. com. m. s. / bens | Subst. com. m. p.
se, | Conj. / e | Conj. em lugar (de) | Loc. prep. / felicidades | Subst. com. f. p. dos | Art. def. cont. m.p. / que | Pron. rei. f. p.
mortos, | Part. subst. m. p. / traz | y. a. Ind. 1 T.
não | Adv. / comsigo | Pron. pes. cont. m. s.
nascêrão | V. n. Subj. 3 T. / o | Art. def. m. s.
outros | Pron. ind. m. p. / dia | Subst. com. m. s.
que | Pron. rei. m. p. / do | Art. def. cont. m. s.
lhes | Pron. pes. m. p. / nascimento, | Subst. com. m. s.
succedessem ? | V. n. Subj. 2 T. / os | Art. def. m. p.
Até | Adv. / quaes | Pron. rei. m. p.
em | Prep. / todos | Adj. ind. m. p.
Deos | Subst. prop. m. s. / funesta, | y. a. Ind. 1 T.
necessita | V. n. Ind. 1 T. / consume | V. a. Ind. 1 T.
do | Art. def. cont. m. s. / e | Conj.
nascimento | Subst. com. m. s. / acaba | y. a. Ind. 1 T.
a | Art. def. f. s. / o | Art. def. m. s.
mesma | Adj. ind. f. s. / dia | Subst. com. m. s.
Trindade, | Subst. prop. f. s. / da | Art. def. cont. f. s.
porque, | Conj. / morte, | Subst. com. f. s.
sendo | Ger. simp. / que | Adj. ind. m. s.
| Adv. / motivo | Subst. com. m. s.
a | Art. def. f. 6. / teve | V. a. Ind. 3 T.
pessoa | Subst. com. f. s. / o | Art. def. m. s.
Padre | Subst. prop. m. s. / juizo | Subst. com. m. s.
innascivel, | Adj. qual. f. s. / de | Prep.
Deos | Subst. prop. m. s. / Salomão | Subst. prop. m. s.
sem | Prep. / para | Prep.
nascimento | Subst. com. m. s. / antepôr | V. a. Inf. 1 T.
seria | V. n. Cond. 1 T. / o | Art. def. m. s.
um, | Adj. num. card. m. s. / dia | Subst. com. m. s.
mas | Conj. / da | Art. def. cont. f. s.
não | Adv. / morte | Subst. com. f. 8.
seria | V. n. Cond. 1 T. / ao | Art. def. cont. m. s.
trino. | Adj. num. m. s. / dia | Subst. com. m. s.
Pois, | Conj. / do | Art. def. cont. m. s.
se | Conj. / nascimento ? | Subst. com. m. s.
tantos | Adj. ind. m. p. / Entendeu- | V. a. Ind. 1 T.
são | V. n. Ind. 1 T. / o | Pron. pes. m. s.
os | Art. def, m. p. / melhor | Adv.
219

tableau que | Conj. / fim | Subst. com. m. s.
todos, | Pron. ind. m. p. / para | Prep.
o | Art. def. m. s. / que | Pron. rei. m. s.
maior | Adj. qual. m. s. / nasceu. | V. n. Ind. 3 T.
interprete | Subst. com. m. s. / Se, | Conj.
das | Art. def. cont. f. p. / no | Art. def. cont. m. s.
Escripturas. | Subst. prop. f. p. / nascimento | Subst. com. m. s.
E’ | V. n. Ind. 1 T. / de | Prep.
melhor, | Adj. qual. m. s. / Judas | Subst. prop. m. s.
diz | V. n. Ind. 1 T. / e | Conj.
S. Jeronymo | Subst. prop. c. m. s. / Dimas, | Subst. prop. m. s.
o | Art. def. m. s. / se | Pron. pes. f. s.
dia | Subst. com. m. s. / levantasse | V. p. Subj. 2 T.
da | Art. def. cont. f. s. / figura | Subst. com. f. s.
morte | Subst. com. f. s. / certa | Adj. qual. f. s.
que | Conj. / ao | Pron. dem. cont. m. s.
o | Art. def. m. s. / que | Pron. rei. m. s.
dia | Subst. com. m. s. / cada um | Pron. ind. c. m. s.
do | Art. def. cont. m. s. / havia de ser | y. prep. Ind. 2 T.
nascimento, | Subst. com. m. s. / em | Prep.
porque, | Conj. / sua | Adj. pos. f. s.
no | Art. def. cont. m. s. / vida, | Subst. com. f. s.
dia | Subst. com. m. s. / a | Pron. dem. f. s.
do | Art. def. cont. m. s. / do | Art. def. cont. m. s.
nascimento, | Subst. com. m. s. / primeiro | Adj. subst. m. s.
ninguem | Pron. ind. m. s. / diria | V. n. Cond. 1 T.
póde | V. n. Ind. 1 T. / que | Conj.
saber | V. a. Inf. 1 T. / havia de ser | V. prep. Ind. 2 T.
o | Pron. dem. m. s. / apostolo, | Subst. com. m. s.
para | Prep. / e | Conj.
que | Pron. rei. m. s. / a | Pron. dem. f. s.
nasce, | V. n. Ind. 1 T. / do | Art. def. cont. m. s.
e | Conj. / segundo, | Adj. subst. m. s.
| Adv. / que | Conj.
no | Art. def. cont. m. s. / havia de ser | V. prep. Ind. 2 T.
dia | Subst. com. m. s. / ladrão : | Subst. com. m. s.
da | Art. def. cont. f. s. / e | Conj.
morte | Subst. com. f. s. / assim | Adv.
se | Pron. pes. m. s. / forão | V. n. Ind. 3 T.
sabe | y. p. Ind. 1 T. / na | Art. def. cont. f. s.
q | Art. def. m. s. / vida. | Subst. com. f. s.
220

tableau Mas | Conj. / acabarão ; | y. n. Ind. 3 T.
o | Art. def. m. s. / e | Conj.
verdadeiro | Adj. qual. m. s. / esse | Adj. dem. m. s.
juizo | Subst. com. m. s. / dia | Subst. com. m. s.
do | Art. def. cont. m. s. / declarou, | V. n. Ind. 8 T.
fim | Subst. com. m. s. / com | Prep.
para | Prep. / assombro | Subst. com. m. s.
que | Pron. rei. m. s. / do | Art. def. cont. m. s.
cada um | Pron. ind. c. m. s. / mundo, | Subst. com. m. s.
delles | Pron. pes. cont. m. p. / que | Conj.
nascêra, | V. n. Ind. 5 T. / Judas | Subst. prop. m. s.
ainda | Adv. / nascéra | V. n. Ind. 5 T.
estava | V. n. Ind. 2 T. / para | Prep.
incerto. | Adj. qual. m. s. / morrer | V. n. Inf. 1 T.
Veiu | V. n. Ind. 3. T. / enforcado | Part. var. m. s.
finalmente | Adv. / como | Conj.
o | Art. def. m.,s. / ladrão, | Subst. com. m. s.
dia | Subst. com. m. s. / e | Conj.
da | Art. def. cont. f. s. / Dimas, | Subst. prop. m. s.
morte, | Subst. com. f. s. / para | Prep.
que | Pron. rei. m. s. / confessar | V. a. Inf. 1 T.
foi | V. n. Ind. 8 T. / e | Conj.
o | Art. def. m. s. / pregar | y. a. Inf. 1 T.
mesmo | Pron. ind. m. s. / a | Prep.
em | Prep. / Christo | Subst. prop. m. s.
que, | Pron. rei. m. s. / como | Conj.
ambos | Pron. num. m. p. / apostolo. | Subst. com. m. s.
221

Segunda parte
Syntaxe

Termos syntaxicos. — idéa. — pensamento.
proposição. — oração.

300. Syntaxe é a theoria das funcções que as palavras
exercem na enunciação dos pensamentos, e das
relações que dahi entre ellas occorrem.

Do cotejo da primeira com a segunda parte da Grammatica,
o que resulta, é que a lexicologia declara o que
são as palavras, e a syntaxe, o que ellas fazem.

A lexicologia distribue as palavras em dez especies ; a
syntaxe resume-lhes as funcções em sete termos, que são:
1.° o facto ; 2.° o sujeito ; 3.° o complemento directo ; 4.° o
complemento indirecto ; 5.° o predicado ; 6.° a apposição,
7.° a ligação.

301. Com isso não se entenda que todos estes termos
encontrem-se necessariamente juntos em toda e qualquer
enunciação de pensamento, e sim tão somente que, seja
qual fôr o pensamento, todas as palavras que o constituem,
cabem forçosamente em uma ou outra destas sete categorias,
com excepção, todavia, das interjeições, que, por
pertencerem á linguagem figurada, se avalião do um modo
todo especial.

302. O pacto fica enunciado por um verbo, e só por
um verbo em um dos quatro modos outros que o infinitivo ;

O sujeito, essencialmente por um substantivo ou um
pronome, accidentalmente por um infinitivo ;222

O complemento directo, promiscuamente por um substantivo
ou um pronome, o separadamente por um infinitivo ;

O complemento indirecto, explicitamente por um substantivo,
um pronome, um infinitivo ou uma locução
adverbial, implicitamente por um adverbio ;

O predicado, essencialmente por um adjectivo ou um
participio variavel, accidentalmente por um substantivo,
um pronome ou um infinitivo ;

A apposição, essencialmente por um artigo, um adjectivo
ou um participio variavel, accidentalmente por um
substantivo, um pronome ou um infinitivo ;

A ligação, isoladamente por uma conjuncção ou locução
conjunctiva, contractamente por todo o pronome
adjectivo ou adverbio implicando ostensiva ou disfarçadamento
que ou se.

303. Considerados nas especies de palavras que os
produzem, os sete termos syntaxicos se distribuem como
se segue :

O verbo fornece, nos quatro primeiros modos, o facto,
e só o facto ; no infinitivo fornece um sujeito, um complemento
directo ou indirecto, um predicado ou uma apposição.

O substantivo fornece um sujeito, um complemento
directo ou indirecto, um predicado ou uma apposição.

O artigo fornece uma apposição, e só uma apposição.

O adjectivo fornece um predicado ou uma apposição.

O pronome fornece um sujeito, um complemento directo
ou indirecto, um predicado ou uma apposição.

O participio fornece um predicado ou uma apposição
quando não constitue com um auxiliar uma locução verbal
indivisível.

A preposição fornece uma relação, porém relação sem
alcance apreciavel emquanto não sabe expresso o regime
sobre o qual ella actúa, e, com o qual constitue um complemento
indirecto.

O adverbio fornece um complemento indirecto implicito.

A conjuncção fornece uma ligação.

Emfim, fóra dos sete termos, a interjeição fornece a
exclamação
, isto é, a ultima das cinco figuras de syntaxe,
do que mais adiante se trata.223

304. Os sete termos são assim as partes normalmente
constitutivas dos pensamentos na sua expressão vocal ou
escripta. A percepção mental a que cada um delles corresponde,
é o que se chama idéa.

305. Pensamento é um acto intellectual que implica a
formação de um juizo. O seu caracteristico consiste em se
prestar a ser aceito ou impugnado. Qualquer expressão ou
conjuncto do expressões que foge a este meio de aferição,
apenas solta idéas, mas não enuncia um pensamento. Ex.
Todos os homens querem ter pão. (P. Ant. Vieira). — (sim
ou não ?
)

306. O pensamento consta de uma ou mais ideas.
Quando consta de uma, o termo que lhe corresponde, só
póde ser um facto, isto é, um verbo em um modo outro
que o infinitivo ; e só um facto de necessidade, isto é, ao
qual fallece absolutamente todo e qualquer sujeito, como
lhe póde fallecer todo e qualquer predicado, todo e qualquer
complemento. Ex. anoitece. — trovejou. — chovera.

Que cada um destes termos exprime do per si só um
pensamento, evidencía-se por se deixar aceitar ou impugnar
o juizo que enuncia. Que a mesma faculdade de enunciar
um juizo falta-lhes no infinito, como, em igual caso, falta
a todos os verbos, mesmo ajudados de outros termos, evidencía-se
pela impossibilidade de lhes applicar, sob as formas
proprias deste modo, o mesmo criterio. Ex. anoitecer… ?
ter trovejádo… ? — chovendo… ?

307. O facto syntaxico é, portanto, a palavra de vida
no discurso. Emquanto não existe, não ha communicação
intellectual, seja qual fiôr o numero, sejão quaes forem as
ospecies de palavras de que se use.

Desta subordinação de todos os mais termos ao facto,
o que resulta, é que se torna elle o representante exclusivo
de todo e qualquer pensamento. Ora, sendo a proposição a
mera enunciação de um pensamento, claro é que se contão
tantos pensamentos singelos, ou tantas proposições em um
trecho dado, quantos nelle são os factos expressos ou occultos ;
o que cada proposição conta, como suas, todas as palavras
que directa ou indirectamente exercem uma funcção
junto ao proprio facto, seja aliás qual for a sua collocação
dentro da oração.

Os factos occultos são sempre denunciados por palavras
que, nenhuma funcção exercendo junto a factos expressos,
prestão-se todavia, com toda a lisura, a exercer uma junto
a um facto adduzido por supposição. Ex. ha mais para
onde subir ?
(P. Ant. Vieira).224

Por mais que se procure, neste exemplo, uma relação
de funcção entre o facto ha e as palavras para onde subir,
não se atina com nenhuma. Dá-se, portanto, o caso do sonegamento
do facto. e, com effeito, encaminhado por esta
inducção, o espirito descobre sem esforço, não só o facto
sonegado, como ainda as relações syntaxicas que estabelecem
a sua jurisdicção. « ha mais — para onde se possa
subir ? » — Donde se deduz que ahi, sendo em realidade
dous os factos, duas tambem são as proposições.

308. A oração, a que outros chamão periodo ou phrase,
consta, ou de uma só proposição, ou de ura complexo de
proposições mais ou menos intimamente relacionadas. Theoricamente,
só póde ser ella determinada por meio da analyse
logica ; praticamente, porém, discrimina-se pelo ponto
final.

Exercicio
sobre o modo de completar e dispôr as proposições nas
indagações analyticas de syntaxe

Argumento

Terrivel palavra é um non. Não tem direito nem
avesso ; por qualquer lado que o tomeis, sempre sôa e diz
o mesmo. Lêde-o do principio para o fim, ou do fim para
o principio, sempre é non. Quando a vara de Moysés se
converteu naquella serpente tão feroz, que fugia della porque
o não mordesse, disse-lhe Deos que a tomasse ao revez,
e logo perdeu a figura, a ferocidade e a peçonha. O non
não é assim : por qualquer parte que o tomeis, sempre é
serpente, sempre morde, sempre fere, sempre leva o veneno
comsigo. Mata a esperança, que é o ultimo remedio que
deixou a natureza a todos os males. Não ha correctivo que
o modere, nem arte que o abrande, nem lisonja que o
adoce. Por mais que confeiteis um non, sempre amarga ;
por mais que o enfeiteis, sempre é feio ; por mais que o
doureis, sempre é de ferro. Em nenhuma solfa o podeis pôr
que não seja malsoante, aspero o duro. Quereis saber qual
é a dureza de um non ? A mais dura cousa que tem a
vida, é chegar a pedir ; e, depois de chegar a pedir, ouvir
um non, vêde o que será ! (P. Ant. Vieira).

Terrivel palavra é um non.225

[Elle] não tem direito nem avesso ; — por qualquer parte
que
[vós] o tomeis, — [elle] sempre soae diz o mesmo.

lêde-o do principio para o fim, — ou [lêde-o] do fim para
o principio
, — [elle] sempre É non.

Quando a vara de Moysés se converteu naquella serpente
tão feroz, — que
[elle] fugia della — porque [ella] o
não
mordesse, — disse-lhe Deos — que [elle] a tomasse ao
revez, — e
[ella] logo perdeu a figura, a ferocidade e a peçonha.

O non não é assim: -  : — por qualquer parte que [vós] o
tomeis, — sempre [ella] é serpente, — sempre [ella] morde,
sempre [ella] fere, — sempre [ella] leva o veneno comsigo.

[Ella] mata a esperança, — que é o ultimo remedio —

que deixou a natureza a todos os males.

Não ha correctivo — que o modere, — nem [ha] arte
que o abrande, — nem [ha] lisonja — que o adoce.

Por mais que [vós] confeiteis um non, — [elle] sempre
amarga ; — por mais que [vós] o enfeiteis, — [elle] sempre
É feio ; — por mais que [vós] o doureis, — [elle] sempre é de
ferro
.

[Vós] em nenhuma solfa o podeis pôr — [em] que [elle]
não seja malsoante, aspero e duro.

quereis [vós] saber — qual é a dureza de um non ?

Chegar a pedir é a mais dura cousa — que tem a vida ;
— e
vêde, depois de chegar a pedir, o — que será ouvir um
non!

Exposição episodica
da theoria do verbo substantivo

Em antagonismo directo com a doutrina que acaba de
ser expendida, apresenta-se, com todos os precalços de uma
posição firmada, não só no assenso geral, senão tambem
numa já respeitável diuturnidade de tradição, a theoria que
se póde chamar do verbo substantivo, visto ser este o mais
caracteristico dos diversos aphorismos em que se funda, e
ter servido de ponto de partida para se libellar a sua formula
geral.

Esta formula é a seguinte : « Não ha nem póde haver
pensamento constando de menos de tres ideas, e portanto
226não ha nem póde haver proposição constando de menos de
tres termos, os quaes, embora parcialmente occultos ou disfarçados,
coexistem todavia virtualmente por uma necessidade
de relação : estes tres termos são o sujeito, o verbo e o
attributo (predicado)
. » E, como demonstração categorica, a
mesma theoria offerece geralmente um exemplo deste ou
de igual teor : Deos é omnipotente.

Porém, no seu empenho de obviar as duvidas que suscita
naturalmente a reflexão, ella se dá pressa em accrescentar :
« Para se entender isso como convem, cumpre
admittir previamente que, em todas as linguas, só ha uma
palavra que merece propriamente a denominação de verbo,
e esta palavra é a que, como no exemplo citado, exprime
a existencia : o verbo substantivo : E’, do ser. Todos os
mais são apenas verbos adjectivos ou attributivos, porque
nada mais exprimem do que a idéa do mesmo verbo substantivo,
em combinação intima com o seu indefectivel
attributo ; pois viver, por exemplo, nada mais é senão o
equivalente de ser vivente. e, quando se quer penetrar
até ao ámago do pensamento, quando se pretende desvendar
os arcanos da constituição da linguagem, esta é a forma
em que cumpre analyticamente resolver todos os verbos
adjectivos ou attributivos. »

Eis-ahi resumida, com a mais escrupulosa fidelidade, a
tão preconisada theoria do verbo substantivo. Sahida, ha
cerca de quarenta annos, do cerebro dos dous grammaticos
francezes Noël e Chapsal, ella teve a dita de se acreditar
rapidamente, não só no paiz do sua origem, mas ainda, e
talvez com maior enthusiasmo, naquelles onde a mesma
procedencia costuma dispensar, em innovações de ensino,
toda e qualquer verificação de proficiência, respondendo ella
preventivamente por si só a todas as objecções. Graças a
tão invejável privilegio, ella veiu a dominar soberanemento
na Grammatica portugueza ; e hoje não ha, neste assumpto,
autor que deixe de lhe fazer a devida continencia, embora
nem todos pareção igualmente convencidos de sua desmarcada
efficacia.

A verdade é que, tanto em relação ao francez, como ás
mais linguas, nunca se imaginou tamanho absurdo, tão qualificada
parvoiçada. Porém, prestando-se ás mais extravagantes
elucubrações, ella veiu a assumir dahi uma catadura
quasi mysteriosa, muito appetecida dos espiritos que não
concebem a sciencia sem fantasmagorias estupefacientes,
sem cavernosidades assombrosas, sem abysmos insondaveis.
Tão maravilhoso achado, só comparável ao descobrimento
da pedra philosophal, não podia vir a predominar na sciencia,
227sem ser caracterisado por um titulo condigno : dahi a apparição,
no programma dos estudos, do uma Grammatica philosophica,
assim denominada por se incumbir de explicar a
linguagem que todo o mundo entende (v. g. ando procurando),
por outra que ninguem sabe o que ella é (Sou
andante sendo procurante).

Quanto á outra ou outras grammaticas, que não tratão
de tão pasmosas transmutações, destas ninguem faz caso,
e só se sabe que ellas existem, porque, havendo uma philosophica,
força é que haja que o não sejão.

Ora, que quer em summa essa grammatica philosophica
com a sua theoria do verbo substantivo ? Ella quer quatro
cousas :

1.ª Que não haja proposição sem tres termos ;

2.ª Que não haja facto sem sujeito ;

3.ª Que não haja verbo attributivo que não seja resoluvel
em verbo substantivo ;

4.ª Que não haja, fora do verbo substantivo, verbo sem
attributo, nem haja para um tal verbo, outro attributo
senão o que delle se extrahe.

Tudo isso se poderia arguir de falso com uma unica
palavra : chove, que constitue uma proposição clara, e clarissima.

1.° Pois não tem tres termos, tem um só ;

2.° Pois não tem sujeito, nem por sombras ;

3.° Pois não se deixa resolver em verbo substantivo ;

4.° Pois não tem predicado, nem em si, nem fóra de si.

Mas tão enraizados preconceitos não se deixão arrancar
nem pela mais categorica demonstração. Cumpre, portanto,
discutí-los, tanto mais que o exemplo citado, e outros analogos,
desafiarão mui particularmente o estro dos substantivistas
a todo o transe, e inspirárão-lhes as mais excêntricas
transsubstanciações.

« Verbo, diz o mais eminente dentre elles, porque tambem
é o unico que, na sinceridade de sua fé, o no ardor
de seu proselytismo, não se esquivou ao dever de deduzir
de seus principios as mais longinquas consequencias, verbo
é a palavra que serve para affirmar a existencia da qualidade
na substancia, pessôa ou cousa, e por conseguinte o nexo ou
copula que une o attributo ao sujeito da proposição, phrase,
sentença ou enunciado do juizo
. »

Nada mais terminante e categórico se póde dizer sobre
228a necessidade metaphysica da intervenção de tres termos
em toda e qualquer proposição, e, conseguintemente, de tres
ideas distinctas em todo e qualquer pensamento.

« A forma primitiva do verbo é uma e unica em todas
as linguas : na portugueza
ser, que quer dizer, ser ente indeterminadamente :
nas outras o equivalente de, ser. »

Eis-ahi até onde pode levar, philosophicamente fallando,
a paixão por um systema que, como o da analyse, sendo
bom em si, víra-se todavia contra si mesmo logo que deixa
do gyrar nos seus estrictos limites. Pois, nem o primitivo
ser escapa ahi ao sestro da decomposição analytica ! E, que
decomposição é esta, em que reapparece, como um do seus
proprios elementos, o mesmo todo considerado já como composto
; ser, isto é, ser ente ! e’ o caso do perguntar se
afinal ente não poderia, por ventura, vir a ser tambem
subdividido ; é o caso do perguntar seriamente se a analyse
assim entendida não é, em vez do um methodo eminentemente
pratico, o jogo de uma imaginação desvairada, que,
do atomo, pretende fazer dous e até tres atomos.

« Divide-se porem o verbo em substantivo e attributivo,
segundo se acha em sua forma primitiva, ou unido ao attributo
,
viver, que quer dizer, ser vivente. »

Assim firmados os pontos capitaes da discussão, nada
mais obsta a que se lhes aquilato a importancia. « O verbo
é a palavra que affirma a existencia da qualidade na substancia,
pessoa ou cousa, — ou, em outras palavras, o verbo
é o nexo que une o sujeito ao attributo ; — porém, nos
verbos adjectivos, o attributo já se encontra combinado com
o verbo. » — Ora, relativamente a « chove, » o mais que se
pode conceder, é que, sendo decomposto pelo processo ensinado,
dê elle os dous produetos « é chovente ; » os quaes
constituem a affirmação da existencia da qualidade, mas
deixão nas mais compactas trevas a substancia, pessoa ou
cousa qualificada ; — os quaes, emfim, mostrão o nexo e o
attributo, mas deixão num vacuo perfeito a substancia,
pessoa ou cousa que tem de ser comparte na annexação, —
o sujeito emfim. Pois, onde está ? Logo, emquanto se não
resolver tal duvida, parece legitima a conclusão de que
pode haver e ha proposição em que o verbo existe sem
sujeito, em que o nexo só está amarrado do um lado… !!

« Não ha tal, replicão os substantivistas ; isso já foi
cabalmente respondido, não só na obra alludida, como em
todas as mais que ventilarão o caso ; e, senão, haja vista
ao seguinte : e’ propriedade do verbo unipessoal conter em
229si o sujeito e o attributo, de modo que com uma só palavra se
forma proposição quando o verbo está na voz activa, ou com
duas, quando está na passiva : por quanto
, chove, é o
mesmo que
, « ha ou cahe chuva » ; venta, o mesmo que,
« ha ou sibila vento » ;… vive-se, vale tanto como, « existe
ou dá-se o
viver ou a vida » ; falla-se, tanto como « existe
ou ouve-se o
fallar ou a falla » ;… »

Respondemos : Esta redarguição é muito mais complexa
do que parece ; porquanto, limitando-nos á mera decomposição
analytica de chove, achamos-lhe ahi duas versões,
que, embora atiradas como perfeitamente identicas, nada
têm, todavia, do commum nas suas relações syntaxicas, o
que torna a solução suspeita ; de que se trata afinal, é vir
a saber a verdadeira funcção de cada palavra empregada.
Ora, em « cahe chuva » bem se vê um verbo neutro acompanhado
do seu sujeito, visto como, pelo processo da substituição,
nada obsta a que se diga com toda a propriedade :
a cahem chuvas ; » mas em « ha chuva, » encontra-se um
verbo impessoal acompanhado de seu complemento directo,
visto não haver estridor de dentes que legitime a locução
« Hão chuvas, » que corresponderia entretanto á anterior, se
ahi fosse haver neutro, como o é cahir.

Não será cousa mais do que original a pretenção de
demonstrar a trilogia fatídica em « chove » por dous escolios
apenas providos, cada um, de dous termos, e ambos igualmente
desprovidos do indispensavel predicado ? Pois, se tão
aspero pareceu ao contrario fazer, do « chove, » « é chovente, »
ou « a chuva é chovente, » como o exige a citada
formula, não é de crer que se abalançasse a cortar a difficuldade
com a versão « chuva e cahinte ; » porque, sendo
este um barbarismo não menos crú do que os anteriores,
apenas desentranharia por um modo repugnante o verbo
cahir, mas nada resolvería acerca de chover, que é ahi
entretanto onde bate o ponto.

Quanto ao escolio « ha chuva, » será, quando muito,
uma ingenuidade querer explicar um verbo impessoal, isto
é, despido do sujeito, para concluir que ambos têm um.

Porém o que é muito concludente, é que, do todos os
esconjuros imaginados pelo estrenuo campeão du substantivismo
verbal
, nenhum conseguiu fazer surdir o verbo substantivo,
e tanto basta para comprovar a nossa anterior asserção,
que nem todos os verbos adjectivos ou attributivos condescendem
a tão insigne violencia.

« Mas, retorquem os substantivistas, isto de denogar
aos verbos unipessoaes ou impessoaes (que de appellidos ?
230por emquanto, não se faz contenda) um sujeito só porque
não acóde com presteza ao chamado, é a subversão, é o
aniquilamento de todas as noções mais inconcussas da
logica. Porquanto vós, que definis o verbo a enunciação
de um facto, como podeis sustentar que haja effeito sem
causa, acto sem autor, facto sem factor ou sujeito ! »

Respondemos : Nunca negámos verdades tão inconcussas ;
nunca pretendêmos que haja effeito sem causa, nem
que haja acto sem autor : o que negamos, sim, é que seja
da essencia do facto, como termo syntaxico, o acarretar
forçosamente a denunciação de quem a perpetra. Porquanto,
neste particular, tres sómente são as hypotheses que, como
fácil é verificá-lo, ressumbrão das mais minuciosas indagações
analyticas : 1.°, ou o autor é denunciado pelo sujeito
(deos fez o mundo) ; 2.°, ou é denunciado por um complemento
(O mundo foi feito por deos) ; 3.° ou não é denunciado
por nada (faz escuro). E, por isso, arredando da definição
do sujeito as expressões agente e paciente com que
se sóe, não sem alguma impropriedade, caracterisá-lo, contentámo-nos
com o definir por sua propriedade mais manifesta,
isto é, pelo que faz, e não pelo que é : « … a palavra
ou conjuncto de palavras regendo ao verbo em numero e pessoa
 ».
Vindo elle a falhar, ou porque não se póde encontrar, ou
porque não importa enunciá-lo, dá-se então simplesmente,
para com o verbo, abstracção completa de regencia ; o que
faz com que, assim livre de peias, assuma o mesmo verbo
em cada tempo uma unica forma, a da terceira pessoa do
singular, por não haver manifestação possivel sem ao menos
uma forma determinada. e… eis-ahi quanto nos suggeriu
a observação e o bom senso.

« Fraca argumentação, retrucão os substantivistas ; porquanto
o que a mesma observação patenteia com uma
evidencia perante a qual se deve inclinar o bom senso, é
que os verbos impessoaes têm um sujeito, o têm-no tão
claro, que só a mais incurável das cegueiras, a cegueira
voluntária, o póde recusar. Mas, para obviar toda e
qualquer réplica, faz-se mister estabelecer esta incontrastavel
entidade sobre sua base philosophica. »

« Em uma questão que, como essa, se prende, por assim
dizer, ao organismo mesmo da linguagem, impossivel é
tomar a assistencia ou deficiencia do sujeito na conta de
um daquelles meros accidentes do locução com que uma
circumstancia fortuita beneficiou uma ou outra lingua,
sonegando-os ás mais, como é a personalidade de alguns
tempos do infinitivo em portuguez. Por outras palavras,
o sujeito não póde ser questão desta ou daquella grammatica
231especial ; é questão de grammatica geral, porque
interessa necessariamente a todas as linguas ; e tanto é
assim, que o incluistes no numero dos vossos sete termos
syntaxicos, o assim lhe conferistes a sancção da perennidade
e da universalidade. Ora, se o sujeito apparece
claro, sonoro, innegavel junto aos verbos impessoaes de
ao menos duas linguas eminentemente cultas, porém, o
que é mais, essencialmente differentes de origem immediata,
como de syntaxe, é de toda a evidencia que, no
mesmo caso, existe em todas. Pois é o que se dá com o
francez e o allemão, que nunca prescindem de sujeito expresso
e expressissimo junto aos seus verbos impessoaes,
como o comprovão as duas seguintes proposições, adrede
formuladas de conformidade com as exemplificações já
adduzidas : « chove, e ainda ha chuva para amanhãa. »
— « Il pleut, et Il y a encore de la pluie pour demain. »
— « Es regnet, und es gibt noch Regen fuer morgen. » »

« Pouco, ou antes nenhum valor poderia ter a allegação
de que, por ser intraduzivel em portuguez, esto il
ou aquelle es nada significa, nada vale, nada é. Porquanto,
além das provas directamente extrahidas dos autos,
como dizem os legistas, temos as testemunhaes ; e, muito
de proposito, cingiremo-nos, na sua exposição, ás dos
varões que têm a mais indisputável competencia para
fallar no assumpto. As glosas versão especialmente, é
verdade, sobre o impessoal haver ; mas é intuitivo que
seu alcance abrange todos os impessoaes, por alludirem
ao il francez do exemplo citado. »

I

« Ha em portuguez alguns idiotismos que devemos explicar
aos que, nascendo em Portugal, não sabem portuguez ;
pois têm por erros crassos certos modos de fallar
que são propriedades nativas da lingua portugueza… »

« Na concordancia do verbo com o seu nominativo
(sujeito) temos um particular idiotismo de haver, porque
nas terceiras pessoas do numero singular não concorda em
numero com o seu nominativo. Os ignorantes, e tambem
muitos dos que presumem não o ser, governando-se pelas
regulares conjugações de outros verbos, têm por erro crassissimo
ouvirem dizer : houve homens que nunca havião de
ter nascido
, em lugar de : houverão homens etc… Porém
estes presumidos são os que errão, porque com todos os
classicos do nossa lingua se prova que o estar este verbo
no singular, e o seu nominativo homens no plural, é um
idiotismo, o grammatica irregular, muito propria da nossa
linguagem. »232

II

« O reparo d’este erro vulgarissimo é na verdade attendivel :
engana-se porém o auctor (precedente), quando
ao bom fallar que recommenda chama idiotismo ; porque se
ha homens, havia festas, etc. fossem realmente discordancias
do numero entre sujeito e verbo, nem se deveriam nem se
poderiam desculpar ; a illusão está em cuidar-se que o
verbo haver significa existir. Logo que se advirta em que
haver é derivado do latim habere, e com a mesma significação
de ter, fica manifesto que o, erroneamente chamado,
sujeito ou agente, não é senão complemento objectivo ou
paciente ; o que o agente ou sujeito real se deixou occulto,
para conformar com o uso recebido. Assim, ha homens
completa-se deste modo : O mundo ha (isto é tem) homens.
- .
Havia festas, - o mundo ou o tempo, aquella occasião ou
aquelle logar, havia (ou tinha) festas… Estes modos do
dizer são portanto ellipticos, e a ellipse não se deve confundir
com o idiotismo. »

« Em francez é mui semelhante o uso do verbo avoir
derivado, como o nosso haver, da mesma raiz latina, e com
identica significação. Em il y a des hommes (ha homens) o
sujeito é il, equivalente de le monde ; o complemento objectivo
des hommes. »

III

« Ha na lingua portugueza um verbo unipessoal que
se emprega quasi sempre ( ?!) com sujeito occulto, o verbo
Haver, com a significação de existir. Este sujeito é de ordinario,
numero, classe, especie, quantidade, espaço, periodo,
como se vê nos seguintes exemplos :

Ha homens extraordinarios ; isto é, numero, classe, especie
de homens.

Ha dias que não te tenho visto ; isto é, numero, quantidade
do dias.

Ha tempos bem calamitosos ; isto é, espaço, periodo de
tempos.

« N. B. O emprego deste verbo com sujeito occulto
é um dos idiotismos da lingua, assim como o é tambem o
do infinito pessoal, e o do verbo composto com o gerundio… »

« N. B. Esto verbo não vem, como sonhão alguns
grammaticos, do, Habeo, latino, que nunca foi tomado em
tal accepção, mas do verbo francez, y avoir, que tem a
mesma significação e emprego, que o verbo portuguez, com
233a unica differença de vir acompanhado do pronome indefinido
il, que indica o verdadeiro sujeito occulto, nombre, espéce,
quantité
, etc. »

« Os nossos classicos costumão as vezes juntar tambem
a esto verbo a particula, ou adverbio, hi, ahi ; o que acontece
ordinariamente quando elle vem com sujeito expresso,
por exemplo :

tableau Não ha hi homem.
Não ha hi cousa. »

Respondemos : Essas tres opiniões, igualmente empenhadas
na demonstração de um só e mesmo theorema, ou
não merecem conceito algum, ou comprovão exuberantemente,
por simples confrontação, que o tão occulto sujeito
dos verbos impossoaes ainda está por achar. Pois, nesse
tão repisado « ha homens », o sujeito é, para o primeiro
opinante, homens ; para o segundo, o mundo ; o para o terceiro,
numero, classe, especie. Ora, será isso mera questão
de synonymia ?

Porém, deixando de parte mais de uma observação divertida
sobre a antinomia das considerações que concluem
por um sujeito, e delle dão cabo, chegamos ao único ponto
ainda não discutido, o da assistencia do pronome il junto
aos impessoaes francezes ; e, já que mettêrão a fouce naquella
seára, para lá tambem vamos.

Quem compara, ainda que mui perfunctoriamente, a
conjugação dos verbos francezes com a dos verbos portuguezes,
não tarda em ficar advertido da razão que impõe
aos primeiros, no discurso, uma constante adjuncção dos
pronomes sujeitos, ao passo que dispensa geralmente os
segundos de tão importuna formalidade, com grande proveito
para a linguagem, que dahi cobra alacridade e vigor.
Com effeito, basta, em relação aos verbos francezes, recitar,
separadamente dos pronomes sujeitos, algumas series
de tempos simples, para deparar com as numerosas paronymias
que confundem numa mesma sonoridade as pessoas
mais diversas de um mesmo tempo.

tableau J’aime (ém) | J’aimais (émé) | J’aimerais (émré)
Tu aimes (ém) | Tu aimais (émé) | Tu aimerais (émré)
Il aime (ém) | Il amait (émé) | Il aimerait (émré)
Ils aiment (ém) | Ils aimaient (émé) | Ils aimeraient (émré)

Que haverá, logo, do extraordinario que esta constante
assistencia dos referidos pronomes junto aos verbos pessoaes,
234de muito os mais numerosos e os mais frequentes,
viesse a constituir, no francez, uma especie de predicamento
indispensavel a toda a mesma ordem de palavras,
alastrando-se, embora sem necessidade, mas por uma analogia
do que as linguas offerecem outros exemplos, até aos
verbos impessoaes ? Que, outrosim ; os mesmos verbos, sob
a pressão da logica, dispensassem o excrescente il em uma
epoca ainda não mui remota, para logo depois o tomarem
sob o impulso de uma conveniencia que hoje nos escapa, é
o que attestão as seguintes notas, do proprio punho do famoso
cardeal de Richelieu, fundador da Academia Franceza,
a quem o desgraçado Carlos I de Inglaterra pedira soccorros.

« Faut réfléchir long-temps et attendre: -  : — les communes
sont fortes ; le roi Charles compte sur les Ecossais ; ils le
vendront
. »

« Faut prendre garde. il y a là un homme de guerre
qui est venu voir Vincennes, et a dit qu’on ne devait jamais
frapper les princes qu’à la téte
. »

La Fontaine tambem disse, na fabula das Adevinhas
(Les Devineresses) :

Point de raisons, fallut deviner et prédire.

Portanto, como termo syntaxico, o tal il não é nada.
Não é nada porque, ainda que pronome por natureza, ahi
não substitue a nenhum substantivo, o conseguintemente
não representa idéa alguma ; faz apenas o officio de indicador :
« Ahi vai verbo » ; é palavra expletiva e mais nada.

Ora se fosse realmente tudo quanto querem que seja,
isto é, o substituto directo, immediato de nombre, espéce,
quantité
, o de não se sabe que mais, quem não vê que só
poderia decentemente cumprir com a sua obrigação quando
substituiria a nombre ; mas que, em relação aos femininos
espéce e quantité, já teria de mandar em seu lugar a consorte
elle, o que não pouco atrapalharia os sabios da
supracitada Academia, que ainda não cogitárão do caso : elle
y « , elle faut, elle pleut!… (isto é : l’espece, la quantité).

Emfim, que o mesmo il, é meramente expletivo ainda
se comprova pela facilidade com que hoje mesmo se deixa
lançar fóra por certos vocabulos, não só providos da mesma
faculdade de indicação, como tambem encarregados de
outra funcção mais effectiva : « n’importe. — qu’importe !
peu importe… ». (Il importe, — Il importe beaucoup. —
Il importe peu)
.235

Voltão á carga os substantivistas, e dizem :

« Toda essa algaravia franceza, bôa para deitar poeira
nos olhos, poderá, quando muito, provar que lá, em
tempos de Carlos Martello, e mesmo muito depois, o
francez irmanava-se mais do que hoje com o portugucz… »

Interrompemos com a devida venia : Irmanava-se, sim ;
veja-se o que escreve Lafontaine na fabula « La Grenouille
et le Rat
 » :

Tel, comme dit Merlin, cuide engeigner autrui,
Qui souvent s’engeigne soi-même.
J’ai regret que ce mot soit trop vieux aujourd’hui ;
Il m’a toujours semblé d’une énergie extrême.

Ora, ao passo que os Francezes carecem hoje de um
escolio para entender os dous primeiros versos, um portuguez
põe-lhes logo os correspondentes em cima.

« Tal, como diz Merlin, cuida enganar a outrem, que
muitas vezes se engana a si mesmo. Peza-me que este dito seja
hoje tão antiquado
… »

O certo é que, mesmo no seculo XIII, os Francezes
omittião ainda frequentemente os pronomes sujeitos junto
aos verbos mais pessoaes. Haja vista a seguinte fabula da
princeza D. Maria de França :

La mors et li bosquillon
Tant de loin que de prez n’est laide
La mors. La clamoit à son ayde
Tosjors ung povre bosquillon
Que n’ot chevance ni sillon :
« Que ne viem, disoit, ô ma mie,
Finer ma dolorouse vie ! »
Tant brama, qu’advint ; et de voix
Terrible : « Que veux-tu ? » — « Ce bois
Que m’aydiez à carguor, madame ! »
Peur et labeur n’ont mesme game.

A morte e o lenheiro. — Le longe, tão feia não é a
morte como de perto. Chamava-a constantemente em sua ajuda
um pobre lenheiro que jamais tivera fortuna nem campo. « Porque
não vens
, dizia (elle), ó minha querida, findar a minha
dolorosa vida ! » Tanto
gritou (elle) que (ella) veiu ; e, com
voz terrivel : « Que queres ? » — « Que esta lenha (vós) me

ajudeis a carregar, senhora. » — Medo e fadiga não têm
mesma cantiga
.236

« Pois, exclamão os substantivistas, seja embora como
queirais ; mas nada de tudo isso prova cousa alguma
contra a subida conveniencia de deduzir todos os verbos
adjectivos ou attributivos a uma mesma formula analytica ;
porquanto a uniformidade em materia de methodo
é, e sempre foi o supremo anhelo da sciencia. Deos é
um em essencia, embora trino em pessoas ; a materia é
uma, apezar de seus sessenta e tantos corpos elementares ;
emfim já não são poucos os physicos que não duvidão
em asseverar que os tres imponderáveis : a luz, o
calorico e a electricidade, não são senão uma só e mesma
substancia. Não ha que negar : a tendencia á unidade
nas sciencias corresponde a este nosso irresistivel desejo
de simplificar tudo para tudo abraçarmos ; é uma lei do
progresso. Ora só procuramos conformar-nos com ella
quando estabelecemos, sem rodeios nem reservas, que
todo e qualquer verbo affirma a existencia da qualidade,
com a unica differença que ser o faz por meio de outra
palavra (Deos é eterno), e os verbos attributivos, por si
mesmos (viver, isto é, ser vivente). »

« Aliás as considerações que militão a favor desta opinião,
são das mais concludentes. « a necessidade de abreviar
o discurso, para de algum modo acompanhar o pensamento
na rapidez, levou o homem a unir o verbo ao attributo :
assim em vez de dizer com duas palavras
ser creante, ser
vivente, disse com uma só, crear, viver, o que é muito
mais conciso
. »

« Ora quereis certificar-vos, de um modo palpavel, da
realidade desta combinação, pelos rastos que deixou de
si ser no acto de sua incorporação nos demais verbos ?
pois ei-los discriminados com uma paciencia de benedictino,
e delicadeza de chimico, desafiando qualquer critica.
« Tres são as terminações infinitivas do verbo attributivo
na lingua portugueza, e por conseguinte tres as conjugações
a que dão origem ; a ’primeira em
ar, como amar ; a segunda
em
er, como mover ; a terceira em ir, como unir. » »

« Todas estas tres terminações comprehendem o attributo
grammatical e o verbo
ser, que se torna patente (note-se
bem) na terminação em er da segunda conjugação. a terminação
em
ar é evidentemente ( ?!) uma terminação contracta
de
aer (sic), e a terminação em ir é tambem outra
terminação
( !!) contracta de ier. » Vamos agora á conclusão.
« Assim amar quer dizer amante ser, ou ser o
que ama
 ; mover, movente ser, ou ser o que move ; unir,
uninte ser, ou ser o que une. »

« a terminação infinitiva em ôr, que só se nota no verbo
237pôr e seus compostos, não dá origem a uma conjugação especial,
porque
pôr é contracção de poêr como se dizia antigamente. »

« Por desgraça, descuidou-se aqui o auctor de completar
a demonstração como o fez em relação a amar, mover e
unir, de sorte que não se póde saber ao certo se o desmancho
analytico deve dar ponte ser ou poente ser ;
mas em todo caso dá ser o ou a que põe. »

Respondemos : Lembra-nos, não sem saudades, que,
quando estudavamos Rhetorica, o professor, por desafogo,
leu-nos, a uns quarenta rapazes mais ou menos taludos, em
vesperas do entrudo, o que convinha ler de algumas das
comedias de Moliére ; e ainda resoão-nos aos ouvidos as
estrondosas gargalhadas com que saudámos ao illustrado
mentor, quando, identificando-se com o Mestre de Philosophia
do « Bourgeois gentilhomme », repetiu-nos a primorosa
scena da licção de Grammatica. Mas, se o inexcedivel comico
tanta cousa engraçada descobriu na mera exposição
doutrinal das vogaes e das consoantes, que não acharia
elle hoje nas mirificas transformações por que têm de passar
os atribulados verbos attributivos para em todos os modos,
tempos, numeros e pessoas sucretar sem remissão nem
descanso o mesmo fastidioso ser, com o seu competente
concomitante em ante, ente ou inte ! Infelizmente, o
Mestre de Philosophia de Moliére nada sabia de Grammatica
philosophica
 ; só apprendêra e ensinava a outra ; e
assim mesmo, a que enlevos de grandiloquência não chegou
elle !

Entretanto, como risota não é resposta, passáramos
por cima de um inconveniente tão grave em materia de
ensino, ou procuráramos um meio de attenuá-lo, se fosse
remido por uma razão de utilidade, ou mesmo se fosse
simplesmente a inevitavel consequencia do um principio
verdadeiro. Porém nada mais falso do que a allegação de
ser o real e effectivo attributo de um verbo, o aleijão tão
frequentemente inadmissivel que delle se extrahe.

O attributo, a que tivemos por melhor de chamar predicado,
é um termo syntaxico constando, junto a um verbo
de estado, de uma ou mais palavras sempre e necessariamente
distinctas de qualquer verbo, e referindo-se ao sujeito
da proposição, a não ser que, faltando este por ser o
verbo impessoal, não se refira a nada.

« Ora, tornão a dizer os substantivistas, como quereis
que aceitemos taes pataratas de verbos de estado, dos
quaes ainda ninguem ouviu jamais fallar, quando nem
sequer consentimos em conferir a estar a mesma virtualidade
238que a ser, bem que muitos o requeirão sob o pretexto
que, sendo ambos os representantes igualmente
legitimos do unico être francez, ambos devão participar
das mesmas regalias. Desgraçadamente, por o ignorarem,
os dous luminares Noël e Chapsal deixárão de resolver
o caso ; porém o mestre fê-lo com a sua costumada proficiencia,
e, se a citação vem um pouco estirada, nem por
isso sahe ella menos lúcida e terminante. »

« Alguns grammaticos pretendem fazer tambem, estar,
verbo substantivo, o qual, si assim fosse, deixaria de ser o
unico verbo
( ??) : — (Que desgraça !) mas esta doutrina é
insustentavel e erronea, por que
, estar, que se resolve por,
ser estante, e » do simples latino stare, estar firme,
ou ainda do composto exstare, estar eminente, já involve
em sua significação a idéa de
estada, estado, attitude
em certa maneira ( !!), ou a idéa de existencia modal ( ???),
e já é por conseguinte o verbo substantivo combinado com
um attributo
. »

« Quando digo por exemplo, « Pedro está doente », accrescento
já alguma cousa á simples affirmação expressa pelo
verbo substantivo, porque junto a ella a idéa de
estada,
estado actual
, ou modo, por que Pedro existe na actualidade,
que é no estado de doente
. « Pedro está doente », vale
pois tanto como, Pedro
existe, permanece, fica, actualmente
doente ; e o verbo
estar é um verbo attributivo como
qualquer dos tres por que elle se explica no presente caso,
ainda supprimido o adverbio
actualmente. »

Ola ! exclamamos nós pela nossa vez : que feliz acaso !
os nossos verbos de estado, ahi os temos ! ahi os temos !
quando não todos, ao menos em numero sufficiente para
algumas exemplificações. Pois, para nós, tanto é ser verbo
de estado, como o é estar, como o é existir, como o é
permanecer, como o é ficar…

« Nada ! nada ! proseguem os substantivistas : deixai
acabar a citação, que o melhor é o que está por vir. E,
se então não ficardes convencido, é que cochilastes junto
a Tobias, debaixo do ninho de andorinhas. « a distincção
que fazem os mesmos de que
, ser, exprime uma qualidade
permanente
(Ora ! resmungamos baixinho : e elles que
dizião que ser exprime a existencia l que é elle um nexo,
uma copula!
ao passo que a qualidade é o attributo !…),
e, estar, uma qualidade accidental, serve para demonstrar
que o primeiro é o verbo substantivo, e o segundo um verbo
attributivo. Si quizessemos por exemplo dizer que
pedro se
fez homem
, diriamos com ser, « Pedro é homem » (Não
entendemos perfeitamente, mas…), accrescentando ao attributo
239o adverbio de tempo (Mas, se é já homem, como
é que… ?), porque o verbo substantivo não exprime senão a
simples affirmação
(Então já não exprime mais uma qualidade ?) ;
com o verbo estar porém, que involve em sua
significação a idea de
estada, estado, posição actual, ou
a idea de qualidade em referencia ao tempo
( ???), diriamos
bem com o adverbio ou sem elle
« Pedro já está homem (!!),
ou simplesmente, está homem (!!!). »

Respondemos continuando o nosso arrazoado :

Chamamos verbos de estado, não só a ser, a estar, a
existir, a permanecer, e a ficar, senão tambem a muitos
outros que, em outra parte, tornaremos conhecidos por uma
substituição typica ; e assim lhes chamamos porque, prestando-se
em toda a puridade a servir de medianeiros entre
um predicado e um sujeito, quando sujeito ha, portão-se
na proposição com a mais frisante identidade de funcção,
e portanto devem ser tidos como formando uma categoria
especial, perfeitamente definida. Pois, como é possivel enxergar
uma differença de relações entre as palavras dos
seguintes exemplos, só porque os verbos differem ?

« Pedro é velho. — Pedro está doente. — Pedro existe
occulto. — Pedro permanece absorto, — Pedro fica aborrecido. »

Cada um dos referidos qualificativos não se ageita
exactamente da mesma maneira ao respectivo sujeito ?
Então, se ahi só o adjectivo velho, pelo acaso de se achar
encostado ao verbo ser, póde ser tido por predicado, que
serão os adjectivos doente e occulto, o os participios absorto
e aborrecido, se não são predicados ? qual ha de ser a sua
funcção syntaxica ? porque alguma, não podem deixar de
a ter.

Sorrindo-se maliciosamente, os substantivistas replicão :
« Então pensastes que não esperavamos por esta lançada?
Então pensastes que não andavamos precavidos
« contra tal bote ? Ahi tendes a resposta :

« A concordancia do attributo com o sujeito, ou do qualificativo
com o nome, opera-se quando os dous termos
estão unidos pelo verbo substantivo
. Ex. a terra é redonda.
O homem é racional. »

« A concordancia do qualificativo com o nome opera-se
ainda quando elles estão unidos por um ou mais verbos intransitivos

(neutros). Ex. Ninguem nasce máo. — Aristides
viveo e morreo
pobre. »

« Nestes ultimos casos o adjectivo completa o sentido do
participio antiquado
… »240

Irra ! exclamamos nós : isso de chamar antiquados
aos participios estante, nascente, vivente, ficante, morrente e a
outros que taes (que os ha muito exquisitos), não póde
deixar de ser uma engenhosa allusão archeologica á éra de
pedra, ou pelo menos á epoca em que, no dizer do P. Ant.
Vieira, Lisboa foi fundada por Elysa, filho de Javan, irmão
de Tubal, ambos netos de Noé, donde começou a ser conhecida
pelo nome de Elysia
… !! nada menos de 220 annos antes da
fundação de Ninive
 ! o que confere assim uma respeitável
antiguidade á surrapa de Ribatéjo ; porquanto, como se
descuidarião da parreira, na sua migração para Portugal,
os proximos descendentes do inventor da bôa pinga ?

Porém, se o tal adjectivo ou qualificativo vem em tal
caso a completar o sentido do participio antiquado, não
ha que vacillar sobre sua funcção : torna-se complemento.
Ora, um qualificativo complemento !… Emfim tudo póde
ser na theoria do verbo substantivo.

Mas então, que especie de complemento virá elle a
formar ? um objectivo, um terminativo, um circumstancial ?..
ou, em duas palavras, que melhor entendemos, directo,
isto é, sem preposição, ou indirecto, isto é, com preposição ?
Se directo, eis-ahi verbos declaradamente chamados
intransitivos ou neutros porque não lhes cabe complemento
directo de substantivo ou pronome, providos de um complemento
directo de adjectivo ! Se indirecto, onde está, e
qual é a preposição expressa ou occulta ?

« Mal andastes desta vez na vossa argumentação,
tornão os substantivistas ; queremos dizer, andastes com
pouca lealdade : porquanto, cortando pelo meio a nossa
citação, destes-lhe um alcance ao vosso bel-prazer, mas
não o que tem. O periodo completo diz : « Nestes ultimos
casos o adjectivo completa o sentido do participio antiquado
incluido no verbo, e o attributo se acha composto de duas
palavras
 : « Ninguem é nascente máo » ; Aristídes foi vivente
e morrente pobre
. »

Respondemos : Composto se diz o termo entre cujos
membros intervem ou póde intervir uma conjuncção copu1ativa
(e, nem, ou). E isto é perfeitamente racional ; visto
como o que lembra a mesma conjuncção, é que os alludidos
membros poderião isoladamente exercer a funcção que
juntos exercem.

Ex. Pedro é velho e rabugento : — Pedro é velho ;
Pedro é rabugento.

Ora o que decorre destas considerações, é que, por
exemplo, no periodo « Ninguem é nascente mao », o predidicado
241não é simples, porque consta de mais de uma palavra ;
nem é composto, porque não tolera a interpolação
da conjuncção e. Agora avenha-se lá com isto a theoria
substantival, e explique como composto é o que não é composto.

« Isso é apenas questão de palavras, observão os substantivistas,
e não merece mais detido exame. Mas o que
merece um, e muito serio, é a vossa allegação de que
pode existir um predicado junto a um verbo sem sujeito.
Ora em tal cousa ainda ninguem sonhou. A qualidade
sem a substancia ! a propriedade sem o senhorio ! »

Respondemos : Entretanto nada mais exacto ; pois o
P. Ant. Vieira disse com uma propriedade de expressão
que ninguem contestará : « E’ certo que todos desejais o descanso. »

Ora, que será ahi o adjectivo certo, junto ao impessoal
é, senão um predicado ?

« Desta vez apanhamo-vos em flagrante, exclamão os
substantivistas. Desta vez podemos dizer que, se a nossa
theoria tivera sido abalada sequer por tão mesquinhas
quão insulsas chicanas, ella ficava decididamente para
sempre firmada. O que, no exemplo citado, é claro como
a luz meridiana, é que o indigitado verbo impessoal é,
que continuamos com toda a razão a chamar unipessoal,
tem o mais determinado dos sujeitos na proposição subordinada
que se lhe segue. Porquanto, muito ao envez de
vossa doutrina rachitica sobre o sujeito, reconhecemos-lhe,
a este sujeito, a propriedade de se fazer representar, não
só por estas ou aquellas palavras, senão tambem por
uma proposição ou oração toda inteira. e este é justamente
o caso. Com effeito : Que é o que é certo ?
Que todos desejais o descanso. Podeis querê-lo mais evidente ?
Isto não tem resposta, como diz o vosso sempiterno
P. Ant. Vieira. »

Respondemos : E’ rabo ou cabeça ? Qual é o valor
que dais ás palavras ? O que lhes assenta pelo uso e pela
etymologia ? Pois bem : que entendeis então por proposição
subordinada senão uma proposição posta sob a dependencia
de outra proposição anterior. e, senão, que faz lá
aquelle que ? (… que todos desejais…).

Vindo a constituir, pela deslocação lembrada, o cabeço
da oração, qual é já sua razão do ser ? Que ligará elle ?
Assim, porque, a contrario sensu, vai frequentemente o sujeito
posposto ao verbo, deixaria elle de reger ao mesmo
verbo para ser delle regido ? Uma collocação eventual das
242palavras bastaria assim para subverter, nas suas relações
syntaxicas, as funcções impostas ás mesmas palavras pelo
jogo natural das idéas, e haveria quem achasse, por isso,
como sendo perfeitamente correcta, a seguinte inscripção
que lêmos gravada em uma lapida :

« Aqui jaz os restos mortaes do conselheiro… !! »

Sem duvida, não repugna ao ouvido a transposição :
« Que todos desejais o descanso, é certo » ; mas é porque,
affeito ás frequentissimas inversões da linguagem, deixa o
ouvido á sagacidade do espirito o cuidado de repôr lá
dentro na alma as cousas nos seus eixos : « e certo que
todos desejais o descanço
 ».

Pretender, portanto, que uma proposição logicamente
posterior póde servir de sujeito a outra proposição logicamente
anterior, é fazer do effeito a causa, é correr
d’um circulo vicioso, é applicar o motu perpetus á Grammatica,
é recordar a giria daquelle charlatão que, mostrando,
como raridade nunca vista, um cavallo com o rabo
no logar da cabeça, deixava ver um pobre sendeiro preso
pela cauda á grade de uma manjadoura.

Praticamente, apresenta-se sobre isso uma consideração
que tudo resolve. Inimaginável é o caso de um verbo que,
achando-se na primeira ou na segunda pessoa do singular
ou do plural, se denegue á enunciação do seu pronome
sujeito. e, na terceira pessoa do plural, quando o sujeito
occulto não é um pronome, então é necessariamente um
substantivo, que sem grande esforço acóde ao espirito.

Ex. Dizem que primeiro se escreveu em folhas de palma.
(Ant. de Souza de Macedo). — (Os historiadores dizem
que…).

Ora, como é que o verbo impessoal mostrar-se-hia refractario
a esta lei, se della não fosse dispensado por natureza ?
Pois, no trecho discutido, não ha elle nem ella
que sirva de sujeito a é certo ; entretanto não ha ente
nem abstracção, grande ou pequena, que não tenha, num
ou noutro daquelles dous vocabulos, um substituto obrigatorio.

Se, todavia, ainda é cedo para que prevaleça qualquer
doutrina contraria á do verbo substantivo, retractemo-nos
como fez Galilêo ; e, já que a questão não entende, como
então, com o sol e os planetas, e sim tão sómente com
aspirantes a luzeiros sublunares, sejamos de nosso tempo,
e deixemo-nos destas nossas asneiras, que assim é como a
isto chamão discretamente os que andão buzinando em
defesa da rotina.243

Assim resignado, consignamos, sem pôr nem tirar, a
formula salvadora da analyse logica pela theoria do verbo
substantivo, escolhendo neste intuito uma oração tão despida
do pretenções altisonantes como ricamente dotada do
quanto póde contribuir ao realce de tão profícuo methodo
do ensino.

Argumento

Diogenes estava se apromptando para ir ver enforcar um
tratante que desgraçára a muita gente
.

Analyse logica segundo o formulario da
grammatica philosophica

« Diogenes era estante sendo-se apromptante para ser inte
ser vente ser enforcante um tratante que fora desgraçante a
muita gente
. »

Sic itur ad astra.

(Traducção liberrima) : Assim é que chega um homem a
ser astrologo
.

Capitulo I
Considerações geraes ácerca da collocação
das palavras no discurso

309. No uso da palavra, o homem se sente movido
por dous impulsos que, posto não se contrariem, todavia
não actuão parallelamente ; vindo, porém a confundir-se numa
mesma direcção como a recta ou resultante de um angulo
afigurando forças iguaes, elles produzem a dicção perfeita.
Pelo primeiro, o homem fica levado a fallar com clareza ;
pelo segundo, a fallar com agrado. Obedecendo ao primeiro,
não faz senão dar satisfação á sua propria vontade ;
porque quem se determina a fallar, só a isso se determina
por julgar necessaria, util ou ao menos conveniente a communicação
de seus pensamentos. Obedecendo ao segundo,
procura captivar a vontade alheia ; porque, se não falla
sempre para impetrar ou convencer, falla sempre ao menos
com o fito de predispor favoravelmente a quem o ouve.
Da conciliação mais ou menos acertada destas duas preoccupações
244nasce a propriedade do estylo, ao passo que o
valor real de uma obra litteraria só se afere pelo mérito e
a opportunidade de suas revelações.

310. Para occorrer áquelles dous requisitos de clareza
o de euphonia (pois esta é a expressão grammatical caracterisando
o conjuncto harmonico de palavras donde resulta
o agrado na dicção), as linguas possuem aptidões muito
diversas. Sendo encaradas sob um aspecto geral, as linguas
mais litterarias, isto é, mais eupbonicas, póde-se dizer que
são uma ampla faculdade do dispôr os termos nesta ou
naquella ordem ao redor do facto que os domina, não oblitera
a lucidez do pensamento : ora, dentre os idiomas hoje
fallados por povos cultos, nenhum talvez leva nisso vantagem
ao portuguez, porque nenhum se póde atirar a mais
arriscadas evoluções sem comprometter a integridade dos
pensamentos.

As causas de tão notavel privilegio, parece que se
podem reduzir a tres principaes, a ultima das quãos é de
muito a mais importante, sem ser esta, todavia, peculiar
da lingua portugueza :

1.ª as sonoridades terminaes das palavras variaveis ;
2.ª o numero crescido das formas do verbo ; 3.ª a inabalavel
fixidade de collocação das ligações subordinativas. Porém,
antes de ventilar os modos por que se exercem estas diversas
influencias, carece estabelecer porque o são. Pois,
na collocação das palavras dentro da oração, ha sempre
uma posição normal, que é a que requer a clareza ; e frequentemente
outra anormal, que é a que requer a euphonia.
Ao tino artistico, que só se apura na pratica assidua dos
classicos, é que compete escolher entre uma e outra.

311. As palavras regencia e concordancia resumem
todas as leis da syntaxe. Quando a acção de uma palavra
sobre outra não se denuncia pela concordancia, denuncía-se
pela regencia, e vice-versa. O facto só, embora frequentemente
constrangido a dobrar-se á concordancia com o sujeito,
fica, todavia, sobranceiro em muitos casos a esta
imposição, bastando-lhe, para se revelar, que, além de suas
formas muito especiaes, nenhum complexo de palavras
possa sem elle constituir um sentido acceitavel ou recusavel.

312. O sujeito manifesta-se sempre pela concordancia
que impõe ao verbo ; e, por isso, tornando-se a causa efficiente
da forma do verbo, encontra a sua collocação normal
na anteposição ao mesmo verbo.245

Ex. O bem é um ; o mal se divide, e não tem numero.
(P. Ant. Vieira).

Quasi todos querem ensinar com razões ; com exemplos,
poucos ensinão. (P. Ant. Vieira).

Reprehender obras alheias é cousa facil ; fazê-las
sempre custa mais. (Franc. Rodr. Lobo).

Começando pelos maiores corpos politicos, que são os reinos,
qual é a causa de
tantos se terem perdido, de que
apenas se conserva a memoria, e
outros se verem tão arruinados
e enfraquecidos ?
(P. Ant. Vieira).

Entretanto, como se bastasse essa mesma concordancia
do verbo para dar fé do sujeito, seja qual fôr a sua posição,
lá vai elle, por simples deferencia á euphonia, tão
frequentemente posposto como anteposto ao mesmo verbo.
Exemplos :

E’ a luz mais benigna que o sol, porque o sol, não só
allumia, mas abraza ; a luz allumia, e não offende.
Quereis ver a differença da luz ao sol ?começa a sahir e
a crescer o
sol : eis o gesto agradavel do mundo, e a composição
da mesma natureza toda mudada. O
céo accende-se ;
os campos seccão-se ; as flores murchão-se ; as aves
emmudecem
 ; os animaes buscão as covas ; os homens
(buscão), as sombras. e, se deos não cortara a carreira
ao sol com a entreposição da noite
, fervêra e abrazára-se
a
terra, ardêrão as plantas, seccarão-se os rios,
sumírão-
se as fontes, e forão verdadeiros, e não fabulosos
os
incendios de Phaetonte. (P. Ant. Vieira),

A cousa mais facil do mundo é dar conselho a outrem, e
a mais ardua
é tomá-lo para si. (P. Ant. Vieira).

Se buscarmos com verdadeira consideração a causa de
todas as ruinas e males do mundo, acharemos que a principal,
senão a total e a unica
, é não acabarem os homens de
concordar o seu querer com o seu poder… No tempo de Salomão

erão tantos, tão multiplicados e tão excessivos os tributos
com que o miseravel povo sustentava a fama de ser
chamado
seu um tal rei, que a primeira cousa que pedirão
a seu successor Roboão
, foi a suspensão e remedio destas
oppressões
. (P. Ant. Vieira).

Em dous casos, todavia, pede geralmente a natureza
da proposição a posposição do sujeito ao verbo :

1.° Nas proposições directamente interrogativas ou exclamativas.

Ex. Dizei-me, voadores : não vos fez Deos para peixes ?
(P. Ant. Vieira).246

« Como posso eu dar o que não tenho ? » (P. Man. Bernardes).

Oh ! Senhor ! bemdita seja eternamente vossa bondade !
(P. Man. Bernardes).

2.° Nas proposições que, intercaladas n’uma citação,
designão o autor do texto citado.

Ex. « Julga agora, continuou christo, qual destes tres
teve aquelle enfermo por proximo
. » — « Aquelle, disse o doutor,
que o soccorreu. » — « Pois então respondeu christo, vai, e
faze o mesmo
. « (P. J. B. de Castro).

313. Os complementos, quer directos, quer indirectos,
têm por funcção de inteirar o sentido escasso, deficiente de
outra palavra.

Ora inteirar implica necessariamente a idéa de acto
posterior, porquanto, só depois de se ter visto o que faz
alta em qualquer cousa, é que se lhe póde accrescentar o
que falta.

Portanto normalmente collocado fica o complemento,
quer directo, quer indirecto, quando vai posposto á palavra
por elle inteirada.

314. Porém, em uma lingua que, como a portugueza,
não possue, para os seus substantivos e outras especies
concomitantes de palavras, as variações de terminação que,
sob a designação de declinações, assignalão, em outras
linguas, a funcção syntaxica das mesmas palavras junto ao
verbo ou entre si, o complemento directo apresenta-se desvantajosamente
ao lado do indirecto. Com effeito : este
vai por assim dizer indigitado pela preposição que constantemente
o precede, a não ser que, não podendo haver duvida
sobre a existencia da mesma preposição, a sua omissão
se tenha introduzido nos habitos da linguagem (Na córte,
cada dia mudão senhores. (P. Ant. Vieira). — Na córte, em
cada dia…
) ; o complemento directo, porém, nada tem que
formalmente o indigite, além da connexão de sentido que
ao verbo o associa (Deve o homem saber igualmente o mal
e o bem. — P. Ant. Vieira). Todavia, como não serião raros
os casos em que, achando-se no mesmo numero e pessoa
como o sujeito, o complemento directo poderia vir então a
constituir com este um sentido amphibologico por troca
mental de funcção, tornou-se propriedade da lingua portugueza
o converter-se, nesta contingencia, o complemento
directo em indirecto, mediante a introducção da preposição
a, conservando-se assim ao mesmo complemento a sua
funcção mais geral, e obviando-se terminantemente a toda
e qualquer falsa interpretação.247

Ex. Assim fadou Noé a seu neto Cannahan. (P. Ant.
Vieira). — (Não : Assim fadou Noé o seu neto Cannahan).

315. Seja, porém, como for, uma natural e, por assim
dizer, instinctiva providencia induziu os classicos a adoptar
preferivelmente, por amor da clareza, a ordem normal para
os complementos directos, mórmente quando formados de
substantivos ou infinitivos.

Ex. Em Nazareth, e em vida de Joseph, (Christo) grangeou
a sujeição e obediência a um official com o nome de
pai seu, que não era
.

Depois de sua morte, grangeou o succeder-lhe na mesma
officina
, ganhando o pão para sua mãi e para si com o suor
de seu rosto
.

Nas perigrinações de Galiléa e Judéa, grangeou fazê-las
sempre a pé, e muitas vezes descalço, exposto ao sol e ás
chuvas, sem casa propria nem alheia
, podendo invejar, dos
bichos da terra, as
covas, e das aves, o repouso dos ninhos,
sem
ter onde reclinar a cabeça. [Por ellipse : … sem ter
um lugar em que pudesse reclinar a cabeça]. — (P. Ant.
Vieira).

Quizerão, diz a Sagrada Escriptura, as arvores fazer
um rei que as governasse, e forão offerecer o governo á
oliveira, a qual se excusou, dizendo que não
queria deixar
o seu oleo, com que se ungem os homens, e se allumião os
deoses
.

Ouvida a excusa, forão á figueira, e tambem a figueira
não
quiz aceitar, dizendo que os seus figos erão muito doces,
e que não
queria deixar a sua doçura. (P. Ant. Vieira).

Entretanto a transposição dos mesmos complementos
para diante do verbo é licita, se, sem prejudicar á clareza,
vem solicitada por algum motivo de euphonia.

Ex. Amar a quem nos ama, e fazer bem a quem bem
nos faz, é dictame do lume natural que está impresso em
nossa alma
. (P. Man. Bernardes). — (Não :… fazer bem a
quem nos faz bem
…).

Nenhuns serviços paga Sua Majestade hoje com mais
liberal mão que os do Brazil
. (P. Ant. Vieira).

Esta ultima sentença approvou o rei, e esta foi applaudida
de todos com publicas acclamações
. (P. Ant. Vieira).

Trabalhar não sei ; mendigar não posso : agora vejo o
que hei de fazer
. (Parab. evang.).

Esta mesma conclusão inferirão, sobre a lição de todas
as historias do mundo, aquelles dous grandes historiadores que
,
248em sentença de Lipsio, depois de Sallustio e Livio, merecem
os dous seguintes lugares : entre os Latinos, Curcio, e entre os
Hespanhoes, Marianna
. (P. Ant. Vieira).

Equidade, que não é outra cousa que o dictame da razão
natural na mente ou consciencia do bom varão, obrigado a
mitigar lei quando é necessario, deve o juiz
ter diante dos
olhos todas as vezes que condemna ou absolve
. (P. Man. Bernardes).

316. Os complementos directos que constão de pronomes
não possoaes gozão de mais ampla faculdade de
collocação do que os substantivos, pois tanto se encontrão
antepostos como pospostos ao verbo.

Ex. muitos houve que quizerão imitar os raios. (P.
Ant. Vieira).

Houve alguns que, jarretados, sem pés, e cheios de feridas,
bramião como touros
. (Luiz Torres de Lima).

« De verdade vos affirmo que esta pobre viuva lançou
mais
que todos os outros. »’…

Bem disse S. Ambrosio que mais valia um dinheiro tirado
do pouco do que um thesouro tirado do máximo
. (P. Man.
Bernardes).

Parece-vos que tenho dito muito ?

Muito pescão os pescadores do nosso elemento. (P. Ant.
Vieira).

Este natural appetite de quererem os homens sempre mais
do que podem, nem na soberania dos que
podem tudo, se
farta

Diogenes, que tudo via com mais aguda vista que os
outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros
de justiça levavão a enforcar uns ladrões
. (P. Ant. Vieira).

Catão respondeu que ambos lhe descontentavão : um porque
nada tinha ; o outro, porque nada lhe bastava

Taes são os dous capitães móres : N. de N. não tem
nada
 ; N. do N. não lhe basta nada. (P. Ant. Vieira).

Por qualquer lado que o tomeis (o non) sempre sôa e
diz o mesmo. (P. Ant. Vieira).

Porém Deos, que ao cego deu vista, pondo-lhe o lodo nos
olhos
, o mesmo fez agora com Pedro. (P. Man. Bernardes).

317. Os pronomes pessoaes constituindo complementos
directos são : me, te, se, nós, vos, se, — o, a, os, as, — e
o estavel — o. Os que constituem complementos indirectos
249de preposição occulta, sendo esta sempre a, são novamente :
me, te, se, nos, vos, se, e mais : lhe, lhes.

Notaveis por se nunca prestarem a exercer outra
funcção que não seja a de complementos, ainda merecem
os referidos vocabulos especial menção por diversas particularidades
que lhes são exclusivamente proprias.

Tanto podem ir antepostos como pospostos ao verbo
de que dependem, porém só em these geral ; porquanto,
além dos casos adiante especificados como excepções formaes,
ha sempre, no particular, mais ou menos opportunidade
em os antepor ou pospôr ao verbo, conforme o
numero o collocação dos outros termos da mesma proposição.
Mas essa mesma opportunidade de posposição ou
anteposição esquiva-se a todo e qualquer regulamento, de
sorte que é este um dos casos em que a observação assidua
e reflectida do modo de proceder dos classicos se torna a
unica norma attendivel.

Quanto ás particularidades que restringem terminantemente
a collocação facultativa dos mesmos pronomes, ellas
são as seguintes :

1.° Nenhum dos referidos vocabulos póde de per si só
constituir uma proposição elliptica ;

2.° Nenhum póde encetar uma proposição ;

3.° Nenhum se póde pospôr a um verbo no 7.° o 8.°
tempo do indicativo, ou no 1.° e 2.° do condicional ; porquanto,
sendo estes quatro tempos os da figura de dicção
chamada tmesis, a interpolação dos mesmos pronomes dentro
do verbo é uma das exigências da lingua ;

4.° Sendo dous junto a um mesmo verbo, não podem,
quer antepostos, quer pospostos, ir disjunctos ;

5.° Em tal caso, o de complemento indirecto tem a
precedencia sobre o de complemento directo, a não ser
que este seja se ;

6.° Pospostos ao verbo, ligão-se-lhe, e mesmo entre si,
pela risca de união, a não ser que a mesma risca seja eliminada
pela intervenção de um apostropho por apócope.

Ex. Movido de piedade, o arcebispo parou, chamou ao
pobrezinho, e
disse-lhe que se descesse abaixo para a lapa,
e fugisse da chuva, pois não tinha roupa bastante para
a esperar.
« Isso, não, respondeu o pastorinho; que, em deixando
de estar alerta e com olho aberto, vem logo o lobo, e
leva-me
a ovelha ; ou vem a raposa, e mata-me o cordeiro. » — « e,
que vai nisso ? disse o arcebispo
. » — « a mim (Não : me.)
250me vai muito, tornou elle, que tenho pai em casa, que pelejará
commigo
. (Fr. Luiz de Souza).

Só aquelle que por amor de Deos perdoa, é o que mais
se engrandece ; quem, sem reparar na politica, se esquece
da affronta, e, sem se lembrar do aggravo, faz bem a seu
contrario, este é o que
se eternisa nos annaes da fama, e
esculpe seu nome nos bronzes da eternidade. Ouví um caso
succedido em Lisboa na igreja de S. Domingos ; está escripto
na Torre do Tombo
.

Num dia em que nesta igreja se fazia uma celebridade
com empenho, receiosos uns fidalgos de que não achassem lugar,
mandarão pôr na igreja um banco. Succedeu que, vindo um
homem de fóra, ricaço, vendo o banco sem gente
, teve-se por
ditoso em achar tão bom lugar, e com effeito
se assentou
nelle. Vierão os fidalgos para o seu banco ; achárão nelle o
homem, a quem pedirão com muita cortezia (que esta, parece,
vem aos fidalgos por natureza)
se levantasse do banco, pois
o tinhão mandado por naquelle lugar. Respondeu o homem
que não
se havia de levantar. replicárão-lhe [não : lhe
replicárão
] que o fizesse, senão, que o farião levantar. —
« Levantar ! a mim ! [não : me !] respondeu o homem. e, arremettendo
com um dos fidalgos, levantando a mão
, lhe deu
uma bofetada. O fidalgo, com a colera, metteu a mão, e levando
da adaga com impeto tão arrebatado, que não distinguira
nelle a acção de
arrancá-la, matára o homem que lhe
tinha dado
a bofetada, se não fôra que succedeu neste instante
levantar-se o Santissimo Sacramento num altar donde se
estava dizendo
missa, o que visto pelo homem que já se
julgava
mais morto que vivo, lhe disse : « perdoai-me [não :
me perdoai] por amor daquelle Senhor sacramentado l » — O
fidalgo, ouvindo isto, suspendeu o impulso, e
lhe perguntou :
« Por amor de quem m’o pedís ? [não : me-o pedís ? — nom :
o-me pedís ? — nem : o pedís-me ? — nem : me pedí-lo ?] —
For amor daquelle Senhor vos peço que me não mateis. » —
« Ora, por amor delle vos perdoo. » e não tão somente lhe
perdoou
, mas lhe deu um abraço, e o assentou comsigo. e,
para memoria
, se mandou pôr isto na Torre do Tombo ; e, para
credito de quem tal acção fez, escripto deve andar em laminas de
bronze, que é tal honra perdoar uma injuria, que, para brazão
de seus descendentes
, se guarda em escripturas públicas. (Fr.
Ant. das Chagas).

« Comparemos agora esta doutrina com ess’outras razões ;
ponhamo-la [não : a ponhamos] com ellas em balança ; vê-las-hemos
[não : as veremos, — nom : veremo-las] ir por
esses ares, e desapparecer como fantastícas e sophisticas
. » (Fr,
Luiz de Souza).251

« Se, todavia, ainda contra isto ha que dizer, e Vossa
Paternidade entende que tenho perdido o norte neste governo,
não está longe o remedio : Vossa Paternidade, que foi o meio
de
se me lançar [não : de me se lançar, — nem : de se
lançar-me
, — nem : de me lançar-se] esta Braga, que não
trago só nos pês, como
a trazem os captivos, mas tambem
sobre o pescoço e coração, pode, com
m’a fazer tirar, juntamente
atalhar meus erros, e usar commigo de grande misericordia
. »
(Fr. Luiz de Souza).

despede-se [não : se despede] o mundo sem dizer-nos
nada ; consome-se [não : se consome] a carne sem que ninguem
o sinta ; passa-se [não : se passa] a nossa gloria como
se nunca fôra ; e
salteia-nos [não : nos salteia] a morte
sem chamar primeiro á porta
. (P. Ant. Vieira).

Não se fazerem Mercês é faltar com o premio á virtude ;
fazerem-se [não : se fazerem] é semear benefícios para colher
queixas
. (P. Ant. Vieira).

Buscais mil traças e invenções para ajuntar o alheio ao
vosso, e essas são as que, em lugar de
vo-lo accrescentar,
vo-lo roem
e vo-lo desbaratão. E’ o alheio pontualmente
como o vomitorio
. receita-vos o medico um vomitorio, e, que
vos acontece depois que o tomais ? lançai-lo, a elle, e
tudo o mais que tinheis dentro. Assim é o alheio
. guardai-vos
de o metter no estomago, porque, primeiramente, não
vo-lo ha de lograr, e ha-vos de puxar, e levar comsigo o
mais que tiverdes nelle
(P. Ant. Vieira).

A roça, havião-vo-la de embargar para os mantimentos
das minas ; a casa, havião-
vo-la de tomar de aposentadoria
para os officiaes das minas
. (P. Ant. Vieira).

O voador, porque quiz ser borboleta das ondas, vierão-se-lhe
a queimar as azas. (P. Ant. Vieira).

318. Todo o complemento indirecto é caracterisado
pela regencia de uma preposição expressa, occulta ou implicita.
As palavras assim regidas são : um substantivo,
um pronome, um infinitivo, ou mesmo um adverbio em algumas
locuções adverbiaes.

Quanto ás preposições que, por antecipação a uma
conjuncção, com ella formão uma locução conjunctiva (a
que, com que, de que, em que, para que…
), embora suscitadas
por uma palavra anterior que dellas não prescinde
para fazer constar a sua relação, não devem ser tidas em
analyse como exercendo uma regencia, visto não apresentarem,
em combinação com a mesma conjuncção, tão marcada
plenitude de significação como a que se constitue
pela anteposição da preposição a um substantivo, pronome,
252infinitivo ou adverbio (a pé, com alguem, de fallar, em
fallando, para sempre
).

319. Por esta indeclinavel assistencia de uma preposição
é assim o complemento indirecto, entre os termos, um
dos mais claramente determinados. A consequencia que
dahi decorre, é que lhe cabe, em these geral, ampla faculdade
de transposição.

Ex. Quasi todos querem ensinar com razões ; com
exemplos
, poucos ensinão. (P. Ant. Vieira). — (Normalmente :
poucos ensinão com exemplos).

Todavia longe estão os prosadores de usar desta faculdade
com o mesmo desembaraço com que della usão os
poetas ; porque o que se tolera nestes como expediente justificado
pelas difficuldades da metrificação, estranhar-se-hia
áquelles como requinte incompativel com a gravidade das
composições litterarias que pretendem captivar antes pela
lição do que pela dicção. E’ esta novamente uma questão
de gosto, para a qual muito convém pedir consulta aos
classicos. Algumas exemplificações em que prevalece, já a
collocação directa, já a collocação transposta dos mesmos
complementos, servirão, não de preceitos, que o caso não
os admitte, o sim de mera indicação sobre o processo a
seguir em tal estudo de estylistica, para affazer o ouvido
ás boas normas.

Collocação normal :

« Tudo é vaidade, excepto amar e servir a Deos. Ser
amado
de deos é a maior das felicidades. » (P. Ant.
Vieira). — (Colloc. anormal : excepto amar e servir a
Deos, tudo é vaidade
. de deos ser amado é das felicidades
a maior).

« O primeiro bem do mundo que o homem ha de procurar,
é o bom nome
. » (P. Ant. Vieira). — (Colloc. anormal :
do mundo o primeiro bem que o homem ha de procurar, é o
bom nome)
.

Collocação anormal :

« Só deste nome temos a propriedade ; de todos os mais
temos o uso. » (P. Ant. Vieira). — (Colloc. normal : Temos
a propriedade deste nome ; temos o uso de todos os
mais
).

Collocação normal :

« O maior mal do homem é não se conhecer a si mesmo. »
(P. Ant. Vieira). — (Colloc. anormal : Do homem o maior
mal é
a si mesmo não se conhecer),253

Collocação anormal :

« Tarde procurará emendar-se quem se não conhece. »
(P. Ant. Vieira). — (Colloc. normal : Procurará tarde emendar-se
quem se não conhece)
.

Collocação normal :

« Não ha homem sem coração, nem coração sem desejos. »
(P. Ant. Vieira). — (Colloc. anormal : sem coração
não ha homem, nem sem desejos coração).

Collocação anormal :

« O homem, por lhe parecer que um só bem o não
póde fazer feliz, busca muitos
. » (P. Ant. Vieira). — (Colloc.
normal : O homem busca muitos bens, por lhe parecer que
um só o não póde fazer feliz)
.

320. Todavia os adverbios de quantidade que, por
actuarem sobre um adjectivo, participio, ou outro adverbio,
lhe conferem força de comparativo ou de superlativo, nunca
prescindem da condição ae ir-lhe antepostos, como para
obstarem, por um previo aviso, a que escape por descuido
a modificação que nas mesmas palavras produzem.

Ex. Por isso em algumas partes deixámos correr o estylo
mais viçoso, e menos severo. (Fr. Man. Consciencia). —
(V. os exemplos dos §§ 182 e 184).

321. Por motivo analogo vão os vocabulos não e nem,
quando adverbios, sempre antepostos á palavra em que
actúão.

Ex. « O’ voador, se vos não conheceis, olhai para as
vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que

não sois ave, senão peixe, e ainda, entre os peixes, não dos
melhores. — não contente
com ser peixe, quizeste ser ave;
 ;
e já não és ave nem peixe ; nem voar poderás , nem
nadar (poderás). » (P. Ant. Vieira).

« Mostre-me alguem, na vida destes Padres ou em seus
escriptos, que posso eu, sendo mero dispenseiro, e
não dono
do patrimonio de Christo (que é a renda ecclesiastica), competir,
á conta della, com os principes seculares em pompa e
fausto !
 » (Fr. Luiz de Souza).

Nas mesmas condições, porém, vai o vocabulo sim,
por ser simplesmente confirmativo, posposto á palavra em
que actúa.

Ex. Parece-lhes, aos moços, intoleravel a carga do matrimonio.
e’ sim pesadissima para os que a não sabem levar,
(D. Franc. Man. de Mello),254

322. Entrando um complemento directo posposto ao
verbo, em competição de lugar com um indirecto do mesmo
verbo, não ha outro direito de precedencia de um sobre o
outro, senão o que determina a euphonia, a qual geralmente
antepõe o mais breve ao mais comprido em syllabas,
incluindo-se nessa conta os annexos de cada complemento.

Ex. « Tu, David, continua Saul, déste-me bem por mal,
sendo que eu sempre te dei mal por bem. » (P. Ant. Vieira).
— (Não : … por mal bem... por bem mal…).

Lançai os olhos por todo o mundo (não : por todo o
mundo os olhos), e vereis que todo elle vem a resolver-se em
buscar
pão para a bocca (não : para a bocca pão). — (P.
Ant. Vieira).

Se buscarmos, com verdadeira consideração, a causa
de todas as ruinas e males do mundo
(não : a causa de
todas as ruinas e males do mundo com verdadeira consideração),
acharemos que, não só a principal, senão a total e a
unica é não acabarem os homens de concordar
o seu querer
com
o seu poder (não : com o seu poder o seu querer). — (P.
Ant. Vieira).

Se alguem deseja alguns dictames para escolher e adquirir
amigos
(não : para escolher e adquirir amigos alguns
dictames), póde arrimar-se aos seguintes
. (P. Man. Bernardes).

323. Entrando dous ou mais complementos indirectos
de verbo na mesma competição, procura-se conciliar, na
sua coordenação, as mesmas leis da euphonia com a maior
lucidez de expressão.

Ex. Navegava Alexandre em uma poderosa armada no
mar erythrêo para conquistar a india
. (P. Ant. Vieira).
— (Navegava em uma armada, — navegava no mar Erythrêo,
— navegava a.conquistar a India)
.

324. Sendo o predicado a enunciação de uma attribuição
do sujeito mediante um verbo de estado, claro é
que vai normalmente collocado quando sabe posposto ao
verbo que o suscita.

Ex. Se os olhos vêm com amor, o corvo é branco ; se
com odio, o cysne
é negro ; se com amor, o demonio é formoso ;
se com odio, o anjo é feio ; se com amor, o pygmeo é
gigante
 ; se com odio, o gigante é pygmeo. (P. Ant. Vieira).

A aurora é o riso do céo, a alegria dos campos, a
respiração das flores, a harmonia dos ares, a vida e alento
do mundo. (P. Ant. Vieira).255

Toda a nobreza e excéllenda do homem consiste no livre
alvedrío ; e o servir, se não
é perder o alvedrío é captivá-lo.
(P. Ant. Vieira).

325. Porém tão intima é a relação de sentido que se
crêa entre o predicado e o sujeito, que, ainda quando ella
deixa de manifestar-se pela concordancia, mal se póde originar
da collocação anormal do mesmo predicado equivoco
ou obscuridade. Amplissima é, portanto, a sua faculdade
de transposição ; e della se aproveitão largamente os classicos
para cortar a monotonia que acarretára a constante
reproducção de ser, do todos os verbos de estado, o mais
usado, se não fosse licito rodeá-lo das inversões mais variadas.

Mui judicioso é o apólogo que se conta das cotovias que
tinhão seus ninhos entre as searas
. (P. Man. sernardos).

Grande zelador do segredo foi Demosthenes. (Diogo do
Couto).

E’ a luz mais benigna que o sol. (P. Ant. Vieira).

Maior gloria é emendar que castigar. (P. Ant. Vieira).

Taes são os bens da fortuna, que carecer delles é miseria,
e possuí-los, perigo
. (P. Ant. Vieira).

Cousa É mui commum aos nescios tratar de livros. (P.
Ant. Vieira).

As primeiras creaturas que com suas vozes nos injurião
e envergonhão, entre aquellas que o mesmo Senhor creou, mas
não remiu
, são as aves. (P. Ant. Vieira).

Esta é a historia ou fabula engenhosamente fingida por
Homero
. (P. Ant. Vieira).

Era o autor deste invento, de profissão, religioso. (P.
Ant. Vieira).

326. Apposição é toda a palavra variavel que, não
sendo facto syntaxico, prende-se de per si mesma, pela
concordancia possivel, a um substantivo, pronome ou infinitivo,
para precisar-lhe o sentido, e, como simples annexo,
seguir-lhe a sorte.

Torna-se notavel o seguinte exemplo por encerrar dous
substantivos e dous pronomes igualmente desamparados de
toda e qualquer apposição : Quasi todos querem ensinar com
razões ; com exemplos, poucos ensinão. — No seguinte,
porém, tanto o substantivo homem, como o pronome si, apparecem
256amparados, cada um, por sua respectiva apposição :
Conheça o homem o que deseja, e conheça-se a si mesmo. (P.
Ant. Vieira). — Igual observação cabe aos infinitivos dos
dous seguintes exemplos : Pois como ! premiar a todos sem
dar nada a ninguem ! — Sim ! o dar e o premiar são cousas
muito differentes
. (P. Ant. Vieira).

327. O simples enunciado da funcção exercida pelas
apposições implica, como collocação normal, a conveniencia
de sua juncção á palavra amparada. Todavia, conforme a
classe de palavras a que pertencem, as mesmas apposições,
já têm uma collocação determinada, já a têm facultativa.

328. Constando de um artigo, a apposição vai, não
só anteposta á palavra amparada, como ainda anteposta ás
mais apposições que com ella entrão em competição.

Ex. O bem é um ; o mal se devide, e não tem numero.
(P. Ant. Vieira).

O maior mal do homem é não se conhecer a si proprio.
(P. Ant. Vieira),

Veiu depois uma pobrezinha viuva, e lançou dous ceitís
de cobre
. (P. Man. Bernardes).

Ha uma unica excepção a esta regra, e é em relação
a todo, que, por ser mais explicito do que o artigo definito,
vai-lhe necessariamente anteposto.

Ex. Nos casamentos, todo o erro está em cobiçar a fazenda
que está na bolsa, e não examinar a pessoa que se traz
para casa
. (P. Ant. Vieira).

O primeiro bem do mundo que o homem ha de procurar,
é o bom nome ; só deste nome temos a propriedade ; de
todos
os
mais temos o uso. (P. Ant. Vieira).

Não se entende com isto que todo vá necessariamente
anteposto á palavra por elle amparada ; pois, como sentido
de inteiro, traspassa-se em seguida á palavra com a qual
se prende, mas então nada mais tem que destrinçar com o
artigo.

Ex. Põe-se da parte do odio e da vingança o mundo
todo. (P. Ant. Vieira).

329. Constando de adjectivos determinativos, as apposições,
não só se antepõem ás palavras amparadas, como
ainda aos qualificativos, quer adjectivos, quer participios,
que com ellas entrão em competição. (V. § 144). Ha, todavia,
algumas excepções, por alto das quaes não convem
passar257

1.° Dentre os numeraes, só os cardeaes vão necessariamente
antepostos ao substantivo amparado.

Se houvesse dous homens de consciencia, e outros que lhes
succedessem, não haveria inconveniente em estar o governo dividido
.
(P. Ant. Vieira).

Vinte e dous pescadores destes se acharão acaso a um
sermão de S. Antonio
. (P. Ant. Vieira).

Porém, junto a pronomes pessoaes, o contrario é que
se dá.

Ex. Assentemos nós tres no que se tem de fazer.

Ainda pospõem-se os cardeaes ao substantivo quando
se empregão como substitutivos dos ordinaes.

Ex. Não posso, comtudo, calar que, no mesmo dia seis
(sexto) de Fevereiro, em que entrei nos oitenta e sete annos,
foi tão critico para a minha saude este septenario, que apenas
por mão alheia me permitte dictar estas regras
. (P. Ant.
Vieira).

No capitulo trinta e dous do Deuteronomio promette Deos
assistir poderosamente na guerra aos que o servirem
. (P. Ant.
Vieira). — (No capitulo trigesimo segundo… ou : No trigesimo
segundo capitulo
…).

2.° Sendo os adjectivos demonstrativos os mais aparentados
de todos com o artigo definito, dá-se tambem com
elles o caso de só se deixarem preceder de todo.

Ex. Vai um soldado servir na guerra; e leva tres cousas:
 :
leva vontade, leva animo, leva alegria. Torna da guerra a
requerer, e
todas estas tres cousas se lhe trocão. (P. Ant.
Vieira).

Todavia, ao contrario do que se dá com o mesmo artigo,
uma circumstancia ha em que o demonstrativo consente
a ir posposto ao substantivo amparado ; e vem a ser
quando, fazendo o mesmo substantivo officio de apposição
por conta propria, obriga ao demonstrativo a que se desloque,
para por elle não ficar estorvado na sua funcção. O
P. Ant. Vieira disse : « O ver-se louvado era ver-se accusado;
 ;
o ver suas grandezas referidas era ver as suas culpas provadas,
delictos sem perdão contra as leis da inveja. » Ahi é
delictos mera apposição de culpas, com que concorda
aliás em numero, já que lhe é vedada a concordancia em
genero. Porém, se quizera o eminente classico accrescentar,
e conformidade com a indole da lingua, um adjectivo demonstrativo
a delictos, tivera de lh’o pospôr (.,. delictos
esses
sem perdão… — não : esses delictos sem perdão…).258

3.° Os adjectivos possessivos encontrão-se tanto pospostos
como antepostos á palavra amparada ; e, bem que
não haja geralmente perfeita identidade na adopção de uma
ou outra collocação, não é todavia possivel atinar com a
razão logica que torna a anteposição preferivel em um caso,
e a posposição preferivel em outro.

Ex. Pois, Filho da Virgem Maria, se tanto cuidado tivestes
então do respeito e decoro de
vossa mãi, como consentis
agora que se lhe fação tantos desacatos ?...
Bastava então
qualquer dos outros desacatos ás cousas sagradas, para uma
severíssima
demonstração vossa, ainda milagrosa. Se, a Joroboão,
porque levantou a mão para um propheta, se lhe seccou
logo o braço milagrosamente, como, aos herejes, depois de se
atreverem a affrontar
os vossos santos, lhes ficão ainda
braços para outros delictos l Se, a Balthasar, por beber pelos
vasos do templo em que não se consagrava
o vosso sangue,
o privastes da vida e do reino, porque vivem os herejes que
convertem
vossos calices a usos profanos ? » (P. Ant.
Vieira).

Fallando el rei Antigono com o principe seu filho,… lhe
disse : Ainda não sabias
, filho meu, que o nosso reinar
não é outra cousa senão uma servidão honrada ? (P. Ant.
Vieira).

Em Nazareth, e em vida de Joseph, grangeou (Christo) a
sujeição e obediência a um official com o nome de
pai seu,
que não era. (P. Ant. Vieira).

4.° São bastante numerosas as observações a que dá
lugar a collocação dos adjectivos indefinitos.

Algum varia de accepção conforme anda posposto ou
anteposto ao substantivo. (V. § 163).

Bastante encontra-se anteposto e posposto ao substantivo.

Ex. Quem tem bastante dinheiro, tem bastantes
amigos
, que com elle contão para servir-lhes de caução bastante.

Certo, como adjectivo indefinito, vai necessariamente
anteposto ao substantivo. (V. § 165).

Demais, mais e menos estão no mesmo caso. (V. §§
166 e 167).

Mesmo, outro e só, como adjectivos indefinitos, costumão
andar antepostos aos substantivos amparados ; porém,
junto a pronomes, só lhes andão pospostos.

Ex. Finalmente os mesmos vicios nossos nos dizem o que
ella é (a alma)
. — (P. Ant. Vieira).259

No que reparo, é que o Senhor convocasse a seus discipulos
para que
nisso mesmo reparassem, e levassem doutrina.
(P. Man. Bernardes).

Já São outras cidades, outras ruas, outra linguagem,
outros trajes, outras leis, outros homens
 ; tudo passa.
(P. Man. Bernardes).

Comei vós outros, pobres estrangeiros, e não vos desconsoleis
por vos verdes dessa maneira
. (Fernão Mendes Pinto).

O homem, por lhe parecer que um só bem o não póde
fazer feliz, busca muitos
. (P. Ant. Vieira).

Esta doutrina do Senhor, por sua pureza, alteza, excellencia
e majestade, merecia por
si só ser ouvida e abraçada
por todo o mundo
. (João Franco Barreto).

muito, nenhum, pouco, qualquer, tal e todo, posto
que mais geralmente antepostos á palavra amparada, encontrão-se-lhe
tambem pospostos.

Ex. O coração da mulher é mui delicado : quer por pouco
bem muito premio
, e por muito mal nenhum castigo. (P.
Ant. Vieira).

Na corte ha malsins muitos, amigos poucos. (P. Ant.
Vieira). Não se poderia accrescentar tambem : desinteresse
nenhum ?

Por desprezivel que seja qualquer pessoa, póde ser mui
util ou mui nociva a
qualquer outra de alto estado e dignidade.
(P. Man. Bernardes).

Não é homem qualquer quem isso fez.

As serêas, com a suavidade de suas vozes, de tal modo
encantavão os navegantes, que voluntariamente se lançavão e
precipitavão ás ondas, e se afogavão no mar em que vivião
.
(P. Ant. Vieira).

E, pois que tinha presentes dous amigos que estimavão e
tinhão sua honra por propria, assentassem todos tres pôr uma
forma e
ordem tal em sua vida e governo, que, sem chegar
a demasias, bastasse para lhe grangear reverencia e autoridade
e estimação no povo
. (Fr. Luiz de Souza).

« Confesso que tomára ver esta linguagem em toda outra
pessoa
antes que na bocca dos que tanto me tocão. » (Fr. Luiz
de Souza).

Finalmente a terra (de Hespanha), as minas e os moradores
ficárão todos sujeitos ao jugo e dominio estranho. (P.
Ant. Vieira).

330. As apposições constando de qualificativos, quer
260adjectivos, quer participios variaveis, dão theoricamente
lugar a quatro hypotheses, cuja applicação, na pratica, só
pode ser determinada pelo uso.

1.° Uns qualificativos andão antepostos á palavra amparada.

Ex. Um Bello homem, de bons costumes.

2.° Outros andão-lhe pospostos.

Ex. Uma mesa redonda, de côr amarella.

3.° Outros acarretão mudanças de accepção conforme
andão pospostos ou antepostos.

Ex. Uma pobre viuva é aquella que é digna de compaixão.
Uma
viuva pobre é aquella que vive na indigencia.

4.° Outros, emfim (e estes constituem a grande maioria)
tanto se deixão antepor como pospôr á palavra amparada,
sem outro resguardo que o da euphonia.

Ex. Volta os olhos para esses amenos prados e vargens
fertilissimas
. (P. Man. Bernardes).

331. Quando, por uma apparente contradicção com
estas regras, o qualificativo (geralmente participio variavel)
se encontra anteposto ao artigo ou adjectivo determinativo
do substantivo ao qual se refere (… tosquiados os
cabellos, cavados os olhos…), o caso não é de apposição, o
sim de predicado occulto, por elisão do verbo do estado.
Porém tal erro de apreciação é insignificante na pratica,
visto se regerem as apposições e os predicados pelas mesmas
leis de concordancia.

O seguinte exemplo, em que se verifica a referida hypothese,
merece, por outra parte, ser estudado como demonstração
da frequencia das apposições no discurso, e
bem assim das diversas collocaçõos a que são adstrictas
conforme constão de artigos, adjectivos determinativos, adjectivos
qualificativos, ou participios variaveis.

Vedes aquelle homem robusto e agigantado que, com
aspecto ferozmente
triste, tosquiados os cabellos, cavados os
olhos, e correndo sangue ( — os cabellos sendo-lhe tosquiados,
os olhos
sendo-lhe cavados, e correndo sangue), atado
dentro em um carcere a duas fortes cadeias, anda moendo
numa atafôna ? Pois aquelle é Sansão. Vedes aquelle mancebo
macilento e pensativo que, rôto e quasi despido, com
uma corneta pendente do hombro, arrimado sobre um cajado,
está guardando
um rebanho vil do gado mais asqueroso ?
Pois aquelle é o prodigo. Quem haverá que se não
261admire de uma tal volta da fortuna em dous sujeitos tão
notaveis : um tão valente, outro tão altivo ! (P. Ant.
Vieira).

332. Como apposições, os substantivos encontrão-se,
já antepostos, já pospostos á palavra amparada, porém com
um sentido mais determinativo no primeiro do que no segundo
caso, como aliás o attesta a pontuação, que faz
intervir a virgula na ultima hypothese, mas não na primeira.

Ex. a el rei dario disse Cyloson que pedia antes para
a sua
patria, samos, total exempção de tributos. (P. Man.
Bernardes).

Se, por ventura, na colligação de dous substantivos
dos quaes é um a apposição do outro, se der o caso de alguma
hesitação sobre a sua determinação respectiva, basta,
para resolver a duvida, attender a esta consideração, que
a apposição é sempre mais ou menos dispensavel, ao passo
que a palavra amparada não o é, por exercer uma funcção
essencial.

Ex. Fallava el rei Antigono com o principe seu filho.
(P. Ant. Vieira). — E’ ahi rei apposição de Antigono, ou
Antigono apposição de rei ?principe apposição de filho,
ou filho apposição de principe ?

Procedendo-se, por experimentação, a uma successiva
eliminação de um e outro dos referidos substantivos, chega-se
facilmente á convicção do que o theor que mais fielmente
resguarda a integridade do pensamento é : Fallava Antigono
com seu filho (Fallava el rei com o principe ??);
portanto
rei é apposição de Antigono, como principe o é de
filho.

No seguinte exemplo, porém, as apposições de substantivos
vêm todas pospostas ás palavras amparadas.

A formosura é um bem frágil... Seja exemplo desta lastimosa
fragilidade Helena, aquella famosa e formosa
grega,
filha
de Tindaro, rei de Laconia, por cujo roubo foi destruida
Troya
. (P. Ant. Vieira).

Vê-se mais, por este mesmo excerpto, que as apposições
do substantivos não ficão por isso inhibidas de se acercar
ao mesmo tempo de apposições de artigos, adjectivos ou
participios variaveis (aquella famosa e formosa grega).

Ex. Lucullo, cidadão romano, homem riquissimo, mas
muito
vanglorioso, gastava em cada ceia, com os seus convidados,
cinco mil philippêos
. (P. Man. Bernardes).262

333. Ao contrario dos substantivos, os pronomes,
quando apposições, apresentão-se necessariamente pospostos
â palavra amparada, porque della têm de tirar o seu genero
e numero.

Ex. Ao grande Alexandre, já vencedor de Dario, caminhando
para Persepolis, sahirão ao encontro quasi oitocentos
homens
, os mais delles velhos, aos quaes os antepassados reis
da Persia tinhão torpemente mutilado os narizes e labios
. (P.
Man. Bernardes).

Todos os filhos de Adão padecemos nossas mutilações e
feialdades
, uns na honra, outros na saude, outros na fazenda,
outros na sciencia, outros na limpeza do sangue,
outros em outras cousas. Accommodemo-nos a viver juntos,
porque ninguem tem que se rir de seu proximo
. (P. Man. Bernardes).

Costuma fazer excepção o vocabulo tudo quando, assumindo
uma feição adjectival junto a um pronome estavel,
vem a constituir assim uma verdadeira apposição, o que
fica comprovado pela eliminação a que se presta sem estorvo
maior do pensamento.

Ex. tudo isto gozava Salomão em summa paz. (P.Ant.
Vieira). — (Isto gosava Salomão…).

tudo o que nasce na terra, o sol ou a chuva o cria. (P.
Ant. Vieira). — (O que nasce na terra…).

tudo quanto ha na capitania do Pará, tirando as terras,
não vale dez mil cruzados
. (P. Ant. Vieira). — (Quanto ha
na capitania do Pará
,…).

334. Emfim os mesmos infinitivos condescendem em
formar apposições.

Ex. Concluirei finalmente por dizer que, nem se devem
desprezar os aduladores, nem seguir cegamente o que elles
dizem. Eis-aqui o meio
termo : — ouvir os aduladores, mas
não se
mover por elles. (P. Ant. Vieira). — Pois ahi são
ouvir e mover meros annexos do substantivo termo.

E realmente affirmo que, de cousas que vi, nesta cidade
de Odiá sómente, pudera ainda contar muitas mais particularidades
do que contei de todo o reino ; mas deixo de o fazer
por não causar aos que isto lerem, a magoa que eu tenho
 :
vêr o muito que, por nossos peccados, nestas partes perdêmos,
e o muito que puderamos ganhar
. (Fernão Mondes Pinto). —
Ahi é o infinitivo ver apposição do magoa.

Porém é quasi oxclusivamente sob a forma gerundial
que o infinitivo consente em constituir apposições ; e estas,
263tanto se encontrão antepostas como pospostas á palavra
amparada.

Querendo david oppôr-se ao poder de Absalão, tratou
sobretudo de lhe metter um confidente no seu conselho, porque
entendeu que maior guerra fazia a Absalão com um homem
que lhe rompesse os segredos, que muitos mil homens que lhe
rompessem os seus exercitos
. (P. Ant. Vieira).

El rei antigono, vendo que seu filho se ensoberbecia, lhe
disse
 : « Não sabes, filho, que o nosso reino, e o reinar não é
outra cousa que um captiveiro honrado ?
 » (P. Ant. Vieira).

Carece, todavia, estar advertido de que não é essa a
unica funcção dos gerundios; pois, como opportunamente
virá expendido, tambem lhes cabe a de complementos indirectos.
O que por emquanto convem ter por estabelecido,
é que são apposições com uma referencia predominante a
um substantivo ou pronome, e complementos indirectos com
uma referencia predominante a um verbo, ao qual vão geralmente
pospostos. Ambas as hypotheses se verificão nos
tres seguintes exemplos :

Pelo que S. joão, conhecendo esta peçonha, nos admoesta
dizendo
 : « Irmãos, não amemos de palavras e de
mostras, senão com verdadeiro coração e obras
. » (D. Fr. Bartholomeu
dos Martyres).

Vendo o philosopho demetrio a um mancebo diligente e
industrioso, e inimigo do ocio
, disse-lhe approvando o seu espirito :
« Continuai, mancebo ; e, á noite de vossa velhice,
achareis a ceia bem feita, e a mesa posta
. » (P. Man. Bernardes).

A rosa, desatando doverde sua rubiconda pompa,
amanhece dizendo-me ; « Oh ! como nosso Deos é suave ! »
(P. Man. Bernardes).

Ainda é apposição o gerundio do seguinte exemplo,
por sua referencia a um pronome :

Ouvindo este recado, uma das cotovias foi pelos ares
avisar as outras que mudassem de sitio
. (P. Man. Bernardes).

Ha, porém, gerundios que não exercem, nem uma, nem
outra destas duas funcções, e são os que, consociados com
estar, ou um equivalente do mesmo auxiliar, formão, dentro
os verbos combinados, o chamado verbo gerundial. Nestes
é vedada qualquer ingerencia analytica tendente a considerá-los
separadamente do seu auxiliar, visto como, com
elle, apenas matizão delicadamente a idéa indivisivel do
facto donde procedem, mas não a desdobrão ; o que se
deixa aliás averiguar pela propriedade com que revertem
á sua forma elementar sem detrimento do sentido, embora
com notavel enfraquecimento de alcance ideologico.264

Ex. Entre todas as naturezas insensiveis, as flores parece
que, com mais expressos acenos
, estão forcejando [forcejão]
por remedar a formosura de seu Autor
. (P. Man. Bernardes).

« Pois, homem, ou animal (que te não quero chamar com
o nome proprio, por não parecer appellativo), se conheces a indecencia,
a desautoridade e a affronta do teu principe ; se

estás engulindo as lagrimas, e afogando os gemidos [se engoles
as lagrimas, e afogas os gemidos’], porque ao menos não
emmudeces e calas ? para que veja Nero na tua tristeza a tua
dôr, e leia no teu silencio o teu voto. Mas,
no mesmo tempo
em que
estás chorando [choras] o que condemnas, has de
louvar o que choras ! Sim ! que taes são os aduladores de palacio !
 »
(P. Ant. Vieira).

Vai o navio navegando, e o marinheiro dormindo [o
navio navega, e o marinheiro dorme] ; e o voador toca na vela
ou na corda, e cahe palpitando
. (P. Ant. Vieira).

Este ultimo exemplo apresenta, por uma feliz reunião
do elementos diversos, o ensejo do uma comparação summamente
azada para a dilucidação do caso vertente. Que
o verbo ir em vai navegando e (vai) dormindo é mero auxiliar
supplementar (V. § 85), demonstra-se pelo nenhum
estorvo que da sua substituição por estar recebe o sentido :
Está o navio navegando, e o marinheiro dormindo
Mas, que é, em cahe palpitando, o caso de todo diverso
torna-se igualmente intuitivo pela impossibilidade de substituir-se
ahi cahir por estar sem quebra essencial de sentido;
pois são dous os actos attribuidos ao voador : o do
cahir, e o de palpitar. Constitue, portanto, ahi palpitando
um termo em separado, e este termo é o de complemento
indirecto.

335. Tão pouco concludente em preceitos é esta resenha
geral das evoluções a que se prestão as palavras
conforme as funcções por ellas exercidas, que nenhum
apreço mereceria, se não chamasse a attenção para aquella
divisa onde pára e se esquiva o rigorismo grammatical,
para deixar o campo á arte, sequiosa de movimento e variedade.
Ora, podendo os mesmos processos de analyse que
servem a determinar as operações syntaxicas, ser aproveitadas
para a observação aos artificios do estylo nas obras
dos classicos, necessario era assentar em principios fixos o
que se entende por construcção normal (ou ordem directa), e
construcção anormal (ou ordem invertida), para que destas
duas expressões technicas, em que se resumem as leis de
collocação, se não fizesse uma interpretação arbitraria, e
portanto uma applicação mal segura.265

336. Agora, se se admittir, como proposição inconcussa
por sua evidencia, a allegação anteriormente emittida,
de que uma lingua é tanto mais apta a todos os commettimentos
litterarios quanto menos peada fica na disposição
de seus termos syntaxicos, um simples retrospecto synthetico
sobre os pontos successivamente discutidos deve gerar
a convicção, mórmente em quem estudou outros idiomas,
que é prodigiosa a elasticidade, a ductilidade da lingua
portugueza, e que talvez nenhuma dentre as linguas modernas
a ella se avantaja em fecundidade de recursos, independentemente
da riqueza do vocabulario ; nenhuma é
mais eminentemente litteraria.

Tão incontestavel superioridade solicita naturalmente a
reflexão sobre as causas mais ou menos provaveis que a
determinão ; e, destas causas a primeira que occorre, é a
precisão terminativa dos vocabulos portuguezes
. Com effeito,
uma lingua dotada, como a portugueza, da propriedade do
tornar salientes, não só na escripta, senão tambem na falla,
as relações reciprocas das palavras por desinencias francamente
accentuadas, pouca necessidade tem, para segurar a
associação natural das idéas, de se sujeitar ao rigor da
collocação normal, e de resistir systematicamente ao impulso
das paixões, que as desordenão na emissão : ella se
póde fiar, para a reconstituição mental das proposições
anômalas, das manifestações tão caracteristicas da concordancia,
valiosa resalva da lucidez da dicção. Não será
talvez pouco demonstrativa a tal respeito a citação das
duas seguintes magnificas hypothyposis do P. Ant. Vieira,
onde uma profusão de actos formando extenso panorama,
com tanta certeza e rapidez se deslisão por entre transposições
e ellipses, que o espirito nunca tropeça á procura
do pensamento, e chega ao fim dos trechos, maravilhado
de tão explendida visão, em que nem um ponto obscuro
faz mancha :

« A maior ostentação de grandeza e majestade que se
viu neste mundo, e uma das tres que S. Agostinho desejára
ver, foi a pompa e magnificencia dos triumphos romanos.
Entravão por uma das portas da cidade, naquelle
tempo vastissima, encaminhados longamente ao Capitolio ;
precedião os soldados vencedores com acclamações, representadas
ao natural as cidades vencidas, as montanhas
inaccessiveis escaladas, os rios caudalosos vadeados com
pontos, as fortalezas e armas dos inimigos, e as machinas
com que forão expugnadas ; em grande numero do carros,
os despojos o riquezas, e todo o raro o admiravel das
regiões novamente sujeitas ; depois do tudo isto, a multidão
dos captivos, e talvez os mesmos reis manietados ;
266e, por fim, em carroça de ouro e pedraria, tirada por
elephantes, tigres ou leões domados, o famoso triumphador,
ouvindo a espaços aquelle glorioso e temoroso
pregão : « Memento te esse mortalem ! Lembra-te que és
mortal ! » »

« Eu nunca fui ao Potossi, nem vi minas ; porém, nos
livros que descrevem o que nellas passa, não só causa
espanto, mas horror ler a fabrica e as machinas, os artificios,
a força, o trabalho e os perigos com que as montanhas
se cavão, as bêtas se seguem, e, perdidas, se
tornão a buscar ; os encontros de pedernaes impenetraveis,
ou de aguas subterraneas que rebentão das penhas,
as quaes, ou se hão de esgotar com bombas, ou abrir-lhes
novo caminho, furando por outra parte os mesmos montes ;
o estrondo dos maços, das cunhas, das alavancas, dos
outros instrumentos de ferro, algum dos quaes tem cento
e cincoenta libras de peso, com que se batem, cortão e
arrancão as pedras, ou se precipitão, com maior perigo,
do alto ; e tudo isto naquellas profundissimas concavidades
ou infernos, onde nunca entrou raio do sol, allumiados
malignamente aquelles infelizes cyclopes só com
a luz escassa e contrafeita de alguns fogos artificiaes,
cujo halito, fumo e vapor ardente lhes toma a respiração,
o muitas vezes os afoga. »

337. A segunda causa que não menos influe sobre a
indole essencialmente voluvel da construcção syntaxica
portugueza, encontra-se no verbo.

As attribuições do verbo são estrictamente duas : enunciar
o facto syntaxico, e fazer todas as operações de um
mero substantivo. A primeira destas funcções, preenche-a
elle nos quatro primeiros modos ; a segunda, no quinto.
Como facto, não póde ser substituido por outra qualquer
especie de palavras ; com a feição substantival, isto é, no
infinitivo, porta-se em tudo como um substantivo, mas sem
se confundir com elle ; pois repugna formalmente a constituir
termos compostos com substantivos ou pronomes, a
não ser em casos tão raros, tão excepcionaes, que mais
confirmão do que abalão a regra.

Ora, para prover a estes dous unicos misteres, a lingua
portugueza, não só fornece a seus verbos muito maior
somma de formas do que a mór parte das outras linguas,
senão dá-lhes tambem inflexões tão appropriadas para cada
significado particular, que quasi sempre podem dispensar a
concomitancia importuna dos pronomes pessoaes como sujeitos,
o que, além de poupar repetições um tanto fastidiosas,
não pouco contribue a accelerar o movimento
267phraseologico. Assim é que consta, do mais succinto inventario
das modificações do verbo, que tem oito tempos
no indicativo, quatro no condicional, um no imperativo,
oito no subjunctivo, e seis no infinitivo. Quando activo,
póde formar, em combinação com ser ou estar, não só
uma, como duas series de verbos passivos. Porém, quer
seja activo ou noutro, quer seja pronominal ou impessoal,
pode formar duas categorias de verbos prepositivos (ter
ou haver de… — estar para…), sem que lhe seja vedado
o entrar nas mesmas combinações como passivo (ter ou
haver de
ser ou estar… — estar para ser…), a não ser,
todavia, no caso de colligação tautologica estar para
estar…
, a qual é inadmissivel. Nas mesmas condições,
emfim, forma ella a terceira classe dos combinados, isto é,
o verbo gerundial, que o francez possuia tambem em tempos
ainda não mui remotos, mas deixou cahir em desuso
por falta do assenso sobre se devia o seu gerundio ser variavel
ou invariavel.

Soyons bien buvants, bien mangeants ;
Nous devons à la mort, de trois, l’un en dix uns.
Lafontaine (Le charlatan).

Estejamos bebendo bem, comendo bem ; devemos á morte,
de tres que somos, um em dez annos
.

De uma tal exposição, facil é avaliar para quanto concorre
o verbo como elemento de variedade na oração,
tanto mais que, nos tempos compostos, os vocabulos componentes
não têm geralmente restricta obrigação de andar
immediatamente associados, e portanto podem remexer os
termos sem transtornar ou sombrear o pensamento.

338. A terceira causa de transposição dos termos é
de ordem muito diversa da das duas procedentes ; pois, nos
casos expendidos, era geralmente mais ou menos facultativo
usar da collocação normal, ou da collocação anormal ;
neste ultimo caso, a transposição é motivada por um elemento
que a torna obrigatoria, e este elemento é a ligação
subordinativa
. Ora, formando as locuções subordinativas
um termo commum a todas as linguas, claro é que a these
de collocação por ellas suscitada é antes questão de Grammatica
geral, do que thema especial desta ou daquella
lingua ; entretanto, como não parece ter sido aventada em
obra alguma didactica, apezar da muita luz que diffunde
sobre o mecanismo da linguagem, não é possivel abstrahir
do uma exposição previa da natureza deste termo.

339. São ligações subordinativas, não só as conjuncções
268que e se, senão tambem todos os adjectivos, pronomes,
adverbios o conjuncções em que apparecem ostensivel ou
disfarçadamente os mesmos vocabulos.

340. A conjuncção se só se mostra combinada na conjuncção
senão, e portanto não dá, por emquanto, azo a
considerações de alguma importancia.

341. Porém que apparece ostensivel ou disfarçadamente :

1.° No adjectivo possessivo cujo, a, os, as ;

2.° Nos adjectivos indefinitos que, — qual, quaes, —
qualquer, quaesquer, — quanto, a, os, as.

3.° Nos tres pronomes relativos que, — quem, — o
qual, a qual, os quaes, as quaes
 ;

4.° Nos pronomes indefinitos que, — quem, — qual, —
quaes ; — qualquer, quaesquer, — quanto, a, os, as ;

5.° Nos adverbios ou locuções adverbiaes que, — como,
porque, — quando, — quanto, — quão, — onde, aonde,
donde, para onde, por onde, até onde
.

6.° Nas conjuncções que, — como, — conforme, — embora,
emquanto, — porquanto, — porque, — quando, —
quão, — segundo, — e em numerosas locuções conjunctivas,
acabando por uma ou outra destas mesmas conjuncções.

342. A theoria que dahi extrahe o methodo analytico,
é tão curiosa como fecunda em resultados praticos, mórmente
na sua applicação á analyse logica. Pois della
consta que :

1.° De todos os mencionados vocabulos relativos a
que, um só : a mesma conjuncção que, effectua syntaxicamente
um unico termo, o de ligação. Todos os mais, sem
excepção, gozão da notavel propriedade de envolverem,
além disso, ás vezes uma, outras vezes até duas funcções
syntaxicas, quaes as de sujeito, de complemento directo ou
indirecto, de predicado ou de apposição. Sirva de demonstração
perfunctoria o seguinte exemplo :

A quem não tem bens, ninguem lhe quer mal. (P. Ant.
Vieira).

Pois, logicamente coordenada, o analyticamente traduzida,
a mesma oração dá em resultado as duas proposições
que se seguem :

Ninguem quer mal ao homem — que não tem bens.

O que dahi sahe com frisante evidencia; é que o pronome
indefinito quem, decomposto em seus naturaes elementos,
269não só representa conjunctamente um complemento
indirecto
do facto quer (mal) em ao homem, e o sujeito de
tem em que, mas ainda serve, em cima de tudo isto, pela
mesma palavra que, de nexo a estas duas proposições. Em
summa, cumula as tres funcções de ligação, de complemento
indirecto, e de sujeito.

2.° Todos os mesmos vocabulos empenhão-se com esforço
irresistivel por occupar o primeiro lugar da proposição
a que pertencem como ligações, sejão aliás quaes fôrem as
suas funcções subsidiarias.

Ex. Já então não havia no mundo quem quizesse ser valente
de graça
. (P. Ant. Vieira). — (Já então não havia no mundo
homem — que quizesse ser valente de graça).

3.° Emfim (e ahi é que se verifica a allegação que
motivou as precedentes explicações), por força da lei de
collocação que chama constantemente os mesmos vocabulos
para o principio da proposição a que pertencem, elles attrahem
junto a si tão tyrannicamente qualquer outro termo
com elles relacionado, que conseguem muitas vezes transtornar
a integridade das proposições, sem todavia prejudicarem
de modo algum a lucidez do pensamento.

Ex. Sobretudo lembre-se o capitão e o soldado famoso

de quantos companheiros perdeu. (P. Ant. Vieira). — (Sobretudo
lembre-se o capitão e o soldado famoso de
tantos (tão
muitos
) companheiros — que perdeu).

4.° Releva ainda notar que, em todas as orações directamente
interrogativas ou exclamativas, as quaes são
praticamente reconheciveis pelos pontos competentes ( ?!),
as mesmas ligações presuppõem uma proposição elidida, junto
á qual formão nexo, e é, no primeiro caso : Eu pergunto….
no segundo : admira-me…, ou outras de semelhante theor,

Ex. que homem ha que não busque o descanso ? (P.
Ant. Vieira). — (Pergunto pelo homem — que ha que não
busque o descanso)
.

Quantos principes dão a alma e tantas almas ao demonio
por uma cidade, por uma fortaleza !
(P. Ant. Vieira). —
(Admira-me de tantos principes — que dão a alma e tantas
almas ao demonio por uma cidade, por uma fortaleza)
.

343. Firmão-se os diversos pontos desta theoria pelo
exame dos seguintes exemplos, que, adduzindo successivamente
as referidas ligações subordinativas, as apresentão
com variadas demonstrações de seu influxo relativamente á
transposição dos termos.270

1. Adjectivo possessivo
cujo

Viu D. João do Castro á porta de um alfaiate um gibão
riquissimo. Pediu que lh’o mostrassem ; perguntou
cujo era.
(P. Man. Bernardes).

Ahi é claramente o adjectivo cujo predicado do sujeito
occulto elle, isto é, o gibão (… perguntoucujo era elle,
ou, por outra forma : perguntou pelo homem — de quem
era elle).

Diogenes, philosopho, dizia que os que gastão sua fazenda
em banquetes e festins e lisonjeiros e más mulheres, são como
algumas arvores que nascem pelos penhascos e precipicios inaccessiveis, —
de
cujos fructos comem só os corvos, abutres e
outras aves de rapina
. (P. Man. Bernardes).

Ahi é cujos apposição do complemento fructos, ao
qual foi buscar, por amor da concordancia, no fim da
oração, para trazê-lo junto a si (… são como algumas arvores
que nascem pelos penhascos e precipicios inaccessiveis

das quaes (arvores) só os corvos, abutres e outras aves de
rapina comem
os fructos).

2. Adjectivos indefinitos
que. — qual. — qualquer. — quanto

Vêdeque segurança póde ter o merecimento em tal
juizo
. (P. Ant. Vieira).

A natureza adjectival de que, e portanto a sua funcção
de apposição junto a segurança, fica ahi demonstrada pela
idoneidade das substituições qual segurança — quanta segurança,
— que avocão adjectivos da mesma classe, com todos
os signaes de identidade de funcção. Quanto á transposição
que dahi provem, torna-se ella patente pela coordenação
normal dos termos : Vêde a segurança — que póde
ter o merecimento em tal juizo
.

Nos tirantes da carroça pegavão doze figuras em forma
de nymphas, symbolo das doze horas do dia que o sol descreve
quando toca no equinoccio ; — das
quaes figuras, umas erão
de maior estatura, outras de mediana, outras mais pequenas
.
(P. Man. Bernardes).

O caracter adjectival de quaes é ahi determinado pela
271concordancia do mesmo vocabulo com figuras, de que se
torna assim apposição, provocando, como ligação, a transposição
umas das quaes figuras.

O cameleão se reveste e pinta de todas as côres, — quaesquer
que sejão as do objecto visinho. (P. Ant. Vieira).

E’ tão sensível em qualquer a intervenção de um
tempo do verbo querer, que não pode haver coarctada em
considerar este vocabulo como formando, por contracção,
uma proposição de per si só. O cameleão se reveste e pinta
de todas as côres que são
quaes se queirão — as do objecto
visinho
.

Quem poderá declararquanta seja a formosura dos
campos ?
(Pr. Luiz de Granada).

Ahi o predicado quanta apenas removeu para depois
do verbo ao sujeito formosura.

3. Pronomes relativos
que. — quem. — o qual

Os ladrõesque mais propria e dignamente merecem
este titulo, são aquelles
a quem os reis encommendão os
exercitos e legiões, ou o governo das provincias, ou a administração
das cidades
, — os quaes, já com manha, já com
força, roubão e despojão os povos
. (P. Ant. Vieira).

Nesta reunião fortuita dos tres relativos em uma mesma
oração dá-se um exemplo instructivo da attracção exercida
polas ligações. O caracter essencial dos pronomes relativos,
como bem o declara o seu appellativo, consiste em
uma referencia francamente determinada a um substantivo
ou pronome logicamente anterior, chamado antecedente, o
que não é já o caso dos indefinitos, que, encerrando em si
mesmos o seu antecedente, a nenhuma palavra anterior se
referem.

Obvio é, logo, que, quanto mais chegados aos seus antecedentes,
mais efficazmente tambem concorrem os relativos
a dilucidar o pensamento, os dous primeiros sobretudo
(que e quem), porque faltos dos caracteristicos de genero
e numero ficão assim inhibidos de assignalar a sua concordancia.
Pois esta condição se acha resguardada no caso
vertente por uma transposição que se pudera chamar engenhosa,
se os grandes escriptores não fossem guiados por
um tino delicado que os exime de mesquinhos resquícios.

A proposição principal da referida oração é : aquelles
272são os ladrões… E’ principal, porque dellas ficão dependentes
todas as mais. Ora, nesta mesma proposição, só apparecem
dous vocabulos proprios para constituir antecedentes : o
pronome demonstrativo aquelles, e o substantivo ladrões.
Pois observe-se agora que, para que cada um dos dous primeiros
relativos tivesse junto a si um antecedente idoneo,
a proposição principal sahiu partida : Os ladrões (que) são
aquelles
(a quem)… — Deste mesmo estudo ressumbra a
conveniencia da apparição de os quaes em terceiro lugar,
visto como a sua substituição por que, em tal distancia do
antecedente, e na visinhança dos substantivos administração
das cidades
, prestar-se-hia intuitivamente a uma equivocação.

Entrou uma vez Alexandre Magno na officina de Apelles
por honrar com sua presença a um sujeito tão insigne na sua
arte, e começou a fallar demasiadamente ácerca da pintura.
Apelles, com brandura cortez, mas picante, lhe disse
 : « Senhor,
veja que se ri o
moço — que móe as tintas. » (P. Man. Bernardes).
— (… Veja que o moço se rique móe as tintas).

Bom fôra que morárão nos palacios dos reis, e tiverão
nelles grande lugar
os — que se têm mãos! (P. Ant. Vieira).
— (Born fôra que os morárão. e tiverão…. que só têm
mãos)
.

4. Pronomes indefinitos
qual. — quanto. — que. — quem.

Já seiquaes serão os primeirosde quantos se apresentão
nesta lide da intelligencia
. — (Já sei dos taes — que
serão os primeiros de tantos — que se apresentão nesta lide
da intelligencia)
.

Dir-me-heis que não hacom que despachar, ecom
que
premiar a tantos. Por essa escusa esperava. Primeiramente,
elles dizem que ha — para quem quereis, e não
ha
para quem não quereis. (P. Ant. Vieira). — (Dir-me-heis
que não ha
cousa — com que [se possa] ] despachar, e
gue não ha
cousa — . com que [se possa] premiar a tantos.
Por essa escusa esperava. Primeiramente, elles dizem que ha

para aquelle — que quereis [premiar], e não ha para
aquelle — que
não quereis [premiar]).

Assim como, — quem dá logo, — dá duas vezes, assim
parece — que dá duas vezes
. — quem despacha bem e logo. (P.
Man. Bernardes). — (Assim como dá duas vezes aquelle
que dá logo, parece que despacha duas vezes aquelle — que
despacha bem e logo).273

5. Adverbios
que. — como. — porque. — quando. — quanto.
Quão. — onde e congeneres.

Que liberal estava o espirito do Creador quando coroou
os prados de tanta abundancia de fructos!
(P. Man. Bernardes).

Ahi é que adverbio, porque, convertivel em quão (Quão
liberal estava…) modifica o alcance de significação do adjectivo
liberal. Como ligação, presuppõe a proposição principal
Admira-me. — Admira-mede que tão liberal estivesse
o espirito do Creador

O’ reis, ó monarchas do mundo !que, por esta causa,
e só por esta, é
digna de compaixão a vossa suprema fortuna !
(P. Ant. Vieira). — (… quão digna de compaixão é
a vossa suprema fortuna !)
.

Como se faz o homem bom ? Sujeitando-se a Deos. (P.
M. Bernardes). — (Pergunto pelo modo — por que (pelo
qual) se faz o homem bom
…).

Vivo estava Job quando dizia : « porque me perseguis
tão deshumanamente vós que me estais comendo vivo, e fartando-vos
da minha carne ?
 » (P. Ant. Vieira).

Sendo ahi porque adverbio, por ser convertivel em
complemento indirecto (Por que motivo), apenas carece inteirar
a oração para vê-lo apparecer como ligação… « Pergunto
pelo motivo — por que me perseguis… »

Quando fazem os ministros o que fazem ? e, — quando
fazem o que devem de fazer ? (P. Ant. Vieira).

Adverbio por ser igualmente convertivel no complemento
indirecto : Em que tempo… ? quando fica ahi ligação
pelo mesmo restabelecimento da proposição interrogativa :
Pergunto pelo tempo — em que fazem

Quanto cresceu o dominio dos que tudo mandão, com o
invento da polvora !
(P. Ant. Vieira). — (em que proporção
cresceu!) Admira-me da proporção — em que cresceu… !

Quão magnificas e bem coordenadas são, Senhor, as
vossas obras !
(P. Man. Bernardes). — Admira-me, Senhor,
da proporção — em que são magnificas e bem coordenadas as
vossas obras
.

A razão por que não achamos o descanso, é porque o buscamos
onde não está. « Não vos digo (diz Agostinho) que
O não busqueis : buscai-o
 ; só vos digo que não está ahi
274onde o buscais. Pois, se é bem que busquemos o descanso, e elle
não está
onde o buscamos, — onde o havemos de buscar ?
onde Christo disse que o buscassemos, porque só ahi está, e
só ahi o acharemos
. (P. Ant. Vieira).

Em todas as hypotheses é onde, com os congeneres,
um adverbio, porque em todas se deixa resolver em complemento
indirecto ; e é igualmente sempre ligação subordinativa,
porque nenhum dos seus desmanchos analyticos
deixa que adduzir que. A razão por que não achamos o descanso,
é porque o buscamos
no lugar — em que não está.
Não vos digo (diz Agostinho) que o não busqueis : buscai-o;
 ;
só vos digo que não está [ [ahi] no lugar — em que o buscais.
Pois, se é bem que busquemos o descanso, e elle não está
no
lugar — em que
o buscamos, [pergunto eu pelo lugar] —
em que o havemos de buscar. [Havemo-lo de buscar no lugar]
em que Christo disse que o buscassemos

6. Conjuncções subordinativas
que. — como. — conforme. — embora. — emquanto. —
porquanto. — porque. — quando. — quão. — segundo.
— se. — senão.

O’ homem lembra-teque es mortal.

E’ caracteristico da conjuncção que ficar ella inhibida
do exercer outra funcção senão a de ligação. Pois, se em
muitos casos póde, como no exemplo citado, resolver-se em
isto, isso, aquillo, como muitos grammaticos o fazem notar,
já não lhe sobra então com que ir prender a proposição
posterior para annexá-la á anterior, e assim deixa de ser
ligação. Ohomem, lembra-te Disso : es mortal. Porém, mais
geralmente, nega-se ella a esta mesma inversão, e, por isso,
mais convem conservar-lhe a sua attribuição natural e ostensivel
de mera ligação.

Ex. Não ter inimigos tem-se por felicidade ; mas é uma
tal felicidade
, — que é melhor a desgraça de os terque a
ventura de os não ter. Póde haver maior desgraça
que não
ter um homem bem algum digno de inveja ?
Por isso dizia
Themistocles
 : « Signal é o ver-me amado de todosque não
tenho feito acção tão generosa e honrada
, — que me grangeasse
inimigos
. » (P. Ant. Vieira).

A principal perturbação que a mesma ligação produz
quando intervem entre membros de uma comparação, consiste
em tornar mais ou menos elliptica a proposição posterior.275

Ex. Se o ter inimigos é tentação, antes é tentação de
vaidade
que de vingança. (P. Ant. Vieira). — (… antes é
tentação de vaidade
que [e tentação] de vingança).

Póde-se verificar a mesma observação nas partes do
anterior exemplo que formão comparações (… é melhor a
desgraça de os ter
, — que [boa e] a ventura de os não ter.
— .
Póde haver maior desgraçaque [o é] não ter um homem
bem algum digno de inveja ?)
.

Este processo de restauração da proposição pela eliminação
da ellipse torna-se necessario em analyse syntaxica
para ser possivel atinar com a funcção das palavras que
constituem tal trecho ; e é de summa importancia nos exercicios
do versões, quer se trate de linguas antigas, quer de
modernas, em que ha declinações para a designação das
funcções syntaxicas. Pois assim se vê, por exemplo, que
ventura é o sujeito do primeiro É elidido, e o infinitivo
[não] ter, o do segundo.

Não sendo já que, o sim como ou quão as ligações que
se interpõem entre os dous membros do uma comparação
de igualdade, cumpre attender a esta circumstancia para,
em tal caso, proceder igualmente ao restabelecimento dos
termos elididos.

Ex. Tudo o que se sabe, por vista ou por memoria dos
periodos e catastrophes dos reinos, e dos fins malafortunados
dos reis, e causas delles, ás menos vezes se deve attribuir aos
inimigos de fòra, que são só os que se temem
senão a quem ?

Aos lisongeiros e aduladores de dentro ; aos que têm as entradas
francas, e as chaves
tão douradas como as linguas. (P.
Ant. Vieira). — (… aos que têm as chaves tão douradas
como [douradas têm] as linguas).

Vê-se, por isso, que linguas é complemento directo do
verbo elidido têm.

O mesmo Creador louvou a açucena, dizendo que nem Salomão,
em toda a sua gloria, vestira
tão ricamente — como
uma destas flores. (Fr. Luiz de Granada). — (… dizendo que
nem Salomão vestira
tão ricamente — como [ricamente
veste
] uma destas flores).

O pronome indefinito uma vem assim a ser o sujeito
do elidido veste.

Aliás a mesma conjuncção que tira da sua preeminencia
sobre as mais ligações de mesma especie a faculdade
de as de vez em quando substituir com muita
propriedade, como se póde averiguar do cotejo dos dous
seguintes exemplos, sensivelmente parecidos de construcção.276

A multidão que andava desenterrando a prata, fica sepultada
com ella em um momento, sem outra noticia de tamanho
e tão miseravel estrago
que (senão) a que deu aos de
muito longe o estrondo da ruina, e o tremor de toda a terra
.
(P. Ant. Vieira).

As causas naturaes destes effeitos tão lamentaveis não são
ordinariamente outras
senão (que) as mesmas que precederão
o reinado de Salomão
. (P. Ant. Vieira).

Que utilidades se têm seguido á Hespanha do seu famoso
Potossi, e das outras minas desta mesma America ? A mesma
Hespanha confessa e chora que não lhe têm servido mais

que — (senão) de a despovoar e empobrecer. (P. Ant. Vieira).

Arrenegue, pois, todo o navegante do jogo, se não se quer
perder
 ; — que (visto que) até a náo que joga, não é segura.
(P. Ant. Vieira).

Para as mais ligações desta ultima classe prestão-se a
uma demonstração azada da these vertente os exemplos
que a ellas se conferem nas Observações sobre as conjuncções
e locuções subordinativas, § 273 e seg.

Capitulo II
Das figuras de syntaxe

344. Uma proposição é plena quando, para se dar
conta dos seus termos, nada ha que supprir, nada que subtrahir,
nada que commentar, nada que transferir, nada que
substituir.

Sendo, porém, necessario soccorrer-se a uma ou outra
desta cinco operações, a proposição diz-se figurada, por se
chamarem figuras os diversos desvios que se produzem
na enunciação dos pensamentos. e chamão-se figuras porque,
pela mesma perturbação da linguagem, mais fielmente
traduzem as paixões sob cujo influxo falla o homem com
açodamento ou insistencia, com preoccupação ou sem nexo
apparente.

345. As figuras do syntaxe são cinco : a ellipse, o
pleonasmo, a syllepse, a inversão e a exclamação
.277

1. Da ellipse

346. A ellipse consiste em subentender-se um ou mais
termos do uma proposição, ou até uma proposição inteira,
como é o caso nas orações directamente interrogativas ou
exclamativas.

Ambas as hypotheses se verificão no seguinte exemplo,
já repetidas vezes adduzido : Ha mais — para onde subir ?
Isto ó : Ha mais [lugar] — para onde [se possa] subir ?
Isto é : [pergunto eu — se] ha mais lugar — para onde se
pode
subir ?

N. B. Não se tenha em conta de descuido ou ignorancia
o apparecer o verbo poder em differentes modos
conforme a glosa ; pois, como mais adiante explicar-se-ha,
o subjunctivo é ahi provocado pela interrogação directa, e
o indicativo, pela indirecta.

347. As ellipses são legitimas quando, supprimindo
termos ou proposições de facil recordação, conferem, sem
equivoco nem obscuridade, alacridade ou vehemencia á
dicção.

Ex. As magnetes attrahem o ferro, e os magnates, o ouro.
(P. Ant. Vieira). — (… e os magnates [ [attrahem] ] o ouro.

Da ociosidade nasce a imaginação ; da imaginação, a suspeita ;
e da suspeita, a mentira
. (P. Ant. Vieira). — (… da
imaginação
[nasce ] a suspeita ; e da suspeita [nasce] a mentira).

O temor não é de homens fortes, nem o agouro, de homens
sabios
. (P. Ant. Vieira). — (… nem o agouro [e] de homens
sabios)
.

Se lhes perguntarmos, aos christãos, para onde vão, dizem
que para o céo
. (P. Ant. Vieira). — (… dizem que [ [vão] ] para
o
céo).

Até o pobre e atrevido ladrão, se lhe perguntão ao pé da
forca quem o trouxe a tão miseravel estado, responde, com o
laço na garganta, que a necessidade
. (P. Ant. Vieira). —
(… responde, com o laço na garganta, que [ [quem o trouxe,
foi]
] a necessidade).

Pudera-se fazer problema, onde ha mais pescadores, e mais
modos e traças de pescar : se no mar, ou na terra e é certo
que na terra
. (P. Ant. Vieira). — (… e [onde ha] ] mais modos
e traças ...
se [os ha mais] ] na terra, ou [se os ha mais] ] no
mar. E é certo que [é
[] ] na terra).

Que cousa é a nossa alma ? Faisca do lume increado. (P.
278Man. Bernardes). — (… [Nossa alma é] ] faisca do lume increado).

Ora vem cá, alma minha ! Que é o que vês ? Mares, rios,
arvores, montes, valles, campinas, desertos, povoados, e...
tudo
passando
. (P. Man. Bernardes). — (… [Pergunto pelo] ] que é
o que vês
. [Tu vês] ] mares, rios, arvores... e [ [tu vês] tudo passando).

348. As ellipses são illegitimas quando, por não occorrerem
sem hesitação nem dubiedade os termos elididos,
a dicção se torna confusa ou ambigua.

Destes defeitos, além de outros, dá boa cópia o seguinte
excerpto :

Diogo Alvares segura o maioral do inimigo, que estava
na frente do seu exercito, faz-lhe pontaria aos peitos, dispara
a arma, e dá com elle em terra
, cahindo repentinamente, sem
menear parte alguma do corpo, que era bastantemente avultado.
Do qual
damno e estrondo, e de outros que trazia
carregados
, e foi disparando com o mesmo effeito, confusos
e atemorisados todos os do exercito inimigo
, não só se puzerão
em fugida
, ate o lugar desamparárão, e outros mais dos visinhos
aonde chegou a noticia do homem do fogo, nome que
lhe deu o mesmo gentio
pelo que vião sahir do seu arcabuz
desde a primeira vez que
ã vista delles o disparou, e se
foi estendendo
por todos os mais, ficando Diogo Alvares
em tanta reputação com
estes da Bahia, e com o seu maioral
ou principe, que
determinárão de o não matar, pela grande
utilidade que
com elle se lhes seguia para as suas guerras.
(Fr. Ant. de S. Maria Jaboatão).

Escusado é deter-se na respigadura dos vícios de dicção
que pejão este trecho : baste saber que, das quatro primeiras
figuras do syntaxe, não ha nenhuma que se não
ache ahi representada pelo lado da illegitimidade, e que,
mesmo assim, não ficaria exhausta a lista dos defeitos do
que está inquinado. Ha um notavelmente que, embora
seja mais do dominio litterario do que do grammatical,
póde todavia sem inconveniente, ser aqui mencionado, visto
não raras vezes occorrer tambem em escriptores hodiernos,
aliás bem dotados. Consiste elle em que a oração, começando
por actos restrictos a um tempo e a um lugar determinado,
como os que ahi, na segunda oração, provocárão a
fugida dos selvagens, venha a continuar sem detença com
a relação do actos que só muito mais tarde se derão, e
até em epocas e lugares diversos, como são, no caso vertente,
o espanto o a fugida das tribus circumvisinhas, a
origem do cognome por que veiu a ser designado Diogo279

Alvares, a reputação e autoridade que conseguiu grangear
por novos commettimentos, etc. Pois o espirito de quem
lê, relucta instinctivamento em associar num mesmo relance
intuitivo actos dissociados pelo espaço e pelo tempo.

Entre as ellipses pouco imitaveis comprehende-se a
anacolutha que consiste em um quebrantamento tão brusco
das partes da oração, que desconcerta o espirito, e o deixa
perplexo sobre qual seja o termo ou os termos elididos.

Ex. Fallando el rei Antigono com o principe seu filho
sobre a administração e governo do reino de que o havia de
deixar por herdeiro
, admirado o generoso moço de tamanhas
obrigações e encargos, refere eliano
que lhe disse o pai :
« Ainda não sabias, filho meu, que o nosso reinar não é outra
cousa senão uma servidão honrada
. » (P. Ant. Vieira).

Não se atina ahi com o verbo ao qual o substantivo
moço tem de reger como sujeito, pois é esta a unica funcção
que lhe parece caber. Além disso esquivão-se as primeiras
partes da oração por tangentes que, despertando a attenção,
ecaminhão-na, já para um lado, já para outro, sem lhe
dar uma sahida que satisfaça.

Todavia a anacolutha torna-se um recurso litterario
legitimo logo que reproduz com naturalidade as hesitações
de um espirito perturbado, ou os desvarios de uma paixão
desenfreada.

2. Do pleonasmo

349. O pleonasmo consiste em reproduzir na mesma
proposição ou oração uma idéa ou pensamento já aventado.

Ex. Tudo isto que vemos com nossos olhos, é aquelle
espirito sublime, ardente, grande, immenso : a alma
. (P. Ant.
Vieira).

350. Os pleonasmos são legitimos quando previnem
equivocos, ou imprimem energia a dicção.

Ex. Os que menos satisfeitos estiverem de Sua Majestade,
esses chegue Vossa Alteza mais a si. (P. Ant. Vieira).

Os bens deste mundo, como são corruptiveis, ainda que
não haja quem os furte
, elles mesmos se nos roubão. (P.
Ant. Vieira).

Por isso nos encommendou tanto o Senhor amor e paz no
Evangelho, dizendo
 : « Minha paz vos dou, minha paz vos
deixo. Amai-
vos uns aos outros ; porque nisto quero que
280vos conheção em todo o mundo por meus discipulos, se vos
amardes uns aos outros. » (D. Fr. Bartholomeu dos Martyres).

A omissão da expressão pleonastica uns aos outros poderia
por ventura inverter o pensamento suscitando em
Amai-vos o sentido reflexivo, em vez do reciproco. Por
isso diz mais adiante o mesmo santo bispo, com igual
acerto de pleonasmo : Amemos o proximo espiritual e santamente,
assim como
nós havemos de amar a nós, e não carnalmente;
 ;
isto é, que amemos o proximo por amor de Deos,
cuja feitura é, desejando-lhe a graça de Deos, e os outros bens
da alma
.

Do meio das turbas sahiu um homem a pedir ao Senhor
quizesse, com o seu respeito, fazer com que um irmão seu repartisse
com elle dos bens que herdara. Escusou-se o Senhor,
dizendo-lhe
 : « O’ homem, quem me constituiu, a mim, juiz e
repartidor sobre a vossa herança ?
 » (P. J. B. do Castro).

Accende e provoca esta batalha a trombeta da fama,
dizendo e bradando que é honra ; põe-se da parte do odio e
da
vingança o mundo todo, que assim o manda, que assim
o julga, que assim o applaude, que assim o tem estabelecido
por lei
. (P. Ant. Vieira).

Concluamos com dizer que, se taes minas se descobrissem,
encher-se-hia, é verdade, a terra de ouro e prata ; mas esse
ouro e prata, posto que naturalmente
desce para baixo,
havia de subir para cima : não havia de chegar aos pequenos
e pobres, mas todo se havia de abarcar e consumir nas mãos
dos grandes e poderosos
. (P. Ant. Vieira).

351. Os pleonasmos são illegitimos logo que, formulando
uma reproducção de idéas ou pensamentos tão desnecessaria
quão insulsa, redundão em mera necedade. Desta
especie são as locuções mais melhor, menos peior, mui optimo,
muito pessimo, mais acerrimo ; uma
soberba vaidosa, etc. ; e,
no exemplo citado sob o § 348, a declaração de que « Todos
os do exercito inimigo
, não só se puzerão em fugida, até o
lugar desamparárão
. » e tambem est´outro, que o P.
Man. Bernardes attribue a Alberto de Carpe, embaixador
do imperador Maximiliano : « todo o povo universal de
Roma concorreu por ver esta novidade
. »

352. a perissologia, ou tambem tautologia, é uma forma
especial de pleonasmo que consiste no emprego, dentro da
mesma proposição, ou dentro de proposições intimamente
correlacionadas, de palavras de mesma origem e significação
etymologica, como : apoderar-se do poder. Convem
281goralmonte fugir a taes redundancias, soccorrendo-se a synonymos,
que poderião ser, por exemplo, no caso vertente :
Apoderar-se da autoridade, ou senhorear-se do poder. Se,
todavia, a substituição por synonymos é impossivel, a tautologia
fica justificada pela lei suprema da necessidade.

Ex. A Bahia se entende da ponta do Padrão ao morro
do Tinhare, que demora um ao outro nove ou dez leguas,
ainda que
o capitão da capitania dos Ilheos não quer consentir
que se entenda senão da ponta da ilha de Taparica á
do Padrão
. (Gabriel Soares de Souza).

São, todavia, não só aceitaveis, como dignas de imitação,
mas de uma imitação circumspecta, as tautologias
que, paraphraseando sem trivialidade loquelas populares e ingenuas
tornão a dicção mais incisiva, pelas repetições acintosas.
Ninguem usou com maior tino e pericia do tão
delicado artificio do estylo como o P. Ant. Vieira.

Ex. As palavras brandas do adulador são redes que elle
arma para tomar nellas ao mesmo adulado. e este é o
artificio
sem arte dos aduladores reaes. (P. Ant. Vieira).

Estas são as contas que se fazem sem se fazer conta
da que se ha de dar a Deos quando a pedir do preço do seu
sangue
. (P. Ant. Vieira).

Se alguem pensa que, sendo assolado o reino, pode a sua
casa ficar em pé
, engana-se muito enganado. (P. Ant.
Vieira).

O official de penna, a cujos rasgos mede o regimento as
regras, e
conta as letras, se quer gastar sem conta e sem
medida, que ha de fazer ? Troca as suas pennas com as dos
gaviões, e não ha ave de rapina que tanto leve nas unhas
.
(P. Ant. Vieira).

O mercante que tomou os assentos ou contratos reaes do
publico, e se
contratou de secreto com os zeladores da fazenda
do mesmo rei, de que modo se ha de
soldar quando se vê
quebrado, senão com o soldo e fardas dos miseraveis soldados,
tornando a comprar os já comprados ministros, para
que lhe subão os preços, e ajustem as
quebras ? (P. Ant.
Vieira).

Arrenegue, pois, todo o navegante do jogo, se não se quer
perder ; que até a náo que
joga,’ não é segura. (P. Ant.
Vieira).

O infante D. Henrique não possibilitou sómente, mas
facilitou aquelle natural
impossivel. (P. Ant. Vieira).

E, se a natureza, onde é incapaz de razão, não é capaz
282de soffrer semrazões, que o homem, creatura racional a mais
nobre, a mais viva e a mais sensitiva de todas, com a balança
da mesma
razão no juizo, não haja de pesar aggravos, antes,
contra a força e violencia do mesmo
peso, haja de pagar odios
com amor !
 ?… Não é homem quem aqui não pasma, ou não
diga olhando para si
 : « Não posso ! »

Vendo as arvores que as tres a que tinhão offerecido o
governo, o não quizerão aceitar, diz o texto que se forão ter
com o espinheiro, e lhe fizerão a mesma offerta. e, que respondeu
o espinheiro ? E’ resposta muito digna de ponderação.
A proposta das arvores foi a mesma
 : « Vinde, e governai-nos. »
E elle respondeu, não só como espinheiro, senão como
espinhado : « Se verdadeiramente me dais o imperio, vinde
todas deitar-vos a meus pés, e pôr-vos á minha sombra. e, se
houver alguma que repugne, sahirá tal fogo do espinheiro, que
abraze os mais altos cedros do Libano
. » (P. Ant. Vieira).

Com que igual desigualdade visita o sol a terra, e assigna
os tempos, dobrando juntamente os dias com um movimento
de levante a poente, e os annos com outro de sul a
norte !
(P. Man. Bernardes).

Não são, porém, imitaveis as seguintes tautologias, que
é justo considerar, aliás, como meros descuidos de redacção.

Mui festejada foi em toda a côrte a alegre nova do
novo descobrimento desta grande parte do Mundo Novo. (Balthazar
Telles).

E me affirmou pessoa que o podia saber, que o escrivão
desta judicatura trazia
provisão de Sua Majestade para ser
provido de secretario de Estado no officio de meu irmão. (P.
Ant. Vieira).

Os aduladores reaes servem lisonjeiramente aos principes
para os ganhar, ou lhes ganhar a graça, e para se
servirem
da mesma graça, para os fins que só pretendem de seus proprios
interesses
. (P. Ant. Vieira).

E, quando, finalmente, chegar seu fim, a falta ou rotura
desta união será o ultimo paroxismo de que ha de morrer
o mundo
. (P. Ant. Vieira).

Toda a lei e todos os mandamentos em que nos é mandado
que não impeçamos ao proximo em alguma cousa,… se
comprehendem nestas palavras
 : « Amarás ao proximo como a
ti mesmo
. » (D. Fr. Bartholomeo dos Martyres).

E, quando Vossa Alteza não perder, perderá el rei e o
reino ; e podem succeder desgostos e enfadamentos os quaes
Vossa Alteza, por sua grande virtude, e pela grande
obrigação
283que tem a estas terras, é obrigada a atalhar. (D. Hieronymo
Osorio, bispo de Silves).

Emfim as tautologias ou trocadilhos do seguinte exemplo,
quando não peccassem por uma demasiada insistencia
em circumstancias frivolas, mal condirião com a gravidade
histórica em tão luctuosa narração como a da nefasta jornada
do Africa :

E nestas conversações e seguranças sem seguro o seguravão.
Pela manhãa houve conversação sobre a sahida,
e
galanterias della que não erão galantes ; Não faltou
quem
zombasse, e sobejou quem zombasse dos que zombavão.
(Luiz Torres de Lima).

Por ultimo, é do todo o ponto injustificavel a tautologia
notada no excerpto do § 348, de que o gentio deu a
Diogo Alvares o nome de homem do fogo
, « pelo que vião
sahir do seu arcabuz desde a primeira vez que á vista delles
o disparou. »

3. Da syllepse

353. A syllepse consiste em regular-se a concordancia
das palavras, não pela sua fórma, e sim pelo seu sentido.

Ex. Diogenes viu que uma grande tropa de varas e ministros
de justiça
levavão a enforcar uns ladrões. (P. Ant.
Vieira).

Ahi prevalece o sentido plural do collectivo tropa
sobre a sua fórma singular, na regencia imposta ao verbo
levavão.

Semelhante reparo se póde fazer no seguinte exemplo,
em que se dá mentalmente, ao substantivo feminino creaturas,
o sentido do substantivo masculino homens, na
concordancia dos pronomes que se lhe referem :

« O’ meu amado Senhor, não me falleis já pelas vossas
creaturas, que pouco ou quasi nada me podem dizer de vós;
 ;
sendo vós infinito, e elles limitados ; vós luz, e elles sombras;
 ;
vós eterno, e elles defectiveis ; fallai-me por vós mesmos. »
(P. Man. Bernardes).

Emfim o mesmo se verifica ainda no seguinte exemplo,
onde o P. Ant. Vieira, alludindo, pelo emprego da palavra
toucados, ás mulheres, faz feminino o pronome estavel
outrem, que, por sua natureza, é masculino :

E, se passarmos dos solios aos estrados, tambem acharemos
nos toucados estes malmequeres : nenhuma gentileza ha tão con-284fiada, que a não piquem os alfinetes de ver a
outrem mais
bem
prendada.

354. As syllepses são legitimas quando a impressão
montal produzida pelas palavras, de tal modo discorda de
sua expressão, que esta fique prejudicada por aquella.

Ex. Façamos a cada um o que queriamos que nos fizessem.
(D. Fr. Bartholomeo dos Martyres). — (Não … que
nos fizesse)
.

Os palanques estavão cobertos de infinita gente, todos a
ver
. (P. Ant. Vieira). — (Não … toda a ver).

Perguntando-lhe um seu amigo porque lhe cheirava mal o
bafo, respondeu Demosthenes : Porque no estomago lhe
apodrecerão
grande quantidade de segredos. (P. M. Bernardes).
— (Não … apodrecera…).

Quando fordes convidado á casa e á mesa alheia, não
deveis tomar
os primeiros lugares, senão o ultimo. (P. J.
B. do Castro).

O provincial disse ao arcebispo que se accommodasse ao
que via usado em toda a christandade, e
no cabeça della.
(Fr. Luiz de Souza). — (… no cabeça = o papa).

Triste e miseravel condição é haver um homem de servir
a outro, sendo
todos iguaes. a primeira vez que se prophetisou
neste mundo haver
um homem de servir a outros foi
com o nome de maldição
. (P. Ant. Vieira).

O diadema antigo, insignia dos reis e imperadores, era
uma faixa atada na cabeça. e dizia Seleuco, rei da Asia,
que, se
os homens soubessem quão pesada era aquella tira de
panno, e quão cheia de espinhos por dentro
, nenhum haveria
que a levantasse do chão para a pôr na cabeça
. (P. Ant.
Vieira).

Dentro das espigas se forma o grão, para que, com este
defensivo, nem o rigor do frio o offenda, nem o ardor do sol o
queime, nem
a força dos ventos e das muitas aguas maltratem
o fructo recem-nascido. (Fr. Luiz de Granada).

Usa esta gente de canoas ligeiras e bem armadas, com
as quaes
impedião e infestavão as estradas, que nesta terra
são todas por agua
. (P. Ant. Vieira).

Quem trabalha, trata da sua vida ; quem está ocioso,
trata
das alheias. (P. Ant. Vieira).

São estas crianças, naquella primeira idade, lindissimas,
porque em
muitos a côr é branca. (P. João de Lucena).

Estavão aquellas margens alcatifadas de uma relva muito
285verde e mimosa, semelhante ao linho quando está em flor ; por
entre ella
passeavão grande numero de aves de diversas
côres, umas alvas como neve, outras azues, mas a maior
parte
encarnadas
de um vivo que se não acha nas côres artificiaes.
(D. Fr. Caetano Brandão).

355. As syllepses são illegitimas quando infringem
sem plausibilidade as regras da concordancia.

Ex. Algum genero de desconfiança alcançou Diogo Alvares
do espanto e temor do gentio ; mas elle, no melhor modo
que póde, os deixou satisfeitos, dando-lhes a entender que
aquelle genero de
instrumento não fazia damno mais que a
inimigos, que, com facilidade e menos perigo, podião ser vencidos

com aquellas novas, do que com os seus antigos arcos
e frechas
. (Fr. Ant. de S. Maria Jaboatão). — (… instrumento…
aquellas novas… !!).

Posto que os legisladores ordenassem que as mulheres não
pudessem dar voto, nem ser presentes nos conselhos para fazer
leis e outras constituições, parecendo-lhes que as não farião tão
perfeitas como
erão necessarias, houve, porém, sempre, e ha
ainda agora no genero feminino muito excellentes mulheres
.
(Ruy Gonçalves),

Apartando-se qualquer reflexão sobre o exquisito reparo
do autor, que é mesmo no genero feminino que ainda
agora ha excellentes
mulheres !!, nota-se ahi um erro tanto
mais attendivel quanto menos raro é encontrá-lo em publicações
da presente epoca. Consiste ella em ter o autor
feito o verbo erão pessoal, de impessoal que é á vista da
mais simples das glosas (… parecendo-lhes que as não farião
tão perfeitas como
era necessario que as fizessem, — isto é,
que perfeitas as fizessem. Porém, sabindo erão sob a
forma pessoal, foi preciso suppôr-lhe um sujeito ; ora o
unico que estava á mão, era um occulto ellas, por substituição
ao substantivo leis, e dahi a forma feminina plural
do predicado necessarias, que com elle tinha de concordar.
Mas, se assim fosse, a glosa daria, pelo restabelecimento
integral dos termos, um sentido absurdo á oração, e que
nada denuncia ter sido no intento do autor : (… parecendo-lhes
que as não farião tão perfeitas como
ellas (as leis)
erão necessarias. Não se pode, aliás, achar demonstração
mais azada da proficiencia da theoria eminentemente
philosophica do verbo substantivo, com sua trilogia fatidica
do sujeito, verbo o attributo.

Remata o mesmo autor suas elucubrações philosophicas
com esta sentença : e, por assim ser os conselhos das
mulheres, se hão de tomar e aceitar
, e não desprezar. —
286Alli errou elle em attribuir um sujeito a um verbo que,
no caso dado, nenhum podia ter, e, portanto, em estabelecer
uma falsa concordancia do predicado ; aqui erra, pelo
contrario, em exprimir junto a um verbo o sujeito mais
claramente qualificado, sem submetter-lhe o mesmo verbo
pela concordancia : e, por assim serem os conselhos das
mulheres
… Quanto á conclusão : Que se hão de tomar e
aceitar, ella tem, nestes dous synonymos, quanto basta
em pleonasmo para domar a convicção mais rebelde : o
mais é rabicho postiço.

4. Da inversão

356. A inversão consiste em se collocarem os termos
syntaxicos dentro da proposição, ou as proposições dentro
da oração, numa ordem diversa da que requer o raciocinio
analytico.

Ex. Terrivel palavra é um non. (P. Ant. Vieira). —
(Um non é palavra terrivel).

357. As inversões são legitimas quando diffundem
maior clareza ou harmonia na dicção, ou reproduzem naturalmente
os arremessos do uma paixão exaltada.

Ex. Por mais que confeiteis um non, sempre amarga;
 ;
por mais que o enfeiteis, sempre é feio ; por mais que o doureis
sempre é de ferro
. (P. Ant. Vieira).

Se, restabelecida na sua ordem normal, a mesma oração
nada soffre em clareza, muito perde em harmonia. Um non
sempre amarga, por mais que o confeiteis ; sempre é feio, por
mais que o enfeiteis ; sempre é de ferro, por mais que o doureis
.

A mais dura cousa que tem a vida, é chegar a pedir ;
e, depois de chegar a pedir, ouvir um não, vêde o que será !
a lingua hebraica, que é a que fallou Adão, e a que mais naturalmente
significa e declara a essencia das cousas, chama ao
negar o que se pede, envergonhar a face
. (P. Ant. Vieira).

Sendo destruidas as inversões deste trecho, nada lucrão
as orações em harmonia, e alguma cousa perdem em clareza.
Chegar a pedir é a mais dura cousa que a vida tem ;
e vêde o que será ouvir um não depois de chegar a pedir ! A
lingua hebraica, que é a que Adão fallou, e a que significa e
declara mais naturalmente a essencia das cousas, chama envergonhar
a face ao negar o que se pede
.

Emfim facil é convencer-se de que ao vigor expressivo
287da seguinte invectiva não pouco concorre a construcção
desordenada do trecho :

Oh ! insolencia ! Oh ! descomedimento ! Oh ! maldade mais
que infernal ! digna de que, no mesmo momento, se abrisse á
terra, e não depois rebentasse tal coração, mas logo o tragassem
os abysmos ! e, a este Judas, e, áquelle Pedro, será justo,
Senhor, que vós trateis com a mesma igualdade ?
(Iris classico,
pag. 225).

Era Affranio Burrho homem de grave e maduro juizo,
mestre ou aio que tinha sido, com Seneca, do mesmo Nero
.
(P. Ant. Vieira). — (Affranio Burrho era homem de grave e
maduro juizo, que tinha sido, com Seneca, mestre ou aio do
mesmo Nero
).

358. As inversões são illegitimas quando, intrincando
as idéas, ou baralhando os pensamentos, redundão em um
mistiforio pouco ou nada intelligivel.

Ex. Ponderando, só em lisonja dos ambiciosos, para fazerem
juizo os interessados, que, sendo continentes na America
as conquistas de Portugal e as de Castelha, quando, daquellas
preciosas minas, com umas se mostrou o clima tão liberal, parece
verosimil não se mostraria com outra tão escasso, gozando,
igualmente na altura do polo, da propria influencia do céo, e
da mesma natureza da terra ; se bem, com menos industria
que cubiça, por existirem tamanhas esperanças, mais na presumpção
que na realidade, ou, para reservarem os seculos presentes
para os vindouros, novos descobrimentos, neste exame
trabalharão já inuteis algumas diligencias
. (Franc. de Brito
Freire).

Quem diria que taes e quejandos disparates pudessem
ser patrocinados como constituindo uma figura de syntaxe
digna de especial menção, e de particular apreço : a synchyse ?
Entretanto assim é ; e lá vai o memoravel distico
que lhe serve do typo entre seus admiradores :

Entre todos, c’o dedo, oras notado,
Lindos moços d’Arzilla, em galhardia.

O que, no dizer dos eruditos, deve ser traduzido : Em
galhardia eras notado com o dedo entre todos os lindos moços
de Arzilla
.

Ora bem : se, como o pretendeu um insigne, porém desbocado
diplomata, a linguagem foi dada ao homem para
encobrir o pensamento, as duas referidas synchyses ou moxinifadas
são primores de estylo.288

5. Da exclamação

359. A exclamação, no seu sentido estricto, é uma proposição
implícita.

Ex. Credes, que são estas palavras de Christo ? sim
Agora respondei-me. (P. Ant. Vieira).

Ahi é sim uma exclamação porque representa uma proposição :
Vós o credes) e a proposição é implicita porque
não lhe constituindo sim nenhum dos seus termos syntaxicos,
nem por isso deixa de os abranger a todos.

A este caracter, de que sim e não são os typos nas
respostas peremptorias, e ah ! oh ! nas mais variadas expressões
do um sentimento vivo, é que devem as interjeições
de ser contempladas em syntaxe como figuras. E
tanto o são, que Ah ! e oh ! por exemplo, só têm um sentido
apreciavel, na falla, pela intoação com que se soltão ;
e na escripta, por uma ou mais proposições subsequentes
que lhes servem de commentarios.

Ex. O jugo e as cadeias de ferro e de bronze têm estas
quatro cousas : que carregão, ferem, soão e durão. e as mesmas
quatro têm o jugo e cadeias da infamia
. oh ! como carregão !
Por direita que andasse dantes a pessoa, logo abaixa a cabeça
e os olhos, e lhe parece traz ás costas um monte
. oh ! como
ferem !
Chegão a escalavrar o coração e a alma, e ensanguentão
familias inteiras
. oh ! como soão ! Está o pobre que
padece a infamia aqui em um canto ; lá soão no cabo do reino,
ou em Ultramar : por onde quer que appareça, detraz lhe ficão
rugindo as cadeias, como á alma condemnada que apparece

Oh ! quanto durão ! Ainda depois de sepultado, cá ficão rugindo
Oh ! já eu me contentara com que os presos da
infamia levassem comsigo á cova as suas cadeias. Mas não é
assim. O homem morreu e está enterrado, e as cadeias ficão
vivas cá fora, tinindo e foliando
. (P. Man. Bernardes).

360. Ha toda a conveniencia em comprehender no numero
das exclamações, por motivo de analogia, as expressões
que, isoladamente, representão uma proposição, embora se
prestem facilmente a constituir-lhe um dos seus termos
pela restauração analytica, e a proposição se possa considerar
tambem como simplesmente elliptica.

Ex. Houve alguem que dissesse á oliveira que havia de
deixar as suas azeitonas, nem á figueira os seus figos, nem á
vide as suas uvas ?
ninguem ! (P. Ant. Vieira). — (ninguem
o disse).

Hão devem, pois, pagar a pena os que vingão tão barbara
289maldade, mas sim os que, levando a labareda de tão repentino
arruido, dérão causa a todos os males que depois vierão
. (Hist.
de D. Manoel). — (… mas devem pagar a pena os -
que…).

Saibamos agora, e não de outrem, senão das mesmas arvores,
se este bom governo, do modo que ellas o entenderão, se
póde conseguir e exercitar com as raizes na terra. Assim as
que o offerecêrão, como as que o não aceitarão, todas concordão
que
não. (P. Ant. Vieira). — (… que não se póde conseguir).

E, houve algum homem tão mimoso da fortuna neste
mundo que, em alguma ou em todas as cousas delle, achasse o
descanso que buscava ?
nenhum. (P. Ant. Vieira). — (nenhum
houve).

Se é tão grande a alegria dos navegantes quando, tendo
escapado das tempestades e dos corsarios, ouvem dizer
 : terra !
terra ! que alegria será a dos que agora padecem, quando
oução dizer
 : céo ! céo ! (P. Ant. vieira). — (… Alli está a
terra !… Alli está o céo).

361. Tambem, e com mais propriedade ainda, devem
ser tidas por exclamações as expressões em apostropho,
embora o processo analytico, só com rodeios, e por meio
de varias hypotheses, consiga attribuir-lhes uma ou outra
das diversas funcções syntaxicas.

Ex. Vem cá lucifer ; vem cá adão : tu anjo, e o mais
sabio de todos os anjos ; tu homem, e o mais sabio de todos os
homens ! Não entendeis e conheceis com evidencia que não podeis
ser como Deos? Pois, como appeteceis o que não podeis ? Porque
tal é a cegueira de um entendimento ambicioso, e a ambição
de uma vontade livre
 : ha de querer mais do que póde,
ainda que conheça que é impossivel
. (P. Ant. Vieira). — (Vem
cá [
[tuque es lucifer] ; vem cá [ [tuque es adão] : tu
anjo, e o mais sabio de todos os anjos ; tu homem, e o mais
sabio de todos os homens !
— E’ bom notar, aliás, no texto a
repetição dos sujeitos de ambos os verbos vem (tu), para
servirem de esteios ás apposições anjo, e o mais sabio… ;
homem, e o mais sabio…, e para affastarem assim qualquer
causa de hesitação ou dubiedade na interpretação do pensamento.

Seja, porém, qual for o modo de considerar analyticamente
as exclamações desta especie, o que é fora de duvida,
é que não são, como alguns pretendêrão, o sujeito de
um imperativo occulto, visto como, em tal hypothese, se
daria a estranha anomalia de estar um verbo na segunda
pessoa com um sujeito na terceira (vinde , lucifer e
adão
). O que parece mais sensato, é tê-los por meros
290idiotismos. Funda-se esta allegação sobre a observação
que, em, latim, conferia-se neste caso aos substantivos, adjectivos,
pronomes e participios, uma forma ou terminação
geralmente tão especial, que não tinha nenhuma outra serventia
syntaxica (fili mi : ó meu filho 1). O caracteristico
dos vocativos portuguezes é não tolerarem a anteposição
do artigo.

Ex. El rei Antigono, vendo que seu filho se ensoberbecia,
lhe disse
 : « Não sabes, pilho, que o nosso reino e o reinar
não é outra cousa que um captiveiro honrado ?
 » (P. Ant.
Vieira).

Então, Brazil, será tua ventura,
O sec’lo d’ouro teu, tua cultura.

Vós tambem, ó alados, que, em plumagens,
Da filha de Thaumante sois imagens,
Vós sereis celebrados.

Os cerúleos sahis, e tambem verdes,
Onde tu, esmeralda, o preço perdes.
(S. Carlos).

As mesmas considerações são applicaveis ás exclamações
complexas.

Ex. Quem ha de restituir o tempo a quem perde o tempo
que havia mister ?
oh ! tempo tão precioso e tão perdido !
(P. Ant. Vieira).

Capitulo III
Termos syntaxicos. — Do facto

362. A percepção mental de quanto ha sobre que lhe
é possivel assentar um juizo, o homem a traduz por um
facto syntaxico com sujeito ou sem sujeito, com complementos
ou sem complementos, com predicado ou sem predicado.

Exemplos :

(Com ou sem sujeito). a noite chegára. — relampejava.291

(Com ou sem complemento). Tudo se muda por instantes.
Tudo passa. (P. Man. Bernardes).

(Com ou sem predicado). Se os olhos vêm com odio, —
o anjo é feio ; — se com amor, oque não é, — tem ser.
(P. Ant. Vieira).

363. Competindo aos verbos no infinitivo estas mesmas
eventualidades de sujeito, de complementos ou do predicado,
succedeu que a maior parte, senão a totalidade dos grammaticos,
forão levados por esta consideração a attribuir ao
verbo, neste ultimo modo, propriedades mais ou menos
identicas ás que lhe são proprias nos quatro primeiros,
considerando-o, em tal caso, como sendo tambem facto syntaxico,
isto é, como presidindo a uma proposição enunciando
de per si mesma um juizo apreciavel. Porém, quando se
tratou de firmar o principio pela demonstração, as hypotheses
imaginadas, apezar do se enredarem nos mais subtis
processos analyticos, apenas resolvêrão parcialmente um ou
outro caso isolado, mas deixarão os mais sem explicação
plausivel. E’ que, de um principio falso, por mais que se
torça, não póde ressumbrar uma verdade.

Pois observe-se um infinitivo, quer ande cercado, quer
não, de um séquito proprio, constando de sujeito, de complemento
ou de predicado, e ver-se-ha que, tirando-se-lhe o
facto junto ao qual elle mesmo exerce uma das referidas
funcções, já não exprime pensamento algum, e sim apenas
uma idéa ou, com o seu séquito, um mero conjuncto de
idéas
.

Ex. prégar [não ha de ser] praguejar. (Gil Vicente).

não se fazerem mercês [é] faltar com o premio á
virtude ; fazerem-se
[é] semear beneficios para colher
queixas. — não fazerem os reis mercês
[seria] não serem
reis
. (P. Ant. Vieira).

364. Outrosim evidencía-se materialmente a divergencia
radical que separa o infinitivo dos quatro modos do
facto, por duas observações bastante attendiveis no desempenho
dos exercicios analyticos. A primeira é que todo o
verbo no infinitivo póde vir a ser regido de uma preposição ;
num modo de facto, porém, nunca. A segunda é
que todo o verbo em um modo de facto, exceptuando-se o
imperativo, póde vir a ser relacionado com um facto anterior
por meio de uma ligação subordinativa (que ou se) ;
um verbo no infinitivo, porém, nunca. Ambas as hypotheses
se achão verificadas no seguinte exemplo :292

para se mostrar liberal, busque o principea quem
dar
 : parecerá avarento, se esperar — que lhe peção. (P.
Ant. Vieira).

Logicamente restaurada, a oração se desenvolve como
se segue :

Busque o principe, para se mostrar [para se estar mostrando]
liberal, um homemao qual [deva] dar : — parecerá
avarento
, — se esperar [se estiver esperando] — que lhe
peção.

Vê-se por esta reconstituição normal da oração que o
verbo se mostrar é realmente um infinitivo, visto como,
convertido em gerundial, ainda denuncia este modo [estar
mostrando]. Vê-se mais que, sendo regido da preposição
para, vem assim a constituir um complemento indirecto do
busque.

O infinitivo dar, que, á primeira vista, e era contradicção
com a regra formulada, parece prender-se a proposição
anterior por uma ligação subordinativa [a quem], não
é em realidade senão o complemento directo do elidido
deva, o portanto nada tem com a mesma ligação.

Emfim esperar, que, á primeira vista tambem, póde
parecer um infinitivo, mostra, por sua conversão era gerundial,
pertencer ao 7.° tempo do subjunctivo [estiver
esperando], o que o associa legitimamente á proposição anterior
[parecerá] pela ligação subordinativa se.

Outro exemplo :

Mais facil era antigamente conquistar dous reinos na
India
que repartir duas commendas em Portugal. (P. Ant.
Vieira). — (Conquistar dous reinos na India era antigamente
mais facil
que [facil era] repartir duas commendas em
Portugal
).

Ahi, nada tem novamente o infinitivo repartir com a
ligação que, porque, como é intuitivo, ella actúa sobre o
facto elidido era, ao qual o mesmo repartir serve de mero
sujeito.

Por todas estas considerações, o facto é, como termo
syntaxico, o representante symbolico de toda e qualquer
proposição
.

1. Do modo indicativo

365. O indicativo encerra oito tempos, dos quaes são
cinco simples, e tres compostos. As designações que os
repartem pelas tres epocas da duração (presente, preterito e
293futuro), são antes uma concessão a usos tradicionaes, do
que a expressão de uma verdade absoluta ; porquanto, embora
sejão as mesmas designações bem cabidas na maior
parte dos casos, em muitos não o são no sentido rigoroso
da palavra.

Não ha duvida que todos os factos do seguinte exemplo,
pertencendo ao 1.° tempo do indicativo, denuncião o
presente :

Os olhos vem pelo coração ; e, assim como quem por
vidros de diversas côres, todas as cousas lhe
parecem daquella
côr, assim as vistas se
tingem dos mesmos humores de
que
estão bem ou mal affectos os corações. (P. Ant.
vieira).

Porém, no seguinte exemplo, o mesmo tempo se
encontra alludindo a um preterito sem a menor impropriedade :

Antigamente, na republica hebrea, e em muitas outras, os
tribunaes e os ministros estavão ás portas das cidades. Mas,
que razão tiverão aquelles legisladores para situarem este lugar
aos tribunaes, e para pôrem ás portas das cidades os seus ministros ?

Varias razões
apontão [apontárão ] os historiadores
e politicos ; mas a principal, em que todos
convêm [convierão],
era a brevidade do despacho. (P. Ant. Vieira).

No seguinte exemplo, pelo contrario, o mesmo presente
fica substituindo a um futuro :

Pois tendes por certo que não vos pode [poderá] faltar
pão porque levais a letra de um mercador, e não tendes por
certo, com tantas escripturas de Deos, que vos não
ha de
faltar
[não haverá de faltar] ] nada ? Apertemos mais este
ponto. Na praça de Londres
, quereis [querereis] ] ir para
Liorne
, levais [levareis] ] letra de um herege ; na de Amsterdam
para a Allemanha
, levais [levareis] ] letra de um judeo ; na
de Veneza para Constantinopla
, levais [levareis] ] letra de um
turco ; e
ides [ireis] ] seguro que vos não ha de faltar [haverá
de faltar]
] pão. Pois, com as letras de um herege, de um judeo e
de um turco, cuidais que
ides [ireis] ] seguro, e, com as de
Deos, não ! E’ que não tendes fé
. (P. Ant. Vieira).

Cumpre, outrosim, notar que, se é geralmente da indole
dos verbos prepositivos o designarem um futuro já no
1.° tempo do indicativo, não lhes falta todavia, a faculdade
de, no mesmo tempo, enunciarem tambem ás vezes o presente.

Ex. Por amigos, havemos de ter a poucos ; mas, por
inimigo, a nenhum
. (P. Man. Bernardes).294

Claro é que o conselho ahi dado tem tanto de actual
como de futuro, por se tratar de uma obrigação perduravel.

366. O 2.° tempo do indicativo (preterito imperfeito)
implica geralmente a lembrança :

1.° Ou de um facto em via de perpetrar-se quando
outro se deu :

Ex. Partimos para a cidade de Trento, onde então se
celebrava o sagrado concilio

Como vinhamos de mistura com os mouros, uns detraz,
outros diante, passarão tres dos nossos, eu com elles
. (Pantaleão
de Aveiro).

2.° Ou de um facto que foi de perpetração prolongada :

Ex. caminhava a turca com grande ambição e fausto,
mettida numas andas douradas por dentro e por fóra

Ia fallando com um mouro pobre, roto, esfarrapado e
descalço

O que a turca fazia por mostrar religião e santidade.
(Pantaleão de Aveiro).

3.° Ou de um facto que tem sido habitual :

Ex. Costumava o sabio D. Affonso, rei de Aragão, não
negar seus favores ás pessoas que
sabia muito bem que dizião
mal delle
. (P. Man. Bernardes).

O infante D. Duarte, quando estavamos á lição, fazia-me
sentar tão chegado a si, que eu me
affrontava e corria.
(André de Rezende).

Entretanto não raras vezes succede que o mesmo
tempo venha supprir o presente. Dá-se o caso quando o
facto se acha subordinado a um verbo que anteriormente
enunciou um passado, sendo que este, por uma especie de
attracção violenta, constrange a declarar no passado o que
é realmente no presente.

Ex. Bem disse S. Ambrosio que mais valia um dinheiro
tirado do pouco, do que um thesouro tirado do máximo
.
(P. Man. Bernardes). — (… que mais vale…).

Dissemos atraz que, entrando pela porta principal da
igreja
, abria um arco á mão direita. (Fr. Luiz de Souza). —
(… abre um arco…).

367. O 3.° tempo do indicativo (preterito perfeito simples)
denuncia factos que forão successivamente perpetrados
295e, por isso, mereceu de alguns philologos a denominação
bastante idonea de passado historico ou narrativo.

Ex. Emfim (el rei D. Sebastião) tornou para Lisboa,
mais acceso em desejos, e com muita pressa
 : ordenou coroneis ;
levantou terços : nomeou capitães ; chamou hispanhoes,
tudescos e italianos

Emfim passou-se o rio ; pôz-se a artilharia : em ordem, e
formou-se campo na conveniencia necessaria. publicou-se indulgência
plenária ; e, assim confessados, commungados e ungidos,
se
resolvêrão a morrer a pé quedo. (Luiz Torres de
Lima).

368. O 4.° tempo do indicativo (preterito perfeito composto)
substitue geralmente ao anterior nos casos em que
se allude ai um facto repetidamente perpetrado, ou completamente
concluido.

Ex. Estes são os aduladores,… attentos somente a não
desgostar ou entristecer o agrado em que
tem fundado seus
interesses
. (P. Ant. Vieira).

Temos dito o primeiro alvitre que promettemos, que é
como havemos de alcançar o pão ; vamos agora ao segundo,
como havemos de alcançar muito
. (P. Ant. Vieira).

« Signal é, dizia Themistocles, o ver-me amado de todos,
que ainda não
tenho feito acção tão generosa e honrada,
que me grangeasse amigos
. » (P. Ant. Vieira).

Algumas vezes tenho dito a meus companheiros que, se
existe ainda resto da simplicidade primitiva da vida dos primeiros
homens, é nestes paizes
. (D. Fr. Caetano Brandão).

369. O 5.° tempo do indicativo (preterito mais que perfeito
simples
) assignala o facto como anterior a uma epoca
já finda. E’ um duplo passado.

Ex. No Areopago de Athenas foi Democrito condemnado
como perdulario, e estragador do seu patrimonio ; mas, constando
que
gastára a sua fazenda em aprender sciencias, e
conhecer a economia do mundo, foi absolvido e louvado por
haver adquirido a pouco custo tão precioso erario
. (P. D. Raphael
Bluteau).

Fabricou Salomão um palacio real em Jerusalem, que,
depois do templo que elle
edificara, foi o segundo milagre.
(P. Ant. Vieira).

Em certa occasião pedira el rei D. João de beber ;
e, ao administrar-lhe a taça um fidalgo velho que o
servira
com satisfação nas guerras de Africa, succedeu cahir-lhe o
vaso da mão já tremula
. (P. Man. Bernardes).296

370. O 6.° tempo do indicativo (preterito mais que perfeito
composto
) não tem outro alcance significativo que o
precedente, porquanto com elle encontra-se de mistura em
umas mesmas orações, sem discrepancia apreciavel na determinação
dor tempo.

Ex. E logo, pedindo um missal fez (D. João de Castro)
juramento sobre os Evangelhos que, até a hora presente, não
era devedor à fazenda real de um só cruzado, nem
havia recebido
cousa de christão, judeo, mouro ou gentio ; nem, para
a autoridade do cargo ou da pessoa, tinha outras alfaias que
as que de Portugal
trouxera ; e que ainda a prata que no
reino
fizera, havia gastado ; nem tivera jámais possibilidade
para comprar outra colcha que a que na cama vião
.
(Jacintho Freiro de Andrade).

Cumpre, todavia, notar que, na terceira pessoa do
plural, é o emprego deste tempo preferivel ao do 5.°, por
fornecer uma forma isenta da ambiguidade que provem de
ser a mesma pessoa do 5.° tempo sempre identica á do 3.°

Ex. Dalli a alguns dias ouvirão (as cotovias) que o amo
se agastava com os criados, porque não
tinhão feito (não :
fizerão) o que lhes encommendára (ou : tinha encommendado).
(P. Man. Bernardes).

Em um sabbado, entrando Christo na casa de um certo
principe dos phariseos que o
tinha convidado para jantar
com elle, observavão maliciosamente attentos os outros phariseos
tambem convidados todas as acções do Senhor
. havião introduzido
(não : introduzirão) na casa um hydropico para
ver se Christo o sarava em semelhante dia
. (P. J. B. do
Castro).

Ao grande Alexandre, já vencedor de Dario, caminhando,
para Persepolis, sahirão ao encontro quasi oitocentos homens,
os mais delles velhos, aos quaes os antepassados reis da Persia

tinhão torpemente mutilado (não : mutilárão) os narizes e
labios
. (P. Man. Bernardes).

371. O 7.° tempo do indicativo (futuro simples) allude
meramente a um facto ainda não perpetrado.

Ex. Como se animará o soldado a buscar a honra por
meio das bombardas e dos mosquetes, se vê em um peito o
sangue das balas, e noutro a purpura das cruzes ? Como se

alentara a padecer os trabalhos e perigos de uma campanha,
se vê premiado a Jacob, que ficou em casa, e sem premio a
Esaú, que correu os montes ? se ás pelles de Jacob se dá o
morgado, ás settas de Esaú se nega a benção ? Se alcança
mais este com o seu engano, que o outro com a sua verdade
,
297quem havera que trabalhe ? quem havera que se arrisque ?

quem
havera que peleje ? Não ha duvida que, à vista de semelhantes
mercês
, dirão os valorosos que vão errados ; terão
contrição do que deverião ter complacencia ; arrepender-se-hão
de seus brios ; condemnarão suas passadas finezas ; e,
se chegarem a pelejar valentemente
, sera por desesperação, que
não ha cousa. que assim desespere os benemeritos, como ver os
indignos premiados
. (P. Ant. Vieira).

372. O 8.° tempo do indicativo (futuro composto) allude
a um facto que ficará já perpetrado quando outro se der.

Ex. Perdeu V. Ex. um tão grande, tão fiel e tão honrado
amigo e parente...
Só nos fica o allivio e consolação da
fé, esperando que, assim como Deos o livrou das perseguições
tão mal merecidas deste mundo, lhe
haverá dado no céo o
descanso
. (P. Ant. Vieira).

2. Do modo condicional

373. Dos quatro tempos deste modo, os dous primeiros
são condicionaes genuinos, e os dous ultimos, condicionaes
supplementares.

São aquelles genuinos porque, além de não se poderem
confundir com outras quaesquer inflexões do verbo por
suas formas especialissimas, não ha caso algum de condicional
que não possão exprimir com a mais perfeita propriedade
de sentido.

São estes supplementares porque, não modificando em
cousa alguma o alcance significativo dos dous primeiros,
apenas os substituem para tornar a elocução mais aprazivel
pela variedade e euphonia.

Ex. pudera-se fazer problema onde ha mais pescadores,
e mais modos e traças de pescar, se no mar, ou na terra
. (P.
Ant. Vieira).

Pois, substituindo-se a pudera a forma genuina que
lhe corresponde, em nada padece o sentido, mas não assim
a dicção : poder-se-hia fazer problema

374. O 1.° tempo do condicional (presente-passado-futuro
proprio
) deve, como mais alguns tempos, tão estirada
denominação á conveniencia de reagir, a bem da verdade,
contra a mania que faz transferir, sem criterio, das grammaticas
francezas, tudo quanto parece ter applicação á
grammatica portugueza. Pois lá e, o mesmo tempo capitulado
de presente, Ora, isso mesmo é falso, porque tanto
298serve elle a declarar alli o futuro como o presente. Em portuguez,
o seu alcance é mais amplo ainda, visto ser igualmente
apto a designar uma ou outra das tres epocas da
duração.

Ex. Eu faria isso agora mesmo, — eu faria isso já
hontem, — eu faria isso de boa vontade amanhãa, — se me
sobrasse tempo
.

Que seria do mundo, se, em lugar dos mortos, não nascêrão
outros que lhes succedessem?
(P. Ant. Vieira). — (Que
seria [agora] do mundo…).

Se, no nascimento de judas e dimas, se levantasse figura
certa ao que cada um havia de ser em sua vida, a do
primeiro
diria que havia de ser apostolo, e a do segundo, que
havia de ser ladrão ; e assim forão na vida
. (P. Ant. Vieira).
— (… a do primeiro diria [então] que havia de ser apostolo…).

Se cinco mil homens, com mulheres e filhos, entrassem de
repente em uma grande cidade, não
haveria promptamente
que lhes dar de comer
. (P. Ant. Vieira). — (Se cinco mil
homens...
entrassem de repente [amanhãa] em uma grande cidade,
não
haveria promptamente…).

Aos que nascerão mudos, fez a natureza tambem surdos ;
porque, se ouvissem, e não pudessem responder
, rebentarião
de dôr. (P. Ant. Vieira). — (… rebentarião [então, agora,
amanhãa]
] de dór).

375. O 2.° tempo do condicional (preterito proprio)
suppre ao primeiro quando este, tendo de exprimir o passado,
não o faria sem ambiguidade por causa de alguma
circumstancia accidental.

Ex. Que teria sido da Europa christãa, se Carlos
Magno não repellisse os Sarracenos ?
— A expressão : Que
seria da Europa christãa… poderia alludir, contra a vontade,
á epoca presente.

376. O 3.° e o 4.° tempo do condicional correspondem
aos dous primeiros, o os substituem por mero agrado de
dicção.

Ex. Estes são os aduladores, que louvão o que não deverão
[deverião] ] louvar, e applaudem o que não devêrão
[deverião] ] applaudir, e ajudão o que devêrão [deverião] ] estorvar.
(P. Ant. Vieira).

Faça-se Vossa Alteza amar, e nesta só palavra digo a
Vossa Alteza mais do que
pudera [poderia] ] em largos discursos.
(P. Ant. Vieira).299

Confesso que tomara [tomaria] ] ver esta linguagem em
toda outra pessoa antes que na bocca dos que tanto me tocão
.
(Fr. Luiz de Souza).

A maior ostentação de grandeza e majestade que se viu,
neste mundo, e uma das tres que S. Agostinho
desejara [teria
desejado]
] ver, foi a pompa e magnificencia dos triumphos romanos.
(P. Ant. Vieira).

Por esta razão dizia S. Agostinho que fora [teria sido
tivera sido]
] mais justo levantar a Platão um templo, do que
aos deoses da gentilidade
. (P. D. Raphael Bluteau).

377. Como se, por conter só quatro tempos, este modo
fosse assim nimiamente escasso de formas, a lingua portugueza,
sempre sequiosa de variedade, autorisa ainda o
emprego do 2.° tempo do indicativo em substituição ao
condicional.

Ex. Se os homens se comerão somente depois de mortos, parece
que
era [seria, fôra] ] menos horror, e menos materia de sentimento.
(P. Ant. Vieira’).

Nascemos sem saber para que nascemos ; e bastava [bastaria,
bastára]
] só esta ignorancia para fazer a vida pesada,
quando não tivera tantos encargos sabidos
. (P. Ant. Vieira).

Este modo de accrescentar fazenda,… tambem me atrevêra
eu a dizer que
era [seria, fôra] ] bom, se, neste mundo; não
houvera uma conta, e, no outro mundo, outra. Se no outro
mundo, não houvera inferno, e, neste mundo, não houvera justiça
,
era [seria, fôra] ] muito bom. (P. Ant. Vieira).

Se aquellas rumas de façanhas em papel fôrão conformes
a seus originaes, que mais
queriamos [quereriamos, quizeramos]
nós ? já não houvera Hellanda, nem França, nem Turquia:
 :
todo o mundo fôra nosso. (P. Ant. Vieira).

Ainda falta por dizer o que mais vos havia [haveria,
houvera]
] de destruir e assolar. (P. Ant. Vieira).

Em verdade que, quando o casamento não trouxera outro
algum bem mais que livrar de tantos males, justamente
merecia
[merecería, merecêra] ] o nome de santa e doce vida. (D.
Franc. Man. do Mello).

3. Do modo imperativo

378. Por ser o facto, no imperativo, ou mandado, ou
pedido, claro é que ainda não existe, mas que está para
se perpetrar ; e portanto só allude ao futuro, o nunca ao
presente, como pretendem tantos grammaticos ; porquanto
o que já é, não se manda fazer,300

Ex. Gosta antes dos que te argúem, que dos que te
adulão ; e
tem maior aversão aos aduladores que aos inimigos,
porque são peiores
. (P. Ant. Vieira).

O mesmo mando ou rogo presuppõe que, junto de quem
o enuncia, haja quem o ouça, e o possa cumprir : logo não
póde o mesmo modo abranger theoricamente mais de uma
pessoa : a segunda do singular, e a segunda do plural.

Ex. As arvores que ao espinheiro offerecêrão o governo,
disserão-lhe
 : « vem ». Elle disse-lhes : « vinde ». (P. Ant.
Vieira).

379. e, realmente, de conformidade com o rigor da
logica, não tem o imperativo portuguez mais das duas inflexões
proprias da segunda pessoa, sendo que, com ellas,
lhe fica até tolhida a faculdade do exprimir o mando ou
rogo sob o theor prohibitivo da negação : nesta ultima hypothese,
forçoso é supprí-lo pelo 1.° tempo do subjunctivo.

Ex. O’ meu amado Senhor, não me falleis já pelas
vossas creaturas, que pouco ou quasi nada me podem dizer de
vós, sendo vós infinito, e elles limitados ; vós luz, e elles sombras ;
vós eterno, e elles defectiveis
 : fallai-me por vós mesmo.
(P. Man. Bernardes).

O’ voadores, contentai-vos com o mar e o nadar, e não
queirais
voar, pois sois peixes. (P. Ant. Vieira).

O sabio Simonides aconselhava assim a Hierão, rei dos
Syracusanos
 : « não duvides enriquecer os teus, porque deste
modo a ti mesmo te enriqueces
faze conta que o teu reino
é a tua casa
. » (P. Man. Bernardes).

Folgai, Antiocho, de terdes experimentado os revezes da
fortuna, e
não julgueis ninguem pelo que exteriormente parece.
(D. Fr. Amador Arraes).

Esta honrada mulher nos mandou trazer de comer, e ella
mesma no-lo pôz diante por sua mão, e nos disse
 : « comei
vós outros, pobres estrangeiros, e não vos desconsoleis ! »
(Fernão Mendes Pinto).

380. O mesmo tempo do subjunctivo suppre ainda ao
imperativo quando o mando ou rogo, por uma ficção que
recorda o modo optativo da lingua grega, vai dirigido á
primeira ou á terceira pessoa, quer do singular, quer do
plural.

Exemplos :

(1.ª P.) — ame-vos eu, Senhor, de todo o coração, para
que me sujeite á vossa vontade
. (P. Man. Bernardes). — ouça
301eu
a vossa doce voz, que traz comsigo a intelligencia do que
diz
. (P. Man. Bernardes).

(3.ª P.) — faça o principe seu corpo da guarda o
amor dos subditos
. — admitta homens aos cargos pelo ser,
não pelo parecer
. — seja clemente, mas não deixe de ser severo.
(P. Ant. Vieira).

(1.ª P.) — Mas, já que não podemos ver a alma em si,
vejamo-la em nós ; no que o corpo ha de ser, vejamos o que
ella é
. (P. Ant. Vieira). — Para fundamento do que pretendo
dizer sobre o soberano nascimento de que celebramos a memoria
neste felicissimo dia
, consideremos primeiro que cousa é
nascer, e
philosophemos um pouco. (P. Ant. Vieira).

(3.ª P.) — Dêm-se os premios ao valor, e não á valia.
sejão os principes como Christo no repartir, e sejão os
vassallos
como os discipulos no contentar-se, e cessarão as
queixas
. (P. Ant. Vieira).

Dá-se, todavia, o caso que, dirigindo-se a si mesmo,
venha alguem a interpellar-se como a um estranho : em
tal caso volta o verbo para o imperativo.

Ex. Quando esta noticia chegou ao Albuquerque, disse
com grande sentimento
 : « Eis-aqui fico mal com el rei por
amor dos homens, e mal com os homens por amor de el rei.
Velho
, acolhe-te á Igreja, e acaba já de morrer ; pois importa
á tua honra que morras, e nunca tu deixaste de fazer
o que importou á tua honra
. (P. Man. Bernardes).

Espirito meu, eu ando em uma região desconhecida, onde
não sei bem o nome das cousas
da-me, te rogo, alguma luz
nessa materia
. (P. Man. Bernardes).

Olha, alma minha, para essas altas serranias e talhados
penhascos que assoberbão os valles e a campanha
. (P. Man.
Bernardes).

381. Que o 1.° tempo do subjunctivo não preenche,
aliás, nos casos expendidos, nenhuma das funcções proprias
do modo ao qual pertence, e é sim mero subsidiário do imperativo,
torna-se manifesto por nunca se achar subordinado
a um verbo anterior, o que se patenteia geralmente
pela ausencia de toda e qualquer ligação subordinativa.

Ex. O’ Senhor, appareça-me a vossa presença dentro da
vossa paz, e
faça-se em mim a vossa paz por vossa virtude.
(P. Man. Bernardes).

Apenas, em alguns casos excepcionaes, encontra-se-lhe
anteposta a conjuncção que, porém como palavra expletiva,
isto é, simplesmente adduzida por amor da euphonia,
302como bem se deprehende de se não acarretar de sua suppressão
transtorno algum.

Ex. Toda esta variedade de innumeraveis especies não
custou a Deos mais que estas sós palavras
 : « produza a terra
hervas verdes que tenhão de si mesmas suas sementes ; e as
arvores
que produzão fructo segundo suas especies. » (Fr.
Luiz de Granada). — (… e produzão as arvores…).

A honrada dona, batendo então nos peitos por signal de
grande espanto, disse
 : « que me matem, se assim não é ».
(Fernão Mendes Pinto). — (… matem-me…).

Tanto que chegar esta nova, V. a. logo, sem esperar
outro preceito, se
ponha de curto o mais bizarro que puder
ser, e se
saia a cavallo por Lisboa, sem mais apparato nem
companhia, e
que V. a. se humane, conhecendo os homens, e
chamando-os por seu nome, e fallando, não
só aos grandes e
medianos, senão ainda aos mais ordinarios
. (P. Ant. Vieira).
— (… e V. a. se humane…).

Por estas considerações deve ser analyticamente tido
como imperativo disparçado todo e qualquer facto que,
no 1.° tempo do subjunctivo, não accusa subordinação alguma
a um verbo anterior.

382. Uma observação, de interesse mais philologico
do que grammatical, concorre outrosim a evidenciar que a
futuridade é predicamento essencial do imperativo, e ella
vem a ser que o mesmo modo fica do vez em quando supprido
pelo 7.° tempo do indicativo (futuro simples).

Ex. Com o animo de tentar a Christo, se levantou em
certa occasião na synagoga um doutor, e lhe disse
 : « Mestre,
que hei de fazer para me salvar ?
 » Respondeu-lhe o Senhor
que repetisse o texto da lei. Disse o doutor
 : « O que a lei
manda é
 : amaras a Deos teu Senhor com todo o teu coração,
com toda a tua alma, com todo o teu entendimento, e com
todas as tuas forças ; e ao teu proximo como a ti mesmo
. »
(P. J. B. de Castro). — (ama a Deos…).

Considero eu que ha mandamentos da lei da inveja, assim
como ha mandamentos da lei de Deos. Os mandamentos da
lei de Deos dizem
 : « não matarás ; não furtarás ; não
levantarás
falso testemunho ». Os mandamentos da lei da
inveja dizem
 : « não serás honrado ; não serás rico ; não
serás
valente ; não serás sabio ; não serás bem disposto.
(P. Ant. Vieira). — (… não mates, não furtes, não
levantes
falso testemunho…. não sejas honrado ; não
sejas…
).

383. Ao envez deste caso, e como por compensação,
303o imperativo vem de vez em quando a supprir o 7.° tempo
do subjunctivo (futuro simples), nas orações de sentido condicional,
conferindo assim á proposição em que se acha, a
qualificação que lhe caberia em analyse logica, se sahisse
encetada pela ligação condicional se, e sujeitando-a ás
mesmas regras de pontuação determinadas por esta ligação.

Ex. Lançai os olhos por todo o mundo, e vereis que
todo elle vem a resolver-se em buscar pão para a bocca
. (P.
Ant. Vieira). — (se lançardes os olhos por todo o mundo,
vereis que todo elle vem a resolver-se em buscar pão para a
bocca
).

Ponde uma corô na cabeça de Cyro, conquistará os
reinos de Balthazar
 ; ponde uma corôa na cabeça de Alexandre,
conquistará os reinos de Dario
 ; ponde uma corôa,
não na cabeça, senão no pensamento de Cesar, e opprimirá
a liberdade da patria, e, da mais florente republica, fará o
mais soberbo e violento imperio
. (P. Ant. Vieira). — (se puzerdes
uma corôa…).

4. Do modo subjunctivo

384. O subjunctivo é propriamente o modo da eventualidade.

Por eventualidade entende-se o que póde ser que seja
ou não seja, que fosse ou não fosse, que haja de ser ou não
haja de ser.

Ex. Autores ha que se persuadem não estar o céo privado
de semelhantes recreações ; mas
, quando o esteja destas,
bem sabemos que tem outras muitas e maiores
. (P. Man. Consciencia).

Em um deserto se achavão estes homens, sem casa, sem
venda, e sem dinheiro para comprar o mantimento
, ainda que
o houvesse
, e sobretudo com fome de tres dias ; mas, porque
seguião a Chrislo, tiverão que comer todos, sem lhes faltar
nada
. (P. Ant. Vieira).

Pois esta mesma ignorancia e loucura é a de todos ou
quasi todos os que se chamão christãos neste mundo
. Se
lhes perguntarmos para onde vão, dizem que para o céo ;
e
, se olharmos para os seus cuidados, e para os seus empregos,
e para as suas carregações, competindo todos em quem
mais ha de carregar e sobrecarregar, acharemos que todo o
seu cabedal empenhão naquellas mercadorias que nenhum preço
nem valor têm no céo
. (P. Ant. Vieira).304

385. Destas exemplificações adduzidas para demonstração
da eventualidade nas tres epocas da duração, póde-se colher
mais a indicação essenical que, por ser necessariamente subordinado,
o facto não prescinde, no subjunctivo, da anteposição
de uma ligação subordinativa (V. quando, ainda que,
se
). E, quando por vezes occorra que a mesma ligação
fique elidida, é porque assim o tolera exccpcionalmente o
uso a bem da euphonia, visto como os mesmos verbos após
os quaes se costuma omittir a ligação, não deixão do admittí-la
na mór parte dos casos.

Ex. O’ Deos e Senhor meu, por vossa infinita bondade
vos
rogo humildemente […] me concedais que vos ame de
todo o coração
. (P. Man. Bernardes). — rogou a panella de
cobre á de barro
que se chegasse para ella, para que juntas
resistissem melhor ao impeto das aguas
. (P. Man. Bernardes).

Sobre o modo da guerra que se deve fazer, peço muito a
V. S
. […] seja de voto que vençamos antes em seis mezes,
do que arriscarmos tudo em um dia
. (P. Ant. Vieira). —
pediu Sansão a seus pais que lhe dessem por mulher uma
philistéa
. (P. Ant. Vieira).

Nestes e semelhantes exemplos, taes importava […]
fossem
os sacrifícios, qual era o deos a quem se dedicavão.
(P. Man. Bernardes). — Os que menos satisfeitos estiverem de
S. M., esses chegue V
. a. mais a si, que importara pouco
que no affecto se dividão as vontades, comtanto que, no effeito,
S. M. e V
. a. as achem unidas e obedientes. (P. Ant.
Vieira).

Respondeu Lucullo que ao menos lhe permittissem dizer
em que cenaculo
queria […] lhe puzessem a mesa. (P. Man.
Bernardes). — Por ventura não quiz Cleopatra que faltasse
a tão exquisito peixe vinagre exquisitissimo. (P. Man. Bernardes).

Sendo assim demonstrada a intervenção effectiva ou
occulta do uma ligação subordinativa para a formação do
todo o qualquer subjunctivo, muito convem attender a que
não se pretende com isso estabelecer que qualquer das
mesmas ligações provoque sempre e necessariamente um
subjunctivo (pois que não poucas podem tambem actuar
sobre um indicativo ou um condicional), mas que sem alguma
dellas não se produz o subjunctivo.

Assim é que, faltando a condição de eventualidade, a
ligação subordinativa avoca, no primeiro dos dous seguintes
exemplos, o indicativo, e no segundo, o condicional :

Antigamente houve entre gentes barbaras o impiissimo costume
que os filhos enterravão vivos seus pais quando estes,
305por velhos e enfermos, não podião ganhar de comer. (P. Man.
Bernardes).

Aquelles que tudo erão delicias, mimos, trajos, damas, banquetes,
festas, cheiros, musicas, passatempos, mettidos em masmorras,
sem allivio nem consolação alguma
,… que sentirião ?
que imaginarião ? que farião ? que dirião ? em que cuidarião ?

(Luiz Torres de Lima).

386. As causas que, suscitando a eventualidade, promovem
o emprego do subjunctivo, podem reduzir-se a tres :
1.°, ao sentido de um verbo anterior ; 2.°, á especialidade
da ligação ; ou, 3.°, a uma circumstancia accidental.

I
(verbo anterior)

387. Os verbos que costumão impôr o subjunctivo ao
facto que lhes anda subordinado, são os que, por si mesmos,
ou pela proposição a que presidem, enuncião : 1.°, um acto
de vontade ; — 2.°, um sentimento ; — 3.°, uma duvida ; —
4.°, uma negativa ; — 5.°, uma interrogação ou exclamação
directa, sendo que, ou um vocabulo implicando que, a ligação
subordinativa.

388. Cabem na 1.a classe os seguintes e analogos
verbos : conceder, desejar, exigir, mandar, ordenar, querer, requerer, —
cumpre que, — comvem que, — é necessario que, —
tenho vontade que, — dou de barato que

Ex. De S. Babylas, martyr, se escreve que, morrendo
preso por amor de Christo, não
quiz que lhe tirassem as
cadeias
 : mandou que o seu corpo fosse sepultado assim
preso com ellas
. (P. Man. Bernardes).

Quando jogamos com um amigo, a nossa tenção e que
o que é seu, seja nosso ; e a sua, que o que é nosso, seja
seu. Aqui se quebra a santissima lei da verdadeira amizade.
(P. Ant. Vieira).

Necessario é que haja premios para que haja soldados,
e
que, aos premios, se entre pela porta do merecimento. (P.
Ant. Vieira).

Importa que não roube a negociação o que se deve ao
merecimento
 ; que se desenterrem os talentos escondidos que
sepultou a fortuna ou a semrazão
 ; que não haja benemerito
que não seja bem afortunado
 ; que se corte a lingua á fama,
se fór injusta
 ; que se qualifiquem papeis, que se examinem
certidões, que nem todas são verdadeiras. (P. Ant. Vieira).306

Assim se tempere o rigor da justiça, que os ministros
mostrem compaixão, e não vingança. (P. Ant. Vieira).

Synesio, escrevendo ao imperador Arcadio, o conselho
que lhe dá sobre todos, — exhortando-o que o observe com
o primeiro e maior cuidado
, — é que não consinta junto a
si aduladores, e se
guarde e vigie delles. (P. Ant. Vieira).

389. Cabem na 2.ª classe os seguintes e analogos verbos :
desejar, estimar, lastimar, recear, sentir, — admirar-se, — repugna-me
que, — felicito-me que, — envergonho-me que, — é
bom, é máo, é triste, é util que

Ex. « Irmãos meus, É lastima que andeis mais esperdiçados
pela vossa perdição que pelo vosso Deos
. » (Fr. Ant.
das Chagas).

Oh ! já eu me contentara com que os presos da infamia
levassem comsigo á cova as suas cadeias. Mas não é assim.
(P. Man. Bernardes).

Desejo que venha quem suppra os meus defeitos, emende
as minhas faltas, e tenha partes para vos saber merecer. (Fr.
Luiz de Souza).

E’ bem que se saiba e se divulgue esta doutrina tão
mal aceita do mundo : que os pobres tambem hão de dar conforme
podem
. (P. Man. Bernardes).

No tempo em que o lobo e o cordeiro estavão em trégoas,
desejava aquelle que se offerecesse occasião de as romper.
(P. Man. Bernardes).

Se acaso Deos vos fez mercê que soubesseis pôr os pés
por uma rua
, que soubesseis apertar na mão uma espada,
que fosseis discreto, generoso, ou rico, ou honrado, no mesmo
ponto tivestes culpas no tribunal da inveja
. (P. Ant. Vieira).

Caso Notavel e que, repartindo Jacob, na hora da
morte, a benção que tocava ou havia de tocar a cada um de
seus filhos, a do sceptro e coroa de Israel, a
desse e collocasse
no quarto. (P. Ant. Vieira).

Era o autor deste invento (da polvora), de profissão, religioso ;
ao qual, como bem diz Espondano
, fôra melhor que,
no tempo em que fazia aquellas experiencias, se estivesse encommendando
a Deus. (P. Ant. Vieira).

390. Cabem na 3.a classe os seguintes o analogos verbos :
duvidar, — póde ser que, — está incerto que, — é impossivel
que, — é problemático que

Ex. Tendo um tempo guerra com Philippe da Macedonia,
os Athenienses tomárão acaso umas cartas que elle mandava
á sua mulher Olympia ; e lh’as tornarão a mandar
307cerradas, e sem tocar nellas
, podendo por ventura achar
dentro alguns avisos de que se pudessem aproveitar ; mas
tinhão em muito mais a guarda do segredo que a mesma victoria
.
(Diogo do Couto).

Tullio orou uma vez no senado ; e, cuidando todos que
a oração fosse mui comprida, rematou a substancia della
numa só palavra, dizendo
 : « Com verdade se ha de orar ;
com verdade se ha de fallar ; e com a mesma verdade se ha
de governar
. » (Luiz Torres de Lima).

Perguntou Cesar a um sabio da Grécia porque não fallava.
Respondeu-lhe
 : « Por não fallar contra ti. » Disse-lhe :
« falla como quizeres. » (Luiz Torres de Lima).

E’ provável que, (a este escrivão), lhe corra bem a
penna em qualquer cousa que se diga a favor deste antecipado
e nunca visto provimento
. (P. Ant. Vieira).

391. Cabem na 4.a classe os seguintes e analogos verbos :
negar, impugnar, — não saber que, — ninguem pretende que,
— nada faz acreditar que, — não é certo que, — não é possivel
que, — é impossivel que

Ex. Assim fazem os impios e maliciosos, a quem não ha
innocencia que satisfaça, nem [há] ] desculpa que contente.
(P. Man. Bernardes).

E’ a guerra aquella calamidade composta de todas as calamidades,
em que
não ha mal algum que, ou se não padeça,
ou se não tema, nem bem que seja proprio e seguro.
(P. Ant. Vieira).

Salomão confessa de si que nenhuma cousa virão seus
olhos
, nem inventárão seus pensamentos, nem apetecérão
seus desejos, que lhes negasse. (P. Ant. Vieira).

Não é possivel que quem aparta as orelhas de ouvir
verdades
, applique seu coração a amar virtudes. (P. Ant.
Vieira).

E’ impossivel que a inveja deixe de perseguir a quem
os principes amão
. (P. Ant. Vieira).

Não digo verdades que amarguem, nem tenho amizades
que me profanem ; não adquiro fazendas que outros me invejem.
(Lobo).

392. Cabem na 5.ª classe as seguintes e analogas
orações.

Ex. Que homem ha que não busque o descanso ? e,
houve um homem tão mimoso da fortuna neste mundo, que,
em alguma ou em todas as cousas delle achasse o descanso
que buscava ?
(P. Ant. Vieira).308

Que homem ha que, tendo o seu inimigo debaixo da lança,
lhe
perdoe e o deixe ir em paz ? (P. Ant. Vieira).

Houve jamais anachoreta dos que habitavão as covas,
que fizesse tal penitencia ? (P. Ant. Vieira).

Que todas as nações da Europa se alistem contra Portugal,
ah ! que gloria ! Mas, que na guerra de Portugal se
vejão tambem portuguezes contra portuguezes, oh ! que desgraça !
por lhe não chamar outro nome. (P. Ant.Vieira).

E, como irá seguro, e livre de infinitos perigos quem se
metter na carroça da Avareza ! (P. Ant. Vieira).

393. Todavia, em relação a estes casos de subjunctivo,
é da maior importancia não attribuir-lhes um alcance absoluto,
e attender a que não basta que a proposição anterior,
para avocar o subjunctivo na proposição subordinada,
apresente uma ou outra das cinco condições especificadas :
ainda cumpre que se verifique a circumstancia essencial da
eventualidade. Faltando esta, o facto da proposição subordinada
reverte para o indicativo ou o condicional, conforme
as exigências do pensamento. O seguinte exemplo, em
que o mesmo verbo se impõe a duas proposições subordinadas,
avocando nellas modos diversos, torna summamente
azada a demonstração deste principio :

Oh l pobre homem ! digamos-lhe — que tenha paciência,
que este trabalho brevemente acabará. (P. Man. Bernardes).

Que o subjunctivo tenha, e o indicativo acabará se
achão ambos sob a dependencia do imperativo disfarçado
digamos, é o que comprova com toda a evidencia o methodo
analytico

Digamos-lhe — que tenha paciência.

Digamos-lhe — que este trabalho brevemente acabará.

Sendo as condições apparentemente tão iguaes em um
e outro caso, donde póde provir a diversidade dos modos ?
A explicação se deduz com a maior lisura das considerações
aventadas.

No primeiro caso, o facto digamos envolve o sentido
de um conselho, e portanto implica um acto de vontade,
como o mando. Quanto á eventualidade, ella resulta da incerteza
sobre se o pobre homem terá ou não terá paciência.

No segundo caso, o facto digamos se apresenta como
simplesmente affirmativo, sem vislumbre de conselho ou
mando ; porquanto, significando a segunda subordinada que
o tempo corre rapido, e a morte chega depressa, obvio é que
309desapparece ahi a circumstancia de eventualidade, e com
ella, a opportunidade do subjunctivo.

O mesmo se póde concluir do seguinte excerpto do
P. Ant. Vieira, sobre o descanso :

Só vos digo (declaro, affirmo, afianço) que não estã ahi
onde o buscais. Pois, onde o acharemos ? Onde Christo
disse
(aconselhou, quiz, mandou) que o buscássemos, porque só
ahi está, e só ahi o acharemos
.

Aliás não será talvez sem proveito exercitar-se em
mais alguns exemplos sobre o modo do investigação a seguir
em tal assumpto, para resolver os casos de anomalias
apparentes que adduz o estudo dos classicos.

Não ha duvida que, á vista de semelhantes Mercês,
dirão os valorosos que vão errados. (P. Ant. Vieira).

Dous motivos parecem avocar ahi, em dirão, o subjunctivo
em vez do indicativo : a negativa e a duvida da
proposição anterior. Quando, porém, se reflecte que estas
duas feições se neutralisão pelo seu concurso simultâneo, evidencia-se
que « Não ha duvida » equivale a « E´ certo », e
que, portanto, afastada a circumstancia de eventualidade,
não ha lugar para o subjunctivo. Verifica-se, outrosim,
esta allegação pela simples eliminação de não, a qual, restabelecendo
assim a duvida, torna o subjunctivo obrigatorio :
« ha duvida que os valorosos digão… »

Quanto ao facto vão, que a sua substituição por andão
demonstra estar no indicativo (pois que no subjunctivo sahiria
andem), elle tem, no sentido meramente affirmativo
do dirão, a razão efficiente do modo em que se apresenta.

Igual solução cabe ao seguinte exemplo :

Ninguem póde duvidar que assim se vai cumprindo
e tem cumprido
em grande parte, no imperio portuguez do
Oriente, aquelle oraculo universal
 : « Passa o reino de uma a
outra gente
 : Regnum a gente in gentem transfertur. » (P.
Ant. Vieira). — (Todo o mundo póde verificar que…).

Não vos lembra que nos pés da estatua estava a desunião
entre o barro e o ferro ?
(P. Ant. Vieira).

Ahi tambem são dous os motivos que parecem actuar
theoricamente para que estava passe para o subjunctivo :
a negativa o a interrogação directa em lembra. Sendo,
porém, real, e não eventual o facto da desunião, não havia
lugar para o emprego do subjunctivo.

Igual solução cabe nos seguintes exemplos ;310

El rei Antigono, vendo que seu filho se ensoberbecia, lhe
disse
 : « não sabes, filho, que o nosso reino e o reinar não
é outra cousa que um captiveiro honroso ? (P. Ant. Vieira).

« Pois, Senhor, não vêdes que tendes’ doze discipulos
que sustentar, e
que os pães não são mais que cinco ? » (P.
Ant. Vieira).

394. Após alguns verbos de sentimento, a lição dos
classicos apresenta como indifferente o emprego do indicativo
ou do subjunctivo.

Ex. Eu espero que nos ha de vir a saude por mãos
de nossos inimigos, e
que ha de obrar a necessidade o que
não acaba de fazer a razão
. (P. Ant. Vieira).

Espero que V. Ex. me tenha sempre na sua graça, e
me
conserve no foro que por ella alcancei, de criado de V.
Ex., a quem Deos Guarde muitos annos
. (P. Ant. Vieira).

II
(ligação)

395. Como se póde deprehender de tudo quanto ficou
expendido e demonstrado em relação ás ligações subordinativas,
a conjuncção que não avoca de per si mesma nenhum
modo ; porquanto encontra-se actuando tanto em um
indicativo como em um condicional ou um subjunctivo.
Ella indica, sim, sempre uma proposição subordinada, isto
é, uma proposição enunciando um pensamento dispensavel
ou indispensavel para a intelligencia do outra proposição
que lhe é sempre logicamente anterior ; porém deve-se procurar
fora da mesma conjuncção o motivo que determina,
na proposição por ella encetada, o modo do facto da mesma
proposição. O mesmo se dá com mais algumas conjuncções
ou locuções conjunctivas de igual natureza. Mas muitas,
pelo contrario, avocão de per si mesmas um modo determinado,
seja aliás qual for o verbo anterior a que se
prendem ; e, nesse numero, as que mais interessa saber,
são as que pedem o subjunctivo.

396. Sendo se, depois de que, a conjuncção subordinativa
que mais a miudo occorre no discurso, torna-se ahi
necessario, para devidamente aquilatar-lhe a influencia, considerá-la
novamente sob os dous aspectos que a fazem, já
expressão condicional, já expressão dubitativa. (V. o §
275).311

397. Como expressão dubitativa, ella avoca, já o indicativo,
já o condicional.

Ex. Póde-se pôr em problema na politica de Portugal
se é melhor que os reis fação mercês, ou que as não fação.
(P. Ant. Vieira).

E, se isto succedia no reinado e governo de Salomão, vede
se se póde esperar ou temer outro tanto quando não forem
Salomões os que tenhão o governo !
(P. Ant. Vieira).

Perguntei áquelles homens se não temião os ladrões:
 :
rirão-se. (D. Fr. Caetano Brandão).

E, na verdade, não sei eu se haverá, em todo o descoberto,
paragem mais accommodada para o commercio e habitação
humana, que esta da Bahia e seus arredores
. (P. Simão
de Vasconcellos).

Gastou a potencia romana, na pertinacia desta conquista,
duzentos e trinta e cinco annos
 : vêde se serão necessarios
tantos !
(P. Ant. Vieira).

Estou considerando que leite mamaria uma destas causas
ou requerimentos na mão dos ministros e seus officiaes, que
não ha remedio a fazê-la correr
 ; se beberia o leite da preguiça
do Brazil, que gasta dous dias em subir a uma arvore,
e outros dous em descer !
(P. Man. Bernardes). — (… estou
considerando
se beberia o leite…).

Todavia encontra-se tambem, mas mui excepcionalmente,
com o subjunctivo.

Ex. « Compadre, disse o cego, eu tenho enterrado em
certo lugar uma quantia de dinheiro ; deixei outra commigo
pelo que podia succeder. Agora; como emfim sou cego, temo
que m´a furtem. Não sei
se farei melhor em a pôr onde a
outra está, ou
se a deixe em minha casa. » (P. M. Bernardes).

398. O se condicional, pelo contrario, só avoca o indicativo
ou o subjunctivo na proposição subordinada.

Exemplo :

(Indic.) — Se o amor É verdadeiro, tem obrigação de
ser eterno ; porque
, se em algum tempo deixou de ser, nunca
foi amor
. (P. Ant. Vieira). — (Tem o amor obrigação de ser
eterno
, — se é verdadeiro ; porque nunca foi amor, — se em
algum tempo deixou de ser).

(Subj.) — Se houvesse dous homens de consciencia, não
haveria inconvenientes em estar o governo dividido
. (P. Ant.
Vieira). — (Não haveria inconvenientes em estar o governo
dividido
, — se houvesse dous homens de consciencia).312

399. O se condicional pede o indicativo quando o facto
da proposição anterior está no indicativo ou no imperativo,
quer este seja ostensivel, quer disfarçado.

Ex. Se o homem timido não tem coração, o teimoso não
tem cabeça. (P. Ant. Vieira),

Se tendes posto muito perto ao rei, tudo se vos sujeita,
tudo vos vem á mão. se tendes posto muito. longe do rei,
tudo vos
sujeitais, e em tudo metteis a mão. (P. Ant.
Vieira).

Se a fortuna me concedeu a abundancia, porque me
farei pobre com a ostentação ? e, se me coube em sorte a
pobreza, porque me não
fará rico o contentar-me com ella ?
(P. Ant. Vieira).

Se queres ser pobre sem o sentir, mette obreiros, e
deita-te a dormir. (P. Man. Bernardes).

Se culpais a vida alheia, seja só com vosso exemplo, e
não com vosso entendimento
. (P. Ant. Vieira).

Outros comparão os aduladores ao espelho, retrato natural
e reciproco de quem nelle se vê : porque
, se lhes pondes os
olhos
, olha para vós ; se rides, ri ; se chorais, chora : lagrimas,
porém, sem dôr, e riso sem alegria
. (P. Ant. Vieira).

Importa, todavia, notar quê, como bem se deprehende
dos exemplos citados, o indicativo só é admissivel em seguida
ao se condicional para enunciar o presente ou um
passado. Logo, porém, que tem de enunciar um futuro, o
facto passa necessariamente para o subjunctivo.

Ex. Eu, ha muitos dias, ia dispondo o animo para esta
desgraça
, procurando repará-la, se possivel fosse, com todas
as forças humanas e divinas
. (P. Ant. Vieira).

O turco prometteu grandes mercês a Martim de Vargas,
se outorgasse certa cousa que lhe pediria. (P. Man. Bernardes).

Se não houver mais que um homem de consciencia, venha
um... Ee, se não houver nenhum, não venha nenhum. (P.
Ant. Vieira).

Se o principe permittir ser lisonjeado em sua presença,
supponha-se praguejado na ausencia. — No que toca a todos,
consulte os mais
 : se não acertar, errará acreditado. (P.
Ant. Vieira).

Se quizermos particularmente considerar as cousas, qual
haverá que sem letras divinas ou humanas se possa fazer ?
(João do Barros). .

Carlos Magno trazia o sinete das suas armas aberto no
313pomo da sua espada. e, perguntado que mysterio ou cifra
continha o estar alli, respondeu
 : « E’ dizer que, para se observarem
minhas ordens e decretos
, se não bastar a autoridade
do sinete
. usarei da violencia da espada. (P. Man. sern
ardes).

400. O se condicional pede oxclusivamente o subjunctivo
quando o facto da proposição anterior está no condicional ;
e os unicos tempos do subjunctivo então avocados são
quatro : o 2.° ou o 3.° (pres.-pass.-fut. proprio ou pres.-pass.fut.
supplementar
), e o 5.° ou o 6.° (pret. m. q. perf. proprio
ou pret. m. q. perf. supplementar), conforme as exigências
do pensamento.

Ex. Se este Estado, sem ter minas, foi já tão requestado,
e perseguido de armas e invasões estrangeiras, que
seria,
se tivesse
esses thesouros ? (P. Ant. Vieira).

Aos Abderitas respondeu Hippociates que, se a enfermidade
fosse outra, elle iria logo curar a Democrito ; porém,
que retirar-se das gentes, e ir viver nos desertos, o que elles
reputavão por doudice, mais era para invejar que para curar
.
(P. Ant. Vieira). — (… respondeu que iria logo curar a Democrito,
se a enfermidade fosse outra).

Se vissemos que um mercante de Lisboa, embarcando-se
a commerciar nas nossas conquistas, para Angola carregasse
de marfim, para a India de canella, e para o Brazil de assucar,
não o
teriamos por louco ? (P. Ant. Vieira),. — (Não
teriamos por louco um mercante de Lisboa, se vissemos que,
embarcando-se
…).

Se um bemaventurado olhasse para a terra no mesmo
tempo que qualquer monarcha se vangloriava com semelhante
opulência
, rir-se-hia de o ver desvanecido com cousas tão pequenas
e desprezíveis
. (P. Man. Consciencia). — (rir-se-hia
um bemaventurado de ver qualquer monarcha desvanecido
com cousas tão pequenas e desprezíveis
, se olhasse para a
terra
…).

Até Seneca chegou a dizer que, se o homem vagasse
com o animo por entre as estrellas, lhe serião materia de riso
as mais vistosas e preciosas fabricas, e quanto ouro ha em
todo o mundo
. (P. Man. Consciencia).

Se os bons amigos não valerão (valessem) tanto, não
dissera (diria, teria dito) o Espirito Santo que o achar algum
é o mesmo que achar um thesouro
. (P. Man. Bernardes).

Se os Apostolos forão (fossem, tivessem sido, tiverão sido)
de animo avarento e acanhado, e
quizerão (quizessem, tivessem314querido, tiverão querido) comer os seus cinco pães, sahíra
(sahiria, teria sahido, tivera sahido) menos de meio pão a
cada um
. (P. Ant. Vieira).

Se no outro mundo não houvera (houvesse) inferno, e
neste mundo não
houvera (houvesse) justiça, era (seria, fôra)
muito bom
. (P. Ant. Vieira).

« Pois, Senhor, não vedes que tendes doze discipulos que
sustentar, e que os pães não são mais que cinco ?
se tivesseis
muito pão, então estavão (estarião, estiverão) bem essas
liberalidades ; mas sendo tão pouco
… ! » (P. Ant. Vieira).

Observação. Vindo a conjuncção quando a supprir o
se condiciona], as relações dos modos ficão as que pede.
esta ultima conjuncção.

Ex. quando, nos banquetes, não houvera mais excessos
que o beber, provocando-se uns aos outros, já não
havia poucos
vicios.
(P. Man. Bernardes.) — (se, nos banquetes, não
houvera (houvesse) mais excessos que o beber,… já não haveria
poucos vicios).

Um agoureiro consultou a Catão que successo ou prodigio
Significaria haver achado os seus calções roídos das doninhas.
Respondeu o philosopho : Até hi (ahi) não tem muito que adevinhar
 ;
quando as doninhas forem roidas dos calções, então
me
consultareis.- (P. Man. Bernardes). — se as doninhas
fôrem roidas…).

401. Dentre as locuções conjunctivas que de per si
mesmas avocão constantemente o subjunctivo, as que mais
a miudo occorrem, são as seguintes :

tableau afim que… | cóm que… | primeiro que…
a não ser que… | comtanto que… | qualquer que…
antes que… | longe que… | que muito que.
caso que… | para que… | sem que…
como se… | por […] que… | supposto que…

Exemplos :

Honrai a vosso pai e a vossa mãi, afim que vivais
largo tempo na terra que o Senhor vosso Deos vos dará.
(Decalogo).

O louvor, a não ser que premeie o merecimento, é bajulação.

E, para que soubessemos que a Deos só devíamos este tão
geral beneficio dos fructos da terra, os creou ao terceiro dia,
que foi
antes que creasse o sol, a lua e os outros planetas,
315com cuja virtude e influencia nascem e se crião as plantas.
(Fr. Luiz do Granada).

Caso que se nos desse tudo quanto appetecemos, ainda
assim não seriamos felizes, porque sabemos que tudo passa, e
nós tambem
.

Passa-se a nossa gloria como se nunca fora (fosse, tivesse
sido, tivera sido
). — (P. Ant. Vieira).

Contento-me com que V. S. tenha conhecido que, entre
todos os criados da casa de V. S., nenhum tanto tem festejado
e estimado este triumpho della
. (P. Ant. Vieira).

Observação. Cumpre attender que, para a verificação
desta regra, não se deve confundir a locução conjunctiva
com que com os casos em que a mesma locução, formando
um complemento indirecto, não avoca de per si nenhum
modo especialmente.

Ex. Pelos avisos que vão a S. M. entenderá V. A. com
que coração
escrevo esta, e muito mais com que raiva e
com que impaciencia. (P. Ant. Vieira). — Ahi faz que, como
mero adjectivo indefinito, a funcção do apposição junto aos
complementos indirectos coração, raiva e impaciência.

Offereçamos por sua alma o mesmo sentimento que nos
causa a sua ausencia ; pois é o mais custoso suffragio com
que nos podemos mostrar lembrados e bons amigos
. (P. Ant.
Vieira). — Ahi constitue que, como pronome relativo (com
o qual
), um mero complemento indirecto.

Perguntado o discreto Thomaz Moro, cancellario de Inglaterra,
com que se parecia um avarento, respondeu : « Com
o fogo, que, quanto mais lenha se lhe lança, mais lenha pede
. »
(P. Man. Bernardes). — Ahi constitue igualmente que, como
pronome indefinito (com que cousa), um mero complemento
indirecto.

Importará pouco que no affecto se dividão as vontades,
comtanto que, no effeito, S. M. e V. A. as achem obedientes
e unidas
. (P. Ant. Vieira).

A adversidade, longe que seja um mal para as almas
fortes, serve-lhes de tempera
.

Deos Senhor Nosso tambem pôz em venda o céo, para
que o comprassemos
com as nossas boas obras. (P. Man.
Consciencia).

Observação. A locução conjunctiva para que sempre
convertivel cm afim que, não se deve confundir com a
mesma locução constituindo complemontos indirectos, visto
não avocar esta nenhum modo de per si mesma (V. § 282,
e os exemplos).316

As roupas, por preciosas que sejão, come-as a polilha,
que nasce das mesmas roupas
. (P. Ant. Vieira).

Por mais que confeiteis um não, sempre amarga ; por
mais que o enfeiteis, sempre é feio ; por mais que o doureis,
sempre é de ferro. (P. Ant. Vieira).

Observação. Os classicos em geral, e o P. Ant. Vieira
em particular costumão geralmente passar para o subjunctivo
o facto da proposição subordinada a esta locução conjunctiva ;
todavia, por uma excepção cujo motivo não ó bem
apreciavel, o mesmo P. Ant. Vieira disse : « Senhora, tem
V. M. a seus pés a Antonio Vieira neste papel, porque é tal
a sua fortuna, que o não póde fazer em pessoa
, por mais que
o desejou e procurou. »

A guerra tem muitos inconvenientes que della podem nascer,
que devem todos ser olhados
primeiro que nada se commetta.
(João de Barros).

Pelo propheta Isaias fallava Deos com os justos, e, animando-os,
dizia : a Levantai os olhos ao céo, olhai para a
terra, e entendei que
, primeiro os céos se desfarão como fumo,
e a terra se gastará como vestido, e os que morão nella fenecerão
,
que deixe de permanecer a minha saude, e tenha fim
a minha justiça
. » (D. Fr. Amador Arraes).

Em qualquer palmo de terra que consideres attentamente,
verás muitas e differentes naturezas, cada qual dotada
de sua bondade
. (P. Man. Bernardes).

Que muito, Senhor, que vos não comprehendamos, se
nem comprehendemos um mosquito !
(P. Man. Bernardes).

Era accusado o benemerito nas suas boas obras, sem que
á innocencia se lhe desse defeza, nem (e sem que) ao merecimento
lhe
valessem embargos, porque era juiz a Inveja. (P.
Ant. Vieira).

E, supposto que sejão os aduladores os maiores inimigos
dos reis (como se provará largamente), onde vivem ou estão
encastellados estes inimigos ?
(P. Ant. Vieira).

402. As tres ligações synonymas embora, posto que
e ainda que soem apparecer hoje exclusivamente seguidas
do subjunctivo ; os classicos, porém, as empregárão tão frequentemente
com o indicativo como com o subjunctivo.

Ex. Assim o entendeu Saul, posto que obrava o contrario.
(P. Ant. Vieira).

Posto que os avarentos, por não gastar costumem andar
a pé, a Avareza anda sempre de carroça
. (P. Ant. Vieira).

E, porque o dito regimento que assim escreví, tinha necessidade
317de alguma mais declaração para se poder praticar,
o não communiquei a todos
, posto que meu desejo sempre
fosse e É tirar-se de minhas letras algum fructo para esta arte
de navegar
. (Pedro Nunos).

Ainda que não chego a padecer com alegria, soffro com
paciência
. (P. Ant. Vieira).

Tudo, ainda que a alma se não via, era a alma. (P.
Ant. Vieira).

Ainda que enterrem a verdade, a virtude não se sepulta.
(P. Ant. Vieira).

Ainda que muitas mãos fazem muito, uma cabeça que
as meneia todas, é a que acaba tudo
. (Fr. Luiz de Souza).

Reprehender obras alheias é cousa facil ; fazê-las, sempre
custa mais
, ainda que ellas em si pareção menos. (Franc.
Rodrigues Lobo).

III
(circumstancia accidental)

403. Quando o subjunctivo não fica avocado, nem por
ura verbo da proposição anterior, nem pela ligação, podese
dar o caso que um facto o reclame, quer por implicar
de per si mesmo a eventualidade, quer por se achar occultamente
subordinado a um verbo que requer este modo,
quer emfim por uma mera inversão de proposições.

Ex. Não é homem quem aqui não pasma, ou não diga :
« Não posso ! » (P. Ant. Vieira). — Este exemplo offerece a
curiosa associação de dous factos dissidentes em modo, embora
subordinados a uma mesma proposição anterior. E’
que o facto enunciado pelo indicativo pasma é certo, porque
ninguem se póde subtrahir a uma emoção imprevista ; ao
passo que o facto enunciado pelo subjunctivo diga é eventual,
visto como o acto de fallar, mesmo sob o impulso do
uma emoção viva, não escapa ao imperio da vontade, e
portanto só póde ser conjecturado.

Pois isto por que todos trabalhão, hei de ensinar hoje o
modo com que se
possa alcançar sem trabalho. (P. Ant.
Vieira). — A explicação é que ha muita probabilidade que
se alcance; todavia não ha certeza completa.

Pois, que remedio para accrescentar a fazenda, util, discreta
e seguramente ? O remedio é muito facil : dar da que

tiverdes, por amor de Deos. (P. Ant. Vieira). — Não se
podia dizer em absoluto : da que tendes, porque, infelizmente,
318não é tão raro o caso em que tal conselho pudesse
ser dirigido a quem nenhuma fazenda tivesse que compartir.

Quem bem entendesse toda essa ladainha de encomios e
louvores, bem podia dizer por David
 : « Orate pro eo ! » (P.
Ant. Vieira). — Haverá certeza de que, na occasião, houvesse
quem isto bem entendesse ? Não ha. Portanto, eventualidade.

O que, não só era inútil, mas pernicioso, a natureza pô-lo
muito longe de nós, occulto e escondido, onde o não
vissemos.
(P. Ant. Vieira). — Isto é : onde fosse provável que não
chegássemos a vê-lo. Portanto, eventualidade.

Os famosos tyrannos Phalaris Agrigentino, Dionysio Syracusano,
Jugurtha Numidiano e outros muitos desta sorte,
que sustentarão seus reinos, não foi com virtudes que
tivessem,
mas foi com liberalidades que em suas tyrannias usavão com
seus naturaes
. (Diogo do Couto). — E’ duvidoso, incerto que
tivessem virtudes : portanto o subjunctivo por eventualidade.
Mas é certo que usavão de liberalidades : portanto o indicativo.

E, que arvores são aquellas que vão voando pelas ondas
com azas de panno ? São navios que vão buscar muito longe
cousas que
piquem a lingua para comer mais, cousas que
apaguem a pelle, cousas que alegrem os olhos; isto é : especies,
sedas, ouro
. (P. Man. Bernardes). — Quer isso dizer :
cousas que, por ventura, tenhão aquellas propriedades.

E, que vivão e obrem com esta inhumanidade homens
que se confessão, quando procedião com tanta razão homens
sem fé nem sacramentos !
(P. Ant. Vieira). — Aqui só falta,
para justificar o emprego do subjunctivo, o restabelecimento
de um verbo de sentimento, omisso por desnecessario
para a intelligencia do trecho : admira que vivão e obrem
com esta inhumanidade

Que o temor seja adversario da memoria,… é cousa que
muitas vezes tem mostrado a experiencia
. (P. Man. Bernardes).
— Para se convencer de que a inversão das proposições
motivou ahi o emprego do subjunctivo, basta repô-las na
ordem logica, e attender a que desapparece então a opportunidade
do mesmo modo : e’ cousa que muitas vezes tem
mostrado a experiencia, que o temor
É adversário da memoria.

« A vinda de vós outros, verdadeiros christãos, é ante mim
agora tão agradavel
,… como o fresco jardim deseja o borrifo
da noite
. venhais embora ! venhais embora i e seja em tão
boa hora a vossa entrada nesta minha casa, como a da rainha
319

Helena na terra santa de Jernsalem l » (Fernão Mendes
Pinto). — A significação concessiva do adverbio embora (V.
§ 27.9) faz prevalecer o subjunctivo sobre o imperativo,
como para afastar mais terminantemente a idéa de coacção
inseparável deste ultimo modo. Seria, portanto, errado
dizer : « vinde embora ! »

Oxalá se pudera desterrar de todo o mundo o ouro descoberto
para destruição da vida, e se
trocarão os tempos e o
uso presente por aquella idade de ouro !
(P. Ant. Vieira). —
Interpreta-se : « quizesse deos que se pudesse desterrar de
todo o mundo o ouro descoberto para a destruição da vida, e
se
trocassem os tempos… »

Observação. Aqui cabe advertir que, por servil e desazada
imitação de um caso da syntaxe franceza, introduziu-se
na dicção dos escriptores modernos o habito de
transferir para o subjunctivo os factos de uma proposição
subordinada, quando, sendo ligada por um pronome relativo,
encontra na proposição anterior um superlativo
tambem relativo. Os classicos portuguezes são unanimes
para em tal caso adoptar invariavelmente o indicativo.
Não se diga, portanto, com um periodico : Aquillo excede
em confusão
ao mais extravagante pesadelo que um mortal
possa ter soffrido ; — e sim : pode ter soffrido.

Outrosim eis-ahi a lição dos classicos :

Não sabemos que a nossa união é a maior guerra que
lhe podemos fazer ? (P. Ant. Vieira). — (Não : possamos…).

A necessidade, a pobreza, a fome, a falta do necessario
para o sustento da vida é
o mais forte, o mais poderoso, o
mais absoluto
imperio que despoticamente domina sobre todos
os que vivem
. (P. Ant. Vieira). — Não : domine…).

A maior pensão com que Deos creou o homem, é o comer.
(P. Ant. Vieira). — Não : tenha creado…).

A maior ostentação de grandeza e majestade que se viu
neste mundo, e uma das tres que S. Agostinho desejára vêr,
foi a pompa e magnificencia dos triumphos romanos
. (P. Ant.
Vieira). — (Não : se tenha visto…).

A famosissima cidade de Pekim, no imperio da China, é
a maior que se sabe haver no mundo. (P. Man. Consciencia).
— (Não : se saiba…).

Dos tempos do subjunctivo

404. O 1.° tempo do subjunctivo (pres.-fut.) justifica
do modo por que sahe rubricado, pela idoneidade com que
se presta a enunciar tanto o presente como o futuro.320

Ex. Não digo que o seu pai esteja agora aqui, nem
tão pouco que aqui
esteja amanhãa..

Deos diz : « Ama teu inimigo por amor de mim, ainda
que te não
mereça que o ames por quem é, e pelo que te fez. »
(D. Fr. Bartholomeo dos Martyres).

Que alegria será a dos que agora padecem, quando oução
dizer : « Céo! Céo! » (P. Ant. Vieira).

405. O 2.° tempo do subjunctivo (pres.-pass.-fut.-proprio)
justifica igualmente do modo por que sahe rubricado ;
porquanto, sendo sempre discriminavel, por suas formas
peculiares, de todos os outros tempos conjugativos, presta-se
outrosim a enunciar com a maior propriedade as tres
epocas da duração.

Ex. Eu desejára que o seu pai aqui estivesse agora,
aqui estivesse hontem, — aqui estivesse amanhãa, para
com elle tratar deste assumpto
.

Oh ! se todos os que fazem semelhantes provimentos, fizessem
este exame, e se ao menos o fizessem os que os pretendem,
e são providos ?
(P. Ant. Vieira).

Nem a Roboão aproveitou ter por pai a Salomão, nem a
Nero ter por mestre a Seneca, nem a Cesar ter-se esmerado
nelle a natureza em o dotar de uns espiritos tão generosos e
verdadeiramente reaes, para que a adulação de seus familiares,
a um não
corrompessem as virtudes, a outro não despojassem
do reino, a outro não tirassem a vida, e a todos não destruissem
tão infausta e miseravelmente como todos sabem. (P.
Ant. Vieira).

Supponde que alguem dava ás formigas o entendimento do
homem, cuidais que não havião de dividir um campo em provincias
varias ? e, se
fizessem as suas covas em terra contigua
a minas de ouro ou prata, que não havião ter os estreitos buracos
pelos palacios mais ricos e sumptuosos ?
(P. Man. Consciencia).

406. E’ circumstancia notavel que, por entrar frequentemente
em correlação com o condicional, e contrahir
assim com elle uma especie de affinidade, o 2.° tempo do
subjunctivo venha ás vezes a ser supprido por um tempo
daquelle modo. Ex. E, que vos parece — que faria o Cesar
neste caso ?
(P. Ant. Vieira). — Pois, achando-se ahi a segunda
proposição subordinada a uma interrogação directa,
era este o caso em que o seu facto passasse para o subjunctivo
(E, que vos parece — que fizesse o Cesar neste
caso ?
). e, com effeito, a julgar por outras exemplificações
321tiradas do mesmo autor, o segundo theor seria tão correcto
como o primeiro : e, quaes havião de ser os que, vendo-se
enterrar vivos naquellas furnas, não
fugissem para onde
fiunca mais apparecessem ?
(P. Ant. Vieira). — (… não fugirião…).

Esta observação, apparentemente insignificante, abre
caminho a uma serie de considerações que, para o philologo,
são de grande interesse, e, para o grammatico, uma
justificação do methodo experimental. Pois, ao mesmo
tempo que fornecem uma nova demonstração da maravilhosa
flexibilidade do idioma portuguez, ellas vingão as
linguas em geral da pecha que lhes é tão frequente quão
injustamente imputada de serem illogicas.

As alludidas considerações versão sobre varias relações
que se encontrão no ultimo exemplo do § anterior : Supponde
que alguem dava ás formigas o entendimento do homem

Se fôr admittido, como parece que não pode deixar de
sê-lo, que um tempo do condicional venha por vezes a
supprir o 2.° tempo do subjunctivo (… que faria, — que
fizesse o Cesar…) ; o se foi igualmente admittido, á vista
dos exemplos comprobatorios, que o 2.° tempo do indicativo
póde supprir ao condicional (V. § 377), este mesmo
2.° tempo do indicativo deve ter a propriedade de se substituir
tambem ao 2.° do subjunctivo : pelo menos tal conclusão
está dentro dos limites das premissas.

Ora o que se nota no exemplo trazido para a dissertação,
é que a proposição directamente interrogativa :
cuidais — devêra, por isso mesmo que é interrogativa,
chamar para o subjunctivo o facto da proposição que lhe
anda subordinada. Porém este mesmo facto está no 2.°
tempo do indicativo (… que não havião de dividir um
campo
"). Mas, porque ? Porque, representando a um condicional
(… cuidais que não haverião de dividir um
campo
…), este mesmo condicional vem a ser um mero supplente
do 2.° tempo do subjunctivo (… cuidais que não
houvessem de dividir um campo…), sendo assim este ultimo
theor o normal, porém representado, por subdelegação,
por um 2.° tempo do indicativo.

A esta mesma conclusão conduz o exame do seguinte
exemplo :

Quantos ministros reaes, quantos officiaes de justiça, de
fazenda, de guerra vos parece que
havião de ser mandados
cá para a extracção, segurança e remessa deste ouro e prata ?
(P. Ant. Vieira). — (… que havião de ser, que haverião
de ser
, que houvessem de ser…).322

Se, sendo aceitas todas estas deducções, se retroceder
para as duas primeiras proposições do anterior excerpto :
Supponde — que alguem dava ás formigas o entendimento do
homem
,… encontra-se, sob um ponto de vista diverso, uma
nova applicação da mesma substituição.

Ahi é o imperativo supponde um mero substitutivo do
7.° tempo do subjunctivo : se suppuzerdes (V. § 383). A
allegação é tanto mais frisante, que o outro facto da oração
que directamente lhe corresponde, sahe precedido da mesma
conjuncção se : e, se fizessem as suas covas em terra contigua
a minas de ouro e prata
, [cuidais] que não havião
ter
(não haverião ter, — não nouvessem ter) os estreitos
buracos

Ora a proposição : se suppuzerdes, tanto por significação
propria, como pelo modo o tempo em que se acha,
é daquellas que, por exprimirem duvida, mais qualificadamente
avocão o subjunctivo. Portanto é ahi dava um
mero supplente de desse. E, effectivamente, as duas proposições
restauradas sobre esta base, correm regularmente,
sem alteração alguma dos pensamentos : se suppuzerdes
que
alguem desse ás formigas o entendimento do homem, cuidais
que
… ?

Verifica-se outrosim directamente, no seguinte exemplo,
a substituição do 2.° tempo do subjunctivo pelo 2.° do indicativo :
« De todos estes miseraveis, poucos escapavão para
outro jogo, se o povo não
pedia que os manumittissem. (P.
Man. Bernardes). — (… se o povo não pedisse…).

Por uma correlação toda natural, ou, se se quizer, por
justa compensação, o mesmo 2.° tempo do subjunctivo substitue
tambem por vezes ao condicional, sem que dahi resulte,
quer amphibologia, quer obscuridade, tal é o donaire
com que se sabe haver a lingua portugueza em todos os
seus meneios.

No palacio de el rei Dario, emquanto elle dormia, tres
guardas-móres da pessoa real excitárão entre si aquella famosa
questão que refere Esdras : Qual
fosse a mais poderosa cousa
do mundo
. — (Qual seria…). Despertou o rei, e, lendo a
questão que os mesmos autores della lhe tinhão posto escripta
debaixo dos travesseiros, prometteu grandes premios a quem
melhor a
resolvesse. — (… a quem melhor a resolvería).
(P. Ant. Vieira).

407. O 3.° tempo do subjunctivo (pres.-pass.-fut.-supplementar)
não tem outro alcance que não seja o do supprir,
por amor da euphonia ou da variedade, o tempo anterior.

Ex. Quem haverá que se não admire de uma tal volta,
323da fortuna em dous sujeitos tão notaveis : um tão valente,
outro tão altivo ! E’ possivel que nisto
parárão as façanhas
e victorias de Sansão ? E’ possivel que nisto
parárão as
riquezas e bizarrias do Prodigo ? Nisto parárão ; ou, para
melhor dizer, não parárão só nisto
. (P. Ant. Vieira).

A unica difficuldade que apresenta este tempo, é relativa
á sua discriminação em analyse, por se desenvolver
constantemente com as mesmas formas do 5.° tempo do
indicativo, e do 3.° do condicional, sendo que, além disso,
a sua terceira pessoa do plural é tambem sempre identica
com a mesma pessoa do 3.° tempo do indicativo. Porém o
processo da substituição (V. § 96 e 97), já tantas vezes
empregado nesta obra como meio rapido de solução nas
mesmas ou analogas circumstancias, é guia sufficiente para
remover qualquer dúvida. Basta, com effeito, soccorrer-se
a elle, para ver de prompto que os dous primeiros parárão
do exemplo citado pertencem ao 3.° tempo do subjunctivo,
e os dous ultimos, ao 3.° do indicativo.

E’ possivel que nisto parassem as façanhas e victorias de
Sansão ? E’ possivel que nisto
parassem as riquezas e bizarrias
do Prodigo ? Nisto
parou [tudo] ; ou, para melhor dizer,
[tudo] ] não parou só nisto.

Outros exemplos :

Não nos enganára o demonio com o mundo, se nós viramos
e conhecêramos bem o que é a alma. (P. Ant. Vieira).
— (Não nos enganaria… se vissemos e conhecessemos
bem…).

Mas, se a sua musa adevinhára que do mesmo inferno
havia de sahir a polvora, de nenhum modo
déra ao raio o
nome de inimitavel
. (P. Ant. Vieira). — (Mas, se a sua musa
adevinhasse… de nenhum modo daria…).

Se, no monte de piedade de Roma, ou no banco de Veneza,
se
déra a cento por um, houvera quem alli não mettêra
o seu dinheiro ? (P. Ant. Vieira). — (Se... se desse…
haveria quem alli não mettesse…).

Se em todas as mesas se bebêra por esta taça, não se
comêra em tantas o pão alheio. e, se no Brazil dêramos
em desenterrar caveiras, em quantas não pudêramos escrever
a mesma letra! Cuja é esta caveira ? E’ de fulano : viveu
rico, e morreu pobre ; testou de muitos mil cruzados, e seus filhos
pedem esmolas. Pois, que foi isto ? Que ar máo deu
por esta fazenda ? Misturou a sua fazenda com a alheia ;
perdeu a alheia, e mais a sua
. (P. Ant. Vieira). — (Se... se
bebesse… não se comería… Se dessemos… em quantas poderiamos…).324

El rei D. João III de Portugal estava tão affeiçoado ao
Estado do Brazil, especialmente á Bahia de Todos os Santos,
que, se
vivêra mais alguns annos, edificára nelle um dos
mais notaveis reinos do mundo, e
engrandecêra a cidade do
Salvador de feição que se
pudera contar entre as mais notaveis
de seus reinos
. (Gabriel Soares de Souza). — (… se
vivesse… edificaria… e engrandeceria… de feição que Se
teria podido contar…).

Variamente pintarão os antigos ao que elles chamárão
Fortuna. Dos que a fizerão de ouro, diremos depois. O
que agora sómente me parece dizer, é que os que a
fingírão
de vidro pela fragilidade, fingírão e encarecêrão pouco
(P. Ant. Vieira). — (Variamente têm pintado… têm chamado…
Dos que a têm feito… Os que a têm fingido…
têm fingido e encarecido pouco. — Por transposição para
o singular. — Variamente pintou [o mundo antigo] ] ao que
[elle] chamou Fortuna. [Daquelle] ] que a fez de ouro, diremos
depois
… [Aquelle] ] que a fingiu de vidro pela fragilidade,
fingiu e encareceu pouco.

Advertindo Demosthenes que o auditorio estava pouco attento,
introduziu com destreza o conto ou fabula de um caminhante
que
alquilára um jumento, e, para se defender no
descampado da força da calma, se
assentára á sombra delle ;
e o almocreve o
demandára por maior paga, allegando que
lhe
alugára a besta, mas não a sombra della. (P. Man. Bernardes).
— (… um caminhante tinha alquilado… e se tinha
assentado…
e o almocreve o tinha demandado… allegando
que lhe
tinha alugado a besta…).

O 3.° tempo do subjunctivo, quando em correlação com
o condicional, costuma avocar mais habitualmente o 3.°
tempo deste mesmo modo, ou vice-versa.

Ex. Disserão a Diogenes : « Se tu aduláras a Dionysio,
tu não
comêras hervas. » — e, se tu te contentáras com
hervas, não
aduláras a Dionysio, respondeu Diogenes. (P.
Ant. Vieira).

Todavia esta correspondencia não tem nada de obrigatorio,
como bem se deprehende dos seguintes exemplos :

Se em Hespanha não houvera minas de ouro e prata,
nunca os Romanos
irião a lhe fazer guerra de tão longe.
(P. Ant. Vieira).

« Se tu corrêras o estadio em competencia, porventura
pararias ou afracarias, estando já perto da raia ou baliza ? »
(P. Man. Bernardes).

Se os Apostolos tiverão doze pães, então não era necessario
mais
. (P. Ant. Vieira).325

Se alguem visse desde um posto eminente todas as mudanças
que no mundo succedem em espaço de meia hora, que
admirado
ficara de ver a furia com que esta roda se revolve !
(P. Man. Bernardes).

408. O 4.° tempo do subjunctivo (pret. perfeito) exprime
meramente um passado.

Ex. Admira-nos o ver quão depressa haja a terra gerado
e produzido ; mas, quanto maior motivo temos para admiração,
se considerarmos como as sementes lançadas nella não fructificão,
se primeiro não morrem !
(Fr. Luiz de Granada).

409. O 5.° e o 6.° tempo do subjunctivo (pret. m. q.
perf. proprio e pret. m. q. perf. supplementar
), perfeitamente
equivalentes em tudo, têm por funcção de se substituir ao

2.° ou ao 3.° tempo do subjunctivo todas as vezes que estes,
havendo de enunciar um passado, achar-se-hião em circumstancias
de o não designarem com bastante clareza.

Ex. Quando, para este ministério, mandavão de Ceilão
um elephante, o levavão para a ribeira, onde todos os outros,
quando este entrava, lhe fazião uma reverencia com muita submissão,
sem que alguma hora o
tivessem visto. (João Ribeiro).
— (Não : o vissem).

410. O 7.° e o 8.° tempo do subjunctivo (fut. simples
o fut. composto) correspondem exactamente, na expressão
do futuro, ao 7.° e ao 8.° tempo do indicativo, porém sob
a condição de eventualidade.

Ex. « Quando fordes convidado á casa e á mesa alheia,
não deveis tomar os primeiros lugares, senão o ultimo, porque
(para que) não succeda vir o senhor da casa,. e vos mande
levantar do lugar que tomastes, e o dê a outro melhor do que
vós, e então vos acheis com affronta no ultimo lugar. Porém,
se
escolherdes o ultimo, virá o dono da casa e senhor do
convite, e, vendo-vos alli, vos dirá : Amigo, subí para cima !
E
e então ficareis com gloria entre os mais convidados ; porque
todo aquelle que se
exaltar, será humilhado, e o que se humilha,
será exaltado
. » (parab. evang. P. J. B. de Castro).

Capitulo IV
Do infinitivo

411. Se bom que o infinitivo não constitua do per si
nenhum termo syntaxico especial, tal é todavia a complexidade
326das relações em que anda envolvido, que, para lh’as
destrinçar, impossivel é abstrahir de considerá-lo isoladamente.

Estas relações são de duas ordens : umas intrinsecas,
outras extrinsecas. Pelas primeiras, o infinitivo participa do
facto syntaxico, sem ser facto : é expressão verbal. Pelas
segundas, o infinitivo participa do substantivo, sem ser
substantivo : é expressão substantival.

Como expressão verbal, tem ou não tem sujeito, tem
ou não tem complementos, tem ou não tem predicado ; e,
por um corollario natural, não lhe falta, nem a propriedade
de accusar as tres epocas dá duração, nem a de concordar
ostensivelmente, ao menos em alguns tempos, com as tres
pessoas do singular, o com as tres do plural : o que tudo
fallece absolutamente ao substantivo. E entretanto o infinitivo
não chega a enunciar de per si um facto (V. § 363) ;
apenas enuncia um acto.

Como expressão substantival, o infinitivo exerce necessariamente,
na proposição em que anda comprehendido,
uma das funcções de sujeito, de complemento directo, do
complemento indirecto, de predicado ou de apposição ; e,
por um corellario igualmente natural, tem um genero, mas
um só : o masculino ; e tem um numero, mas tambem um
só : o singular : o que tudo, de modo algum, póde competir
ao facto.

Ex. Meu sentir é que desta guerra te descartes. (Vida
de D. Manoel).

E, que se segue deste tão desordenado querer ? (P.
Ant. Vieira).

Visto que ignorais a formosura de tão sumptuosa casa, o
quererdes que vos falle della, e obrigardes-me a que seja
semelhante áquelle simples rustico
. (P. Man. Consciencia). —
(Não : a quererdes, nem os quererdes, nem as quererdes
são…).

Seguir o contrario disto era um querer resuscitar velhices.
(Fr. Luiz de Souza).

Bom é sempre em vossas adversidades justificardes os
toques da mão do Senhor
. (Fernão Mendes Pinto). — (justificardes…
e bom… — não : são bons ou boas…),

El rei D. Duarte honrava muito os homens doutos, e os
trazia em sua casa, como
é natural os homens amarem os
seus semelhantes
. (Duarte Nunes do Leão). — (… os homens
amarem… é natural…).

Em idade tão estragada e perdida como a presente, era
327forçado aproveitarem-se os prelados de ambos os gladios.
(Fr. Luiz de Souza). — (… aproveitarem-se… era forçado…).

E entretanto o infinitivo não póde ser considerado
como um mero substantivo, visto não se deixar representar
por elle, e recusar-se geralmente a formar termos compostos
de parceria com substantivos ou pronomes.

Ex. ensinar e aconselhar é de sabios. (Franc. Rodrigues
Lobo). — (Não : o ensino e aconselhar…).

Vêde aquelle entrar e sahir sem quietação nem socego.
(P. Ant. Vieira). — (Não : … aquellas entradas e
sahir
…).

No comer e beber foi Annibal temperadissimo. (Fr. Born.
de Brito). — (Não : na comida e beber…).

412. Sendo assim demonstrada a intervenção toda especial
do infinitivo na proposição, o que d’ahi se segue,- é
a conveniencia de porscrutar-lhe as relações dimanantes, já
de sua feição como expressão verbal ; já de sua feição como
expressão substantival.

Do infinitivo como expressão verbal

413. O infinitivo abrange seis tempos :

1.°, o pres.-pass.-fut. impessoal ; 2.°, opres.-pass.-fut. pessoal ;
3.°, o preterito impessoal ; 4.°, o preterito pessoal ; 5.°, o
gerundio simples
 ; 6.°, o gerundio composto.

Em relação ás epocas da duração, o 1.°, o 2.° e o 5.°
destes tempos denuncião com a mesma propriedade o presente,
o passado ou o futuro. A razão está em que a
epoca a que alludem, fica sempre determinada pelo facto
de que dependem, embora nem sempre seja a mesma. Verifica-se
este principio, nos seguintes exemplos, por uma
simples modificação dos factos adduzidos.

1.° Tempo (impessoal)

Para este fim fazemos trabalhar [agora] ] aos proprios
elementos
. (P. Ant. Vieira). — Para este fim fizemos trabalhar
[outr´ora] ] aos proprios elementos. — Para este fim
faremos trabalhar [ao diante] ] aos proprios elementos.

2.° Tempo (pessoal)

Mais nos agrada o discorrermos [agora] ] subtilmehte do
328que com acerto. (Mathias Ayres da Silva do Eça). — Mais
nos
agradou o discorrermos [outr´ora1 ] subtilmente do que
com acerto. — Mais nos
agradará o discorrermos [ao diante]
subtilmente do que com acerto.

5.° Tempo (gerundio simples)

Que faz o lavrador na terra, cortando-a [agora] ] com o
arado ?
(P. Ant. Vieira). — Que fez o lavrador na terra,
cortando-a [outr´ora] ] com o arado ? — Que fará o lavrador
na terra
, cortando-a [ao diante] ] com o arado ?

Em todos estes exemplos, a epoca designada pelo infinitivo
coincide por ventura com a do facto de que depende.
No seguinte exemplo, porém, ella differe, sem que
todavia nenhum elemento estranho tenha de intervir para
fazer constar a divergencia : Pretendo sahir amanhãa. (Pretendo
[agora] sahir amanhãa).

O 3.°, o 4.° e o 6.° tempo do infinitivo denuncião uma
epoca sempre anterior á do facto da proposição.

Exemplos :

3.° Tempo (impessoal)

Os sujeitos de que fallamos, mais os contenta haver-Ihes
succedido bem no discurso que nos negocios. (Duarte Ribeiro
de Macedo).

4.° Tempo (pessoal)

Os vossos inimigos são testemunhas em causa propria, de
vos
ter dado deos os bens que lhes negou a elles. (P. Ant.
Vieira).

Qual é a causa de tantos reinos se terem perdido,
de que apenas se conserva a memoria ? (P. Ant. Vieira).

6.° Tempo (gerundio composto)

Que alegria será a dos que, tendo escapado das miserias
desta vida
, oução dizer : Céo ! Céo !

Note-se que o gerundio composto equivale sempre a
um preterito-mais-que-perfeito. Não se diga, portanto, com
certos escrivães :

« E, subindo os autos á conclusão, baixárão com a seguinte
sentença
… ». Pois, subirão baixando, ou baixárão subindo ?
Diga-se, sim : « e, tendo os autos subido á conclusão,
baixárão com a seguinte sentença
… »

414. Em relação á personalidade dos tempos do infinitivo,
329trava-se uma das questões mais intrincadas da
Grammatica, e, por isso mesmo, das mais interessantes ;
porquanto a dicção dos escriptores modernos contrapõe-se
tão frequentemente neste particular á lição dos classicos,
que parece quererem os contemporaneos dar quináo áquelles
nobres engenhos a quem se deve a creação do padrão perenne
do lingua portugueza. E, quando este não seja o seu
proposito, não sobeja, para explicação de tão manifesto
desprezo das normas classicas, senão suppôr que mais alcançarão
em detrimento da recta linguagem, as theorias
rotineiras de um ensino grammatical erroneo e apoucado,
do que puderão beneficia-la muitas estimaveis compilações
onde se ostentão primorosos excerptos dos verdadeiros
mestres. E’ que ler rapida e distrahidamente taes excerptos,
sem fazer obra com elles por meio da analyse, mal
pode prevalecer contra a influencia perniciosa de tantos
apophthegmas falsos, diariamente cunhados nas escolas pela
decoração, sobresahindo entre elles o de que todo e qualquer
verbo tem necessariamente um sujeito, quer expresso, quer occulto,
com o qual concorda em numero e pessoa
.

O que dahi decorre, é que ninguem depara com o desmentido
categórico dado a esta opinião na lição contida
neste e em milhares de exemplos analogos, onde o verbo,
por falta de todo e qualquer sujeito, não fica adstricto a concordancia
alguma de numero e pessoa : « Gomo podião deixar
de intervir grandes injustiças quando tirávamos uns reis, e
púnhamos outros ?
 » (P. Ant. Vieira).

Porém, sob a pressão do indefectivel apophthegma, escreve-se,
com as mãos ambas, o mais variegado sortimento
de novidades estylisticas neste gosto :

Estudem, para poderem um dia serem admittidos á matricula

Forão julgados em estado de matricularem-se os seguintes
Srs

Temos de facto a republica, á cuja conservação parecem
irem-se habituando os animos.

E, que esta exprobração não se funda em motivo fantasiado,
eis ahi um trecho que o comprova : « Devemos todos
os Portuguezes
alegrarmos-nos por tal desenlace. » (Periodico).
Sim, devemos comermos e consolarmos-nos…

Não sabem os conservadores (ou liberaes) de tal provincia
conservarem-se com honra no poder, e guardarem
dignidade na derrota

Devêramos lembrarmo-nós que330

Este ultimo typo é o que fornece maior cópia de estampas,
embora baste o mais simples cotejo do verbo pronominal,
com outro que o não seja, para adduzir loquelas
impossiveis : Devêramos comermos e bebermos… !! Devêramos
irmos passeiarmos… !! Pois, sem ser preciso recorrer
a outro criterio que não seja o da substituição, obvio é
que, se a forma lembrarmo-nos, do 2.° tempo do infinitivo
(tempo pessoal), em vez de lembrar-nos, do 1.° tempo do
mesmo modo (tempo impessoal), é a correcta, tambem o são
as formas correspondentes comermos, bebermos, etc. (V. a
conj. dos verbos pronominaes).

Attenda-se, portanto, ao seguinte trecho do (P. Ant.
Vieira : Acabamos de nos desenganar da pouca firmeza ou
segurança que póde haver nos bens que são da terra
. — Não
disse como dirião os novadores da modernice : Acabemos por
nos desenganarmos… — ou por desenganarmo-nos…/

Esta é a questão : urge resolvê-la.

415. O 1.° e o 3.° tempo do infinitivo são impessoaes,
porque nunca se lhes attribue sujeito algum, quer expresso,
quer occulto, o que reduz as suas formas, quer simples,
quer compostas, a uma só em cada tempo de cada conjugação.

1.° Tempo

tableau amar, render, punir, pôr ;

3.° Tempo

tableau ter amado, ter rendido, ter punido, ter posto.

O 2.° e o 4.° tempo do infinitivo são pessoaes, porque,
quando não têm um sujeito expresso, têm-no occulto, o
com elle concordão em numero e pessoa.

2.° Tempo

tableau amar eu, | render eu, | punir eu, | pôr eu,
amares tu, | renderes tu, | punires tu, | pôres tu,
amar elle, | render elle, | punir elle, | pôr elle,
amarmos nós, | rendermos nós, | punirmos nós, | pôrmos nós,
amardes vós, | renderdes vós, | punirdes vós, | pôrdes vós,
amarem elles, | renderem elles ; | punirem elles ; | pôrem elles.

4.° Tempo

tableau ter ou haver eu
teres ou haveres tu
ter ou haver elle | amado, rendido, punido, posto.
termos ou havermos nós
terdes ou haverdes vós
terem ou haverem elles
331

Theoricamente, nada mais simples como nada mais regular
do que as inflexões dos dous tempos pessoaes, visto
se deduzirem, com a mais perfeita identidade em todas as
conjugações, dos dous tempos impessoaes, sem nenhuma
discrepancia entre verbos de conjugação regular, e verbos
de conjugação irregular, como se vê outrosim em por, um
dos mais excêntricos. A unica circumstancia que merece
reparo, consiste em ser possivel, nas indagações analyticas,
uma confusão momentanea entre as primeiras e as terceiras
pessoas do singular dos tempos pessoaes, com os tempos
impessoaes, mormente estando os sujeitos occultos ; porque
as formas são sempre em uns e outros identicas. Mas o
processo da substituição basta geralmente para desfazer a
duvida.

Ex. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um
ladrão por
ter furtado um carneiro ! (P. Ant. Vieira). —
(Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar uns ladrões
por
terem furtado uns carneiros !).

Porém, se, na pratica dos exercicios analyticos, o discriminar
os tempos pessoaes dos impessoaes não envolve
grande dificuldade, não succede muitas vezes o mesmo
quando se trata de escolher, no acto de escrever ou
fallar, entre uns o outros ; e ahi é, entretanto, que cumpre
dar no ponto ; tanto mais que os desacertos em tal assumpto,
apezar de offenderem o melindre da lingua, vão, por
sua frequencia, creando habitos, espalhando a incerteza,
o viciando de tal modo o tino auscultativo, que ameação a
integridade das boas tradições. Infelizmento é a materia
tão complicada, que não se deixa elucidar senão por partes,
e com o auxilio de investigações bastante minuciosas.

416. São forçosamente impessoaes todos os infinitivos
de verbos de necessidade, pela razão obvia que faltão-lhes os
tempos pessoaes do infinitivo ; e faltão-lhes os mesmos
tempos pela razão não menos obvia que nunca têm sujeito,
quer expresso, quer occulto.

Ex. O’ Deos ! se tantas lindezas e perfeições fizestes de
passagem, e como quem brinca, para
haver creaturas que
acompanhassem ao homem neste desterro, que será na patria !

(P. Man. Bernardes). — (Não :... haverem… pois diz-se :
ha creaturas que… o não : … hão creaturas que…).

Os sujeitos de que fallamos, mais os contenta haver-lhes
succedido bem nos discursos que nos negocios. (Duarto Ribeiro
de Macedo).

417. São tambem necessariamente impessoaes todos os
infinitivos entrando na combinação dos verbos prepositivos,
332quer da primeira (ter ou haver de…), quer da segunda
categoria (estar para…). A razão está em que, havendo
no verbo unidade de sentido, não obstante a multiplicidade
de palavras, seria redundancia insoffrivel reproduzir no infinitivo
consecutivo a personalidade já declarada no auxiliar.

Ex. Pois, homem! no mesmo tempo em que estás chorando
o que condemnas
, has de louvar o que choras ? (P.
Ant. Vieira). — (Não : … has de louvares…).

Não basta que, para conquistar Portugal, convoque Castelha
todas as nações ? tambem nós
nos havemos de armar
contra nós ? (P. Ant. Vieira). — (Não : …nós nos havemos
de armarmos
…).

Se se descobrissem aquellas minas, no mesmo dia havieis
de começar
a ser feitores, e não senhores de toda a vossa fazenda.
(Não : … havieis de começardes…). a roça, havião-vo-la
de embargar
para os mantimentos das minas. (Não :
havião-vo-la de embargarem). e vos havião de apenar
para o que tivesseis ou não tivesseis prestimo. (Não : e vos
havião de apenarem
…). — (P. Ant. Vieira).

418. Ficão igualmente impessoaes os infinitivos formando
o complemento directo ou indirecto de outro infinitivo.

Ex. Succede aos rios impetuosos conservarem o sabor
de suas aguas muito espaço
depois de misturar-se com as
ondas do mar
. (Epanaphoras). — (Não : …depois de misturarem-se…).

A maior fatalidade dos reis é nascerem em signo de ser
louvados
. (P. Ant. Vieira). — (Não : …. de serem louvados…)

Que razão ê que nos envergonhemos de querer ajudar o
poder divino com o ouro e com a prata e com as mais valias
da terra !
(Fr. Luiz de Souza).

Se buscarmos com verdadeira consideração a causa de
todas as ruinas e males do mundo, acharemos que, não só a
principal, senão a total e unica é não
acabarem os homens
de concordar o seu querer com o seu poder. (P. Ant. Vieira).

Oh ! Senhor ! como aos hereges, depois de se atreverem
a affrontar
vossos santos, lhes ficão ainda braços para outros
delictos !
(P. Ant. Vieira).

Tirados da agua, aquelles peixinhos ficão com uma bexiga
bem cheia de ar ; e, se se deitão assim na agua, párão na superfície,
sem
poderem descer. (D. Fr. Caet. Brandão).333

419. Ficão tambem impessoaes os infinitivos de um
idiotismo delicado, produzido por ellipse de proposições admirativas.

Ex. « Os santos a prégar (não : a pregarem) pobreza,
e
seguí-la (não : a seguirem-na) em tudo ; e eu que me metta
em faustos ! Os santos a
persuadir-me (não : a persuadirem-me)
humildade, e metter-se (não : e metterem-se) debaixo dos
pés de todos ; e eu que mostre brios e ufania !
 » (Fr. Luiz de
Souza). — Explica-se o caso pelo restabelecimento das proposições
elididas, manifestando-se então o facto occulto de
que « os santos » é o sujeito. « Admira que os santos estejão
a prégar... e seguirestejão a persuadir-me... e
metter-se
… ». Póde-se considerar este idiotismo como uma
mera variante de verbo gerundial. Comprova-o a continuação
do mesmo texto :

« Que esteja Christo mandando aos discipulos que caminhem
descalços e sem alforges, e frei Bartholomeo, successor
delles, que ande cercado, e com acompanhamento e estado de
principe !
 » — Pois nada obstaria á conversão deste theor
em o precedente : « Christo a mandar aos discipulos que caminhem
descalços, e frei Bartholomeo
…).

Outro exemplo :

Uns batem ; outros não se atrevem a bater : todos a esperar,
e todos a desesperar. (P. Ant. Vieira). — (Não :
a esperarem... a desesperarem…).

Porém os poetas da actualidade emendão tudo isso.

Ex. O besouro zumbe a sua paixão, e as estrellas sempre
a
sorrirem-se, mas impassíveis ! » O ponto exclamativo é
mesmo do poeta, de tão engraçado que achou o pensamento
e a expressão.

420. São naturalmente impessoaes todos os infinitivos
empregados em sentido abstracto, porque, recordando simplesmente
os substantivos que lhes correspondem, supprem-nos
com a vantagem do se ageitar melhor aos outros
termos da oração.

Ex. E’ cousa tão natural o responder, que até os penhascos
duros respondem, e para as vozes têm echos
. (P. Ant.
Vieira). — (E’ tão natural a resposta…).

Dar aos que merecem ou não merecem, é dar ; dar
aos que merecem, é
premiar. (P. Ant. Vieira). — (a doação
aos que merecem, é doação ; a doação sómente aos que merecem,
é
premio).

A natureza fez o comer para o viver ; a gula fez o
334comer muito para o viver pouco. (P. Ant. Vieira). — (a
natureza fez a comida para o sustento ; a gula fez a comida
abundante
para a vida breve).

Se buscarmos com verdadeira consideração é causa de
todas as ruinas e males do mundo, acharemos que, não só a
principal, senão a total e unica é não acabarem os homens de
concordar o
seu querer com o seu poder. (P. Ant. Vieira).
— (… a sua vontade com as suas forças).

Admitta o principe homens aos cargos pelo ser, não pelo
parecer
. (P. Ant. Vieira). — (pela realidade, não pela
apparencia
).

Avaliar o nascimento pelos pais é vaidade ; medi-lo pelo
tempo é superstição
 ; estimá-lo pela patria é ignorancia:
 :
e só julgá-lo pelo fim é prudencia. (P. Ant. Vieira). — (a
avaliação
do nascimentoa medição dellea estimação
dellea apreciação delle…).

Tudo é vaidade excepto amar e servir a Deos. amar
a Deos é a maior das virtudes ; ser amado de Deos é a
maior das felicidades
. (P. Ant. Vieira). — Ahi chegão os infinitivos
a uma tal propriedade de expressão, que se torna
impossivel a sua conversão em substantivos correspondentes.
O mesmo se dá com o seguinte exemplo :

Outros dirão que, para ter muito, o melhor remedio é
tê-lo, guardar, poupar, não gastar, morrer de fome, e
matar a fome ; porque dizem que muito mais cresce a fazenda
com
poupar muito que com ajuntar muito. (P. Ant. Vieira).

421. Devem, outrosim, ficar impessoaes os infinitivos
enunciando um acto imputavel ao sujeito do verbo de que
dependem como complementos directos ou indirectos, porque,
do contrario, haveria redundancia.

Ex. Quereis ter pão ? serví a Deos. quereis ter
muito ? dai-o por amor de Deos. (P. Ant. Vieira). — (Não :
Quereis terdes…).

O espinheiro respondeu ás arvores : « Se verdadeiramente
me dais o imperio
, vinde todas deitar-vos a meus pés, e
pôr-vos á minha sombra. » (P. Ant. Vieira). — (Não : vinde
deitardes-vos...
pôrdes-vos…).

Com a vantagem só de nossa união podemos igualar e
exceder largamente o numero de nossos inimigos. (P. Ant.
Vieira). — (Não : …podemos igualarmos e excedermos…).

Nascemos sem saber para que nascemos. (P. Ant.
Vieira). — (Não : Nascemos sem sabermos…).

Ainda quando os raios do céo se não contentão com
335ferir os montes, ou com se empregar nas feras e nas enzinhas,
ou só
com metter medo aos homens, raro é o raio
que seja réo mais que de um homicidio
. (P. Ant. Vieira). —
(Não : … se não contentão com ferirem... com se empregarem
com metter em…).

Sejão os principes como Christo, no repartir ; e sejão
os vassallos como os discipulos, no contentar-se, e cessarão
as queixas
. (P. Ant. Vieira). — (Não : … Sejão os principes
no repartirem... e sejão os vassallos... no contentarem-se…).

Que importa que nos cansemos em fechar as cidades de
muros, se a brecha está aberta nos corações ?
(P. Ant. Vieira).
— (Não : … que nos cansemos em fecharmos…).

Depois que, no mundo, se introduziu venderem-se as honras
militares, converteu-se a milicia em latrocinio, e
vão os soldados
á guerra
a tirar dinheiro com que comprar, e não a
obrar
façanhas com que requerer. (P. Ant. Vieira). —
(Não : … vão os soldadosa tirarem dinheiro com que comprarem,
e não a obrarem façanhas com que requererem
).

Alli os homens, desfigurados como toupeiras, vivem debaixo
da terra
sem ter olhos para ver a luz. (P. Ant.
Vieira). — (Não : … vivem... sem terem olhos para verem a
luz
).

As catastrophes dos reinos... a quem se devem attribuir ?..
Aos que só são admittidos a dizer e a ser ouvidos. (P.
Ant. Vieira). — (Não : …são admittidos a dizerem e a serem
ouvidos).

No adquirir ou perder amigos, nós devemos portar
com o mesmo sentido que no adquirir ou perder fazenda. (P.
Man. Bernardes). — (Não : …nos devemos portarmos, nem
devemos portarmo-nos
…).

Posto que os avarentos, por não gastar, costumem andar
a pé, a Avareza anda sempre de carroça
. (P. Ant. Vieira). —
(Não : …por não gastarem…).

Não são só ladrões os que cortão bolsas, ou espreitão os
que se
vão banhar, para lhes colher a roupa. (P. Ant.
Vieira). — (Não : … espreitão, para lhes colherem a roupa, os
que se vão banharem
).

Diogenes viu que uma grande tropa de varas e ministros
de justiça
levavão a enforcar uns ladrões, e começou a
bradar
 : «  vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. »
(P. Ant. Vieira). — (Não : …levavão a enforcarem
vão a enforcarem…).

Vede se os que mais carregados e sobrecarregados se vêm
destas felicissimas drogas
têm razão de se entristecer ou
336de se alegrar, e de saltar da terra ao mesmo céo, de
prazer
. (P. Ant. Vieira). — (Não : … têm razão de se entristecerem
ou de se alegrarem, e de saltarem
…).

De certos homens da casta daquelles de quem dizia Socrates
que não
comião para viver, mas só vivião para
comer
, conta a Sagrada Escriptura que, exhortando-se de
commum consentimento, dizião
 : « Comamos e bebamos, porque
amanhãa havemos de morrer.
« Mas, que fundamento tinhao
estes homens, ou estes brutos, para prognosticar que, ao
outro dia, havião de morrer ?
(P. Ant. Vieira). — (Não :
comião para viverem... vivião para comerem... tinhão para
prognosticarem
…).

Nem o anjo, nem o homem se contentarão com poder
o que podião. (P. Ant. Vieira). — (Não : …se contentárão
com poderem
…).

Ha erros que mais credito trazem ao emendar-se, do
que desdouro
ao commetter-se. (P. Man. Bernardes). —
(Não : … trazem ao emendarem-se, do que... ao commetterem-se).

Quando Fr. Bartholomeo dos Martyres começou a pôr em
pratica o plano que havia formado para regime do arcebispado
de Braga, cuja austeridade, onde se deu mais a ver, foi em
sua pessoa, casa e família
, começarão tambem logo a se espalhar
vozes em desabono do arcebispo. (Fr. Luiz de Souza).
— (Não : …começarão a se espalharem vozes…), porque
vozes é que constitue o sujeito de começárão.

Tudo o que nasce na terra, o sol ou a chuva o cria ;
mas o mesmo sol, se é demasiado, o queima ; e a mesma
chuva, se é muito continuada, o afoga : para que
acabemos
de nos desenganar
da pouca firmeza ou segurança que póde
haver nos bens que são da terra
. (P. Ant. Vieira). — (Não : …
para que acabemos de nos desenganarmos — ou de desenganármo-nos…).

Naquellas embarcações, os passageiros e navegantes têm
tudo prestes, sem
lhes ser necessario ir carregados de matalotagem.
(P. João de Lucena). — (Não : … irem carregados…).

Finalmente perdem-se, ou acabão de se perder as quasi
perdidas almas, como muitos
, por não ter que jogar e perder,
se entregárão ao demonio. (P. Ant. Vieira). — (Não : …
acabão de se perderem... como muitos, por não terem que
jogarem e perderem, se entregárão
…).

Dá muitas graças á estreiteza de tua mesa, e ao teu pouco
pão, porque, sendo certo que todos hão de chegar á sepultura

337sem nenhum remedio, só tu, por comer menos, chegarás á
sepultura mais tarde, e
tu, por comer menos, serás nella
menos
comido. (P. Ant. Vieira). — (Não : só tu, por comeres
menos, chegarás...
só tu, por comeres menos, serás menos comido).

422. Emfim, mesmo quando o acto do infinitivo não
é imputavel ao sujeito do verbo de que o mesmo infinitivo
depende, deve este permanecer nos tempos impessoaes, se
entrar na dualidade de complementos directos de que mais
adiante trata o § 447.

Este caso é tanto mais notavel, que, embora não seja
peculiar da lingua portugueza, nunca tem sido ventilado
até nas grammaticas mais reputadas. Muito pelo contrario :
de alguns aphorismos que vogão nas escolas com uma autoridade
indiscutivel, deve-se concluir que não existe, ou
que, se viesse a apparecer, seria considerado como erro
palmar. Entretanto lá está, escudado, não só pela logica,
como pela sancção dos mais irrecusáveis classicos ; e os
erros palmares são os que tão frequentemente decorrem
da ignorancia da regra. Pois, quantos dentre os escriptores
modernos, a julgar pelas suas lições, a elles, aceitarião, como
correcto, o seguinte excerpto do P. Ant. Vieira, fallando
do « Pão para a bocca ? »

Os elementos não são viventes, e a este mesmo fim cansamos,
e
fazemos trabalhar aos mesmos elementos (trabalharem,
escreverião os puristas da actualidade). O fogo
nas forjas e nas fornalhas, a agua nas levadas e nas azenhas,
o ar nas velas e nos moinhos, a terra nas vinhas e nas searas,
até o sol e a lua e as estrellas não
deixamos estar ociosos
desta pensão
(… estarem, bradarião elles).

Agora vámos ao P. Man. Bernardes, no seu apologo
« Das cotovias. »

Dissera o dono do campo a seus criados que tratassem de
metter a fouce, se
vissem estar os pães sazonados. — Pois
tambem Bernardes deve soffrer a emenda estarem ? e,
porque ? — « Porque, dizem elles, ahi é o substantivo « os
pães » o sujeito do infinitivo ; e portanto, pela regra da
concordancia, deve o infinitivo, passar para o plural. » —
Nisso é que está o erro. O substantivo pães é mero complemento
directo do facto vissem (Se elles vissem, o que ?
os pães) : logo não póde fazer funcção de sujeito. A singularidade,
porém, consiste em ser o referido substantivo
collateralmente complemento directo com o infinitivo passivo
« estar sazonados ». (Se elles vissem mais, o que?
estar sazonados).338

423. De todas estas considerações sobre o emprego
dos tempos impessoaes do infinitivo, o que se póde summariamente
concluir, é que, ao avesso das idéas que parecem
geralmente prevalecer, a impersonalidade é propriedade
essencial deste modo, e a personalidade, propriedade
accidental, porém de tanta utilidade e agrado na dicção,
quando opportunamente empregada, que as linguas que
della carecem, mal a conseguem supprir pelos rodeios mais
ou menos enfezados. Duas observações, outrosim, se prestão
a confirmar esta supposição : uma intrinseca, outra extrinseca.

A primeira consiste em que, mesmo nas outras linguas
oriundas do latim, a personalidade do infinitivo por meio
de terminações caracteristicas não existe ; ao passo que nenhuma
lingua prescinde de formas impessoaes no mesmo
modo. Logo só estas são as essenciaes.

A segunda observação póde parecer um pouco casuistica ;
todavia, vindo de certo modo em auxilio á solução de
tão melindrosa questão ella adquire desta circumstancia
algum gráo de plausibilidade.

Quem considera as tabellas dos tempos pessoaes transcriptas
no § 415, não póde deixar de notar que o radical
dos verbos apparece ahi, não propriamente deslocado, e sim
ampliado. Pois, sendo o radical o mesmo em todos os mais
tempos das conjugações, como am em amar, rend em render,
o pun em punir, ahi vem elle a ser, em todos os verbos
sem excepção, a mesma fórma do tempo primordial : amar,
render, punir, pôr, ter, haver, ser, estar, etc., com terminações
identicas para todas as conjugações. A illação
que dahi naturalmente decorre, é que os accrescimos terminativos
que consituem propriamente os tempos pessoaes,
forão a principio como lembranças surgindo de momento
para obstar aos numerosos equivocos que provocaria infalivelmente
o uso exclusivo das formas impessoaes. E, com
eífeito, todas as indagações sobre o assumpto reduzem a
importancia dos tempos pessoaes a uma funcção de utilidade
pratica, porém valiosissima, quando reflecte-se que
ella confere á linguagem os predicamentos mais indispensaveis :
a rapidez e a clareza.

Ex. Para sermos mais do que somos, não é necessario
multiplicar homens : basta unir corações
. (P. Ant. Vieira). —
Tire-se ao infinitivo sermos a sua terminação pessoal, e, de
lucido que é, o pensamento se apresenta obscuro o amphibologico
(Para ser mais do que somos… ?!).

424. Os tempos pessoaes do infinitivo estão sujeitos a
339duas hypotheses : ou apparecem com sujeito expresso, ou
apparecem sem sujeito expresso.

425. No primeiro caso, a concordancia justifica-se por
si mesma. A unica duvida que pode occorrer — (e ella
occorre : vejão no trecho citado sob o § 355 : « e, por assim
ser os conselhos das mulheres,… »), — origina-se, ou de se
attribuir ao sujeito outra funcção do que a que lhe compete,
ou de se lhe passar por alto ; mas, em todo o caso,
a consequencia é commetter-se um desacerto na terminação
do infinitivo, como neste excerpto de um periodico :
« Aquelle magistrado lembrou ao mesmo tempo a necessidade
de se votar medidas que tivessem como resultado a volta á
circulação metallica
. » Devia ser : « … de se votarem medidas… ».

Os seguintes exemplos não têm outro fim senão o de
exercitar o espirito em semelhantes pesquizas.

Não se fazerem mercês é faltar com o premio á virtude.
(P. Ant. Vieira).

A maior fatalidade dos reis é nascerem todos em signo
de ser louvados
. (P. Ant. Vieira).

Dizem que, para se conhecerem os amigos, havião os
homens de morrer primeiro, e dahi a algum tempo (sem ser
necessario muito) resuscitar
. (P. Ant. Vieira).

Pois para isto assistem ao throno os quatro animaes do
Apocalypse
, …para, quando sahir do throno a voz, elles dizerem
os amens. (P. Ant. Vieira).

E, quando as mesmas frotas voltavão carregadas de ouro
e prata, nada disto era para allivio ou remedio dos povos,
senão para mais
se encherem e incharem os que tinhão
mando sobre elles, e para
se excogitarem novas artes de
esperdiçar, e novas
invenções de destruir. (P. Ant. Vieira).

D. Affonso de Aragão disse : « Amarga muito comer o
general
, e jejuar o exercito. » (P. Man. Bernardes).

Donde nasceu, a meu guizo, fingirem alguns philosophos
que as almas dos homens se traspassavão em corpos de
diversas bestas
. (João de Barros).

E dizerem as fabulas que Actean foi convertido em
corço, não é outra cousa senão que, pelo muito exercido e continuação
da caça, se fez agreste, e semelhavel aos animaes com
que tratava
. (João de Barros).

E, se este natural appetite de quererem os homens
sempre mais do que podem, nem na soberania dos que podem
tudo, se farta, que será dahi abaixo, desde os maiores entre

340os grandes, até aos minimos entre os pequenos ? (P. Ant.
Vieira). .

Quem pois negará serem mais que barbaros os que se
portão com este tão grande descuido e esquecimento !
(Fr.Luiz
de Granada).

No monte Calvario esteve esta Senhora sempre ao pé da
cruz; e, com
serem aquelles algozes tão descortezes e crueis,
nenhum se atreveu a lhe tocar
. (P. Ant. Vieira).

Póde haver maior desgraça que não ter um homem bem
algum digno de inveja ?
(P. Ant. Vieira).

Fr. Luiz de Granada convidou ao bispo de S. Thomé
para o acompanhar, e
fallarem ambos ao arcebispo sobre o
que delle dizião, e
concertarem o modo de seguir uma vida
que, não deixando de ser religiosa, fosse comtudo mais desaffrontada
.
(Fr. Luiz de Souza).

Se não sahe expresso o sujeito de um infinitivo empregado
como complemento directo ou indirecto, ou ainda
como predicado, as formas pessoaes ficão, não obstante justificadas :

1.° Quando o sujeito do acto é diverso do do facto.

Ex. Não fazerem Mercês os reis seria não serem reis.
(P. Ant. Vieira). — (O sujeito de seria é fazerem ; o de
serem é [elles] os reis).

Como acontecia virem a Braga muitos religiosos de todas
as ordens, ou outros ecclesiasticos
, havia o arcebispo por
affronta sua
andarem por estalagem. (Fr. Luiz de Souza).

Um só meio acho aos reis para salvarem, ambos estes
inconvenientes
. (P. Ant. Vieira).

Ninguem fallou ás arvores em haverem de deixar
os seus fructos. (P. Ant. Vieira).

2.° Quando a declaração da personalidade do infinitivo
fica tão indispensavel á intelligencia do texto, que, seja embora
o sujeito do acto tambem o do facto, não haja todavia
outro meio de tornar a oração desembaraçada de obscuridade
ou amphibologia.

Ex. Pois, se ninguem fallou ás arvores em haverem de
deixar os seus fructos, porque
se excusão todas com os não
quererem deixar ? Porque entenderão, sem terem entendimento,
que quem aceita o governo dos outros, só ha de tratar
delles, e não de si...
Esta é a particular difficuldade e o grande
perigo em que estão, de se não conformarem com o Soberano
Original, os que representão as imagens que têm as raizes na
terra. E’ necessario
, para se conservarem nesta nova representação,
341e para governarem como devem, que se apartem
de suas proprias raizes
. (P. Ant. Vieira). — (Enecessario
que
[elles] se apartem... para [elles] se conservarem... e
para
[elles] governarem…).

Observação. Neste ultimo caso, como em outros
muitos, a anteposição anormal do infinitivo ao verbo do
que depende, não pouco contribue, pela suspensão de sentido
que costumão produzir as inversões, a aconselhar o
emprego da personalidade no mesmo infinitivo, para desfazer
assim toda e qualquer incerteza. Tal é, ao menos, a
inducção que se deixa tirar do cotejo de numerosas passagens
dos classicos.

E, para mais verificarmos isto, — faremos uma parábola,
imitando
quelle que, para todos, se fez unico exemplar.
(João de Barros). — (… faremos uma parábola para mais
verificar isto…).

Estes serião os perigos ou inconvenientes das minas : para
bem os avaliarmos, — sirvamo-nos de exemplos visinhos.
(P. Ant. Vieira). — (… sirvamo-nos de exemplos visinhos,
para os bem
avaliar).

Dos gerundios

Advertencia. Na nossa primeira grammatica, dentro
os não poucos erros em que nos fez incorrer uma exagerada
deferencia a opiniões tradicionaes, e dentre outros
erros que só a nós devemos imputar, assignalamos agora o
do termos incluido os gerundios na classe dos participios.
Porém, reconsiderando este caso á luz dos principios da
grammatica geral, viemos a descobrir que os gerundios são
meras formas do infinitivo ; o que ficou, aliás, confirmado
pela presteza com que se deixão, sob este novo aspecto,
ageitar ás regras geraes da analyse, quando a ellas se
mostrão tenazmente refractarios, sendo havidos por participios.

426. Das cinco funcções a que se presta o infinitivo
nos seus quatro primeiros tempos, os gerundios exercem
só duas : a de complemento indirecto, e a de apposição. Pela
segunda, relacionão-se, sem duvida, não só com as outras
formas do infinitivo, senão tambem com o participio variavel;
porém, pela primeira, differenção-se terminantemente
deste, porque nunca compete ao mesmo participio constituir
de per si só um complemento desta especie ; e, quando por
acaso succeda que appareça regido do uma preposição, é
342por se dar ellipse de um verbo de estado, junto ao qual
este participio faz a funcção do predicado.

Ex. Recebe a terra o grão de trigo ; e, depois de coberto,
ella como mãi, o recolhe em seu seio. (Fr. Luiz do
Granada). — (… e, depois de [elle estar] coberto…). —
O regime que ahi tem a locução propositiva depois de, é
propriamente o infinitivo subentendido estar, e não o participio.

Mas não é só por este lado que os gerundios discordão
dos participios variaveis para se aparentarem com os mais
tempos do infinitivo. Como estes, conforme o verbo a que
pertencem, elles podem ter um complemento directo ou um
predicado ; emfim, não sendo de verbo impessoal, apparecem
muitas vezes com um sujeito exclusivamente seu, e
em todos os casos, alludem a uma das tres epocas da duração,
o que tudo de modo algum cabe nos participios
simples qualificativos de procedencia verbal.

Por ultimo, quando não bastassem tantos predicamentos
para justificar a sua agregação ao modo infinitivo, ainda
ficava por notar que o gerundio simples corresponde exactamente
aos dous outros tempos simples do infinitivo ; pois
com elles tem em commum a propriedade do assignalar,
tanto o presente, como o passado ou o futuro ; ao passo
que o gerundio composto, por corresponder pela sua vez
aos dous outros tempos tambem compostos, só serve, como
estes, a designar uma epoca sempre anterior á do facto de
que depende. (V. § 413).

Desta exposição theorica, o que resalta, é que, por
tudo quanto e essencial, os gerundios são verdadeiras fórmas
do infinitivo. Que lhes faltou, portanto, para que
pudessem vir a ser indevidamente confundidos com outra
especie de palavras ? Por um acaso muito apreciavel, visto
escoimar a linguagem de não pequenas dificuldades, os gerundios,
quer regidos do um sujeito proprio, quer encostados
como apposições, não manifestão abertamente nenhuma
de suas relações ; são faltos de variabilidade. Esta
circumstancia, baralhando as idéas, só deixou perceber que
os gerundios se portão frequentemente como adjectivos, ou,
para fallar de conformidade com a nomenclatura desta
grammatica, como apposições junto a um substantivo ou
pronome : desta observação, o de sua origem verbal proveiu
provavelmente o desacerto de sua classificação entre os
participios.

427. Demonstra-se pelos seguintes exemplos que, procedendo
de um verbo provido do complemento directo, os
gerundios guardão o mesmo complemento.343

Se alguem, pois, colhendo uma flor destas, a desfolhar,
que mão de official será tão poderosa, que faça outra que
iguale com ella ?
(Pr. Luiz de Granada). — (Colher uma
flor).

Cousa dificultosa parece que, tendo Arcadio presidiado
o seu imperio com as legiões romanas, e não havendo então
inimigo estranho que com poderosos exercitos lhe fizesse
guerra, houvessem de bastar poucos homens desarmados para,
dentro em sua propria casa, destruirem o imperador, e mais o
imperio
. (P. Ant. Vieira). — (Presidiar um imperio… haver
[ha, não ha] inimigo… inimigos…).

428. Demonstra-se pelos seguintes exemplos que, procedendo
de um verbo de estado, os gerundios guardão o
predicado do mesmo verbo.

Os pobres são os banqueiros de Deos : dá-se naquelle
banco a cento por um ; e
, sendo nós tão amigos de accrescentar,
não mettemos todo o nosso cabedal naquelle banco
/
(P. Ant. Vieira). — (Nós somos tão amigos…).

Os elephantes, quando fazem alguma jornada, e na marcha
se deitão, não é para se tornarem a levantar, porque alli
morrem
, indo cansados. (João Kibeiro). — (Nós vamos [estamos]
cansados).

429. Demonstra-se, emfim, pelos seguintes exemplos
que, os gerundios se podem achegar a um sujeito tão exclusivamente
seu, que, embora não fique assignalado por
nenhuma concordancia terminativa, fica-o sufficientemente por
simples conversão dos mesmos gerundios em um modo de
facto.

Ex. Bem me lembra que, indo eu um dia de Bethlem
(como
eu fosse um dia de Bethlem), mal disposto em cima de
um burro, diante um bom espaço dos companheiros, me encontrárão
dous mancebos mouros bem valentes, a cavallo ; e, porque
me virão só, mui asperamente me mandarão que me apeasse,
por lhes fazer reverencia; o que não
querendo eu fazer (como
eu o não quizesse fazer), se forão a mim indignados. (Pantaleão
de Aveiro).

Havendo concorrido innumeraveis turbas de gente
(como houvessem concorrido innumeraveis turbas de
gente), começou Christo a dizer a seus discipulos que fugissem
de communicar com os phariseos
. (P. J. B. de Castro).

Se alguem pensa que, sendo assolado o reino (quando
for assolado o reino), póde a sua casa ficar em pé, engana-se
muito enganado
. (P. Ant. Vieira).344

El rei Artaxerxes, sendo-lhe tomada a sua bagagem
pelos inimigos (porque fora-lhe tomada a sua bagagem
pelos inimigos), veiu, fugindo, a parar onde não achou, para
comer, mais que uns figos seccos com pão de cevada
. (P. Man.
Bernardes).

Caminhando socrates (caminhava socrates), um atrevido
se descomediu com elle, e lhe deu um couce
. estranhando
alguns
a paciência do philosopho (Como estranhassem al-,
guns
a paciencia do philosopho), disse : « Pois eu, que lhe hei
de fazer depois de dado
[… depois de ter sido dado] ? » Respondêrão :
« Demandá-lo em juizo pela injuria. » Replicou :
« Se elle, em dar couces, confessa ser jumento, quereis que leve
um jumento a juizo ?
 » (P. Man. Bernardes).

Ora, se assim ficou demonstrado que o gerundio póde
ter, e realmente tem um sujeito exclusivamento seu, claro
é que o não deve nem póde compartir com um infinitivo
que lhe venha a servir de complemento directo, porquanto
dahi originar-se-hia uma redundancia insoffrivel. Não se
diga, portanto, como tão a miudo se lê em publicações periodicas :
« Foi escolhido um edifício appropriado ao mister
que se tem em vista
, devendo effectuarem-se quanto antes
as mais accommodações necessarias. » Pois o que dá a conhecer
o processo da substituição, é que « as mais accommodações… »,
sendo com toda a evidencia o sujeito do gerundio
« devendo » (… as mais accommodações devem….),
impossivel é que actue ainda a mesma palavra sobre o
infinitivo « effectuarem-se ». Diga-se, logo : « Foi escolhido
um edifício appropriado ao mister que se tem em vista
, devendo
effectuar-se
quanto antes as mais accommodações. necessarias. »

Causa pasmo notar que, nem suspeita, nem repugnancia
infundão aos contemporaneos escriptores loquelas tão desafinadas.
Entretanto a prova do não ser tal dureza do
ouvido enfermidade rara, ei-la estampada no seguinte annuncio,
de lavra mais ou menos official : « Abrem-se hoje as
aulas
, devendo os alumnos apresentarem-se com os respectivos
(documentos)… » Não é possivel deixar de fazer sobre
o caso uma reflexão em fórma do cotejo. Os alumnos
assim convocados, que deverão estudarem, em que deverão
instruirem-se
lá sob as vistas do mordomo-mór
daquella casa ? Naturalmente na grammatica que abona
taes e quejandas exquisitices, na philosophica : « Os alumnos
devem
apresentarem-se… »

430. Assim explanadas todas as relações syntaxicas
que interessão o modo infinitivo como expressão verbal,
345nada mais se oppõe a que as que lhe são especiaes como
expressão substancial, sejão discutidas nos capítulos em
que, a par dos substantivos, o mesmo modo constitue sujeitos,
complementos directos ou indirectos, predicados ou
apposições.

Capitulo V
Do sujeito

431. Sujeito é o termo que, constando de uma ou
mais palavras, impõe ao verbo o numero e a pessoa. Faltando,
portanto, o sujeito, falta por isso mesmo ao verbo
a personalidade ; e esta é a razão por que o verbo, em
taes casos, só accusa uma unica forma em cada tempo.
Ficão exceptuados tão sómente os gerundios, por-lhes não
assistir mais de uma forma, quer tenhão sujeito, quer não.

Ex, E, quando as despezas de tudo isto deverão sahir
do que sobejasse nos erarios e thesouros reaes, que será onde
se vêm tiradas e espremidas das lagrimas dos vassallos carregados,
e com tributos sobre tributos
, chorando os naturaes
para que se alegrem os estranhos, e antecipando-se as exequias
á patria por onde se lhe devera procurar a saude ?
(P. Ant. Vieira).

Não se soffre que gente que tem um mesmo Pai celestial,
e caminha juntamente para uma mesma cidade celestial, não
se ame no caminho
, havendo de ter no cabo da jornada tão
perfeita amizade e paz eternamente
. (D. Fr. Bartholomeo dos
Martyres).

432. As unicas especies de palavras idoneas para constituir
um sujeito são : o substantivo, o pronome, e o
verbo no infinitivo
.

Ex. Todos os homens querem ter pão, e muito pão.
(P. Ant. Vieira).

Em buscar pão se resolve tudo, e tudo se applica a
o buscar
. (P. Ant. Vieira).

Pois, o dar é caminho de accrescentar ? (P. Ant. Vieira).

Observação. Muito diversa é a doutrina que a tal
respeito voga.346

Proclama-se, em primeiro lugar, que, não só as tres
designadas especies de palavras, senão tambem todas e
quaesquer palavras, comtanto que substantivadas, podem
constituir um sujeito.

Ahi não ha propriamente erro : apenas ha desconhecimento
das cautelas com que cumpre formular um principio
didactico para o escoimar das falsas interpretações. O que
é verdade, é que toda e qualquer palavra póde vir a ser
tomada em sentido substantival, caso em que, para denunciar
a sua transmigração para esta classe, ella costuma
amparar-se de um artigo ou de algum adjectivo determinativo.

Ex. Oh ! quem pudera examinar este porque !… os
porques
desta desunião nenhuma cousa valem, nenhuma cousa
montão, nenhuma cousa pesão ; e as consequencias della montão
tudo, pesão tudo, e levão tudo !
(P. Ant.Vieira).

Ora a consequencia a tirar deste principio não é que
uma palavra substantivada póde vir tão sómente a formar
um sujeito, mas que póde ainda formar cada um dos outros
termos em que ao substantivo compete exercer uma funcção.
Verifica-se, aliás, esta allegação no exemplo citado ; pois,
se a locução « os porques » constitue o sujeito dos tres
factos subsequentes « valem, montão e pesão », a locução
« este porque » forma, pelo contrario, o complemento directo
de « examinar ».

O que, outrosim, não é menos certo, é que toda e
qualquer palavra substantivada, seja originariamente artigo,
adjectivo, participio, preposição, adverbio, conjuncção ou
interjeição, deixa absolutamente de exercer, nessa nova
accepção qualquer das funcções que lhe são peculiares na
sua significação primaria, e portanto nada mais é daquillo
que era. Haja vista outra vez que, no exemplo citado,
nenhum de ambos os porquês apresenta-se como ligação
subordinativa, embora seja esta a sua funcção especial.
Não é prudente, portanto, dizer que um adverbio ou uma
conjuncção
, por exemplo, póde constituir um sujeito, porquanto
a palavra assim capitulada, nada mais tem, em tal
caso, da conjuncção ou do adverbio, nem sequer a invariabilidade
(Os porques…).

Outra pretenção, que tem o assenso, senão de todos,
ao menos da mór parte dos grammaticos, é que uma proposição,
ou oração, como sóem dizer, póde vir a formar o
sujeito do um verbo. Isso é simplesmente um daquelles
absurdos que tanto desacreditão a sciencia grammatical,
por emmaranhá-la em inextricaveis dedalos, onde tudo é
confusão e trevas.347

Pois, em principio, se uma proposição póde constituir o
sujeito de outra proposição, segue-se que a primeira vem a
formar simplesmente um dos termos da segunda, isto é, a
ser uma das suas partes : Ora, de duas, uma : ou ha duas
proposições, ou ha uma só. Se ha duas, como póde vir
uma a ser ao mesmo tempo um todo e uma mera parte ?
Evidentemente ella teria de em tal caso abdicar a sua autonomia
como expressão de um pensamento para servir
apenas, como sujeito, do simples elemento secundário junto
ao facto do outro pensamento. Se não ha duas proposições
(porque nunca é um sujeito de per si mesmo o representante
de um pensamento), se ha uma só proposição, emfim,
como então argumentar com duas ? como dizer : uma proposição
póde vir a ser o sujeito de outra proposição?
Tanto
vale pretender que um pensamento, e mais um pensamento
são um pensamento, e não dous.

Offerecerá ao menos o principio discutido, na sua applicação
ás demonstrações analyticas, alguma vantagem
pratica, que o releve da insanavel contradicção do que se
acha eivado em theoria ? Nenhuma. Observe-se, com effeito,
este principio em um dos exemplos mais proprios
para lhe grangear ganho de causa.

« Quem quer vai, — quem não quer manda. » (P. Man.
Bernardes).

Nesta sentença proverbial, os propugnadores da proposição
sujeito
achão por duas vezes realisado o sonho de sua
predilecção. Pois exclamão ufanos : Quem é que vai ? Resposta :
Quem quer. — Quem é que manda ? Resposta : Quem
não
quer. — Ora, concluem elles, se « Quem quer », que,
pelo seu verbo, designa uma proposição ou oração, é o sujeito
de « vai », o « Quem não quer » que está em identicas
condições, é o sujeito de « manda », como recusar-se á
evidencia de que uma proposição ou oração póde, em certos
casos, tornar-se realmente o sujeito de outra ! Isto não
soffre impugnação. Pois, a não ser assim, onde estaria o
sujeito ?

Antes de proceder á solução racional da difficuldade,
indispensavel e dirigir aos contrários uma pergunta. Que
representa ahi o vocabulo quem, seja, aliás, qual for a
classe do pronomes em que cada um o colloque? todos
respondem una voce que é palavra contracta : uns accrescentão
que representa « Que homem » ; outros, que representa
ainda « O homem que » ; e nós, que aceitamos gostoso
estas decomposições analyticas, porque temo-las tambem
como indubitaveis, juntamos-lhes apenas, de sobra, o escolio
348tão legitimo como os precedentes : « Aquelle que », visto se
ageitar melhor a certas transformações do texto.

Agora, sendo incontestavel que todo o exame analytico
regularmente instituido deve considerar as palavras contractas
nos seus elementos constitutivos, dahi resulta que
o trecho em these se converte indifferentemente, sob o
processo analytico, em :

« O homem que quer vai, o homem que não quer manda » ;
ou em « Aquelle que quer vai, aquelle que não quer manda » :
o que dá, em ultima evolução, as quatro proposições que
se seguem, sedo cada facto de cada uma regido do seu
competente e proprio sujeito, que não é nenhuma proposição,
e sim algum pronome dos mais categoricamente qualificados,
o que repõe tudo nos devidos eixos :

Aquelle vai, — que quer (o qual) ;
aquelle
manda, — que não quer (o qual).

Outrosim, desta solução certamente logica, deduz-se um
corollario que, embora só applicavel á theoria da pontuação,
merece todavia uma menção antecipada, como prova do
que nada occorre, em tão minuciosas indagações, que seja
inteiramente ocioso : este corollario conclue em que a pontuação
correcta deste trecho não é a que de proposito copiámos
servilmente na sua primeira transcripção, e sim a
seguinte :

« Quem quer, vai ; quem não quer, manda ».

E é mais ou menos pelo mesmo modo que se resolvem
todos os phantasiados casos de proposição sujeito.

433. Constando de pronome pessoal, o sujeito fica,
por amor da brevidade e euphonia, mais geralmente omisso
do que expresso. Constando do infinitivo, a omissão é caso
excepcional, porque o infinitivo nunca póde ser substituido
por elle ou ella. Todavia, para que a suppressão do sujeito
seja justificada, cumpre que a palavra omissa acuda
ao espirito com presteza e sem embargos.

Ex. Os cavadores não serieis os mais nobres e ricos da
terra
. (P. Ant. Vieira). — (… não serieis vós…).

Se, porém, a um verbo na terceira pessoa do singular
não conseguem os tentames analyticos impôr elle ou ella
como sujeito, nem tão pouco, um infinitivo anteposto ou
posposto, signal é que um tal verbo é impessoal, isto é,
falto de sujeito.

Ex. Emquanto no mundo não houve ouro, então foi
idade de ouro. (P. Ant. Vieira).349

Experimentação analytica :

Emquanto no mundo elle ou ella não houve ouro (!!!),
então elle ou ella foi idade de ouro (!!!). Ahi, portanto,
são os dous verbos igualmente impessoaes.

Exemplo de omissão de sujeito constando de infinitivo :

Sobretudo o tribunal supremo da razão assim o prova,
porque amigo de amigos, e inimigo de inimigos
É voz que sôa
justiça, merecimento, proporção, igualdade
. (P. Ant. Vieira). —
(… porque [ser] amigo de amigos, e inimigo de inimigos É
voz que
…).

Nos seguintes exemplos, a suppressão indevida de um
sujeito idoneo, junta ao emprego mal cabido da conjuncção
copulativa e, torna as orações, senão de todo amphibologicas,
ao menos de construcção viciosa :

Queixou-se a el rei D. Pedro I um ministro de justiça de
que, indo a fazer uma citação a certo fidalgo, este lhe dera
uma punhada, e lhe arrancara alguns cabellos da barba. O
rei, entregando a vara a um corregedor que estava presente,
lhe disse com grande fogo de zelo
 : « Acudi-me, Corregedor,
que me derão uma punhada, e me arrancarão as barbas
 ».
Foi logo o corregedor ; prendeu o delinquente, e foi degollado.
(P. Man. Bernardes). — Quem não pensaria, á primeira
vista, que o degollado foi o corregedor ? Emendar-se-hia
a oração pela introducção de um pronome relativo
… o qual foi degolado.

Perguntou Alexandre a Diogenes porque era tão amigo do
silencio
, e respondeu-lhe : « Porque o silencio é meu. » (Luiz
Torres de Lima). — (Parece que quem responde é o mesmo
que pergunta. Emendar-se-hia o caso pela introducção de
um pronome demonstrativo …este lhe respondeu…).

434. Todo o sujeito é simples ou composto (V. § 51).
Sendo simples, com elle concorda o verbo, não só em numero
e pessoa, senão tambem em genero quando o mesmo
verbo é da voz passiva.

Ex. Com a carga demasiada cahe o jumento, rebenta
o canhão, e vai-se o navio a pique.

Levados de ambição, querem os homens mais do que
podem e devem [elles podem e devem] ; por isso, os altos
cahem, os grandes rebentão
, e todos se perdem.

Quantos vierão a servir porque quizerão [elles quizerão]
ser
mais servidos, ou servidos de mais do que
podião [elles podião] ] manter ! (P. Ant. Vieira) :350

Saber o mundo é possuí-lo, porque é comprehender com
o entendimento, e conservar no thesouro da memoria tudo o
que nelle
dispõe e obra a natureza. (P. D. Raphael Bluteau).
— (… porque [saber o mundo] é comprehender com o
entendimento
…).

Sendo o sujeito composto, a regencia por elle exercida
não é tão absolutamente a que, importada da lingua franceza,
onde tem o seu cabimento, vai desmoronando por
ahi, nas escolas, a vernaculidade portugueza, que repugna
ao afrancezamento syntaxico por indole e isensão. A fórmula
que por ora rege discricionariamente este caso, é
pouco mais ou menos a seguinte por toda a parte :

« Com mais de um sujeito, ainda que seja cada um do
singular
(isto é, por esta nossa grammatica : Com um sujeito
composto, ainda que cada um dos componentes esteja
no singular), o verbo se põe regularmente no plural, concordando
com todos, quer elles estejão ligados por conjuncções,
quer não
. » (Extrahido). — A lição uniforme e constante
dos classicos desmente tão restricto e acanhado preceito :
o que ella ensina, é que convém distinguir, procedendo por
partes, para assentar a doutrina sobre as normas de boa
tradição.

435. Vindo o sujeito composto a constar de substantivos
ou de pronomes, ou promiscuamente de substantivos
e pronomes todos do plural e da mesma pessoa, o verbo
vai naturalmente para o plural, sendo que, se tiver de concordar
tambem em genero, por ser passivo, a concordancia
se effectua com a palavra que, do mesmo sujeito, lhe fica
a mais chegada, quer por anteposição, quer por posposição.

Ex. A polvora, as balas, os canhões são comprados.
(P. Ant. Vieira).

Nestes damnos não reparão os ministros e seus officiaes,
retendo as causas. (P. Man. Bernardes).

Leião-se as epistolas de S. Paulo, e particularmente as
que escreveu aos Romanos, aos Gaiatas, aos Ephesios
. (Fr.
João Pacheco).

Emfim [os aduladores do rei, se têm muitos rostos, têm
uma só voz], porque sempre
a lingua e os gestos estão
aparelhados
, ou na vontade declarada para approvar, ou na
inclinação só presumida para o prevenir
. (P. Ant. Vieira).

436. Vindo o sujeito composto a constar de substantivos
todos no singular, a regra de concordancia não é a
351mesma, conforme o mesmo sujeito vai anteposto ou posposto
ao verbo.

1.° Andando o sujeito anteposto ao verbo, e avocando
pela sua complexidade, uma feição irresistivel de pluralidade,
o verbo passa tambem para o plural.

Ex. Assim como jacob e esau nascerão na mesma hora,
assim acabárão a vida na mesma idade
. (P. Ant. Vieira).

Simeão e levi forão aquelles dous irmãos que, para
vingar uma injuria que o principe Sichem tinha feito a sua
irmãa, matarão ao mesmo Sichem e a todos os Sichinistas
.
(P. Ant. Vieira).

O peccado da usura, e a enfermidade da lepra parecem-se
em muitas cousas. (P. Man. Bernardes).

Se a guerra é civil, o sangue, a amizade, e o amor da
patría
, que nas outras guerras formão grossas muralhas
contra os ataques dos inimigos, não
têm força, muitas vezes,
para impedir a divisão que rebenta no seio das famílias
. (P.
Ant. Vieira).

No tempo em que o lobo e o cordeiro estavão em
tregoas, desejava aquelle que se offerecesse occasião para as
romper
. (P. Man. Bernardes).

Cujos os portos que se enriquecem com os commercios e
tributos que
o indo e ganges pagavão ao Tejo ? (P. Ant.
Vieira).

O throno de marfim em que Salomão dava audiencia, e
a carroça chamada Ferculo, em que passeava, erão de tal
architectura e preço, que faz particular descripção dellas a Escriptura
.
(P. Ant. Vieira).

Se, porém, os substantivos formando o sujeito representão
idéas que de certo modo se enfeixão em uma abstracção
summaria, o verbo, por syllepse, permanece no
singular ; e, no caso de ser necessaria uma concordancia
em genero, ella se effectua geralmente com o ultimo dos
substantivos.

Ex. A vida e o tempo nunca pára. (P. Ant. Vieira).

Nomear Assuero a Aman por maior que todos os outros,
foi fazer que todos os outros fossem inimigos de Aman...
Não
porque Aman lhes fizesse algum mal para lhe quererem mal ;
mas porque
o rei e a fortuna lhe quiz mais bem, e fez
mais bem que a elles. (P. Ant. Vieira).

O reino e a primeira benção, segundo o uso dos patriarchas,
e conforme a lei natural que ainda hoje se observa
,
pertencia ao primogênito. (P. Ant. Vieira).352

Se o peso do ouro, e a quantidade da prata que contribuião
as minas
, era tão excessiva, com toda esta immensidade
de thesouros, com todos estes rios de prata e ouro, como
não se aliviava a oppressão dos vassallos ? como não se levantavão
ou diminuião os tributos dos povos ?
(P. Ant. Vieira).

Mas, antes que vejamos em que todo este ouro e toda
esta prata se gastava
, deixai-me fazer um reparo digno,
não só de admiração, mas de assombro e de pasmo
. (P. Ant.
Vieira).

Esse ouro e prata, posto que naturalmente désce para
baixo
, havia de subir para cima : não havia de ohegar
aos pequenos e pobres, mas todo se havia de abarcar e
consumir nas mãos dos grandes e poderosos. (P. Ant. Vieira).

Todo o apparato e fabrica estrondosa de um raio, a
que
se reduz no ar? a uma nuvem, a um relampago, a um
trovão e ao mesmo raio
. (P. Ant. Vieira).

Toda a nobreza e excellencia do homem consiste no
livre alvedrio
. (P. Ant. Vieira).

[Da estatua de Nabuco], o ouro e a cabeça significava
o imperio dos Assyrios ; a prata, o peito e os braços
significavão
o imperio dos Persas. (P. Ant. Vieira). —
(… os braços significavão…).

Que a turbação e o temor seja adversario da memoria,
e como
de tal devem acautelar-se os pregadores e oradores
em acções publicas, é cousa que muitas vezes tem mostrado
a experiencia
. (P. Man. Bernardes).

Aqui a maior eloquencia e o mais delicado engenho
não pode fazer outra cousa, senão mostrar em tosco ladrilho
alguns desenhos e borrões do que alli será
. (P. Man.. Consciencia).

Esta prosperidade e boa fortuna veiu emfim a dar
mostras de alguma mudança e declinação, porque
esta grande
riqueza
e abundancia, que se devêra de poupar para as
necessidades da honra
, se veiu a empregar toda em delicias
e appetites
. (Franc. de Andrade).

O santo patriarcha Isaac diz : « O cheiro e fragrancia
de meu filho é como o de um campo cheio, a quem o Senhor
abençoou
. » (Fr. Luiz de Granada).

O portal e frontispicio da principal entrada merecia
um livro pela qualidade da obra. (Fr. Luiz de Souza).

Lagrimas, humildade, brandura não era linguagem de
que naquella casa houvesse noticia
. (Fr. Luiz de Souza).

2.° Andando um mesmo sujeito posposto ao verbo, já
353de torna geralmente escusada qualquer distincção, porque,
contrariamente aos habitos que a desazada applicação da
doutrina franceza introduziu, e vai generalisando mais e
mais, o verbo não passa para o plural, mas concorda pura
e simplesmente em tudo com o primeiro dos membros do
sujeito que o rege.

Ex. Do mesmo pai nasceu isaac e ismael ; e um foi
o morgado da fé, outro, da heresia. Na mesma hora
nasceu
jacob e isau’
 ; e um foi amado de Deos, outro, aborrecido.
Na mesma terra
nasceu caim e abel ; e um foi o primeiro
tyranno, outro, o primeiro martyr
. (P. Ant. Vieira).

O que era necessario e util para a vida, notou seneca,
democrito
e ainda o mesmo epicuro que o. pôz a natureza
muito perto de nós, e muito descoberto e patente, como são as
plantas, os fructos, os animaes
. (P. Ant. Vieira).

Ainda que não pareça meio de não desconsolar aos pretendentes,
muito mais os
desconsola a dilação e a suspensão,
do que os havia de desconsolar o desengano. (P. Ant.
Vieira).

A quarta culpa forão os enganos, com tanta diversidade
nelles, quantas erão as occasiões, na paz e na guerra, das
promessas, das obrigações, das allianças, dos soccorros em que

se violava, pelos interesses da conveniencia, a palavra, a
verdade e a fidelidade que
entre inimigos e amigos deve
ser sagrada
. (P. Ant. Vieira).

Que foi um nuno da cunha e tantos outros heróes
famosos
senão uns astros e planetas lucidissimos ? (P. Ant.
Vieira).

Falte-me o tempo e o alento para escrever. (P. Ant.
Vieira).

Era este templo, como refere garcilaço e outros autores,
um edifício famoso e capacissimo. (Fr. Apollinario da
Conceição).

A esta arte dos pastores, como mais douta, pertence o
conhecimento
dos pastos, a natureza das terras, a virtude
das hervas, as mudanças do tempo, o movimento dos céos,
os effeitos do sol, a qualidade dos animaes. (Franc. Rodr.
Lobo).

Se na capitánea, onde vai a bandeira e o pharol,
faltou o leme, derrotou-se a armada. (P. Ant. Vieira).

Na China, nem pelas estradas e caminhos que vão de
umas para as outras cidades e villas
, cabe ordinariamente o
povo, récovas e cargas. (P. João de Lucena).354

Que cousa são as delicias, senão o mel da lança de Jonathas ?
juntamente
vai á bocca o favo e o ferro. (P. Ant.
Vieira).

Esta é a particular difficuldade e o grande perigo
Em que estão de se não conformarem com o soberano Original,
os que representão as imagens que têm as raizes na terra
. (P.
Ant. Vieira).

Bem necessario foi a Sua Excellencia todo o seu entendimento,
valor e christandade, e toda a assistencia
e juizo
do duque, para se conformar com a vontade de Deos.
(P. Ant. Vieira).

Nesta parte é admiravel o juizo, discrição, eloquencia
do autor. (P. Ant. Vieira).

Representava-se em certa occasião uma farça no paço real
de Castelha, em que
figurava um portuguez e um castelhano
pelejando. (P. Man. Bernardes).

O muito que naquella hora sente e deseja o homem, não
basta umalingua e umabocca a publicá-lo. (Fr.
Luiz de Souza).

Não espanta menos a firmeza, numero e grandeza
de outras vidraças, que dão luz á igreja e cruzeiro. (Fr. Luiz
de Souza).

cobre-se esta igreja e abobada com um telhado tambem
de pedraria
. (Fr. Luiz de Souza).

Eis-aqui como se desterra o temor e o pejo, e como
se estimula a luxuria, e se concedem licenças amplas á relaxação
.
(P. Man. Bernardes). ’

Até aos brutos animaes chega a doçura e conhecimento
da musica. (João de Barros).

« bemdita e adorada e glorificada seja eternamente
vossa bondade, sabedoria e omnipotencia, Senhor, que são
os tres mysticos dedos de que conservais pendente a universidade
de todas as cousas !
 » (P. Man. Bernardes).

Mas nunca terá fim a fama e gloria do seu nome.
(Pr. Franc. de S. Maria).

São, portanto, correctos os letreiros em que se lê :
« Compra-se ouro e prata » ; porém não o são os em que
se lê : « Aluga-se carros ». Pois o P. Ant. Vieira disse :
« De umas cidades não se sabem os lugares onde estiverão ».

Se, porém, por qualquer palavra anteposta ou logo
junta ao verbo, sobresahe como indicação que o sujeito
355subsequente é composto, o mesmo verbo, obedecendo por
syllepse a esta prevenção, passa para o plural.

Ex. Forão inventores destes jogos hercules, pttho,
theseo e outros heroes
de quem os tomárão os Gregos e
Romanos
. (P. Ant. Vieira).

De pastores subirão ás supremas dignidades que tiverão :
giges, rei de Lydia ; sophi, rei dos turcos ; primislão,
rei de Bohemia ; tamerlão, imperador dos Scythas ; justino,
imperador dos Romanos ; viriato, capitão dos Portuguezes ;
e xisto, primeiro deste nome, summo pontífice romano. (Franc.
Rodr. Lobo).

Das deidades que os homens enganados endeosárão, pastores
forão apollo, mercurio, daphnis, pan, protheo,
páris e polyphemo
. … Esta é a antiguidade e nobreza da
arte dos pastores
. (Franc. Rodr. Lobo).

Observação. Não ha duvida que estas regras, a julgar
pelo completo, ou quasi completo desuso em que hoje cahírão,
hão de ser tidas por importunas e inopportunas ; visto
como o novo principio que se lhes oppôz, além de ser de applicação
mais facil, por ser absoluto, parece melhor corresponder
aos dictames da logica. Se se reflectir, porém, que a lingua
portugueza recebeu a sua configuração definitiva do cunho
que lhe imprimirão os seus grandes escriptores, não se
póde já, sem desacato, alterar-lhe as feições que lhe dão
fóros de autonoma, para as substituir por outras de valia
duvidosa, e em todo o caso de procedencia exotica.

Pois o que assenta ao francez, não tem necessariamente
igual cabimento no portuguez ; porquanto, obedecendo a
necessidades diversas, cada um dos idiomas deve caminhar
por sua propria vereda.

O francez, sequioso de supprir a falta tão sensivel de
terminações caracteristicas pela ligação possivel das palavras,
mórmente na elocução emphatica do pulpito, da tribuna
e do theatro, não achou, todavia, neste recurso senão
um meio muito insuficiente de emendar o seu vicio originario.
Para compensar o que ainda assim lhe fallecia, não
admittiu senão parcamente o jogo das inversões, e pautou
mais as relações de sua syntaxe por uma especie de systema
algebrico, procedendo por equações. Deste modo firmava
elle a integridade do pensamento.

O portuguez, pelo contrario, rico de sonoridades caracteristicas,
e, por isso, mais musical, acabou por offender-se
de qualquer dissonancia ; e, no seu melindre excessivo,
antes quiz constranger o espirito ao esforço de uma interpretação
356do que sujeitar o ouvido a uma cacophonia. Afigura-se-nos,
portanto, ser esta a razão que obstou a que o
P. Ant. Vieira ; por exemplo dissesse : « nascêrão Isaac
Notarão Seneca… » — « Muito mais os desconsolão a
dilação
… »

Se, todavia, os novadores desentoados notarem que tal
argumentação desmerece por nimiamente fraca, não será
fora de proposito recordar-lhes que o proprio francez,
apezar de sua pouca exigencia em semelhante assumpto,
não duvida de em mais de um caso sacrificar o rigor mathematico
á euphonia, sem que o motivo tenha mais de
valioso do que o que acaba de ser allegado. Pois, reconhecendo,
por exemplo, no vocabulo « tout », um mero adverbio,
isto é, uma palavra invariavel, quando por anteposição
a um adjectivo ou participio, modificar-lhes o alcance de
significação, todos os grammaticos francezes lhe attribuem,
não obstante, a variabilidade adjectival em certas e determinadas
circumstancias. (« Ces personnes sont tout étonnées,
toutes stupéfaites
de ce qui arrive. » — … tout
toutes !!).

Em todo o caso, attenda-se ao que tão judiciosamente
enuncia o P. Ant. Vieira :

« E’ grande nobreza usar do seu. »

437. Vindo o sujeito composto a constar de substantivos
no singular, porem ligados pela conjuncção ou, O
verbo permanece no singular, porque o facto, em realidade,
só é imputavel a um dos componentes ; e, se se der mais O
caso de uma concordancia em genero, ella se offectua com
o dos substantivos, ao qual se attribuo sentido predominante.

Ex. Faça cada um muito escrupulo da sua desunião,
porque póde ser que della
depende, ou a ruina, ou a conservação
da estatua. (P. Ant. Vieira).

Tudo o que nasce na terra, o sol ou a chuva o cria.
(P. Ant. Vieira).

Aos outros peixes do alto mata-os o anzol ou a fisga.
(P. Ant. Vieira).

O riso ou a alegria do peccador não É animado com
vida do espirito
. (P. Man. Bernardes).

Para se gerar um raio, é necessario que as exhalações
sejão seccas e cálidas, que
o movimento ou antiperistasis
as accenda.(p. Ant. Vieira).

N. B. — A expressão antiperistasis, usada nos antigos
357systemas de Physica, não tem mais emprego nem significação
na sciencia moderna. Designava um estado de opposição
como o que se dá entre o frio e o calor.

E’ benção ou fatalidade dos reis que tudo o que fizerem.
ou quizerem, ainda que não seja louvavel, seja louvado
.
(P. Ant. Vieira).

Se, porém, fôr nem, em vez de ou, a conjuncção copulativa
ligando os diversos membros do sujeito, o verbo
passa para o plural quando ambos os componentes actuão
conjunctamente nelle, ou fica no singular quando um dos
componentes exclue ao outro.

Ex. E, posto que havia ainda no mundo outro poder
maior
, nem o anjo, nem o homem se contentárão com
poder o que podião. (P. Ant. Vieira).

Se algum capitão pudera escusar o conselho, era o genio
de Alexandre, formado pela natureza para conquistar e vencer.
Mas
, nem A sua arte, nem A sua fortuna o lisonjeou de
maneira que não antepusesse o conselho a ambas
. (P. Ant.
Vieira).

438. Vindo um sujeito composto a constar de substantivos
synonymos, basta que o mais chegado ao verbo
esteja no singular para que com elle se effectue a concordancia
do mesmo verbo.

Ex. A necessidade, a pobreza, a fome, a falta do
necessario para o sustento da vida
e o mais forte, o mais poderoso,
o mais absoluto imperio que despoticamente domina
sobre todos os que vivem
. (P. Ant. Vieira).

A razão está em que é isso mero artificio de estylo,
ao qual sobretudo se soccorrem os oradores quando, desejosos
de conquistar a convicção alheia, insistem na idéa
principal, reproduzindo-a subtilmente por palavras diversas.
E’ o mesmo como se fossem riscando successivamente as
expressões de que se servem, por insufficientes e somenos
para o seu intento, até que, alcançando a que mais adequada
parece ao proposito que têm, com ella fação obra.
Verifica-se esta allegação (que não diz só respeito a um
sujeito como no exemplo citado, mas ainda a outros termos
syntaxicos), na continuação do mesmo trecho, adrede recortado
por interpolações, para tornar a demonstração mais
incisiva.

Não ha cousa tão difficultosa (não digo bom), tão
ardua
(não digo bom), tão repugnante á natureza, a
que a não obrigue
(não digo bom), a que a não renda
(não digo bem), a que a não sujeite, não por vontade, mas
358por força e violencia, a duríssima e inviolavel lei da
necessidade
.

439. Vindo um sujeito composto a ser summariamente
resumido em uma expressão collectiva do singular, o verbo,
concordando exclusivamente com ella, permanece no singular.

Ex. A idade, o engenho, as obrigações, tudo estã
empenhado
a Vossa Alteza a obrar conforme o seu real
sangue
. (P. Ant. Vieira).

E, porque não achava a pomba onde descansar ? Porque
buscava o descanso onde o não havia
. As cidades, os campos,
os valles, os montes, tudo era mar
. (P. Ant. Vieira).

Tudo isto que vemos com nossos olhos, é aquelle espirito
sublime, ardente, grande, immenso, a alma. Até
a mesma formosura,
que parece dote proprio do corpo, e tanto arrebata e
captiva os sentidos humanos
, aquella graça, aquella proporção,
aquella suavidade
de côr, aquelle ar, aquelle
brio, aquella vida
, que é tudo senão alma ? (P. Ant.
Vieira).

o sol, a lua, as estrellas, e o uso da sua luz, é
commum
a todos ; e assim era a terra no principio. (P. Ant.
Vieira).

440. Vindo um sujeito composto a constar de palavras
designando personalidades verbaes differentes, o verbo, concordando
em numero com todas, passa para o plural, mas
ahi assume a terminação da pessoa que tem a prioridade.
A segunda pessoa tem a prioridade sobre a terceira, e a
primeira, sobre uma e outra.

Ex. Se se achassem aquellas minas,… só os vossos engenhos
havião de ter muito que moer, porque
vós e vossos filhos
havieis de ser
os moidos. (P. Ant. Vieira).

Eu e os meus nos alegraremos summamente com todo
o seu bom successo, pela antiga amizade e boa correspondencia
que sempre a nossa casa teve com as destes fidalgos
. (P. Ant.
Vieira).

Parece que este sujeito tem estudado bem ; mas, nem eu,
nem meus companheiros estamos
de accordo de pagar seus
estudos com as nossas cabeças
. (Duarte Ribeiro do Macedo).

441. Vindo um sujeito composto a constar de infinitivos,
o verbo pára no singular ; porquanto, não competindo
aos infinitivos, como expressão substantival, outro numero
do que este, isto é, o singular, não podem transmittir mais
do que têm. (V. § 411).359

Ex. Ensinar e aconselhar é de sabios. — perdoar
erros, e engrandecer bons intentos é de espiritos generosos.
(Franc. Rodr. Lobo).

Poupar, e morrer de fome para que outros vivão e alardeiem,
É uma avareza mui louca. (P. Ant. Vieira).

O que todos aquelles orbes celestes fazem andando em
perpetua roda, e voltando sem nunca descansar
, é produzir e
temperar com suas influencias o que ha de comer o homem.
(P. Ant. Vieira). — (… produzir e temperar… e o que
todos aquelles orbes
…).

Dando-se, porém, o caso que os infinitivos constituindo
o sujeito enunciem idéas adrede oppostas, o verbo passa
por syllepse para o plural, porque a producção de um contraste
é inseparável da idéa de pluralidade.

Ex. O dar e o premiar são cousas muito differentes.
(P. Ant. Vieira).

Amar, aggravar e empecer não se compadecem. (D.
Fr. Bartholomeo dos Martyres).

442. Embora os infinitivos e substantivos, pela differença
de indole, não possão geralmente ajuntar-se para
formar um sujeito composto, não é sem exemplo encontrá-los
assim consorciados. Nota-se, porém, que, em tal caso,
os infinitivos se apresentão sob a forma impessoal, que é a
que lhes cabe como abstracções (V. § 420), isto é, no estado
em que se achão mais conchegados aos substantivos.

Ex. El rei Antigono, vendo que seu filho se ensoberbecia,
lhe disse
 : « Não sabes, filho, que o nosso reino e o reinar
não É outra cousa que um captiveiro honrado ? » (P. Ant.
Vieira).

Que o que baila e dansa, tem parte de louco e furioso,
basta vê-lo de fóra para confessá-lo
soa muito estrondo
dos pés, muito cantar desentoado, muito alarido dos concurrentes,
muito impeto dos que girão e emparelhão. (P. Man.
Bernardes).

Capitulo VI
Do complemento directo

443. Complemento directo ó o termo que abrange a
palavra ou conjuncto de palavras inteirando o sentido de
360um verbo sem intervenção de proposição, quer expressa,
quer occulta.

444. As unicas especies do palavras idoneas para constituir
um complemento directo são : o substantivo, o pronome
o o verbo no infinitivo
.

Ex. Na corte, cada um busca a utilidade propria,
todos
publicão bons desejos. (P. Ant. Vieira).

Despede-se o mundo sem dizer-nos nada. (P. Ant.
Vieira).

Toda a creatura dotada de vontade livre appetece sempre
ser mais do que é. (P. Ant. Vieira).

445. Os complementos directos são simples quando
constão de uma palavra, e compostos quando constão de
mais de uma. Mas, quer em um caso, quer no outro, nenhuma
influencia exercem sobre as modificações do verbo.
(V. § 60). Que assim não podia deixar de ser, torna-se
obvio pela consideração que, tendo a sua collocação normal
em seguida ao verbo, repugna, em principio, que as variações
de uma palavra sejão subordinadas á influencia de
outra palavra ainda não enunciada. Ao sujeito só é que
compete a propriedade de modificar o verbo em numero,
pessoa e genero.

A menção desta lei que, por intuitiva, pode parecer
escusada, funda-se na necessidade do tê-la presente para a
demonstração de não poucos erros que vão tomando todos
os dias novo incremento, por se confundirem complementos
directos com sujeitos, e vice-versa, mórmente em relação
aos tempos pessoaes do infinitivo.

Assim é que se lê em um discurso da tribuna : « Erão
estas as observações
que me occorrerão fazer sobre a materia… »
O que dá a conhecer o desmancho analytico, é
que, ao verbo occorrerão, não se lhe póde attribuir como
sujeito o pronome relativo que que lhe vai na vanguarda ;
porquanto este vocabulo é complemento directo do fazer,
como representante de observações : « … as quaes occorreu-me
fazer… » ; pois occorreu-me fazer (o que ?) estas observações.
O sujeito de occorreu vem assim a ser o infinitivo
fazer.

446. A mesma lei que aparta os infinitivos dos substantivos
e pronomes na formação dos sujeitos compostos,
aparta-os tambem geralmente na formação de complementos
directos compostos. A demonstração deste principio torna-se
sensível polo cotejo dos dous seguintes exemplos, em
361que infinitivos e substantivos de semelhante ou até de
identica significação se não prestarião todavia a uma substituição
que os associasse promiscuamente :

Vêdes vós todo aquelle bulir ? vêdes todo aquelle andar ?
vêdes todo aquelle concorrer ás praças, e cruzar as ruas ?
vêdes aquelle subir e descer as escadas ? vêdes aquelle
entrar e sahir sem quietação nem socego ? Pois tudo aquillo
é andarem buscando os homens como hão de comer, e como se
hão de comer
. (P. Ant. Vieira).

Os gladiadores se adestravão primeiro, aprendendo as
idas e venidas, entradas e retiradas com outros antigos
no officio, a que chamavão lanistas
. (P. Man. Bernardes). —
Intoleravel seria dizer : Vêdes aquelle entrar e sahidas…
aquelle andar e venidas…

447. Dahi decorre uma regra digna de especial reparo.

Um verbo póde ter um complemento directo simples
ou composto, formado de substantivos ou pronomes, mas
um só ; porquanto mais de uma relação desta especie provocaria
equivocações. Assim é que não seria aceitavel,
dizer : « ensino grammatica os filhos de meu tio », nem tão
pouco : « ensino grammatica e geographia os filhos e sobrinhos
de meu tio ». Para tãos orações se tornarem, correctas,
um ou outro dos referidos complementos deve
tornar-se indirecto pela adjuncção de uma preposição :
« ensino em grammatica os filhos de meu tio », ou « ensino
grammatica
e geographia aos filhos e sobrinhos de meu
tio
 ».

Mas, por effeito da divergencia original que separa os
complementos directos de infinitivo dos de substantivo ou
pronome, não subsiste a mesma incompatibilidade entre
uns e outros ; ou, em outras palavras : um só e mesmo
verbo póde ter dous complementos directos, quer simples,
quer compostos, comtanto que um seja de substantivo ou
pronome, e o outro de infinitivo.

Ex. Moido com açoutes, preso e vinculado, S. Paulo, á
meia noite
, fez, com sua oração, tremer os fundamentos do
carcere, e
desfazer-se as prisões em que estava aferrolhado.
(D. Fr. Amador Arraes). — Hoje, não ha duvida, á vista
do que em toda a parte se lê, teriamos : « … tremerem os
fundamentos… desfazerem-se as prisões…
 »

Frei Thomaz da Costa fazia derreter em lagrimas até
os mais descompostos na vida. (Fr. Luiz de Souza).

A necessidade é a que leva o soldado á guerra, e a escalar
362as muralhas, onde
, vendo cahir uns a ferro, e voar
outros
a fogo, avança comtudo, e não desmaia. (P. Ant.
Vieira).

Alguns nos fazião ir adiante, e outros nos lançavão fóra
do caminho
. (Pantaleão de Aveiro).

Derão-se os reos por perdidos, porque o furor de um rei
moço e com armas, aggravado e resoluto
, faz tremer os corações
mais alentados. (P. Man. Bernardes).

Observação. Não tendo os grammaticos francezes cogitado
desta distincção entre complementos directos de
infinitivo, e complementos directos de substantivos e pronomes,
embora o caso se dê em francez com a mesma
frequencia como em portuguez (Je vous entends parler…
Je les vois venir), aconteceu que se limitarão a declarar
succintamonte e sem mais indagações que : « Nenhum verbo
póde ter dous complementos directos
 ». Resvalou naturalmente
tão conciso e commodo aphorismo para a grammatica portugueza ;
mas, encontrando ahi tempos pessoaes no infinitivo,
dou isto azo a uma subversão dos bons principios, pelo
abandono das normas que legarão os classicos. Porquanto,
sob a preoccupação incessante, entranhada, indestructivel
do que nenhum verbo existe sem sujeito, os regeneradores
modernos da linguagem, não achando emprego analytico
aos referidos complementos directos de substantivos ou pronomes,
sagrárão-nos ufanamente sujeitos do mesmo infinitivo,
seu collateral em funcção syntaxica, e dahi a catadupa do
infinitivos pessoaes, mórmente com a terminação arem,
erem, irem, orem
, que tanto range e ruge nas publicações
hodiernas, em vituperio… dos classicos. Haja vista o seguinte
trecho, extrahido ao acaso de um contemporaneo :
« a historia póde-se comparar com um velho que, tendo vivido
milhares de annos, tendo visto
edificarem-se as cidades, e
cahirem
. em decadencia, nascerem, florescerem e morrerem
as nações
da terra, se senta para nos contar quanto se tem
passado
… » Isso, como estylo, é a demonstração mais categorica
de como anda já estragado o tino auscultativo, o
de quanta urgencia é a reacção. Pois, quantos, como este,
não bradarião hoje ao P. Ant. Vieira : « Não, Sr. : … vendo
cahirem uns a ferro, e voarem outros a fogo… ! » e ao
P. Man. Bernardes : « Tambem não, Sr. : …faz tremerem
os corações…/ » E’ este um dos fructos da theoria philosophica
do verbo substantivo, com a sua trilogia inviolavel.

« Mas, exclamará talvez mais de um curioso, que é o
que prova que os allegados complementos directos não
são uns genuinos sujeitos, e portanto os classicos … uns
genuinos medalhões, de gasta effigie ? »363

A prova é muito simples e muito facil. Fornece-a novamente
o processo da substituição. Uma só palavra tem,
em portuguez, o privilegio bastante apreciavel de não
exercer outra funcção senão a de complemento directo, e
esta palavra é o pronome pessoal instavel o, a, os, as.
Prestando-se elle a substituir sem constrangimento um substantivo
ou pronome, prova é que um e outro exercem a
funcção de complementos directos ; porquanto, se fossem
sujeitos, o pronome avocado pela substituição seria elle,
ella, elles, ellas
, como incontestavel é em presença dos
principios mais comesinhos da Grammatica.

Ora vejão se o P. Ant. Vieira não poderia retorquir :
« Não, Srs. : … vendo-os cahir a ferro ; … vendo-os voar a
fogo
… » e o P. Man. Bernardes : « Tambem não, Srs. :
fá-los tremer… »

Outrosim não faltão exemplos contestes.

Se eu pregara aos homens, e tivera a lingua de S. Antonio,
eu
os fizera tremer. (P. Ant. Vieira).

Os Neros e Dioclecianos commutavão a morte e os tormentos
dos christãos com
os mandar servir e trabalhar
nas minas. (P. Ant. Vieira).

Verdade é, entretanto, que João de Barros, se não foi
atraiçoado por um copista infiel, disse : Se um homem visse
no mar as naos e galeões arrombados de tiros de fogo,
umas dellas irem-se ao fundo, outras arderem em fogo e
chammas de alcatrão
 ; …os homens lançarem-se ao mar, e
afogarem-se, quem isto tudo bem visse, bem creio eu que escolhesse
antes a. paz que a guerra
. — Porém, á vista dos
motivos expendidos, não parece que esta licção deva prevalecer
contra a de Vieira e Bernardes, nem finalmente
contra a prova que taes sujeitos não são sujeitos, e sim
complementos directos, o que, portanto inhibe-os de reger
ao verbo.

448. Outra prova da dessemelhança que, segregando
os complementos directos de substantivo ou pronome dos
do infinitivo, parece legitimar a sua coexistencia junto a
um mesmo verbo, infere-se da observação que os primeiros
só competem aos verbos activos e pronominaes, e a mais
alguns impessoaes, mas nunca aos neutros ; ao passo que
os segundos competem indifferentemente a todas as mesmas
classes de verbos, isto é, tambem aos neutros. Assim é
que, embora neutros, isto é, embora incapazes de complemento
directo de substantivo ou pronome, os verbos ir e
vir, por exemplo, não o são do de infinitivo.364

Ex. As arvores forão offerecer o governo á oliveira
O espinheiro respondeu : « Vinde todas deitar-vos a meus
pés
. d (P. Ant. Vieira)..

449. Todavia, assim como se encontrão infinitivos em
abstracto, excepcionalmente colligados com substantivos
na formação de um mesmo sujeito composto (V. § 442),
assim se encontrão elles tambem por vezes associados para
a formação de um mesmo complemento directo.

Ex. Se o corpo morto é de um soldado, a ordem dos exercitos,
a disposição dos arraiaes, a fábrica dos muros, os
engenhos e machinas bellicas, o valor, a bizarria, a audacia,
a constancia, a honra, a victoria, o levar
na
lamina de uma espada a vida propria e a morte alheia
, …
quem fazia tudo isto ? a alma. (P. Ant. Vieira). — (…. o
levar na lamina…).

450. Com os complementos directos compostos, muito
convem não confundir os pleonasticos. Constituindo um dos
idiotismos mais indispensaveis da lingua portugueza, elles
jazem todavia esquecidos, pela culpa provavelmente dos
grammaticos francezes, que, encontrando-os tambem, posto
que com menos frequencia, na sua lingua, delles, não obstante,
pouco ou nenhum cabedal fizerão ; o que teve por
effeito que fossem naturalmente desprezados pelos estrenuos
admiradores de Noël e Chapsal, e outros que taes.

A sua introducção na linguagem proveiu da falta de
declinações.

Por declinação designa-se o complexo das modificações
terminativas por que passão em muitas linguas, todas as
palavras variaveis que não são factos syntaxicos, para directamente
designarem que constituem um sujeito, um
complemento directo, ou um complemento indirecto, ou
que aos mesmos termos se associão como apposições ou
predicados.

O que é certo, é que, em portuguez, nada denuncia
pela forma, e frequentemente nada pela collocação, que um
substantivo seja antes sujeito do que complemento directo ;
e, entretanto, frequentemente tambem não basta o conjuncto
das demais palavras da oração para assignar-lhe a sua
verdadeira funcção, e desembaraçar assim a linguagem de
ambages e equivocações. O complemento indirecto, ao contrario,
esquiva-se geralmente a este perigo pela preposição
que o caracterisa.

A este defeito de constituição remediou a necessidade,
que é a mãi dos inventos. Ella suggeriu a idéa de reproduzir
365um complemento directo duvidoso pelo pronome pessoal
instavel o, a, os, as ; porque, não tendo este vocabulo
outra funcção senão a de complemento directo, acontece
que, em recordando, por pleonasmo, o sentido do substantivo
ou pronome, declara-lhe ao mesmo tempo a funcção,
e desfaz assim qualquer causa de incerteza.

Ex. Emfim, ainda o pobre defunto, o não comeu a
terra, e já o tem comido toda a terra
. (P. Ant. Vieira). —
a terra comeu o que ? ou a quem ? Comeu-o, isto é, o defunto
(pleonasmo).

Ora, para se convencer da indeclinavel necessidade
daquella reduplicação de complemento, basta attender ao
singular transtorno que póde neste caso adduzir na oração
a eliminação do pronome pleonastico.

Emfim, ainda o pobre defunto não comeu a terra, e já o
tem comido toda a terra
.

Outros exemplos :

Este é o mundo em que vivemos, todos cansando-se em
buscar o descanso, e todos cansados de o não achar
. a razão
deu-a S. Agostinho no livro IV de seus Desenganos. (P. Ant.
Vieira).

« Eu, Senhor, razões politicas, nunca as soube, e hoje
as sei muito menos ; mas, por obedecer, direi toscamente o que
me parece
. » (P. Ant. Vieira).

Esta guerra, a sabem fazer os moradores que conquistárão
tudo isto
. (P. Ant. Vieira).

Pois, uma faisca que cahe em materia tão disposta,
talvez não basta toda a agua do mar para apagá
-la (P. Ant.
Vieira).

« O’ voadores, o mar, fê-lo Deos para vós, e o ar, para
as aves
. » … o voador, fê-lo Deos peixe, e elle quiz ser
ave ; e permitte o mesmo Deos que tenha os perigos de ave,
e mais os do peixe
. (P. Ant. Vieira).

Bem entendo eu a grandeza deste favor ; mas, a proporção
desta conta, não a entendo. (P. Ant. Vieira).

As roupas, por preciosas que sejão, come-as a polilha
que nasce das mesmas roupas. e
os metaes, ainda que sejão
ouro e prata, róe-o
s a ferrugem que nasce dos mesmos metaes
Tudo o que nasce na terra, o sol ou a chuva o cria. (P.
Ant. Vieira).

Finalmente os mesmos vicios nossos nos dizem o que é a
alma : uma cubiça que nunca se farta ; uma soberba que
sempre sóbe ; uma ambição que sempre aspira ; um desejo que

366nunca aquieta ; uma capacidade que todo o mundo a não
enche, como a de Alexandre
. (P. Ant. Vieira).

Se se achassem aquellas minas, no mesmo dia havieis de
começar a ser feitores, e não senhores de toda a vossa fazenda
.
a roça, havião-vo-la de embargar para os mantimentos
das minas
 ; à casa, havião-vo-la de tomar de aposentadoria
para os officiaes das minas
. (P. Ant. Vieira).

451. Quem reflectir attentamente sobre estas exemplificações,
não poderá deixar de notar que, se a reproducção
pleonastica da mesma idéa, obsta em mais de um
caso, com singular propriedade, á contingencia de um equivoco,
em alguns, o sentido a dispensaria, a não ser o agrado
que ella innegavelmente confere á dicção. Mas isso mesmo
é a prova mais cabal de que tal idiotismo, pela presteza
com que remove algumas causas de dubiedade, veiu a identificar-se
com a linguagem, não como um expediente accidental,
e sim como uma propriedade tão essencial e permanente,
que mesmo lhe assenta fóra dos casos de estricta
necessidade. E’, portanto, de estranhar que, tambem neste
particular, a lição dos classicos seja frequentemente menoscabada
em publicações da actualidade, e que sua legitimidade
tenha sido até contestada no ensino, pela razão, — já
se sabe, — que Noël e Chapsal não querem que um verbo
tenha dous complementos directos. Estes Noël e Chapsal,
que tanto deixárão por fazer e por desfazer no em que se
mettêrão a legislar, erigidos em oraculos philologicos !

452. Todavia o que se dá a conhecer, além disto, pelo
detido exame dos mesmos trechos, é que tal artificio só
serve, geralmente, para resolver os casos em que, por uma
troca ae collocação normal, o complemento directo vai anteposto
ao verbo, e o sujeito, a elle posposto. Porém facil
é imaginar hypotheses diversas em que, por não ser mais
o mesmo recurso applicavel, por falta desta condição do
anterioridade do complemento principal, a oração se tornaria
novamente amphibologica, porque tanto se prestaria
o sujeito a ser complemento directo, como este mesmo complemento
a ser sujeito. Se o P. Ant. Vieira dissera, por
exemplo : « Assim fadou Noé seu neto Cannahan », o espirito
do leitor poderia hesitar sobre quem fadou, e quem foi fadado
: se Noé, se Cannahan. Neste caso, o expediente que
suggeriu a necessidade, teve tanto de decisivo como o anterior :
ella autorisou a conversão do complemento directo
em indirecto, mas mediante o emprego de uma só e mesma
preposição : a preposição a.

Ex. « Assim fadou Noé a seu neto cannahan »,367

O grande imperio que os Portuguezes fundárão na índia,
não acabou de repente como a monarchia dos Babylonios,
em uma noite em que Cyro venceu
a balthazar ; nem como
a dos Persas, em um dia em que Alexandre venceu
a dario.
(P. Ant. Vieira).

Ao principio receberão estas nações aos nossos conquistadores
em boa amizade. (P. Ant. Vieira).

Ia D. João de Castro todos os dias ao campo, onde mandava
aos soldados atirar a barra, jogar as armas, formar
esquadrões, incitando
a uns com premios, a outros com louvores.
(Jac. Freire de Andrade).

Assim como o motivo de amar é o bem proprio, assim o
de aborrecer são os bens alheios. Nem Saul havia de aborrecer

a david, se não fôra mais valente ; nem Abimelech a isaac,
se não fôra mais rico ; nem os satrapes a daniel, se não fôra
mais sabio. e, se passarmos dos solios aos estrados, tambem
acharemos nos toucados estes malmequeres. Nenhuma gentileza
ha tão confiada, que
a não piquem os alfinetes dever a outrem
mais bem prendada. (P. Ant. Vieira).

Ahi acóde naturalmente a mesma reflexão que já despertou
o anterior idiotismo, e vem a ser que este ultimo
tomou tambem tal assento na linguagem, que delle se veiu
a usar ainda mesmo fora dos casos de absoluta necessidade.

Dahi, nas obras dos classicos, a frequente conversão
dos complementos directos em indirectos, mórmente com
substantivos ou pronomes designando entes animados, sem
que se lhe possa assignar outra causa senão a preoccupação
que os possuia, de prevenir por esto meio quaesquer ambages
ou duvidas.

Ex. Entendeu o mysterio o rei victorioso e soberbo, e
mandou logo tirar do jugo
aos vencidos. (P. Ant. Vieira).

Resolveu-se animosamente Carlos a acabar elle primeiro a
vida antes que a morte acabasse
a elle. (P. Ant. Vieira).
(Não : … o acabasse).

O que a lei manda é : « Amarás a deos (Deos) teu
Senhor com todo o teu coração, com toda a tua alma, com
todo o teu entendimento e com todas as tuas forças, e
ao teu
proximo
(e teu proximo) como a ti mesmo. (P. J. B. de
Castro).

Estava Diogenes á porta ou á boca de sua cuba, lavando
hervas para comer ; e disse-lhe um dos que passavão
 : « Se tu
aduláras
a dionysio, não comeras hervas ». — « e, se tu te
contentáras com hervas, não aduláras
a dionysio », respondeu
Diogenes
. (P. Ant. Vieira).368

Se eu tivera autoridade para emendar a homero, e confiança
para aconselhar
a Ulysses, não o havia de querer com
os ouvidos abertos, e as mãos atadas, senão com os ouvidos e
as mãos soltas
. (P. Ant. Vieira).

Mas, porque dirão os palacianos que fallou S. Agostinho
como theologo e como santo, e não como politico, ponhamos-lhes,
de um lado
, a pithagoras, e do outro, a socrates, que nem
forão theologos, mas ambos famosissimos mestres da republica
mais politica qual foi a de Athenas
. (P. Ant. Vieira).

As palavras brandas do adulador são redes que elle arma
para tomar
ao mesmo adulado… e, como ninguem póde
servir
a dous senhores, sem amar a um, e ser inimigo do
outro, provado fica sem replica que, quantos forem nos palacios
os amigos dos seus interesses
, tantos são os inimigos dos reis.
(P. Ant. Vieira).

Isto disse e fez Jacob, desherdando e privando do reino
aos dous filhos a quem de direito pertencia, só por serem
vingativos, e não perdoarem aggravos
. (P. Ant. Vieira).

« Eis-aqui, ó rei de Israel, a quem andas buscando pelos
desertos para o matar !
 » (P. Ant. Vieira).

A formosura é peior que o fogo, porque este queima a
quem
o toca, e ella abraza de longe. (P. Ant. Vieira).

453. Mais longe ainda levárão os classicos o apuramento
da dicção neste sentido ; pois não duvidárão de, em
numerosos casos, associar um e outro dos referidos idiotismos,
enriquecendo assim a lingua de uma valiosa neologia.

Ex. Ao homem, fê-lo Deos para mandar ; aos brutos,
para servir. (P. Ant. Vieira).

« Tambem a vós, Senhor, vos ha de alcançar parte do
castigo
. (P. Ant. Vieira).

« Se a balthazar, por beber pelos vasos do templo, em
que não se consagrava o vosso sangue
, o privastes da vida e
do reino, porque vivem os hereges, que convertem vossos calices
a usos profanos ?
 » (P. Ant. Vieira).

« Aos outros peixes do alto, mata-os o anzol ou a fisga ;
a vós, sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presumpção e
vosso capricho
… Aos outros peixes, mata-os a fome, e engana-os
a isca
 ; ao voador, mata-o a vaidade de voar, e a
sua isca é o vento
. » (P. Ant. Vieira).

454. Cumpre, entretanto, notar que seria grave erro
de logica incluir taes complementos entre os genuinamente
indirectos
, porquanto a preposição que os rege, ó mero vocabulo
369expletivo, isto é, sem outro effeito que não o de
fornecer uma mera indicação. E tanto é assim, que a palavra
apparentemente regida da preposição A conserva a
propriedado essencial dos complementos directos de substantivos
ou pronomes junto aos verbos activos, a qual
consiste em prestar-se a formar o sujeito dos mesmos
verbos quando convertidos em passivos, o que em caso
algum se póde dar com um complemento real e genuinamente
indirecto
.

Assim foi fadado por Noé o seu neto cannahan. —
o homem foi feito por Deos para mandar ; os brutos, para
servir
.

Parece, portanto, rasoavel chamar-lhes, nos exercicios
analyticos, complementos indirectos improprios, para, mórmente
nas versões, ou outros estudos comparativos de linguistica,
não incorrer numa erronea apreciação das relações
syntaxicas peculiares deste caso. Aliás torna-se intuitiva a
justeza desta allegação pelo seguinte exemplo :

Não me admira tanto ver um homem amigo da rapina,
ou iracundo, ou luxurioso, como
ver a um homem ingrato.
(P. Man. Bernardes).

Pois nenhuma differença de sentido nem de relação se
deixa ahi perceber entre a formula ver um homem e ver
a um homem
.

Em resumo, o complemento indirecto improprio é
mero equivalente de um complemento directo.

455. Assim como um só e mesmo sujeito póde competir
a mais de um verbo, tambem a mais de um verbo
póde competir um só o mesmo complemento directo.

Ex. A lepra pega-se aos vestidos e ás casas, e os consome e
afeia ; tambem a usura destroe as casas e familias, e as empobrece,
despeja
e affronta. (P. Man. Bernardes).

Parece todavia, consentaneo com a logica e a euphonia
que o mesmo complemento se deva, em tal caso, ageitar a
cada um dos verbos em separado, e não ao ultimo sómente.
Póde-se, portanto, considerar como menos correcta a seguinte
oração :

« Louvo-me e aceito a vossa decisão ». Melhor é, em tal
occurrencia, dissociar os verbos, e dar a cada um o complemento
que por natureza lhe convem : « Louvo-me na
vossa decisão, e aceito-a
 ». Outrosim nota-se geralmente um
certo empenho em acatarem os classicos este dictame do
bom senso.370

Ex. O que sustenta e conserva os reinos, é a união.
(P. Ant. Vieira). — (… sustenta os reinos… conserva os
reinos
).

Os varões sabios hão de continuar a derrota, sem mudar,
deter
nem torcer a carreira do bom governo. (P. Ant.
Vieira). — (… sem mudar a carreira… nem deter a carreira…
nem torcer a carreira…).

E’ a ilha toda composta de um confuso e intrincado labyrintho
de rios, e bosques espessos
,… onde não é possivel
cercar, nem achar, nem seguir, nem ainda ver o inimigo.
(P. Ant. Vieira).

Como aquelles gentios não tecem nem têm pannos, é
grande entre elles o uso das pernas
. (P. Ant. Vieira).

A necessidade é a que mette ou precipita o mineiro
ao mais profundo das entranhas da terra. (P. Ant. Vieira).

As primeiras creaturas que com suas vozes nos injurião
e envergonhão, entre aquellas que o Senhor creou, mas não
remiu, são as aves
. (P. Ant. Vieira).

Se alguem deseja alguns dictames para escolher e adquirir
amigos
, póde arrimar-se dos seguintes. (P. Man. Bernardes).

O infante D. Duarte dizia que não era razão que eu perdesse
meu tempo em esperar, podendo-o
gastar e empregar
melhor em meus estudos. (André de Rezende).

456. E’ tambem digno de reparo que, dentre os verbos,
muitos são os que, em variando de accepção, varião por
isso mesmo de complemento, pedindo, já um directo, já um
indirecto. Assim é que se diz : « Carregar um navio », e
« Carregar com as culpas alheias » ; — -« Correr um grande
perigo
 », e « Correr atraz da fortuna ». Apenas alguns
verbos se compadecem indifferentemente, em uma mesma
accepção, com um complemento directo ou indirecto, como
a Gozar boa saude ou de boa saude » ; — « Cumprir o seu
desejo ou com o seu desejo
 ».

Porém, sendo esta questão uma das que fogem a todo
e qualquer criterio de generalisação, sua solução não cabe
já nas attribuições da grammatica, e sim nas da lexicograpbia,
a cujo cargo fica ventilar cuidadosamente o que é
peculiar de cada palavra em particular.371

Capitulo VII
Do complemento indirecto

457. Complemento indirecto é o termo que abrange a
palavra ou conjuncto de palavras regidas, quer expressa,
quer occulta, quer implicitamente de uma preposição.

Todas as manifestações do mesmo complemento apparecem
representadas, e algumas exuberantemente, no seguinte
exemplo :

Veiu uma vez a luz a ser julgada no juizo dos homens,
e vinha ella muito confiada, porque já antigamente
tinha apparecido diante do juizo de deos, e sahíra delle
com grandes approvações
. (P. Ant. Vieira).

Ahi é a regencia expressa em : « a ser julgadano
(em o) juizodos (de os) homens, — diante do (diante de
o) juizode Deos, — delle (de elle) — com grandes approvações. »

E’ occulta em : « uma vez (de uma vez). »

E’ implícita em : « muito, — ja — antigamente. »

458. As unicas especies de palavras idoneas para a
formação de um complemento indirecto são os substantivos,
os pronomes, os verbos no infinitivo, e os adverbios
(V. § 251).

Verifica-se esta allegação no exemplo citado, para os
substantivos, pelas palavras : « uma vezno juizodos
homens, — diante do juizode deos, — com grandes approvações » ;
para os pronomes, pela palavra contracta
« delle (de elle) » ; para os verbos no infinitivo, pelas palavras
« a ser julgada » ; para os adverbios, pelas palavras
« muito, já antigamente ».

459. Assim como os mais termos, os complementos
indirectos são simples quando constão do uma só palavra,
e compostos quando constão do mais de uma, comtanto
que, neste ultimo caso, todas as palavras, regidas da mesma
preposição, quer repetida, quer não, fiquem incluidas numa
mesma relação, o que se determina, com a maior facilidade,
pela intercalação, ou possibilidade de intercalação entre
ellas, de uma conjuncção copulativa. São, portanto, complementos
372indirectos compostos, pela razão aventada, os
que vêm assignalados no seguinte exemplo :

E’ a guerra aquelle monstro que se sustenta das fazendas,
do sangue, das vidas
 ; e, quanto mais come e consome,
tanto menos se farta
. (P. Ant. Vieira). — (que se
sustenta
das fazendas e do sangue e das vidas…).

Com quanta prudencia, agrado e modestia se defende
S. Paulo de todos!
(Fr. João Pacheco).

Não ha, porém, caso de complemento indirecto composto
no subsequente exemplo, apezar da reproducção successiva
da mesma preposição (de), porque não se dá a
condição de identidade de relação, como fica demonstrado
pela impossibilidade de interpor uma ligação copulativa
entre as palavras regidas.

Um só livro que se achou, era das vidas dos santos.
(P. Ant. Vieira). — (Não : …das vidas e dos santos).

Este principio fundamenta uma regra obvia de pontuação,
a qual é que a virgula só se interpõe entre membros
de um mesmo complemento composto, na ausencia de uma
conjuncção copulativa.

Outros exemplos do complementos indirectos compostos :

(Subst. com subst.) — O poder e poderes do anjo erão
sobre a terra, sobre o mar, sobre o ar, sobre o fogo,
e
, não só sobre todos os elementos, mas tambem sobre
todos os corpos celestes, e sobre todos os astros e seus
movimentos
. (P. Ant. Vieira).

(Pron. com pron.) — Seguí e serví a Christo, eu vos
asseguro que
, nem a vós, nem a elles, lhes faltará pão. (P.
Ant. Vieira).

(Subst. com pron.) — Depois da morte de Joseph, Christo
grangeou o succeder-lhe na mesma officina, ganhando o pão
,
para sua mãi e para si, com o suor do seu rosto. (P. Ant.
Vieira) .

(Infin. com infin.) — No comer e beber foi el rei
D. Duarte mui temperado. Fez um livro em que, parece, daria
alguns preceitos
de bem cavalgar, e governar os cavallos.
(Duarte Nunes de Leão).

(Adv. com adv.) — Amemos o proximo espiritual e
santamente
. (D. Fr. Bartholomeo dos Martyres).

(Loc. adv. com subst.) — Vós virais os olhos para os
mattos e para o sertão
 : para cá ! para cá ! para a cidade
é que haveis de olhar ! (P. Ant. Vieira).373

460. Embora os infinitivos repugnem geralmente a
entrar com substantivos na composição de um só e mesmo
complemento indirecto, encontrão-se, todavia, uns e outros
assim eventualmente colligados, como excepcionalmente
tambem o são para a formação de algum sujeito ou complemento
directo de mesma especie.

Ex. A necessidade é a que leva o soldado a guerra, e
a escalar
as muralhas. (P. Ant.Vieira).

O’ voadores, contentai-vos com o mar e com o nadar.
(P. Ant. Vieira).

Como acontecia virem a Braga muitos religiosos de todas
as Ordens, e outros ecclesiasticos, ou
a negociar, ou de passagem,
havia o arcebispo por affronta sua andarem por estalagem.
(Fr. Luiz de Souza).

Que taes colligações, apenas toleraveis por causa do
disfarce produzido por um certo consorcio entre as idéas,
não podem constituir regra, demonstra-o a impropriedade
saliente do seguinte exemplo : « Gosto de canto e de
dansar
 ».

461. Na formação dos complementos indirectos compostos
em que entra como componente um pronome pessoal,
dá-se uma anomalia merecedora de especial reparo
pela sua singularidade.

Se se exceptuar elle, ella, elles, ellas, os unicos
pronomes desta classe que consentem em admittir a regencia
de uma preposição expressa, são os da terceira
ordem (mim, ti, si, nós, vos, si).

Ex. Aonde não ha differença de mim a ti, nem de meu
a teu, logo se acerta no caminho
. (P. Ant. Vieira). — Porém
tal é a sua appetencia pela preposição que os tem de
reger, que, ao contrario dos substantivos ou outros pronomes,
nunca dispensão-lhe a repetição ; nenhum dos referidos
pronomes consente em apparecer sem que lhe ande
a preposição pela vanguarda.

Ex. « Quanto ás cousas da índia, ellas fallarão por si
e por mim ». (Affonso de Albuquerque). — (Não : … por si
e mim
).

Christo ganhava o pão, para sua mãi e para si, com o
suor do seu rosto
. (P. Ant. Vieira). — (Não : …para sua
mãi e si
).

Ora uma preposição ha que tem, em certo caso, um
sentido tão particular, que a sua repetição se toma então
inadmissivel, Esta preposição é entre ; e o caso em que
374lhe fica interdita a repetição, é quando as partes sobre que
tem de actuar, não despertão no espirito um numero superior
a dous, como : « Entre um e outro », ou « Entre uns
e outros
 ».

Ex. Na batalha naval entre os cesarianos e francezes,
matou uma bala de artilheria quarenta Cesarianos.
(P. Ant. Vieira).

« Quero metter tempo entre a morte e a vida ». (P.
Ant. Vieira).

O que dahi resulta, é que, vindo em tal occurrencia o
segundo membro do complemento a ser um pronome pessoal,
ou até sendo-o ambos os membros, os mesmos pronomes,
como arrufados de terem de compartir uma só e
mesma regencia, despem o seu fato de complementos indirectos,
para vestirem o que lhes competiria como sujeitos,
afim de, por este modo, assemelhar-se aos demais pronomes,
que não possuem senão um único trajo para todo e qualquer
serviço syntaxico.

Ex. Christo repartia, entre sua mãi e elle, o pão que
ganhava com o suor do seu rosto
. (Não : … entre sua mãi
e
si…).

Entre eu e tu, já não póde haver mais paz nem concordia.
(Não : Entre mim e ti…).

Fóra destes casos de dualismo, os pronomes pessoaes
tornão a tomar, depois do entre, a sua catadura complementar
habitual.

Ex. Os Alarves guardão entre si tal maneira de conservação
de sua geração, que em nenhum caso consentem casar
com outra gente que não seja da mesma nação
. (Fr. Bernardo
da Cruz).

462. A mesma interdicção que veda, junto a um verbo,
o uso de dous complementos directos de substantivo ou
pronome (V. § 447), estende-se igualmente ao emprego de
dous semelhantes complementos regidos separadamente da
mesma preposição. Contra esta regra peccou, portanto,
Fornão Mendes Pinto quando disse : « a agua doce desce
do cume da serra por entre bosques de arvoredo muito basto,
de cedros, carvalhos e pinheiros mansos e bravos
, de que
muitos navios se provêm de vergas, mastros, taboado e
outras madeiras
 ». Convirá modificar por uma preposição
diversa uma ou outra das relações indigitadas, por exemplo. :
« … de que muitos navios se provêm para suas vergas,
mastros e taboado
 » ; ou « … por meio dos quaes muitos
navios provêm
de vergas, mastros e taboado ».375

Porém a mesma impossibilidade desapparece, se, como
em relação ao complemento directo (V. § 447), um delles
consta de substantivo ou pronome, e o outro de infinitivo.

Ex. « Vim a servir, não vim a oommerciar — ao
oriente
 ». (D. João de Castro).

Tambem não ha incompatibilidade entre dous complementos,
um dos quaes é indirecto improprio, e o outro,
proprio ; porque não ha nenhuma paridade de relações.

Ex. Logo que D. Manoel ouviu a nova de tão insignes
desacordos, ateou-se-lhe tão violenta colera, que despachou subito

a diogo de almeida e a diogo lobo (indir. impr.),
com suprema alçada a lisboa (indir. proprio). — (Hist. de
D. Manoel).

Emfim nem tão pouco se dá incompatibilidade entre
os tres complementos indirectos seguintes, porque cada um
é de natureza diversa : « Ao duque de alva (compl. ind.
impr.) mandou a Majestade de el rei catholico a guadalupe
(compl. ind. prop. de subst.) a impedir (comp. ind. prop.
de infin.) a jornada de Africa. (Luiz Torres de Lima).

463. Aliás a mesma necessidade que creou os complementos
directos pleonasticos, acarretou, por uma correlação inevitavel,
o emprego de complementos indirectos tambem pleonasticos,
porém, como é obvio, por meio de um pronome
pessoal differente, mas dotado igualmente da propriedade
do representar uma é e unica das relações do complemento
indirecto. Este pronome é lhe, lhes, correspondendo analyticamente
ás locuções a elle, a ella, a elles, a ellas.

A correlação era inevitavel, porque, vindo, por exemplo,
uma oração a ser iniciada por um substantivo ou pronome
regido da preposição a, o espirito só acerta antecipadamente
com uma conclusão, e vem a ser que tal palavra
não é um sujeito, e sim um complemento ; porém fica perplexo
sobre se deve considerál-o como indirecto proprio ou
indirecto improprio (V. § 454). Será indirecto improprio, se
lhe vier em auxilio o, a, os, as (ao voador, mata-o a vaidade
de voar
)] será indirecto proprio, se lhe vier em auxilio
lhe, lhes (Ao voador, melhor lhe fora mergulhar por baixo
da quilha
). — (P. Ant. Vieira). — (… lhea elle…).

Outros exemplos de complementos indirectos pleonasticos :

A um principe virtuoso, tudo se lhe rende ; a um principe
vicioso, parece que a terra se lhe levanta, (P. Ant.
Vieira).376

A quem não tem bens, ninguem lhe quer mal. (P. Ant.
Vieira).

A’ benevolencia dos aduladores, dá-lhe logo as costas.
(P. Ant. Vieira).

A’s galas de Salomão, o mesmo Christo lhes chamou
gloria
. (P. Ant. Vieira).

Ao avarento, não lhe peço nada ; ao doudo, não lhe
atalho a furia ; ao pobre, não lhe devo. (Lobo).

464. Podendo nm só e mesmo complemento indirecto
competir simultaneamente a mais de um verbo, é-lhe tambem
applicavel a regra que no mesmo caso governa os complementos
directos (V. § 455), a saber : que um tal complemento
deve se coadunar com cada um dos verbos em
separado.

Ex. Assim o poderá fazer quem tanto confiar ou presumir
de sua constancia. (P. Ant. Vieira). — (… quem tanto
confiar de sua constancia, ou presumir de sua constancia).

A preguiça do Brazil anda devagar, mas anda ; a de
Portugal e de seus ministros
a cada passo para e dorme.
(P. Man. Bernardes). — (… a cada passo pára, e a cada
passo dorme
).

Não seria, porém, correcto dizer : No mesmo dia entrámos
e sahímos daquella cidade. Pois se se póde sahir
de uma cidade
, não se póde entrar de uma cidade. Carece
em tal caso dar a cada verbo o complemento que pede :
entrámos naquella cidade, e della sahímos no mesmo
dia
.

465. A mesma observação tem toda a força de lei
para os substantivos, adjectivos, pronomes, participios ou
adverbios que, associados ou associaveis por uma conjuncção
copulativa, apresentão-se inteirados por um só e
mesmo complemento. Seria, portanto, menos correcto dizer :
o amor e a fe em deos, visto não se compadecer a preposição
em com o substantivo amor. Seria-o igualmente,
por motivos analogos, dizer : Mostrar-se infenso e incapaz
de amizade
 ; — Ficar entregue e perdido de vicios ; —
Ser julgado conjuncta ou separadamente dos co-réos, etc.

466. Quanto á selecção a fazer entre as preposições
conforme as numerosas e variadas relações que são chamadas
a indicar, é uma questão tão alheia á grammatica,
sciencia de generalisação, quanto o poderia ser incumbí-la
da tarefa de estabelecer por regras predeterminadas a orthographia
377do cada palavra em particular. Para uma e
outra cousa forão creados os diccionarios. Ora causa pasmo
ver tantos grammaticos estafar-se entretanto na procura de
principios genericos que resolvão tão irresoluvel problema,
como se a confissão com que costumão rematar os seus arrazoados,
do que, ás tres ou quatro duzias do exemplos por
elles adduzidos, cumpriría accrescentar mais alguns milhares
para exhaurir a materia, não os devesse tornar lembrados
que lexicographia não é grammatica. Outrosim, qual póde
ser, em uma obra scientifica, a utilidade e o interesse de
industriar a mocidade estudiosa, como se faz por exemplo
em tantas grammaticas, na subtil distincção que em : Passeiar
com um amigo, a proposição denuncia uma relação de companhia
ou sociedade
, e em : Ferir com um perro, uma relação
de instrumento ? Devéras ! julgar que são necessarias
taes elucubrações em uma graramatica, é suppôr este livro
na mão de quem ainda não se entende, nem tem consciencia
de si ; e, em tal caso, o mestre ou a mestra devo
ser uma ama, e o livro, qualquer fatia ou bom bocado.
Além disto, nem sempre fornece de prompto a linguagem
uma expressão adequada á caracterisação de um sem numero
de relações. Pois, em estar com fome, com somno,
com preguiça…
será a relação de companhia ou de instrumento ?

As preposições apresentão-se, separadamente do seu regime,
como, na natureza, as substancias incoerciveis : o
calorico, a luz, a electricidade
, que só se manifestão quando
actuão sobre os corpos coerciveis. Por isso é tambem que
a preposição não pode de per si mesma constituir termo
syntaxico.

467. Além dos tres complementos indirectos assignalados
por uma preposição expressa, occulta ou implicita,
ainda ha os de gerundio, que, constituindo uma especie a
parte, merecem mais ser attendidos por interesse pela
grammatica geral, do que pelo da grammatica portugueza,
porquanto a invariabilidade constante desta forma verbal
isenta-a de complicações summamente difficultosas, e só a
sujeita a umas poucas de considerações praticas.

Os gerundios, tanto os simples como os compostos, entrárão
na lingua portugueza como substitutivos de duas
formas bem differentes do verbo latino : da do mais ou
menos propria ou impropriamente chamado participio presente
(amans, tis), variavel em genero, numero e casos
como os adjectivos qualificativos, e da do gerundio chamado
em do (amando) por causa desta sua terminação, invariavel
em genero e numero.378

Em these geral, póde-se dizer que os gerundios portuguezes
representão habitualmente o participio presente do
latim quando, mais presos pelo seu sentido a um substantivo
ou pronome ao qual vão mediata ou immediatamente
antepostos, ou mediatamente pospostos, servem-lhe de apposição.
e, quando não é um gerundio que substitue ao
mesmo participio presente latino, então é um adjectivo
verbal que delle se formou, com as terminações ante, ente,
inte
, commemorativas das tres conjugações regulares do
portuguez.

Ex. Dionysius, cultros metuens tensorios, candenti carbone
sibi adurebat capilluvi. (Cicoro). — (arreceiando-se das
navalhas
, dionysio se queimava o cabello com um carvão ardente). —
(arreceiando-se Dionysio... carvão ardente).

Os gerundios portuguezes representão o gerundio em
do do latim quando, presos pelo sentido a um verbo que
acompanhão, accrescentão-lhe uma feição de modo ou do
meio de acção, e formão-Ihe assim um complemento indirecto,
embora sem preposição expressa.

Ex. Hominis meus discendo alitur et cogitando.
(Cicero). — O espirito do homem alenta-se estudando e
replectindo
.

Ora o unico ponto que falta para autorisar esta allegação,
é demonstrar, com a possivel evidencia, que um
gerundio, em taes condições, é realmente um complemento
indirecto. O processo da substituição é o que vem novamente
desatar o nó da difficuldade. Pois, se um complemento
indirecto dos mais qualificados, por constar de
uma preposição com o seu regime, se apresenta como substitutivo
irrecusavel de um tal gerundio, claro é que uma
locução vale a outra, e que ambas são, portanto, perfeitamente
assemelhaveis.

Ex. o espirito do homem alenta-se pelo estudo e pela
reflexão
.

Outros exemplos :

Representando-se em certa occasião uma farça no paço
real de Castelha, em que figurava um portuguez e um castelhano
pelejando, e, dando-lhe o castelhano muitas pancadas e
empuxões por o affrontar, e tomar vingança delle, assistia a
este auto D. Bernarda Coutinho, senhora portugueza de muito
espirito. E o duque de Alva, D. Fotedo, que tambem presente
era, chegando-se neste passo a D. Bernarda, lhe disse que visse
como tratavão lá os Portuguezes
. A que ella respondeu : « Que
os Castelhanos
tratavão daquelle modo aos Portuguezes, zombando ;
e os Portuguezes aos Castelhanos, de verdade. (P.
379Man. Bernardes). — (… tratavão zombando… tratavão
de verdade
).

Quantas vezes o Rebello pelejou, tantas vezes venceu ; e
pelejou vezes sem numero, já em campanha aberta, já soccorrendo
praças sitiadas, já defendendo outras de perigosos
sitios
. (Pr. Franc. de S. Maria). — (… pelejou em campanha…
pelejou soccorrendo… pelejou defendendo…).

São outros tantos complementos indirectos da mesma
especie os do seguinte excerpto, em que um só caso de
ellipse poderia tornar a demonstração duvidosa :

Que faz o lavrador na terra, cortando-a com o arado,
cavando, regando, mondando, semeando ? Busca pão.

Que faz o soldado na campanha, carregado (por ellipse
do um verbo de estado : estando ou andando carregado)
de ferro, vigiando, pelejando, derramando o sangue ?
Busca pão
.

Que faz o navegante no mar, içando, amainando, sondando,
lutando
com as ondas e com os ventos ? Busca pão.

O mercador nas casas de contratação, passando letras,
ajustando contas, formando companhias ? O estudante nas
universidades
, tomando postillas, revolvendo livros, queimando
as pestanas ? O requerente nos tribunaes, pedindo,
allegando, replicando, dando, promettendo, annullando ?

Busca pão. Em buscar pão se resolve tudo, e tudo se applica
ao buscar
. (P. Ant. Vieira).

468. Com este complemento de gerundio, ao qual se
pudera chamar consecutivo, porque costuma andar posposto
ao verbo de que depende, cumpre não confundir
outro que, andando-lhe, pelo contrario, geralmente anteposto,
deve ser chamado absoluto, visto ser a mera reproducção
da locução latina conhecida em grammatica sob a
denominação de ablativo absoluto, o que lhe dá foros de
archaismo.

A nota caracteristica do complemento indirecto absoluto
está em que o gerundio, deixando de referir-se, como
apposição ao sujeito ou complemento de outro verbo (arreceiando-se
das navalhas, dionysio se queimava o cabello…),
ou de prender-se a um verbo como complemento (O espirito
do homem
conforta-se estudando…), implanta-se qual
parasita, em uma proposição de que não constitue, a bem
dizer, nenhum termo, e vive assim vida propria, dando-se
a si mesmo, sempre que não procede de um verbo impessoal,
um sujeito exclusivamento seu.

Ex. indo eu um dia de Bethlem, …. encontrárão-me
380dous mancebos mouros bem valentes... E, não querendo eu
fazer-lhes reverencia, se forão a mim indignados. (Pantaleão
de Aveiro).

Ahi é por duas vezes o pronome eu sujeito tão evidente
dos gerundios indo e querendo (visto como o não
póde ser dos factos encontrárão-me e e se forão a mim), que
se torna escusada qualquer ulterior verificação. Porém este
mesmo exemplo basta para novamente justificar a inclusão
dos gerundios entre os tempos do infinitivo, e demonstrar
a conveniencia da adjuncção dos pronomes pessoaes sujeitos
com que apparecem nas tabellas conjugativas, embora não
lhes seja essencial e permanente a assistencia destes sujeitos.

Sendo certo que todos hão de chegar á sepultura, só tu,
por comer menos, chegarás á sepultura mais tarde
. (P. Ant.
Vieira).

Ahi se acha o gerundio falto de sujeito, por proceder
esta forma do impessoal É certo que

Aliás ambos os casos se encontrão reunidos no seguinte
exemplo :

Cousa dificultosa parece que, tendo arcadio presidiado
o seu imperio com as legiões romanas, e não havendo então
inimigo estranho que, com poderosos exercitos, lhe fizesse guerra,
houvessem de bastar poucos homens desarmados para dentro
em sua propria casa destruirem o imperador, e mais o imperio
.
(P. Ant. Vieira). — (tinha Arcadio presidiado o seu
imperio… — … não
havia então inimigo…).

Outros exemplos de complemento indirecto absoluto :

Se alguem pensa que, sendo assolado o reino, póde a
sua casa ficar em pé, engana-se muito enganado
. (P. Ant.
Vieira). — (… o reino é assolado…).

Se o rei, como Roboão, sobre o jugo pesado, intoleravel de
seu pai, accrescentar tributos sobre tributos, oppressões sobre
oppressões, e rigores sobre rigores
, nadando todo o reino em
rios de lagrimas
, Te laudabunt! (louvá-lo-hão os aduladores).
(P. Ant. Vieira). — (… todo o reino náda..).

Vagando a abbadia de S. Dionysio em Pariz, muitos a
pretenderão por ser illustre e com bom dote
. (P. Man. Bernardes).
— (… a abbadia vagava…).

Estando em artigo de morte um padre antigo do famoso
deserto de Seitin, os outros monges, rodeando-lhe a pobre cama
ou esteira em que jazia, choravão amargamente
. (P. Man. Bernardes).
— (Um padre antigo estava em artigo da morte…).381

Estando o condestavel um dia para jantar com os
de sua comitiva, chegárão cinco officiaes inglezes
. (Ghron. do
Condestavel). — (O condestavel estava para jantar…).

Havendo concorrido innumeras turbas de gente, começou
Christo a dizer a seus discipulos que fugissem de communicar
com os phariseos
. (P. J. B. de Castro). — (Havião
concorrido turbas
…).

No Areopago de Athenas foi Democrito condemnado como
perdulario, e estragador de seu patrimonio ; mas
, constando
que gastára a sua fazenda em apprender sciencias, e conhecer
a economia do mundo, foi absolvido e louvado
. (P. D. Raphael
Bluteau). — (… consta que…).

469. Não é raro que o gerundio de um complemento
indirecto absoluto, constando de ser ou estar, venha a ser
subentendido, até com o seu sujeito quando este é um pronome
pessoal.

Ex. Solapadas por baixo aquellas grandes montanhas,
todo o peso immenso dellas se sustenta sobre pilares da
mesma materia
. (P. Ant. Vieira). — (sendo solapadas por
baixo
aquellas grandes montanhas…).

Morto salomão, succedeu-lhe na coroa Roboão, seu filho.
(P. Ant. Vieira). — (estando morto salomão…).

Os reinos e os imperios, segundo a sentença do Ecclesiastico,
passão de umas gentes a outras gentes pelas culpas dos
que os perdem. e essas culpas são as injustiças, as injurias,
as calumnias e os enganos
. chegados aqui, agora é o lugar
em que eu dizia que nós tambem haviamos de entrar em jogo
.
(P. Ant. Vieira). — (sendo nós chegados aqui…).

Isto supposto, formo daqui o argumento para o nosso
ponto
. (P. Man. Bernardes). — (sendo isto supposto…).

O homem começa, renovadas as suas forças, a sua tarefa
quotidiana
. (P. Man. Bernardes). — (sendo renovadas
as suas forças
…).

Expugnada a cidade de Pirene, os proprios moradores
lhe derão sacco
. (P. D. Raphael Bluteau). — (sendo expugnada
a cidade
de Pirene…).

Ouvido, pois, este mandato, logo a terra brotou e se
vestiu de verdura
. (Fr. Luiz de Granada). — (sendo ouvido
este mandato
…).

470. A funcção dos mesmos gerundios vem, outrosim,
muitas vezes ostensivelmente declarada pela regencia da
preposição em.

Ex. Em recebendo a carta de V. Ex., fui logo ao palacio
382da senhora duqueza. (P. Ant. Vieira). — (em recebendo
eu…
).

Está o pescador com a canna na mão, o anzol no fundo,
e a boia sobre a agua ; e
, em lhe picando na isca o torpedo,
começa a lhe tremer o braço. (P. Ant. Vieira). — (… em o
torpedo picando
…).

Em se avistando sitio tão feliz, se descobrem as suas
largas muralhas, lavradas de esmeraldas finissimas, cujo resplendor
é vistoso sobre toda a ponderação
. (P. Man. Consciencia).
— (Em sitio tão feliz avistando-se…).

471. Emfim póde-se adduzir, como remate ás precedentes
considerações sobre a verdadeira natureza dos gerundios,
a propriedade com que se deixão geralmente inverter
em outros tempos do infinitivo sob a regencia de uma preposição,
ou a propriedade com que, a contrario, outros
tempos do infinitivo, em identicas condições, aceitão as
formas gerundiaes.

Ex. Quando os elephantes fazem alguma jornada, e na
marcha se deitão, não é para se tornarem a levantar, porque
alli morrem, o que succede
, indo cansados. (João Ribeiro). —
(… o que succede por irem cansados).

Biantes, um dos sete sabios da Grecia, perguntado qual
era o animal mais venenoso, respondeu que, dos bravos, o tyranno ;
dos mansos, o adulador
. em chamar veneno á adulação,
acertou-lhe o nome ; mas
, em distinguir o tyranno do
adulador, não disse bem, porque todo o adulador é tyranno
.
(P. Ant. Vieira). — (em chamando veneno á adulaçãoem
distinguindo
o tyranno do adulador…).

Observação. Sob a influencia da conjuncção como,
não raro acontece que os gerundios, quer expressos, quer
occultos, formem, por idiotismo, um complemento indirecto
em que a ligação citada torna-se o equivalente da preposição
por, e o gerundio, o equivalente de um dos quatro
primeiros tempos do infinitivo. Ex. Aceito como verdadeiras
— ou — como sendo verdadeiras as vossas allegações. — Isto
é : Aceito por serem verdadeiras as vossas allegações.

Esta interpretação, destinada a sujeitar ás leis geraes
da analyse syntaxica um caso excepcional, encontra a sua
justificação no seguinte excerpto, onde ambas as formas
se apresentão no estado de poderem substituir-se reciprocamente
sem offensa ao sentido geral da oração, embora com
alguma impropriedade de dicção :

O monge logo declarou que a casa tinha grandes empenhos,
os quaes elle
, por pobre [por ser pobre], não podia
383satisfazer ; e, como religioso [como sendo religioso], não determinava
implicar-se em negocios seculares para esse effeito
.
(P. Man. Bernardes). — O monge logo declarou que a casa
tinha grandes empenhos, os quaes elle
, como pobre [como
sendo pobre], não podia satisfazer; e, por ser religioso,
não determinava implicar-se em negocios seculares para esse
effeito
.

Verifica-se novamente a mesma allegação pela propriedade
com que, no seguinte exemplo, complementos indirectos
de substantivos aceitão a conjuncção como em
substituição á preposição por : « S. Gregorio Magno dá por
regra e cautela (como
regra e cautela) aos mesmos reis
que, quando virem que são maiores os louvores com que forem
adulados delles
[os lisonjeiros secretos], tanto os reconheção
por maiores inimigos (como maiores inimigos). (P. Ant.
Vieira).

472. Por tudo quanto foi expendido sobre a natureza
e o emprego do complemento indirecto, ter-se-ha formado
a convicção de que, nelle, a idéa é propriamente representada
polo substantivo, pronome ou infinitivo regido, visto
a preposição apenas exprimir o modo por que a mesma
idéa se ageita a outra que lhe é logicamente anterior.
Comprovão-no duas observações de alguma importancia em
philologia. A primeira é que o substantivo, pronome ou
infinitivo desperta sempre, mesmo de, per si só, um recordo
no espirito, mas não assim a preposição ; porque, sendo
isolada, nem sequer lembra determinadamente cousa alguma.
A segunda é que, nas linguas providas de declinações,
a simples inflexão terminal das palavras dispensa na
mór parte dos casos o uso das preposições, e portanto as
suppre. Logo a preposição com o seu regime forma um
conjuncto mentalmente inseparável, em que este fornece a
essencia, e aquella, a feição.

Isto explica porque ; em tantas linguas, algumas preposições
gozão, por euphonia, do privilegio de apegar-se
pela contracção a uns ou outros dos regimes (delle, della,
delles, dellas
 ; — nisto, nisso, naquillo, etc.), ou a umas
palavras indissoluvelraente annexas ao seu regime (do homem ;
da mulher ; — naquelle paiz, naquella região j
pelos mares, pelas terras, etc.) ; porquanto do conjuncto
todo resulta, por assim dizer, um só e unico termo syntaxico,
no qual o espirito não enxerga, nem discordancia,
nem solução de continuidade. Emfim, no adverbio, o complemento
indirecto fica todo concentrado em uma só e
unica palavra. A preposição não póde, portanto, de per
si só constituir um termo syntaxico.384

Se, porém, a indole du lingua autorisa que um termo
não annexo, e sim de todo independente, como um sujeito
ou um complemento directo, possa intrometter-se por acaso
entre a preposição e seu regime, a razão não admitte que,
com elle, a mesma preposição forme contracção, porque
dahi resultarião dous absurdos : o sujeito ou complemento
directo assim agarrado pela preposição não seria mais, nem
sujeito, nem complemento directo, e sim regime da mesma
preposição ; e o regime proprio da preposição, desamparado
de sua relação, não teria mais funcção nenhuma : o que
tudo destruiria a syntaxe pela base.

Ex. Começando pelos maiores corpos politicos, que são os
reinos, qual é a causa
de tantos se terem perdido ? (P.
Ant. Vieira). — (… de terem-se perdido tantos).

Ahi é o pronome tantos o sujeito evidente de se terem
perdido
 ; visto como impõe a este infinitivo a forma plural :
portanto não é o regime da preposição de.

Pois, sendo da indole da lingua portugueza o autorisar
frequentemente a interposição de um sujeito ou complemento
directo entre uma preposição e seu regime, e dando-se
em consequencia diariamente o caso presupposto de
contracção indevida, por ignorancia das leis syntaxicas,
muito convém tratar do assumpto pelo miudo, para atalhar
tamanho abuso. Infelizmente apparcee este erro patrocinado
por mais de um exemplo tirado dos classicos. Porém,
attendendo-se de outro lado que, na mór parte dos casos,
os mesmos mestres da boa linguagem se cingírão escrupulosamente
ás regras da logica, fica-se em duvida se taes
erros lhes devem ser imputados como meros descuidos, ou
se não forão antes o resultado de uma distracção de compositor
typographo, ou o da infidelidade do um primeiro
copista presumido.

Soja como fôr, o verdadeiro principio grammatical é
incontestavelmente o seguinte :

« Nenhuma das quatro preposições contractivas a, de,
em, per (por
) póde formar contracção com a palavra que
se lhe segue, a não constituir esta o seu regime, ou uma
apposição forçosamente annexa ao seu regime, como o são
os artigos e os adjectivos determinativos. »

No caso de duvida, basta soccorrer-se ao tentame
mental de uma leve transposição dos termos. Se ella se
deixar effectuar sem alteração do pensamento, facil será
então assignar a cada palavra a sua funcção, e convencer-se
assim da illegitimidado da contracção. Ahi vão exemplos
confirmando a regra.385

« Senhor, manda quem has de mandar, por o tal cargo
requerer
, não digo um grande e consummado saber humano,
mas ainda a um divino, inspirado por graça
. » (João de
Barros). — (Não :… pelo tal cargo requerer… porque a
simples transposição : por requerer o tal cargo… deixa
claramente perceber que a preposição por tem o seu regime
no infinitivo requerer, como o mesmo infinitivo tem o seu
sujeito em o tal cargo… — os taes cargos requererem…).

Não ter inimigos tem-se por felicidade ; mas é uma tal
felicidade, que ê melhor a desgraça
de os ter, que a ventura
de os não ter. (P. Ant. Vieira). — (Não : … dos ter…
dos não ter, porque dir-se-hia …. de te-los… de não
te-los
).

Quando o infante D. Duarte se achava naquella prisão,
houve arbitrios em Madrid
de o offerecerem a Portugal, e
de os entregarem em troca de Angola. (P. Ant. Vieira). —
(Não : … do offerecerem… do entregarem… porque dirse-hia
de offerecerem-no… de entregarem-no…).

Os algozes que crucificárão a Christo, depois de o pregarem
despido na cruz, lhe jogárão as vestiduras. (P. Ant.
Vieira). — (Não : … do pregarem… porque dir-se-hia … de
pregarem-no…
).

Que utilidades se têm seguido á Hespanha do seu famoso
Potosi, e das outras minas da America ?
a mesma Hespanha
confessa e chora que lhe não têm servido mais que
de a despovoar
e empobrecer. (P. Ant. Vieira). — (Não : … que da
despovoar
e empobrecer… porque dir-se-hia … que de despovoá-la
e empobrecê-la).

Mas el rei conhecia o zêlo de Frei Thomaz : esteve tão
longe
de o tratar mal, que lhe assignou o desterro para a
mesma casa de que era filho
. (Fr. Luiz de Souza). — (Não :
.do tratar mal…. porque dir-se-hia … de tratá-lo
mal…).

El rei D. Sebastião, sem embargo de a paixão não ser
pouca, e a idade não ser muita, reconheceu logo o toque da
adulação
. (P. Man. Bernardes). — (Não : … sem embargo
da paixão não ser
pouca… porque dir-se-hia … sem embargo
de não ser a paixão
pouca…).

Ora, em contraposição a estas lições confirmativas de
um principio são, encontrão-se exemplos como os seguintes :

Que cousa é a formosura, senão uma caveira bem vestida,
a que a menor enfermidade tira a côr, e
, antes da morte a
despir de todo
, os annos lhe vão mortificando a graça. (P.
386Ant. Vieira). — (… antes de a morte a despir de todo…
porque dir-se-hia antes de despi-la de todo a morte…)

Representando-se em certa occasião uma farça no paço
real de Castelha, em que figurava um portuguez e um castelhano
pelejando ; e, dando-llie o castelhano muitas pancadas e
empuxões
pelo affrontar, e tomar vingança delle, assistia a
este auto D. Bernarda Coutinho, senhora portugueza de muito
espirito
. (P. Man. Bernardes). — (… por o affrontar… porque
dir-se-hia … por affrontá-lo…).

Eis-aqui o que eramos, as gentes, antes da lei evangelica,
e graça
de Christo ter domado nossos corações. (P.
Man. Bernardes). — (… antes de a lei evangelica, e
graça
de Christo ter domado nossos corações,… porque dirse-hia
antes de ter a lei evangelica, e graça de Christo
domado nossos corações).

E, alem disto não ser licito, quanto á consciencia,
tambem não é conveniente quanto á boa politica
. (P. Man.
Bernardes). — (e, alem de isto não ser licito… porque
dir-se-hia … e, alem de não ser isto licito…).

Conta Plutarcho que, passando um egypcio por uma rua
de Athenas, não sei com que debaixo da capa, lhe perguntára
um atheniense que era o que levava. Ao que lhe respondeu
 :
a Es atheniense, e perguntas isso ! Vês tu quie por isso o levo
coberto
, pelo não saberes ? (Diogo do Couto). — (… por
não
o saberes ?… porque dir-se-hia …por tu o não saberes ?)

depois do infante casar, assentou e accrescentou mais
no repouso e gravidade
. (André de Rezende). — (Correctamente :
O infante, depois de casar, assentou e accrescentou
mais no repouso e gravidade
).

Quanto ás minas de ouro, vagamente por todas as partes
tirão todos, e tirárão sempre em grão e pó, que chamão de lavagem,
maior quantidade do que pareceu
, pelo occultarem
aos quintos da rainha. (Franc. de Brito Freire). — (… por
o occultarem… porque dir-se-hia … por occultarem-no…).

Tudo ouviu o padre mestre Ignacio sem lhe responder palavra ;
e
, depois delle se ir, disse ao companheiro que
aquelle bispo era santo em tudo, tirado em ser seu irmão, e
estranhar aquella occupação
. (P. Balthasar Telles). — (… e,
depois de elle se ir… porque dir-se-hia … depois de ir-se
Elle…).

O papo deste passaro é de tão notavel mistura de todas
as côres juntas, que
, pelas furtar todas á natureza, lhe quadrava
melhor o nome de furta-côres
. (P. Balthasar Telles). —
387(… por as furtar todas á natureza… porque dir-se-hia
por furtá-las todas…).

Já se vê que não ha despeza feita senão depois do emigrante
estabelecido
. (Periodico). — (… Senão depois de
estabelecido ou de estar estabelecido o emigrante
).
Porquanto a locução prepositiva depois de, que alli allude
ao tempo, não pode reger a um emigrante, sujeito do infinitivo
elidido estar.

Entretanto, como não ha causa, ruim que seja, que
não encontre patrono, mórmente quando apadrinhada por
tão prestigiosos nomes, não seria de admirar que a
regra expendida fosse acoimada de fatuidade grammatical,
« porque finalmente não podem, nem devem os principios prevalecer
sobre o uso
 », no dizer dos que levianamente fallão
desta grande potencia humana : a palavra !

Em primeiro lugar, o erro indigitado não é de uso
entre os classicos, é apenas de excepção ; e, como tal, fica
suspeito de provir da ousadia ou distracção do copista illetrado.

Em segundo lugar, se, por uma inversão da regra formulada,
toda e qualquer preposição póde e deve senhorear
pela regencia a palavra que se lhe segue, eis-ahi justificado
o mais ingenuo, mas não o menos feio dos solecismos
oriundos das geringonças africanas, e a grammatica obrigada
a homologar como legitimas, taes e quejandas loquelas :
« Papai me deu um cavallo para mim an. passe
pela fazenda ». Não ha como escapar á conclusão- « para
mim…
!! e não : « para eu andar… ». Ora veja-se lá
quanto póde a logica do abuso.

Capitulo VIII
Do predicado

473. Predicado é a palavra ou conjuncto de palavras
que, mediante um verbo de estado, declara uma qualificação
ou situação do sujeito, a não ser que, sendo o mesmo
verbo accidentalmente impessoal, o predicado fique sem referencia
388nenhuma, mas existindo por amor do verbo de
estado.

Ex. Se os homens vos são ingratos, não sejais vós
ingratos
a Deos. (P. Ant. Vieira). — (Os homens… ingratos…
vós… ingratos…).

E’ certo que todos desejais o descanso ; é certo que
todos o buscais com grande trabalho
. (P. Ant. Vieira). — (E’
certoque…).

474. Os caracteres essenciaes do predicado são assim :

1.° O encostar-se elle mais ou menos immediatamente
a um verbo de estado ;

Ex. O ser rico ou pobre consiste em nosso desejo. (P.
Ant. Vieira).

2.° E referir-se elle ao sujeito, quando o ha ; não,
porém, a outro termo ;

Ex. tudo é vaidade, excepto amar e servir a Deos
(P. Ant. Vieira).

475. Mas, quaes são os verbos de estado ?

1.° Por antonomásia são elles ser e estar.

Ex. Era affranio burrho homem de grave e maduro
juizo... E
…, quando todos os outros fazião grandes applausos,…
affranio estava triste. (P. Ant. Vieira).

2.° Por imitação, todos os verbos neutros que, deixando-se
sem repulsa, embora com diversidade de sentido,
substituir por ser ou estar, avocão um predicado.

Ex. Veiu uma vez a luz a ser julgada no juizo dos homens,
e
vinha ella muito confiada. (P. Ant. Vieira). —
(… e ella vinha [estava] muito confiada).

Quantas vezes vem a juizo a luz e as trevas, e sahe
condemnada a luz
! (P. Ant. Vieira). — (… e a luz sahe
[É] condemnada).

Vede um homem desses que andão perseguidos de pleitos,
ou
accusados de crimes l (P. Ant. Vieira). — (… que
andão
[estão] perseguidos... ou accusados…).

Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo ! Pouco
ha
, nadavas vivo no mar com as barbatanas ; e agora jazes,
em um convez, amortalhado nas azas. (P. Ant. Vieira). —
(… tu nadavas [estavas] vivo... tu jazes [estás] amortalhado…).

Amigo de amigos, inimigo de inimigos é voz que soa
justiça, merecimento, proporção, igualdade
. (P. Ant.
389Vieira). — (… voz que sôa [mas não é] justiça, merecimento…).

Cuja é esta caveira ? E’ de fulano. viveu rico e morreu
pobre
. (P. Ant. Vieira). — (Fulano viveu [esteve] rico, e
morreu
[esteve] pobre).

Quem, por mercê de Deos, ficou victorioso e livre,
como se queixará de mal despachado ? (P. Ant. Vieira). —
(Como aquelle se queixará de [ter sido] mal despachado
que ficou [esteve] victorioso e vivo ?).

Para se mostrar liberal, busque o principe a quem dar :
parecera avaro, se esperar que lhe peção. (P. Ant. Vieira).
— (… elle parecerá [ [e todavia não é] avaro…).

Como irá livre e seguro de infinitos perigos quem se
metter na carroça da Avareza ?
(P. Ant. Vieira). — (Como
aquelle irá
[estara] livre e seguro de infinitos perigos, — que
se metter
…).

Quando as mesmas frotas voltavão carregadas de ouro
e prata, nada disto era para allivio ou remedio dos povos
.
(P. Ant. Vieira). — (Quando as mesmas frotas voltavão [estavão]
carregadas).

Alli andão livres as mãos, livres os olhos ; livres
voão as palavras
. (P. Man. Bernardes). — (Alli andão
[estão] livres as mãos, [estão] livres os olhos ; livres voão
[estão] as palavras).

Leião-se as espistolas de S. Paulo : parecem suas palavras
simples
 ; mas, em qualquer parte que se attenda, são
raios
. (Fr. João Pacheco). — (… suas palavras parecem [e
entretanto não
são] simples…).

Até as aguas que por entre as veias descem, sahem
cruas
. (Franc. Rodrigues Lobo). — (Até as aguas sahem
[são] cruas).

Irmãos meus, lastima é que andeis mais esperdiçados
pela vossa perdição que pelo vosso Deos. (Fr. Ant. das Chagas).
— (… que estejais…).

476. São assim ser e estar os protótypos dos demais
verbos de estado.

Porém muinto errado andaria quem suppozesse que a
mesma classificação implica nestes verbos a assistencia absoluta,
permanente, inauferivel de um predicado : elle é
meramente adventicio, por depender da condição de que um
tal verbo seja supprivel por ser ou estar. Deixando de
ser esta substituição possivel, o verbo fica reduzido ás relações
communs a todos os verbos neutros que, não avocando
390predicado, fícão simplesmente verbos do acção, mas
não de estado. Demonstra-o terminantemente o primeiro
dos exemplos anteriormente citados :

Veiu uma vez a luz a ser julgada no juizo dos homens,
— e
vinha ella muito confiada.

Em ambas as proposições está o facto syntaxico constituido
do mesmo verbo vir ; porém só ao segundo assiste
um predicado, porque só este se presta á substituição lembrada :
o primeiro vem assim a ser mero verbo do acção.

O mesmo se verifica igualmente no segundo dos exemplos
citados :

Quantas vezes vem a juizo a luz e as trevas — e sahe
condemnada
a luz !

O que dahi se deixa concluir, é que o predicado denuncia
propriamente os verbos do estado, como, em outra
ordem de principios syntaxicos, o sujeito denuncia os verbos
ou tempos pessoaes.

Nem ser e estar, os verbos de estado por antonomásia,
são aliás isentos da contingencia de appareccr despidos
accidentalmente de predicado, succedendo-lhes assim
de em tal caso perderem tambem a qualificação de verbos
de estado.

Ex. Se os olhos vêm com amor, o que não é, — tem ser ;
se com odio, o que tem ser, — e é bem que seja, — não é,
nem serajamais. (P. Ant. Vieira).

Respondeu um dos reis vencidos a Sesostris : « Levo sempre
postos os olhos nesta roda porque vejo nella que, assim como
esta parte que agora
estáem baixo, estevejá em cima,
assim a que
estáem cima, com meia volta só, torna a
estarem baixo. » (P. Ant. Vieira).

477. As palavras mais idoneas para constituir predicados
são os adjectivos e participios, porque, essencialmente
variaveis em genero e numero, mais claramente
denuncião pela concordancia a sua referencia ao sujeito.

Ex. Um « affeiçoado á caça ; e, quando os cães andão
luzidios e anafados, ver-lhe-heis os criados pallidos e mortos
a fome
. (P. Ant. Vieira).

478. Se o sujeito é composto, a concordancia de taes
predicados fica determinada pelo modo por que com o
mesmo sujeito se acha regulada a concordancia do verbo,
a saber :

1.° Passando o verbo para o plural, por concordar simultaneamente
391com todos os componentes do sujeito,
tambem para o plural passa o predicado ; e, se fôrem os
componentes de genero diverso, o predicado costuma assumir
o do mais chegado, convindo, tanto quanto é possivel,
seja este um masculino.

Ex. Na China, as cidades, villas e lugares são
frequentes
e visinhos uns dos outros. (P. João do Lucona).

Finalmente a terra, as minas e os moradores ficárão
todos sujeitos ao jugo e dominio estranho, presidiados de
suas legiões
, tributarios á sua cobiça, governados e opprimidos
de sua tyraunia. (P. Ant. Vieira).

2.° Vindo, porém, o verbo a concordar só com o mais
chegado dos componentes do sujeito, com elle só tambem
concorda o predicado.

Ex. Pois esta mesma ignorancia e loucura É a de
todos ou quasi todos os que se chamão christãos
. (P. Ant.
Vieira). — (Não : …as de todos…).

Esta e a obrigação e a pena em que a carta que recebí
nesta frota de V. Ex. me tem posto
. (P. Ant. Vieira). —
(Não : estas…).

O sol,, a lua, as estrellas, e o uso da sua luz
é commum a todos. (P. Ant. Vieira). — (… o uso é commum…).

A mudança e variedade das linguas do Brazil é curiosa.
(P. Simão de Vasconcellos).

Observação. Esta concordancia de um adjectivo ou
participio com o ultimo dos substantivos de um termo
composto a que se refere, verifica-se tambem geralmente
om relação aos pronomes.

Ex. Nem havia de ser vosso o vosso escravo, nem vossa
a vossa
canoa, nem vosso o vosso carro e o vosso boi senão
para o manter e servir
com elle. (P. Ant. Vieira). — (… com
o boi).

479. Se os adjectivos e participios são os predicados
por excellencia, quasi com a mesma propriedade o são
tambem os substantivos, pronomes e infinitivos : os substantivos,
porque lhes é frequentemente licito supprir aos
adjectivos ; os pronomes, porque compete-lhes fazer tudo
quanto fazem os substantivos ; os infinitivos, emfim, porque
om tudo manobrão como os substantivos e pronomes, embora
geralmente em separado e por conta propria.

Ex. O maior tyranno que houve no mundo, foi Herodes ;
392mas seus aduladores forão ainda mais tyrannos,
porque o rei foi tyranno dos vassallos, e os aduladores forão
tyrannos
do rei. (P. Ant. Vieira).

Dizia Seneca que antes queria offender com a verdade,
que agradar com a lisonja. Mas
, quem era Seneca ? (P. Ant.
Vieira).

O ver-se louvado era Ver-se accusado ; o ver suas grandezas
referidas
era ver suas culpas provadas. (P. -Ant.
Vieira).

480. Sendo, porém, a faculdade de concordancia muito
mais limitada nestas tres especies de palavras do que nos
e participios, torna-se de interesse observar como
os classicos procurarão, no emtanto, coadunar com o sujeito
os predicados assim constituidos.

1.° Tornando-se possivel a concordancia em numero e
genero, ella se effectua em genero e numero, e, com infinitivos,
até em pessoa.

Ex. A historia é mestra da vida. (P. Ant. Vieira).

A mentira é filha primogenita do ocio. (P. Ant.
Vieira).

Imagem sómente da mesma Virgem era a arca do testamento.
(P. Ant. Vieira).

A sabedoria é princeza e inventora de todas as cousas.
(João de Barros).

Os pobres são os banqueiros de Deos. (P. Ant. Vieira).

As palavras brandas do adulador são redes que elle
arma para tomar nellas ao mesmo adulado
. (P. Ant. Vieira).

Os céos não deixão de ser bons historiadores. (P. Balthazar
Telles).

Não fazerem mercês os reis seria não serem reis. (P.
Ant. Vieira).

O quererdes que vos falle de tão sumptuosa casa, é
obrigardes-me a que seja semelhante a um simples rustico.
(P. Man. Consciencia).

2.° Não sendo a concordancia possivel em genero, ella
se effectua em numero.

Ex. Aquelles inimigos erão as trombetas da fama
de Themistocles ; e
os vossos são testemunhas, em causa
propria, de vos ter dado Deos os bens que lhes negou a elles
.
(P. Ant. Vieira).

O edifício sem união é ruina : (P. Ant. Vieira).393

Onde a vontade é juiz, taes como estas são as sentenças.
(P. Ant. Vieira).

Testemunha é aquella trombeta que, no dar da lei, retumbava
pelas faldas do monte Sinai
 ; testemunhas são os
tympanos e pandeiros de Maria, irmãa de Moyses. (João do
Barros).

3.° Não sendo a concordancia possivel em numero,
ella se effectua em genero.

Ex. As obras, e não a duração, são a medida certa da
vida humana
. (P. Ant. Vieira).

Não são as trevas a capa dos latrocinios ? (P. Ant.
Vieira).

São os escriptos um verdadeiro retrato do seu autor.
(Fr. Luiz de Souza).

Antes de sahir ou fugir da patria, Christo grangeou o
aborrecimento e desprezo dos seus naturaes, e dos
que erão
seu sangue. (P. Ant. Vieira).

4.° Sendo afinal impossibilitado de por qualquer modo
ageitar-se com o sujeito, o predicado arrisca-se fiado no
sentido.

Ex. São os alarves gente de mui delicados engenhos.
(Fr. Bernardo da Cruz).

Os olhos são, em toda a organisação do corpo humano,
a parte mais humana, mais delicada e mais mimosa. (P.
Ant. Vieira).

Olhai o trafego ! tudo ferve, tudo se muda por instantes.
Se divertirdes os olhos, dalli a nada tudo achareis virado : o
rico já é pobre ; o mecanico já é fidalgo ; o moço já é velho ;
o são já é enfermo ; e
o homem já é cinzas. (P. Man. Bernardes).

Os gados maiores e menores, que naquelle tempo tambem
erão
riqueza dos reis, não tinhão numero. (P. Ant. Vieira).

481. Mas essa tendencia que constantemente leva o
predicado a concordar com o sujeito, fica completamente
atalhada logo que o mesmo prodicado tem de ser constituido
pelo pronome pessoal estavel — o.

Ex. Oh ! que boa lembrança para a mesa dos principes,
e dos que o não são !
(P. Ant. Vieira).

A razão está em que, vindo um pronome a substituir
a um substantivo ou outro pronome, bem consente em tomar-lhe
pela concordancia as feições de genero e numero,
porque e este o officio que peculiarmente lhe incumbe.
394Tendo, porém, de representar a um adjectivo, ou, o que
dá no mesmo, a um substantivo adjectivado, arripia-se de
metter om si feições meramente emprestadas (que taes são
as do adjectivo), e, como verdadeiro arrufado, contenta-se
com recordar summariamente ao adjectivo, encolhendo-se
na forma de pronome estavel. Pois o que o referido pronome
pessoal ahi representa, não é o substantivo — os principes,
e sim o substantivo adjectivado principes (… e dos
que não são
principes).

Outros exemplos :

Não é potável o ouro da sciencia ; e, ainda que o fôra,
sempre havia de amargar á boca
. (P. D. Raphael Bluteau).
— (… ainda que fôra potavel…).

Não só diz S. Gregorio Magno que os aduladores secretos
são públicos inimigos dos reis, mas dá por regra e cautela aos
mesmos reis que, quando virem que são maiores os louvores
com que forem adulados delles, tanto os reconheção por maiores
inimigos, e creião que o são
. (P. Ant. Vieira). — (… que elles
são
inimigos).

Causa notavel complacencia ver aos moradores deste sitio,
porque têm corpos
que o não parecem, mas puros espiritos.
(P. Man. Consciencia). — (… porque têm corpos que não parecem
corpos).

482. O predicado, aliás, como os demais termos syntaxicos,
é simples quando consta de uma só palavra, e
composto quando consta de mais de uma.

Sendo composto, tanto a elle podem promiscuamente
concorrer os adjectivos e participios, como os substantivos
e pronomes.

Ex. Doeg louvou e engrandeceu a David diante de Saul,
para que Saul, como fez, désse sentença de morte contra David.
Disse que era
prudente guerreiro, esforçado, gentilhomem,
virtuoso
, e dotado de tantas outras boas partes.
(P. Ant. Vieira).

No mesmo caso, porém, os infinitivos não consentem
em andar colligados senão com substantivos ou pronomes,
e ainda excepcionalmente.

Ex. Os primeiros jogos que inventarão os homens, forão
a luta, os cestos, a clava, a lança, a pella, a troia
(a que nós chamamos canas), o lançar a barra, o ferir o
alvo com a setta, o correr no estadio, o saltar os vallos, o
nadar vestido de armas, e outros semelhantes. (P. Ant.
Vieira).395

483. Vindo o predicado a constar de um ou mais substantivos
aos quaes o sentido da oração impõe necessariamente
o plural, ao passo que o sujeito tem de parar no singular,
dá-se então um caso singularissimo de syllepse, por ser o
predicado, e não o sujeito, que vem a reger ao verbo.

Ex. A dilação são dous males. (P. Ant. Vieira).

O mundo são os homens. (P. Man. Bernardes).

Alguns autores comparão os aduladores ao cameleão, á
sombra e ao espelho. Mas, como o camaleão, a sombra e o
espelho, tudo
são assistentes mudos. (P. Ant. Vieira).

Augmentar a religião, manter a paz, desterrar a inveja,
mitigar os odios, honrar a virtude e o sangue, ensinar o temor
de Deos, venerar o culto, mostrar devoção e piedade, favorecer
as letras, estimar os sabios, premiar os valorosos, amparar os
pobres, embargar os insolentes
são regras de bom principe.
(P. Ant. Vieira).

Em corpos onde ha desunião, como na estatua de Nabuco,
o mais seguro tiro é ao desunido, ainda que
sejão os pés.
(P. Ant. Vieira).

« Senhor, aonde iremos, que vossa palavra são palavras
de vida ? » (João Franco Barreto).

Quem não vê que são isto preceitos gentilicos ? (Fr.
Luiz de Souza).

Mas se por acaso o verbo for impessoal, nelle já não
pode mais actuar o predicado, porque a nenhuma regencia
tal verbo se sujeita.

Ex. Eis-aqui todo o juizo dos homens : amarão mais, ou
amarão menos. Se amarão, ainda que
seja as trevas, as
trevas hão de ser melhores ; se não amarão, ainda que
seja
a luz
, a luz ha de ser peior que as trevas. (P. Ant. Vieira).
— (… As trevas eque são melhoresa luz eque é
peior
).

Explica isto a curiosa anomalia que se observa no seguinte
exemplo :

Tudo erão armas, fogo, sangue ; e melhor fôra damas,
amores, serões, musicas
e galanterias. (Luiz Torres de
Lima).

Ahi é o facto erão do verbo pessoal ; porquanto, tendo
o seu sujeito em tudo, passa a ser excepcionalmente regido
de seu prodicado composto armas, fogo, sangue. o facto
fora, polo contrario, é de verbo impessoal (… bom é, mas
melhor fôra…), o tem o sou predicado om melhor, sendo
que os substantivos damas, amores, serões, etc. constituem
396igualmente um predicado, porém o predicado de um verbo
elidido (… e melhor fora — que tudo fossem damas, amores,
serões…
), o que deixa claro o motivo por que, em circumstancias
que á primeira vista parecem identicas, o facto
erão passa todavia para o plural, ao passo que fôra tem
do permanecer no singular.

Esta regra fica apenas violada por euphonia e idiotismo
na seguinte e semelhantes locuções : « são oito
horas
 ».

484. E’, aliás, tão frequente a elisão do verbo de estado,
que muito convem ter esta observação presente no
desempenho dos exercicios analyticos, para não incorrer
no erro de attribuir aos predicados uma funcção indevida,
o transtornar assim nas versões as relações genuinas das
palavras.

Ex. Quantos forão mais venturosos com seus erros, que
outros com seus acertos ! Algum que sempre errou, que nunca
fez cousa boa
, nomeado, applaudido, premiado. O que acertou,
o que trabalhou, o que subiu á trincheira, o que derramou o
sangue
, enterrado, esquecido, posto a um canto. (P. Ant.
Vieira). — (Algum que sempre errou… [ficou] nomeado, applaudido,
premiado...
O que acertou [ficou] enterrado, esquecido,
posto a um canto
).

Esses encomios parecião louvores, e erão accusações ; paredão
abonos, e erão calumnias
, calumniado o innocente na
sua virtude, e
accusado o benemerito nas suas boas obras.
(P. Ant. Vieira). — (… [sendo] calumniado o innocente
[sendo] accusado o benemerito…).

Não faltará quem diga : « Quantos mercenarios arrebentão
de
fartos, e eu morro de fome ! (P. Ant. Vieira). — (…
Quantos mercenarios arrebentão de [estar] fartos…).

Assim, pois, acontece aos suberbos, que, quando mais
ufanos e satisfeitos de suas prendas, andão a buscar o
applauso do mundo
. (P. Man. Bernardes). — (… que, quando
[estão] mais ufanos e satisfeitos de suas prendas…).

Ha causas que,… se não párão de cansadas, pelo menos
andão tão devagar, que tudo se vai em manda, remanda,
manda, remanda
. (P. Man. Bernardes). — (Ha causas que,
se não párão
de [estar] cansadas…).

perguntado o discreto Thomaz Moro, cancellario de Inglaterra,
com que se parecia um avarento, respondeu
 : « Como
fogo, que, quanta mais lenha se lhe lança, mais lenha pede
. »
(P. Man. Bernardes). — ([sendo] perguntado o discreto Thomaz
Moro
…).397

Junto daquella hervazinha nasce outra, que a ovelha conhece
por
salutifera para seu pasto ; e, logo a par, outra,
de que se desvia, como
nociva. (P. Man. Bernardes). —
(… que a ovelha conhece por [ser] salutifera... e outra, como
[sendo = por ser] nociva).

Sobre liberal, era João Fernandes Vieira entendido e
valoroso
. (Fr. Franc. do S. Maria). — (Sobre [ser] liberal…).

Dá-se tambem o caso, porém com menos frequencia,
do recahir a elisão no mesmo predicado.

Ex. Se aquelle corpo era de um sabio, onde estão as
sciencias ?
(P. Ant. Vieira). — (Se aquelle corpo era [o] de
um sabio
…).

Recommendo a Vm. estes fidalgos como se a cama de
ambos
fora de meu irmão. (P. Ant. Vieira). — (… como se
a causa de ambos fôra
a de meu irmão).

485. Junto a um verbo de estado, só póde haver um
predicado, o qual é simples ou composto ; mas não póde haver
dous, como o deixa suppôr a theoria do verbo substantivo,
sendo um em officio, e outro de sobresalente.

Dizem que o infante D. Henrique foi eleito rei de
Chypre
. (Fr. Luiz de Souza).,

Pela malfadada theoria da substantividade do verbo,
que tudo atrapalha, e nada resolve, todo e qualquer participio
encostado a ser é necessariamente predicado (attributo).
Por ella é ahi, portanto, o participio eleito o predicado
mais qualificado.

Ora, se se perguntar a uns substantivistas o que vem
a ser neste caso o vocabulo rei, que, tanto como eleito,
concorda em genero e numero com o sujeito D. henrique,
e parece-se com um predicado, como uma gota do orvalho
com outra gota de orvalho, respondem elles muito anchos
que completa o sentido de eleito, e com elle forma um
attributo composto. A resposta, por dizer de mais, não
diz nada.

Pois, se o predicado é composto, por constar do mais
de uma palavra, é forçoso que, para justificar da pretenção,
se possa sujeitar ao criterio de todos os termos compostos,
isto é, á intercalação de uma ligação copulativa ; ora isso é
impossivel (… D. Henrique foi eleito e rei de Chypre 1).

Se, de outra parte, por vir a completar o sentido de
eleito, o substantivo rei sahe complemento, carece declarar
a que especie pertence. Sustentar que é complemento
directo
porque não apparece regido de nenhuma preposição,
398é conferir a um verbo passivo (foi eleito) um complemento
que nunca ninguem, nem mesmo dentre os substantivistas,
sonhou em attribuir a um tal verbo. Se é, porém, complemento
indirecto
, desentranhe-se a preposição que faz sempre
parte integrante de tal termo ! Não se acha nenhuma.

E, qual vem a ser a conclusão ?

Fr. João do Ceita, citando a Tertuliano em caso analogo,
dá a seguinte resposta, cheia de opportunidade : « Se
vamos ter com os mestres, sabem fazer a figura, calão, e
olhão-vos sobre o hombro, como que estão com mil respostas
aos argumentos
. »

Quanto a nós, a conclusão é muito simples.

Nenhum participio de um verbo propriamente passivo
constitue um predicado. E, porque ? Porque o participio
de um tal verbo forma com o auxiliar o termo indivisível
de facto. e, como se prova isso ? Prova-se pela inversão
sempre possivel de um verbo propriamente passivo em
verbo activo, o que deixa claramente perceber a unidade
do facto pela unidade possivel da palavra (Dizem que elegerão
ao infante D. Henrique rei de Ghypre).

O que dahi resulta, é que o participio eleito concorda
com o sujeito como parte integrante do facto, e que rei
concorda com o mesmo sujeito como predicado simples. E
tudo vai assim gyrando sobre seus naturaes eixos.

Chega-se a igual conclusão na determinação dos termos
syntaxicos do seguinte trecho do P. Ant. Vieira : « O glorioso
e miseravel povo (de Jerusalem) sustentava a fama de

ser chamado seu um tal rei. » Ahi não é chamado o predicado,
e sim seu (… de um tal rei ser chamado seu) ; pois
ser chamado constitue a idéa indivisível de um verbo passivo,
isto é, de um verbo de estado.

« Mas, por este modo, redarguirão os substantivistas,
nenhum participio variavel póde vir a ser predicado. E
entretanto collocais os mesmos participios no numero das
palavras essencialmente idoneas para constituir um tal
termo. »

Replicamos : Que é o participio ? Uma palavra que
procede essencialmente do verbo, e se porta frequentemente
como um adjectivo.

Quando se porta como um adjectivo, forma um predicado.
Quando não, concorre simplesmente á formação do
facto.

Assim é que concorre simplesmente á formação do
facto no seguinte excerpto do P. Ant. Vieira, onde o grande
399moralista attribue as catastrophes dos reinos, e fins malafortunados
dos reis « aos que só são admittidos a dizer e
a ser ouvidos
. » Porquanto, estando ser ouvidos, assim
como dizer, no primeiro tempo do infinitivo, tempo impessoal,
não póde constituir o participio ouvidos o predicado
de um sujeito que não existe.

Occorre ainda que, sendo variavel, o participio faz
mera parte do facto, se se deixa inverter em verbo activo
ou pronominal.

Ex. As mangas são reputadas nocivas. — (reputão-se
nocivas as mangas). — Analyticamente : As mangas (suj.) ;
são reputadas (facto) ; nocivas (predic.).

Se, porém, o mesmo participio variavel relucta á inversão
em verbo activo ou pronominal, signal é que se
porta como um adjectivo, e constitue de per si o predicado.

Ex. As mangas do Pará são reputadas. — (Ninguem
aceitaria como expressão de pensamento a inversão : reputão-se
as mangas do Pará). — Analyticamente : As mangas
(suj.) ; do Pará (compl. ind.)j são (facto) ; reputadas
(pred.).

Outrosim, a quem estranhar esta dissertação como
ociosa, por versar sobre uma distincção futil, força será
representar-lhe que os principios ahi ventilados adquirem,
na sua applicação a outras linguas, uma importancia que
não permitte desprezá-los, porque pela lingua materna é
que se estudão as demais linguas.

486. E’ digno de especial reparo que o predicado vai
frequentemente constituido por um complemento indirecto,
quer isoladamente, quer de promiscuidade com as palavras
declaradamente idoneas para a formação deste termo.

Ex. O que os palacianos discorrião, era desta maneira.
(P. Ant. Vieira).

Vagando a Abbadía de S. Dionysio em Pariz, muitos a
pretendêrão por
ser illustre e com bom dote. (P. Man.
Bernardes).

A razão desta anomalia encontra-se em uma ou outra
das duas seguintes considerações :

1.° Ou porque não existe na lingua um qualificativo
que possa substituir ao complemento indirecto (… era desta
maneira
) ;

2.° Ou porque, como mais frequentemente occorre, o
qualificativo que poderia ser substituido ao complemento
400indirecto, não ficaria illibado de alguma impropriedade
(… por ser illustre e bem dotada!)

Ama o teu inimigo, porque as settas do seu odio, se as
recebes com outro odio
, são de ferro (não : ferreas) ; e, se
lhes respondes com amor
, são de ouro (não : aureas). (P.
Ant. Vieira).

O peccado da usura, e a enfermidade da lepra parecem-se
em muitas cousas : não
é, logo, de admirar (não : admiravel)
que esta fosse a pena daquella culpa
. (P. Man. ser-

Estava a estatua de Nabuco em pé, robusta, ufana e
soberba. (P. Ant. Vieira).

Toda a consolação é escusada quando os males são sem
remedio
. (P. Ant. Vieira).

Os moradores deste sitio estão em pé ou sentados…
Os seus vestidos são da côr da purpura. (P. Man. Consciencia).

Foi o P. Ant. Vieira prudente, de profundo juizo,
grave, affavel, compassivo, desprezador
do mundo, de
altos espiritos
, e elevadas idéas. (P. André de Rezende).

Sendo tão frequente e ordinaria no jogo a perda do dinheiro
e da fazenda, isto é o menos que nelle se perde, porque

são muito mais preciosas e para sentir as outras perdas
ou perdições em que a cegueira da cobiça não repara
. (P. Ant.
Vieira).

Os barbaros que morão commummente nas serras dos
Montes Claros, são havidos por
agrestes e de pouco saber.
(Fr. Bernardo da Cruz). — (… por ser agrestes e de
pouco saber
).

Sendo os adverbios e locuções adverbiaes meros complementos
indirectos, não é sem exemplo encontrá-los substituindo
tambem a um predicado.

Ex. E’ bom que se saiba esta doutrina. (P. Man. Bernardes.
— (E´ bom).

E assim forão Judas e Dimas na vida. (P. Ant. Vieira).
— (e taes forão…).

O’ peixes, não só vos comeis uns aos outros, senão que
os grandes comem os pequenos. Se
fôra pelo contrario, era
menos mal
. (P. Ant. Vieira). — (Se fôra o avesso…).

487. Junto a um verbo impessoal, o predicado constando
de adjectivo ou participio, por não encontrar sujeito
401com que se prenda pela concordancia, permanece na
sua forma primordial, que é o masculino singular.

Ex. Necessario é que haja premios para que haja soldados.
(P. Ant. Vieira).

E’ certo que todos desejais o descanso ; é certo que
todos o buscais com grande trabalho
. (P. Ant. Vieira).

No que reparo, é que o Senhor convocasse a seus discipulos
para que nisso mesmo reparassem, e levassem doutrina
 :
esteve bem feito. (P. M. Bernardes).

Porém, junto ao infinitivo impessoal de um verbo pessoal
por natureza, a concordancia se effectua por syllepse
com a palavra que serviría de sujeito a um tal infinitivo,
se tivesse um.

Ex. Até o sol e a lua e as estrellas não deixamos estar
ociosos
desta pensão. (P. Ant. Vieira). — (… não deixamos
que
elles estejão ociosos…).

Pois, que direi dos outros admiraveis conselhos do Salvador ?
O conselho de não resistir aos que nos perseguem,
e
estar aparelhados para dar uma face a quem nos fere a
outra ?
(João Franco Barreto). — (… que estejamos aparelhados…).

Os primeiros jogos forão... o saltar os vallos, o nadar
vestido
de armas… (P. Ant. Vieira). — (… o nadar um
homem
, (estando vestido de armas…).

Observação. Habitos de infatuação fizerão com que
se introduzisse em algumas linguas modernas o uso de se
substituirem por vezes os pronomes sujeitos eu e tu pelos
seus correspondentes do plural nós e s. Dahi originou-se
uma singular anomalia de concordancia. Pois, ao passo
que o verbo, levado de vencida pela forma plural do sujeito,
com elle concorda em numero e pessoa, o predicado,
pelo contrario, visando unicamente ao sentido singular do
mesmo sujeito, deixa-se ficar no singular por syllepse.

Ex. O’ peixe voador, quizestes ser melhor (não : melhores)
que os outros peixes, e por isso
sois mais mofino
(não : mofinos) que todos. (P. Ant. Vieira).

Entretanto grammaticos ha que, ao exemplo de Constancio,
se arrogárão, de sua propria autoridade, o direito
de restringir o emprego tão natural da referida syllepse
ao unico pronome — vós, censurando a João de Barros por
ter dito : « Antes sejamos breve que prolixo », por lhes
parecer a elles que o eximio historiador devêra ser « antes
breves que prolixos ». Ora, como os mesmos censores negligenciárão
402de motivar tão estupenda pretenção, desculpárão
assim antecipadamente a quem lh’a despreza, para
seguir a João de Barros, e conformar-se com o bom
senso.

488. Emfim encontra-se por vezes, junto a verbos que
não são de estado, um pseudo-predicado ; porquanto, embora
seja sujeito á mesma concordancia de um predicado verdadeiro,
não faz em realidade senão substituir a um
adverbio.

Ex. Este os servia cuidadoso, e elles o attendião alegres.
(Fr. Ant. de S. Maria Jaboatão). — (… cuidadosamente
alegremente). Pois sendo ahi servia e attendião
verbos activos, nem um nem outro podem caber na categoria
de verbos de estado.

Outros exemplos :

Não foi necessario mais para o condestavel ceder volontario.
(Fr. Domingos Teixeira). — (… volontariamente).

Acudiu então o pai, dizendo-lhe mui flegmatioo : « De
que te amofinas, filho meu ? (P. Man. Bernardes). — (… mui
flegmaticamente
).

O piloto, depois de pratico na arte nautica, accommette
confiado o fluctuante abysmo. (P. D. Kaphael Bluteau). —
(… confiadamente).

Capitulo IX
Da apposição

489. Apposição é toda a palavra variavel que, não
sendo facto syntaxico, prende-se directamente, pela concordancia
possivel, a um substantivo, pronome ou infinitivo,
para tornar-lhe o sentido mais preciso.

490. As apposições essenciaes constão de artigos, adjectivos,
ou participios variaveis ; as accidentaes, de substantivos,
pronomes ou infinitivos.403

Exemplo de apposições essenciaes

Que nos lembra essa grande creatura do Oceano, senão
o mundo
inchado peda soberba, divido pela inveja, fervido
pela
ira, vazio pela inconstancia, e tragador de naufragos
pelos desastres da perdição eterna ? (P. Man. Bernardes).

Apposições de substantivos

Esta vida dos pastores, como mais quieta, tem em seu
trabalho todas as cousas com que póde sustentar-se : a
lãa, o
leite, as pelles, a carne dos animaes ; as hervas, os legumes,
e o fructo das plantas. (Franc. Rodr. Lobo). —
(… tem todas as cousas… : lãa, leite, pelles, carne ;
hervas, legumes, fructos
…).

Apposições de pronomes

Sendo propostos a Gatão dous cidadãos romanos para o
provimento de duas praças, respondeu que ambos lhe descontentavão
 :
um, porque nada tinha ; outro, porque nada lhe bastava.
(P. Ant. Vieira). — (… ambos… : um… outro… lhe
descontentavão
).

Apposição de infinitivo

Assim disse Bersabé a Salomão : « Trago-vos, senhor, uma
petição : não me envergonheis a face !
 » e, porque se chama
envergonhar a face negar o que se pede ? (P. Ant Vieira).
— (… porque negar [o que se pede] chama-se envergonhar… ?)

491. Assim é a apposição um termo meramente annexo :

1.° Porque nunca de per si entra em relação directa
com o facto, termo dominante da proposição ;

2.° Porque sempre comparte servilmente da sorte de
outro termo, o que se patenteia, em portuguez, pela sua
concordancia possivel em genero e numero, e além disto,
nas linguas providas de declinações, pela sua concordancia
em caso.

Estas allegações ficão intuitivamente demonstradas, no
primeiro dos exemplos adduzidos, pela concordancia em
genero e numero das apposições assignaladas, com as palavras
por ellas amparadas.

No segundo exemplo, os substantivos indigitados como
apposições, associão-se á sorte do complemento directo
cousas.404

No terceiro, os pronomes um e outro compartem com
ambos da funcção do sujeito que a este vocabulo compete.

Emfim, no quarto, o infinitivo envergonhar prende-se
ao complemento indirecto se, de que mais detidamente se
tratará adiante, no exame das notaveis relações syntaxicas
a que dão logar os verbos pronominaes. Porém as apposições,
neste modo, apresentão-se mais frequentemente sob
a forma gerundial, como no seguinte exemplo em que um
gerundio constitue, com um participio variavel, uma apposição
composta : [« Os pretendentes,] porque os trazeis consumidos
e consumindo-se ? » (P. Ant. Vieira).

492. Se bem que as apposições aparentem com os
predicados tantos pontos de analogia, que, em mais de um
caso, têm regras communs, todavia delles se differenção
terminantemente por dous predicamentos essenciaes.

O primeiro consiste em que um predicado só se póde
referir a um sujeito, quando sujeito ha ; a apposição, porém,
tanto se prende a um sujeito como a um complemento, a
um predicado como até a outra apposição.

Ex. Outros comparão os aduladores ao espelho, retrato
natural
e reciproco de quem nelle se vê. (P. Ant. Vieira).
— Ahi fazem os adjectivos natural e reciproco junto ao substantivo
retrato a mesma funcção de apposição que este
mesmo substantivo exerce junto a espelho. Igual demonstração
fornecem os seguintes exemplos :

Era a causa da guerra a formosa Helena, flôr emfim
da terra, e cada anno
cortada com o arado do tempo. (P. Ant.
Vieira).

As mitras, coroas, tiaras e outros semelhantes ornatos se
determinão para a cabeça
, escola viva, e mestra perpetua
de tudo o que se sabe no mundo. (P. D. Raphael Bluteau).

O segundo ponto que faz divergir as apposições dos
predicados, consiste em que estes podem existir sem referencia
a sujeito algum (E’ certo que…), bastando-lhes, em
tal caso, o verbo de estado para certificar de sua funcção ;
ás apposições, porém, não póde faltar, sob pena de ambiguidade,
a palavra amparada, assim como do seguinte
exemplo se deprehende :

Havendo antes arpoado um filho, recebeu a baleia mãi
junto delle os golpes da morte
. (Franc. de Brito Freire). —
Quem é que arpoou o filho da baleia ? Nada o deixa perceber ;
— a não ser que, pelo maior dos absurdos, se preste
a um contexto tão vicioso o sentido que aparenta ter, isto
é que a mesma baleia mãi havia arpoado ao seu filho, visto
405ser o sujeito baleia a unica palavra com que se póde prender
a apposição havendo arpoado. Aliás a emenda era muito
facil : Mavendo-se-lhe antes arpoado um filho… ou : Havendo-lhe
sido antes arpoado um filho

Semelhante, ou até maior confusão e incerteza resulta,
no seguinte exemplo, já anteriormente citado, da enunciação
de apposições sem referencia a nenhum substantivo,
pronome ou infinitivo, que são as palavras de amparo :
« Do qual damno e estrondo, e de outros que trazia carregados,
foi Diogo Alvares disparando com igual effeito. (Fr.
Franc. de S. Maria Jaboatão). — Que erão est´outros que
trazia Diogo Alvares carregados, para dispará-los com tanto
effeito ? Constarião de damno e estrondo ? Parece que sim.

493. As apposições podem convergir em numero mais
ou menos crescido para uma mesma palavra amparada,
sem por isso constituirem necessariamente um termo composto.

Ex. Aquella idade dourada tão celebre nos primeiros
tempos, quem a fez ? (P. Ant. Vieira).

O que torna uma apposição composta é a interposição
ou faculdade de interposição de uma ligação copulativa
entre suas partes.

Ex. O que Christo ensinava, não era philosophia humana,
terrena
e humilde, senão sabedoria do céo. (João
Franco Barreto). — (… não era philosophia humana e terrena
e humilde…
).

Tem esta observação uma opportunidade relativa ao
emprego dos signaes de pontuação.

494. Constando de substantivo ou pronome, a apposição,
assim como em igual caso o predicado (V. § 480),
exhaure todas as combinações de concordancia antes de
se resignar a não accusar nenhuma.

Ex. Salomão chama aos conselhos os lemes da guerra.
(P. Ant. Vieira). — (… os conselhos : — os lemes).

Da teia fazem as aranhas a casa em que morão, covil
donde matão a caça, e valhacouto onde se defendem. (Fr.
João de Ceita). — (… a casa : o covil e o valhacouto).

Faça o principe seu gorpo de guarda o amor dos subditos.
(P. Ant. Vieira). — (… o amor... o corpo…).

Todos os homens querem ter pão, e muito pão. Dous alvitres
lhes trago hoje para isso
 : um para terem pão, outro
para terem muito. (P. Ant. Vieira), — (... dous alvitres : —
um, outro…).406

Por qualquer parte que a fortuna ou desgraça leve o sabio,
no seu saber vai o que propriamente é seu ; e, neste bem, leva
os maiores bens do mundo
 : saude e liberdade. (P. D.
Kaphael Bluteau). — (… os maiores bens : — saude e liberdade)

495. Mas esta appetencia de concordancia em genero
e numero desapparece logo que, deixando de aggregar-se a
um termo determinado, a mesma apposição vai resumindo
em si uma proposição anterior.

Ex. Outros jogadores, por extrema desesperação, se matárão
a si mesmos
, ultimo arrojo a que póde chegar o delirio
humano
. (P. Ant. Vieira).

Outros comparão os aduladores ao espelho, retrato natural
e reciproco de quem nelle se vê. Porque, se lhe pondes os
olhos, olha para vós ; se rides, ri ; se chorais, chora
 : lagrimas,
porém, sem dôr, riso sem alegria. (P. Ant. Vieira).

Sobre liberal, era João Fernandes Vieira entendido e valoroso,
prendas com que conciliou facilmente os affectos e estimações
de todos os que o tratavão
. (Fr. Franc. de S. Maria).

Notão os curiosos da natureza que algumas das aranhas,
na primeira ordidura, deitão quatro fios como fundamento de
toda a teia, e cada qual destes vão depois tecendo e enchendo
de outros vinte ; e assim se compõe aquella sua teia, e casa
de oitenta fios
, o que tudo é para que nada lhe escape. (Fr.
João de Ceita). — (… cousa que é toda para que…).

Fallando ambos sós, por mui claras razões mostrou o
duque de Alva a D. Sebastião que se havia de perder
 : ao
que
el rei lhe não deferiu com outra cousa mais que perguntar-lhe
de que côr era o medo
. (Luiz Torres de Lima). —
(… cousa á qual el rei não deferiu).

496. Dando-se o caso de se referir uma ou mais apposições
essenciaes a um conjuncto de substantivos ou pronomes,
elles costumão concordar em genero o numero com
o pronome ou substantivo mais conchegado.

Ex. Oxalá se trocárão os tempos e uso presente por
aquella idade felicissima
. (P. Ant. Vieira).

Vemos esse tronco e cadeias cheias de gente miseravel.
(P. Man. Bernardes).

O norte sempre fixo do adulador é o interesse e a conveniencia
propria. (P. Ant. Vieira).

Da outra parte estavão os principaes gentios com seus
arcos e frechas na mão. (P. Ant. Vieira).407

Ainda que Deos nenhuma razão deu quando estabeleceu
este preceito, comtudo
infinitas razões e motivos pudera dar
para persuadir o que mandava
. (P. Ant. Vieira).

Se eu tivera autoridade para emendar a Homero, e confiança
para aconselhar a Ulysses, não o havia de querer com
os ouvidos abertos, e as mãos atadas, senão com os ouvidos e
as mãos
soltas. (P. Ant. Vieira).

E’ particular circumstancia e honra da verdade ser
sempre uniforme
. (Fr. Luiz de Souza).

Quem ama a Deos, dá a devida honra e reverencia,
assim a elle, como ao seu santo nome
. (D. Fr. Bartholomeo
dos Martyres).

Quem poderá dignamente explicar a excellencia da doutrina
de Christo!
aquella paciencia e alegria, nas tribulações
e perseguições, por grandes que sejão, a qual levanta o homem
sobre as estrellas do céo, e o constitue em aquella região de
paz e tranquillidade aonde não chegão
as peregrinas impressões
e nublados deste seculo tempestuoso, e donde se vê, como
debaixo de seus pés
, todos os nublados e revoluções do mundo.
(João Franco Barreto).

Daqui é que, a uma só palavra e chamamento seu, os
apostolos o seguião
. (João Franco Barreto).

Ha entre Deos e os justos tamanha liga e conspiração
de amor, que nenhum mal lhes póde vir tão poderoso, que
quebre o fio á sua felicidade
. (D. Fr. Amador Arraes).

Quanto as cousas são mais perfeitas, tanto maior cuidado
e providencia tem o Creador dellas
. (Fr. Luiz de Granada).

Opinião é de Marco Tullio ser a historia o sujeito mais
levantado, e que pede
maior eloquencia e gravidade. (Man. Severim
de Faria).

Perguntou-lhe a rainha, com rosto e presença triumphante,
que lhe havião parecido as razões do orador. (Duarte
Ribeiro de Macedo).

El rei D. João II tinha um livro em que tinha escripto
todos os homens aptos para
todos os cargos e cousas necessarias.
(André de Rezende).

No infante D. Duiz, as feições do rosto e estatura mostravão
seu animo e condição real. (Fr. Franc. de S. Maria).

Todavia, se, de algum contraste entre os substantivos
associados, torna-se saliente a feição de pluralidade, as apposições
passão para o plural, embora estejão os mesmos
substantivos no singular.

Ex. E’ tal a industria dos Chins, que por muito que ella
408deva sua grande abundancia e riqueza aos elementos, não é
menos obrigada á diligencia e trabalho com que seus moradores
industrião, e fazem muito mais
ferteis e rendosas a
terra e a agua
. (P. João de Lucena).

497. Assim como um complemento indirecto póde-se
substituir ou associar a um predicado constando de adjectivo
ou participio (V. § 486), assim se póde tambem o
mesmo complemento indirecto associar ou substituir a uma
apposição de igual natureza, porque identicas são as relações
syntaxicas que em tal caso travão ambos os termos.

Ex. Tinha el rei D. Duarte o rosto redondo e de pouca
barba
(não : pouco barbado). (Duarte Nunes de Leão).

De outras taboas vivas e de maior custo (não : mais
custosas) usavão os cavaleiros romanos. (P. Man. Bernardes).

Donde tantos prestimos e utilidades senão de vós, Senhor,
que não obrais cousa
debalde e vazia de virtude ? (P. Man.
Bernardes).

Observação. Nas palavras de tratamento, todas as
apposições inseparaveis da formula são sempre, como a
mesma palavra amparada, de genero feminino ; assim : sua
santidade apostolica, tossa majestade fidelissima, sua
alteza serenissima
, etc. Porém todas as mais apposições
ou predicados que ás mesmas palavras por ventura se refirão,
tomão por syllepse o genero da pessoa a quem dizem
respeito.

Ex. Tanto que chegar esta nova, Vossa Alteza logo, sem
esperar outro preceito
, se ponha de curto o mais bizarro que
puder ser
. (P. Ant. Vieira).

Tudo está empenhando a Vossa Alteza a obrar conforme o
seu real sangue, e mostrar ao mundo que é Vossa Alteza
herdeiro
de seus famosissimos progenitores. (P. Ant. Vieira).

Capitulo X
Da ligação

498. Ligação é a palavra ou conjuncto de palavras
que, por interposição, torna os termos compostos, as preposições
connexas, ou as orações correlativas.409

Todas estas tres circumstancias se encontrão, por ventura,
summariamente resumidas no seguinte exemplo :

O jugo e as cadeias de ferro e de bronze têm estas quatro
cousas
 :

Que carregão, ferem, soão e durão.

E as mesmas quatro tem o jugo e cadeias da infamia.
(P. Man. Bernardes).

Pois o que dá a conhecer a indagação analytica applicada
a este exemplo, é que,

na primeira secção,

a ligação copulativa e faz, dos substantivos jugo e cadeias,
os dous membros de um só e mesmo sujeito ; como, dos
substantivos ferro e bronze, faz os dous membros de um só
e mesmo complemento indirecto : em summa, denuncia ambos
estes termos como compostos ;

na segunda secção,

a ligação subordinativa que faz, dos quatro factos syntaxicos
que se lhe seguem, outras tantas proposições subordinadas
á primeira ; porquanto, sem esta, não apresentarião
sentido apreciavel ; e portanto vão-lhe connexas :

Que ellas carregão, que ellas ferem, que ellas soão, que
ellas durão ;

Emfim a ligação copulativa e, que conjuncta os dous
ultimos factos, como poderia conjunctar os dous anteriores :

que carregão e ferem e soão e durão,

mostra, associando-as, que as mesmas proposições constituem
subordinadas da mesma especie, o que tudo, como é
intuitivo, não póde deixar de influir sobre a determinação
dos signaes de pontuação que um tal caso requer ;

na terceira secção,

a ligação copulativa e, que enceta a segunda das duas
orações de que se compõe o exemplo, tem por officio de
encaminhar o espirito a considerar ambas as ordens do
pensamentos como tendentes para um mesmo fim, isto é o
de torná-las correlativas. Quanto á ultima ligação e, ella
reune novamente em um só e mesmo sujeito os substantivos
jugo e cadeias.

Ora, se desta exemplificação resalta que, além de sua
imprescindivel assistencia na linguagem, as ligações exercem
nella uma funcção toda especial, que nenhuma outra póde
410supprir, claro é que sua constituição em termo syntaxico
é tão justificada como a do sujeito, dos complementos ou
de outro qualquer orgão dos pensamentos.

Sob esta consideração abrigamos a esperança que nos
seja aceita esta innovação em Grammatica, visto formar
ella uma das bases da analyse logica.

Das ligações copulativas

499. As tres ligações copulativas, quer intervenhão
entre partes de um mesmo termo, quer entre proposições,
quer entre orações, estabelecem sempre o mesmo genero
de relação, o da solidariedade, com a differença tão somente
de ser ella de affirmação com e, de negação com nem, o
de alternancia com ou. A prova está em que se podem
mutuamente substituir, mas, como é obvio, não sem transtorno
dos pensamentos.

Ex. Tudo o que nasce na terra, o sol ou a chuva o
cria
. (P. Ant. Vieira). — (… o sol e a chuva... o sol nem a
chuva
…).

A cousa mais facil do mundo é dar conselho a outrem, e
a mais ardua é tomá-lo para si. (P. Ant. Vieira). — (a cousa
mais facil do mundo
não é dar conselhonem a mais ardua
é tomá-lo
… — a cousa mais facil do mundo é dar conselho
ou a mais ardua é toma-lo…).

Pois, Filho da Virgem Maria, se tanto cuidado tivestes
então do respeito e decoro de vossa mãi, como consentis agora
que se lhe fação tantos desacatos ?
Nem me digais, Senhor,
que lá era a pessoa, cá a imagem
. (P. Ant. Vieira). — (… e
dizei-me, Senhor… — Ou dizei-me, Senhor,…).

500. As ligações que, por mais terminantemente desmancharem
a mesma solidariedade, vão tambem mais a
miudo oppostas ás tres copulativas, são mas e porem,
que, por causa desta mesma significação de contraste, não
podem deixar de apparecer precedidas de um ou outro dos
signaes de pontuação.

Ex. Fez um fulano Topete, homem nobre, mas de pouca
renda, umas rijas festas
. (P. Man. Bernardes).

O entendimento é parte que discorre, porem póde discorrer
mal
. (Mathias Ayres da Silva de Eça).

Decretou-se por lei do Senado em Roma que só estes jogos,
e nenhum outro, se pudessem jogar a dinheiro. Sendo
, porem,
o principal premio dos que vencião, não o dinheiro, senão a
honra e fama, esta era tão gloriosa nos jogos que se chamavão

411sagrados, que não se dava a corôa ao vencedor, senão á patria.
(P. Ant. Vieira).

501. Sendo as ligações copulativas mais de uma vez
admissiveis, quer entre partes do um mesmo termo, quer
entre proposições consecutivas do mesma especie, ellas costumão
geralmente apparecer só no ultimo dos lugares que
lhes compete.

Ex. E’ possivel que uma cousa tão pequena, — tão
branda, — tão leve
e tão mudavel como a lingua, tenha poder
para vos pôr ás costas um jugo tão pesado, — tão duro
e tão
durador ?
(P. Man. Bernardes). — (… tão pequena e tão
branda
e tão leve e tão mudavel… — tão pesado e tão duro
e tão durador…).

Levados de ambição, querem os homens mais do que podem
e devem : por isso, os altos cahem, — os grandes rebentão
, e
todos se perdem... Com a carga demasiada cahe o jumento, —
rebenta o canhão
, e vai-se o navio a pique. (P. Ant. Vieira).

Todavia este caso de elisão consuetudinaria fica sujeito
a frequentes e variadas excepções, que, opportunamente
empregadas, não pouco realce e clareza conferem á dicção.

Ex. Querendo Solon consolar a um amigo seu, opprimido
de vehemente tristeza, o levou a uma torre eminente, donde se
descortinava toda a cidade, e lhe disse
 : « Considerai, amigo,
quantos prantos — luctos, — afflicções, — desgraças e trabalhos
estiverão já
, e actualmente estão debaixo destes telhados, e estarão
successivamente pelos tempos vindouros
. (P. Man. Bernardes).

Se alguem visse desde um posto eminente todas as mudanças
que no mundo succedem
, veria, reparando no mesmo
homem, como nunca permanece no mesmo estado, succedendo-se
como revoluções da roda, a saude
e a enfermidade, — o trabalho
e o descanso, — a honra e o desprezo, — o tormento e
o deleite, — o temor e a esperança. (P. Man. Bernardes).

Alli ninguem se queixa, nem da pobreza, nem dos achaques,
nem das paixões da alma, nem das miserias do mundo.
(P. Man. Consciencia).

Basta que, aos que têm o supremo poder, lhes suba á cabeça
um vaporzinho
, ou de cobiça, ou de ambição, ou de inveja,
ou de odio, ou sómente de vaidade, para que, contra
uma fortaleza ou sobre uma cidade, chova tanta multidão de
raios quantas são as pedras das suas muralhas
, (P. Ant. Vieira).412

Das ligações subordinativas

502. Em sentido estricto, as ligações subordinativas
(que e se, com os congeneres) só conjunctão proposições,
fazendo, da posterior, um appendice da anterior. Pois, vindo
uma ligação subordinativa a unir duas palavras de funcção
real ou apparentemente a mesma, não as concilia por isso
em um só e mesmo termo composto, como as copulativas ;
mas presuppõe, junto á segunda, uma elisão que faz da
mesma segunda palavra um mero termo de outra proposição.

Ex. Maior gloria é emendar que castigar. (P. Ant.
Vieira). — (Maior gloria é emendar — que [gloria grande
e
] castigar). Ahi são ambos os infinitivos sujeitos, porém
cada um de sua propria proposição.

Não ha cousa mais cara que a que custa vergonha. (P.
Ant. Vieira). — (Não ha cousa mais cara — que [cara é] a
que custa vergonha
). — Ahi, pelo contrario, o substantivo
cousa constitue o complemento directo do ha, ao passo
que o pronome demonstrativo a forma o sujeito da proposição
elidida (… que é cara a queaquella que…).

Se esta observação é de mingoado alcance em portuguez,
ella se torna de summa importancia nas linguas que
assignalão os seus termos pelas inflexões das declinações,
porque demonstra que o mesmo caso declinativo não compete
sempre, nellas, aos termos associados por tãos ligações,
mas que cada um deve ter o caso que lhe vai prescripto
pela decomposição analytica. Assim é que, se o portuguez
houvesse declinações, o substantivo cousa, do ultimo exemplo,
iria para o accusativo, e o pronome a, para o nominativo.

503. Sendo toda e qualquer ligação subordinativa a
denunciação de uma proposição logicamente posposta a
outra, a sua apparição no inicio de uma oração só póde
dar, geralmente, lugar a duas hypotheses : ou que a mesma
proposição se acha, por inversão, anteposta á proposição de
que a subordinada depende : ou que a proposição de que a
subordinada depende, ficou omissa, caso este que se verifica em
todas as orações directamente interrogativas ou exclamativas.

Ex. Que Jonathas se resolvesse a amar a David quando
não conhecia as paixões deste tyranno affecto, não foi muita
fineza
. (P. Ant. Vieira). — (Não foi muita finezaque Jonathas
se resolvesse a amar a David
…).

Que o que baila e dansa ? tem parte de louco e de furioso,
basta vê-lo de fora para confessá-lo
. (P. Man. Bernardes). —
413(Basta ver de fóra o que baila e dansa, para confessarque
tem parte de louco e de furioso).

Se o principe permittir ser lisonjeado na presença, supponha-se
praguejado na ausencia
. (P. Ant. Vieira). — (Supponha-se
o principe praguejado na ausencia
se permittir
ser lisonjeado na presença
).

Quando fazem os ministros o que fazem ? e, quando
fazem o que devem fazer ? quando respondem? quando deferem?
quando despachão ? quando ouvem ? (P. Ant. Vieira).
— (Eu pergunto pelo tempo — em que fazem os ministros o
que fazem. e eu pergunto
pelo tempo — em que fazem o
que devem. Pergunto
pelo tempo — em que respondem…).

Quanto cresceu o dominio dos que tudo mandão, com o
invento da polvora!
(P. Ant. Vieira). — (Admira do muito
que cresceu o dominio dos que tudo mandão, com o invento
da polvora
).

Todavia dá-se o caso, mas só por excepção, de uma
ligação subordinativa vir a encetar uma oração sem que
occorra nenhuma das hypotheses de proposição invertida
ou omissa, e vem a ser quando, a um arrazoado extenso,
segue-se-lhe uma conclusão correspondendo simultaneamente
a todos os argumentos adduzidos.

Ex. Vai tanto de haver união a não haver união entre os
homens, que um homem, antes da união, é um ; e dous homens,
depois da união, são dez. E, como dous, por virtude e beneficio
da união, se multiplicão em dez, bem se segue que, se um
vence a mil, dous hão de vencer a dez mil
. De sorte que,
para sermos mais do que somos (quando assim nos importará),
não é necessario multiplicar homens : basta unir corações, (P.
Ant. Vieira).

Assim foi : cresceu Themistocles, e, com elle, a fama de
suas victorias ; e não destruia tantos exercitos de inimigos na
campanha, quantos se levantavão contra elle na patria
. para
que
vejão os odiados ou pensionados do odio se se devem
prezar ou offender de ter inimigos
. (P. Ant. Vieira).

O riso ou alegria do peccador não é animado com vida
do espirito : é só riso em estatua, frio como marmore ; riso,
não tanto seu, como do mundo, que, por elle, se ri delle mesmo
.
porque, como disse S. Agostinho, este mundo ri-se de todos os
que se não riem delle
. (P. Man. Bernardes).

Pelo propheta Isaias fallava Deos com os justos ; e, animando-os,
dizia
 : « Levantai os olhos ao céo ; olhai para a
terra, e entendei que primeiro os céos se desfarão como fumo,
e a terra se gastará como vestido, e os que morão nella fenecerão
,
414que deixe de permanecer a minha saude, e tenha fim a
minha justiça
. » Do que se segue manifestamente que quem
afflige os justos, faz guerra ao mesmo Deos
. (D. Fr. Amador
Arraes).

504. Só ha um caso em que, por uma inversão mui
excepcional, a ligação subordinativa vai apparentemente
posposta, em vez de anteposta ao verbo ao qual se refere,
e é quando a oração, sahindo repentinamente do teor proprio
da exposição, acaba de chofre por uma interrogação
directa.

Ex. Tudo o que se sabe, por vista ou por memoria, dos
periodos e catastrophes dos reinos, e dos fins malafortunados
dos reis, e causas delles, ás menos vezes se deve
attribuir
aos inimigos de fora
, que são os que só se temem, senão,…
a quem ? Aos lisonjeiros e aduladores de dentro. (P. Ant.
Vieira).

Esta excepção, porém, longe de infirmar o principio
que estabelece como intransferível a ligação subordinativa,
corrobora-o com uma nova sancção, por revelar o processo
analytico que o pronome a quem não é, como á primeira
vista parece, o complemento indirecto do infinitivo expresso
attribuir, e sim o de outro attribuir omisso por
ellipse, assim que o attesta a interposição da ligação senão
(… senão [vêde] a quem [se deve attribuir :] aos lisonjeiros
e aduladores de dentro
). E assim se vai verificando
mais e mais a singeleza e fixidade das leis geraes que
regem a linguagem.

Observação. E´ digno de reparo que a ligação como,
vindo a assumir o sentido de visto como ou visto que,
constrange constantemente a proposição por ella encetada
a se transpor para adiante da proposição de que depende.

Ex. como não tinhão os apostolos mais que cinco pães,
era força buscar algum modo de os accrescentar
. (P. Ant.
Vieira). — (Não : Era força buscar algum modo de accrescentar
os pães
, como não tinhão os apostolos mais que cinco).

Como viu S. Francisco de Borja o que era a alma,
deixou o mundo
. (P. Ant. Vieira).

Como são mais os que accusão a fortuna, que os que lhe
dão graças, maior materia dão os nascimentos ao temor que á
esperança
. (P. Ant. Vieira).

Das ligações preventivas

505. A discriminação das ligações em tres classes distinctas
não é nenhuma operação arbitraria, pois a cada
415classe compete fornecer uma indicação especial. e, se
assim não fosse, não poderião apparecer, como tão frequente
é o caso, conjunctadas em um mesmo lugar. Pois,
porque duas ligações em um só e mesmo ponto, se não
devem produzir effeitos distinctos ? e, se produzem effeitos
distinctos, é que, por natureza, não são assemelhaveis. Ora
só são assemelhaveis as da mesma classe, e estas tambem
são as que se não conjunctão.

506. As copulativas podem, por anteposição, associar-se
ás subordinativas.

Ex. Este meio de accrescentar pão será muito bom quando
no mundo não houver quatro cousas
 : quando em Zelandia
não houver pechelingues
 ; quando em Argel não houver turcos ;
quando na agulha de marear não houver suestes ; e quando
no Maranhão não houver baixios. (P. Ant. Vieira).

Vêde se foi grande favor e providencia do Céo que se
não descobrissem vossas minas
, e se, tanto no particular como no

geral, ia desencaminhada e errada a vossa esperança ! (P.
Ant. Vieira).

A associação, porém desapparece logo que, estando
embora immediatas, cada uma das ligações actúa em uma
proposição diversa, caso que por isso mesmo avoca sempre
entre as mesmas ligações a intervenção de uma virgula.

Ex. E, quando as frotas voltavão carregadas de ouro e
prata, nada disto era para allivio ou remedio dos povos
. (P.
Ant. Vieira). — (e nada disto era para allivio e remedio dos
povos
quando as frotas voltavão carregadas de ouro e prata).

E, que faz a mesma natureza, toda movida e governada
pelo mesmo Deos ?
(P. Ant. Vieira). — (e [pergunto eu pelo]
que faz a mesma natureza…).

507. As copulativas podem, igualmente por anteposição,
associar-se ás preventivas, exceptuando-se, tão sómente
mas e porem, cujo sentido adversativo destroe a influencia
das copulativas, e portanto veda entre ellas todo e qualquer
consorcio.

Ex. Quem mais desprezivel que o mosquito ? e comtudo
os mosquitos já fizerão fugir a cavallaria de um exercito. (P.
Man. Bernardes).

Entretanto esta coordenação fica ás vezes alterada pela
faculdade de deslocação que pertence a nove das preventivas
(V. § 287).

Ex. E, se, todavia, ainda contra isto ha que dizer, não
está longe o remedio
. (Fr. Luiz de Souza). — Ordem logica :
416E todavia não está longe o remedio, se ainda contra isto ha
que dizer
.

508. As locuções como se o como que parecem desmentir
a allegação de se não associarem as ligações de
uma mesma classe.

Ex. Por fim recommendo a Vm. estes fidalgos como se
a causa de ambos fôra de meu irmão. (P. Ant. Vieira).

O leão correu attentamente ao homem com os olhos, como
que
o conhecia dantes. (P. Man. Bernardes).

Porém o que ressumbra do processo analytico, é que,
em uma e outra locução, ambos os vocabulos se despirão
do seu sentido proprio, para, por combinação, enunciarem
um só em commum, hypothese que se verifica em todas as
palavras compostas (arco-iris, recem-chegado, outro tanto,
cada um, estar fallando, haver de fallar
, etc.). Portanto constituem
uma e outra meras locuções conjunctivas.

O caso apresenta-se diverso no seguinte exemplo :

Hippocrates respondeu que nunca Democrito estivera mais
sizudo, nem tivera o juizo mais são
que quando fugia dos
homens
. (P. Ant. Vieira).

Ahi não ha, nem combinação, nem associação de ligações,
porquanto ambos os termos ficão realmente separados
por um complemento indirecto occulto por contracção :
(… nem tivera o juizo mais são que [no tempo em que]
fugia dos homens).

509. A conjuncção preventiva pois tem por especial
officio de denunciar uma conclusão.

Ex. Parece-vos que tenho dito muito ? Pois ainda não
está discorrido tudo
a maior pensão, o maior cuidado e o
maior trabalho dos homens é buscar pão para a bôcca
. Pois
isto por que todos trabalhão, hei de ensinar hoje o modo com
que se possa alcançar sem trabalho
. (P. Ant. Vieira).

Porém os classicos a empregárão frequentemente numa
accepção que hoje parece bastante desusada, mas que a
fazia equivalente de porque, ja que, visto que, visto como,
e portanto a transferia para a classe das subordinativas,
vindo assim a motivar então, a pontuação propria destas
ligações.

Ex. Sejão ouvidos nesta causa todos, pois toca a todos.
(P. Ant. Vieira). — (… visto como toca a todos).

Mas, pois a perda, em todas as considerações, é tão irreparável,
só nos fica o allivio e consolação da fé
. (P. Ant.
Vieira). — [Mas, visto que… a perda é tão irreparável…).417

Mas, pois o estado da minha enfermidade me não consente
esta pequena demonstração, contento-me com que V. S.
tenha conhecido que, entre todos os criados da casa de V. S
.,
nenhum tanto tem festejado e estimado este triumpho della.
(P. Ant. Vieira). — (Mas, já que o estado da minha enfermidade)-

E, pois o tempo nega ás boas artes galardão, dai-lhes ao
menos o louvor
. (Franc. Rodrigues Lobo). — (e, já que o
tempo nega ás boas artes o galardão
…).

Capitulo XI
Dos idiotismos

510. Idiotismo é toda a locução que, embora de sentido
claro, porque é de uso commum, nega-se entretanto
ás leis geraes da analyse syntaxica. e nega-se ás leis
desta analyse, já porque as palavras que a compõem, exorbitão
das relações que lhes são proprias ; já porque, cotejadas
em sentido genuino, as mesmas palavras se mostrão
avessas a formar umas com as outras um conjuncto racional.

Ex. O bom do homem. — a santa da mulher. — Saber
de cór. — Tomar a peito. — Fazer das suas. — Dar-se com
alguem
. — Ir ter com alguem. — Ainda bem. — Ainda mal.
Que muito que… ! — de ha muito que… — Parede meia.
Comprar por atacado. — Vender a varejo. — Em serra
acima. — Em serra abaixo. — sua alma, sua palma. —
Etc.

511. Nenhuma lingua é isenta de idiotismos, e é geralmente
caracteristico delles o reluctarem a deixar-se
verter litteralmente de uma lingua para outra, e sim tão
somente por equivalentes. (Como passa ?Quomodo vales ?
Comment vous portez-vous ?…). Apezar de sua excentricidade
grammatical, os idiotismos, quando estremes de
vulgarismo, ou de allusões repulsivas, não são nenhumas
fórmulas reprovaveis ; muito pelo contrario : discretamente
espalhados na dicção, temperão-na, por assim dizer, de um
certo sabor patrio ao qual, com muita propriedade, litteratos
modernos chamárão vernaculidade.418

512. Torna-se, porém, obvio que, escapando a toda e
qualquer classificação, os idiotismos não são discutíveis em
Grammatica : apenas por ella assignalados como trastornos
licitos da linguagem, recahem no dominio da lexicographia,
que os tem de registrar com cuidado, mas subtrahem-se,
por sua natureza, a um estudo systematico.

Ex. Pobre da aranha ! quanta ordem e quanto trabalho !
E, com um sopro de vento, lá vai quanto ella fiou !
(Fr. João
de Ceita).

Correm, já ha dias, com o passaporte de segredo, os desatinos
dos medicos matasanos, com as exorbitancias de nescios
.
(Fr. João de Ceita).

Apresentou-se um dia diante do arcebispo um homem de
boa pessoa
e bem trajado. (Fr. Luiz de Souza).

Passando D. João de Castro pela rua de N. Sra. da
Luz, viu, numa casa terrea, quantidade de armas num cabide,
tratadas com tal lustro e aceio, que
se pagou da limpeza e
acerto
com que estavão dispostas. (Jacintho Freire de Andrade).

Tiverão rebate aquelles hespanhóes que Sua Santidade
andava fora ; acudirão todos juntos. Põem-se de joelhos,
e, voz em grita, começão a pedir misericordia. Enfadou-se o
papa; mandou que dessem recado ao governador que os fizesse
lançar nas galés. Não tinha o arcebispo noticia do que
havia precedido ; pareceu-lhe crueza o que via ; ficou
cheio
de espanto e compaixão. e, não podendo acabar comsigo
ter silencio
em tal passo, sem metter tempo em meio,
chegou-se a Sua Santidade, e, com toda a humildade : « Beatissimo
Padre, disse, isto são ovelhinhas de que Vossa Santidade
é pastor. Se no pastor acharem as ovelhas esquivança,
quem lhes ha de valer ? onde hão de achar brandura ?
 » (Fr.
Luiz de Souza).

Pois voador, porque tivestes maiores barbatanas, por isso
haveis de fazer das barbatanas azas ? Mas
ainda mal, porque
tantas vezes vos desengana o vosso castigo
. (P. Ant.
Vieira).

Nós temos muito boas mãos, e o sabem muito bem nossos
competidores ; mas, se não tivermos união, nem elles
haverão
mister boas mãos
, nem a nós nos hão de valer as nossas.
(P. Ant. Vieira).

Perdeu V. Ex. um tão grande, tão fiel e tão honrado
amigo e parente; e eu tambem o perdí, e nas circumstancias
que el rei, o reino e todos os mais
o haviamos mister. (P,
Ant. Vieira).419

Agora tambem eu digo que ditoso do que escapou da má
lingua, e do seu jugo de ferro
. (P. Man. Bernardes).

Que muito, Senhor, que vos rião comprehendamos, se não
comprehendemos um mosquito !
(P. Man. Bernardes).

Ha causas (se não são das que morrerão desesperadas)
que podem competir com João dos Tempos, de quem dizem
que viveu trezentos e sessenta e um annos. Se não párão de
cansadas, pelo menos andão tão devagar, que tudo se vai
em
manda, remanda ; manda, remanda
. É, com este manda,
remanda
, se faz eterna demanda. e, com esta espera, reespera,
o pobre emfim desespera. Porque estes modicos se
fazem tão immodicos, que o mesmo Job não
se haveria com
elles
, se, entre os seus trabalhos, se contára o de andar em
demandas e requerimentos
. (P. Man. Bernardes).

Todas as embarcações ião com suas invenções dif/ferentes,
A qual melhor. (Fernão Mendes Pinto).

Os vice-reis desembaraçados já das guerras, procuravão
assignalar-se no governo da paz, e propagação da fé de Christo,
que
a olhos vistos se ia dilatando. (Man. Godinho).

Capitulo XII
Observações peculiares sobre as diversas
especies de palavras

Verbos

Ter — Haver

513. Como auxiliares de verbos elementares, ter e
haver entrão indifferentemente na formação dos tempos
compostos. Parece, todavia, o primeiro ter geralmente
prevalecido sobre o segundo na dicção moderna. Ora, se
é licito aventurar uma conjectura a tal respeito, ha de
ser porque o emprego de ter acarreta menos hiatos do
que o de haver. (Eu o tenho ouvido. — Eu o hei ouvido).

514. Como verbos activos, isto é, como mais ou menos
synonymos de possuir ou considerar, ficárão ter e haver
em çompetição ainda mais desigual ; porquanto, a não ser
420no éstylo poetico, o primeiro supplantou notavelmente ao
segundo. Seria, com effeito, necessario retroceder a uma
epoca já remota para encontrar a locução « hei uma
casa
… », por substituição a « tenho uma casa… ».

Ex. Se tivestes animo para dar o sangue, e arriscar
a vida, mostrai que tambem vos não falta para o soffrimento

Se, depois de tantas cavallarias, o soldado se vê a pé, tenha
essa
pela mais illustre carroça dos seus triumphos. (P. Ant.
Vieira).

515. Como accidentalmente neutros, ter e haver
constituem alguns idiotismos em que, conforme o requer o
uso, já um, já outro prevalece.

Ex. Assim como é certo que Deos deu a corôa a David
porque se não vingou de Saul, assim digo, e
tenho por certo
que, se David, pelo contrario, se vingara, ainda que Deos o
tivesse destinado para a corôa, lh´a não havia de dar
. (P.
Ant. Vieira).

« Hei por bem que… » (Fórmula majestatica).

516. O mesmo se dá quando accidentalmente pronominaes.

Ex. Tenho-me em maior conta, e me julgo nascido para
cousas mais elevadas do que ser criado de meu corpo
. (Fr.
Luiz de Souza).

Houve-se em tudo a natureza como mãi. (P. Ant.
Vieira).

517. Passando a ser accidentalmente impessoaes, ter
e haver têm igualmente ingresso na linguagem familiar.
o segundo, porem, já de ha muito, prevalece sobre o primeiro
na linguagem castiça. Entretanto encontra-se tambem
nesta ultima.

Ex. Um agoureiro consultou a Catão que successo ou
prodigio significaria haver achado os seus calções roídos das
doninhas. Respondeu-lhe
 : « Até ahi não tem muito que adevinhar ;
quando as doninhas forem roídas dos calções, então
me consultareis
. » (P. Man. Bernardes).

No Brazil tem codornizes, rolas, pombos, melros, patos e
outras muitas aves semelhantes ás que cá temos, com quasi
infinidade de outras que entre nós se crião
. ha tambem aguias,
falcões, açores, gaviões e outras muitas aves de rapina
. (P.
Balthazar Telles).

Observação. A despeito do perfeito acordo em que
estão todos os grammaticos sobre a legitimidade da locução
421« Ha homens… », e de todas as mais em que o mesmo
verbo, por ser accidentalmente impessoal, não passa da
forma propria da terceira pessoa do singular, lá vão, mais
do que nunca, medrando e pullulando como tiriríca entre
couves, as loquelas subversivas do um principio sanccionado
pela lição constante e uniforme de todos os classicos. Pois
não carece perturbar muito a miudo os recessos da facundia
moderna, para se convencer de que, neste particular
a Grammatica tem ainda tudo por fazer em desaffronta do
bom senso e da tradição.

Não é de crer, que haja espirito tão obtuso para não
perceber que, se o humoristico « hão » é simplesmente impossivel
para quem tem ouvidos de ouvir, igualmente impossiveis
devem ser os competidores « havião, houverão,
hajão…
 » ; porque não faz afinal o primeiro, senão arremedar
fielmente o papel desempenhado pelos ultimos.

Ora, se se estranhar como um tal erro, não obstante
ser indigitado por todos os grammaticos, persistiu, e até
tomou incremento nas classes cultas, não é nenhuma injustiça
attribuí-lo áquelles mesmos que o procurárão derrocar.
Porquanto, desprezando o methodo experimental,
que pacientemente indaga antes de concluir, para se apegarem
elles ao dogmatico, que resolutamente affirma o que
levemente estudou, vierão a proclamar como generalidades
o que era mero accidente, e a cahir, de consequencia em
consequencia, no absurdo, que é a conclusão inevitavel de
um principio falso. Deste genero é o que, mórmente desde
a celebre descoberta da substantividade verbal, se vai cantarolando
pelas aulas : « que todo o verbo tem o seu sujeito.
» Isso lá é de fé ; não admitte, nem duvida, nem
reserva, nem exame. e, quando por acaso venha o decantado
principio a se mostrar de todo rebelde á demonstração,
lá vão elles embirrando no preconcebido, até chegarem a
formular cada um o seu particular esconjuro para a evocação
do um sujeito impossivel, e a clamar, apontando
para algum fantasma desenxabido : Ei-lo ! Teneo lupum auribus
(Estou segurando o lobo pelas orelhas).

Succedeu dahi o que não podia deixar de succeder. A
unanimidade do assenso, por parte dos glosadores deste
caso, á doutrina do que todo o verbo tem o seu sujeito,
creou tanto mais facilmente adeptos, que ella apparece
condensada num theor do precisão didactica. Porém o desconchavo
das interpretações da mesma doutrina na sua
applicação á analyse gerou desconfianças, desconcertou os
crentes, o fez com que cada um se reservasse in petto o
direito de agarrar o indefectivel sujeito onde bem lhe
aprouvesse.422

Quanto á lição dos classicos, ella é tão abundante
neste assumpto, que foi preciso, para desconhecê-la, que
nenhum lugar se désse, no plano e methodo dos estudos,
aos varões que mais illustrárão a lingua, e della são os
unicos mestres autorisados, preferindo-se-lhes theorias aventurosas,
sem consistencia nem nexo.

Ex. Ha dous generos de inimigos : uns que perseguem,
outros que adulão
. (P. Ant. Vieira).

Foi o padre frei Thomaz da Costa varão tão famoso em
letras e pulpito, que d rei D. João o escolheu por seu prégador
em tempo que, nestas duas qualidades
, havia muitos
homens
eminentes. (Fr. Luiz de Souza).

Acudiu Heitor da Silveira, dizendo : « Outro defeito maior
tenho eu sabido de D. Henrique : foi não desterrar da India
quantas
mas linguas havia ». (Parallelos).

Arrebentarão em lagrimas, gemidos e soluços quantos
havia
na igreja. (Fr. Luiz de Souza).

Este elephante só nos serviu em alguma necessidade urgente,
porquanto
havia outros que occupavão o serviço ordinario.
(João Ribeiro).

No principio do mundo, como gravemente pondera Seneca,
porque não
havia guerras ? Porque usavão os homens da
terra como do céo...
Porém, depois que a terra se dividiu em
diferentes senhores, logo
houve guerras e batalhas. (P.
Ant. Vieira).

Muitos houve que quizerão imitar os raios. (P. Ant.
Vieira).

Houve famosíssimas victorias contra principes que
nunca tinhão duvidado de as alcançar
. (Manoel Godinho).

Pois, se nos outros filhos de Jacob houve tambem cousas
merecedoras de louvor, e em Judas, merecedoras de vituperio,
porque se dá por benção só a Judas que elle será o louvado
.
(P. Ant. Vieira).

Se em Hespanha não houvera minas de ouro e prata,
nunca os Romanos irião a lhe fazer guerra de tão longe
. (P.
Ant. Vieira).

Necessario é que haja premios para que haja soldados…
Necessario é que haja saues liberaes para que haja
davids animosos
. (P. Ant. Vieira).

Se houvesse dous homens de consciencia, e outros que
lhes succedessem, não
haveria inconvenientes em estar o
governo dividido
. (P. Ant. Vieira).423

Este meio será muito bom quando, no mundo, não houver
quatro cousas…
(P. Ant. Vieira).

Quando, nos banquetes, não houvera mais excessos que
o beber, provocando-se uns aos outros, já não
havia poucos
vicios
. (P. Man. Bernardes).

Ninguem escolha amigo notavelmente mais honrado do
que elle, porque
, havendo qualquer encontro (que é força
havê-lo na instabilidade das ondas deste seculo), o mais
fraco é que padecerá todo o damno
. (P. Man. Bernardes).

Qual é, portanto, a theoria que natural e ostensivamente
dahi decorre em relação aos verbos impessoaes ?
Simplesmente que são impessoaes porque não têm pessoa ;
e não têm pessoa porque não têm sujeito : pois pessoa
e sujeito é uma só e mesma cousa. A feição de pessoa
e numero não é ingenita no verbo ; não coexiste por necessidade
metaphysica com a idéa de facto ou acto :
vai-lhe communicada pelo sujeito quando, para a enunciação
do pensamento, necessario é que sujeito haja.

Mas objectar-se-ha talvez, que deve-se ao menos reconhecer
nos mesmos verbos uma pessoa, a 3.ª do singular,
que, fora do infinitivo, manifesta-se em todos os modos, e
admittir assim que são unipessoaes, como tantos grammaticos
os denominão.

Nem isso se póde admittir ; porquanto, se unipessoaes
fossem, estarião necessariamente sob a regencia, ainda que
occulta, de elle ou de ella, que constituem, em tal caso,
o sujeito symbolico de todos os verbos pessoaes. Ora, como
ainda ninguem conseguiu coadunar em sentido, quer elle,
quer ella com chove, força é concluir que o seu sujeito
não é, nem um, nem outro. E, se não é, nem um, nem
outro, é porque não ha nenhum ; porquanto todo o sujeito
real, constituido por um substantivo, póde vir a ser representado
por elle ou ella, conforme o genero que sua recordação
impõe ao referido pronome.

Que os verbos impessoaes tenhão uma forma em cada
tempo, é porque não podem existir sem forma, isto é, sem
a letra ou letras representativas de sua sonoridade (é, ha,
chove, importa
que…, é sabido que…, esta averiguado
que…). Que esta forma seja a da terceira pessoa do singular,
é porque, nos verbos pessoaes, a mesma pessoa é a
mais indeterminada em relação ao sujeito ; porém, fóra da
feição de modo e do tempo, ella não recorda nada : nem
genero, nem numero, nem pessoa, porque para nada reverte
daquillo em que se póde encontrar um destes predicamentos,
inherentes entretanto á palavra regedora do
424verbo. E’, portanto, por mera assimilação do forma que
aos mesmos verbos se attribue pessoa e numero.

Porém o que é notavel, e tanto mais notavel, que se
acha em opposição directa com a doutrina geralmente expendida,
é que os verbos accidentalmente impessoaes
levão ou podem levar, passando para esta classe, com excepção
do sujeito, todos os mais termos que lhes são proprios
na sua classe originaria, como os complementos ou
o predicado.

Ex. necessario é — que haja premios… — Pois tanto
é ahi o adjectivo necessario predicado do impessoal É,
como premios o complemento directo do impessoal haja.

Não vos lembra que, nos pés da estatua, estava a desunião
entre o barro e o ferro
. (P. Ant. Vieira). — Ahi conserva
o pronome — vos — , junto ao impessoal lembra, a
mesma funcção do complemento directo que lhe cabe no
pronominal lembrar-se (vós vos lembrais), donde veiu.

Tal é, em relação aos verbos impessoaes, a theoria
que, ressumbrando da observação e do raciocinio, resolve
naturalmente um problema grammatical que não póde
deixar de apresentar-se em todas as linguas.

Outrosim, para assignalar um genero de erros que
assaz frequentemente occorrem, não será fóra de proposito
accrescentar que os verbos impessoaes, vindo a ser complementos
de um verbo, costumão frequentemente chamar
tambem á impersonalidade o mesmo facto syntaxico de
que assim dependem. Não se diga, portanto, com um periodico :
« Neste momento não podem haver especuladores
para a alça dos fundos ». Porquanto, sendo ahi o substantivo
especuladores complemento directo do haver (ha especuladores),
impossivel é que faça, junto a podem o officio
do sujeito. Diga-se, logo : « Neste momento não póde haver
especuladores
… », visto ter-se « póde » tornado tambem impessoal.

Identica observação cabe no seguinte trecho, igualmente
extrahido do mesmo periodico : « Mas, quando deixàrão
de haver
opiniões divergentes entre advogados? »
Pois ahi tambem é opiniões o complemento dirocto de
haver, e portanto não póde ser o sujeito de deixárào.
Convinha, logo, dizer : « Mas, quando deixou de haver
opiniões… »

Emfim damos mais os seguintes exemplos para reagir
com mais força contra tão perniciosa tendencia : « podem
haver
dous candidatos do mesmo partido. » Não, não e não :
« póde haver dous candidatos… » — « Parece que vão haver
425corridas de cavallos em Madrid ». Tambem não e não :
« … vai haver corridas… »

518. Na constituição dos verbos prepositivos da primeira
categoria (ter de… haver de…), os classicos mostrão
uma tendencia pronunciada a usar do haver de
preferencia a ter, sem que se possa todavia concluir dahi
a exclusão do ultimo.

Ex. Que tendes, que possuis, que lavrais, que trabalhais
que não
houvesse de ser necessario para o serviço de el rei,
ou dos que se fazem mais que reis com este especioso pretexto ?
N

o mesmo dia havieis de começar a ser feitores, e não senhores
de toda a vossa fazenda. Não
havia de ser vosso o
vosso escravo, nem vossa a vossa canoa, nem vosso o vosso
carro e o vosso boi, senão para o manter, e servir com elle
.
a roça, havião-vo-la de embargar para os mantimentos das
minas ; a casa
havião-vo-la de tomar de aposentadoria para
os officiaes das minas ; o cannavial
havia de ficar em matto,
porque os que o cultivassem
, havião de ir para as minas ;
e vós mesmo não
havieis de ser vosso, porque vos havião
de apenar
para o que tivesseis ou não tivesseis prestimo ; e
só os vossos engenhos
havião de ter muito que moer, porque
vós e vossos filhos
havieis de ser os moidos. (P. Ant.
Vieira).

Se a equidade ha de estar tanto na mente do juiz, porque
ha de estar tão pouco no coração do credor ? e, se o
juiz
ha de usar da regoa de páo, porque ha de o credor
usar só da de bronze ? (P. Man. Bernardes).

Por uma daquellas evoluções mui licitas no andamento
progressivo das linguas, porque não contrarião, nem leis,
nem usos estabelecidos, os mesmos auxiliares ter e haver
já não vão, na actualidade, indiscriminadamente empregados
para a formação dos respectivos prepositivos, e sim
accusando cada um um matiz sensivelmente diverso. Assim
é que, por exemplo, em « hei de ir », o facto se entende
como espontâneo ou concessionário, e em « tenho de ir »,
como mais ou menos obrigatorio ou coacto.

Outrosim não é raro encontrar, nos referidos verbos
prepositivos, a preposição elidida por euphonia.

Ex. Pediu o prodigo a seu pai que lhe désse em vida a
herança que lhe
havia caber por sua morte. (P. Ant. Vieira).
— (… havia de caber…).

O deos de semelhantes pessoas é o ventre, e o appetite
da gloria mundana ; e assim os sacrifícios
havião ser corrupção
e fumo
. (P. Man. Bernardes). — (… havião de ser...).426

Observação. Com o verbo haver não deve confundir-se
o substantivo haver, synonymo de bem, bens, e, por
isso susceptivel do incremento que caracterisa os substantivos
desta terminação no plural (haveres). Ex. Nestas
embarcações trazem os Chins mulher, filhos, alfaias, com todo
o seu
haver. (P. João de Lucena). — (… com todos os seus
haveres).

Ser — Estar

519. Os verbos ser e estar, quer como neutros, quer
como auxiliares, participão de relações identicas com os
mais termos da proposição ; divergem, porém, notoriamente
em sentido.

Ser serve para enunciar o que é perduravel, inherente
por natureza.

Ex. Se o amor é verdadeiro, tem obrigação de ser eterno ;
porque, se em algum tempo deixou de
ser, nunca foi amor.
(P. Ant. Vieira).

Estar serve para enunciar o que é transitorio, accidental
por essencia.

Ex. Se o rei está benigno e humano, para isso tem rosto
de homem. Se
está colerico e irado, para isso tem rosto de
leão. Se
está sobrelevado e altivo, para isto tem rosto de
aguia. Se
está melancolico e carregado, para isto tem rosto
de bezerro
. (P. Ant. Vieira).

Todavia, sendo tal o contexto da oração que não avoque
terminantemente nelles uma ou outra das referidas accepções,
nada obsta a que os mesmos verbos se supprão mutuamente.

Ex. E’ certo que todos desejais o descanso. (P. Ant.
Vieira).

Certo esta que desamparar os vexados e perseguidos que
estão debaixo de nossa tutela, é manifesta traição
. (D. Fr.
Amador Arraes).

Nesta idade do estado da India,… os Portuguezes estavão
ricos, e erão respeitados como homens exemplares de
valor
. (Manoel Godinho). — (… erão ricos, e estavão respeitados…).

520. Embora ser e estar sejão imcompativeis como
auxiliares na conjugação dos verbos neutros, o uso os admitte
por archaismo em uns poucos dos mesmos verbos.

Ex. Era fallecido el rei D. João. (Fr. Luiz de Souza).427

Emfim era chegada a hora em que Deos, por suas misericordias,
queria dar saude ao paralytico de trinta annos

(Fr. Luiz de Souza).

Eia ! meu principe ! despida-se Vossa Alteza dos livros,
que
é chegado o tempo de ensinar aos Portuguezes e ao
mundo o que Vossa Alteza nelles tem estudado
. (P. Ant.
Vieira).

Fingiu Coje Atar serem vindos os embaixadores de el
rei da Pérsia a cobrar o tributo que costumava pagar-lhe
. (P.
Man. Bernardes).

Entrados nós destas portas para dentro, passámos pelo
meio de um grande jardim
. (Fernão Mendes Pinto). — (sendo
nós entrados…).

Póde ser este archaismo considerado como um legado
directo do latim, onde os verbos chamados deponentes, posto
que adstrictos á conjugação passiva, conservão sempre uma
significação activa ou neutra. Ao menos verifica-se a supposição
por uma coincidencia frisante no seguinte trechinho
da fabula do Lobo e do Cordeiro : « Nondum natus eram ».
— « Eu ainda não era nascido ».

521. A facilidade com que grande numero de verbos
podem passar de pessoaes a impessoaes sem alteração do
pensamento que têm de enunciar (lembro-me que… — lembra-me
que…), originou neste mesmo caso, junto a ser,
uma troca de relações que merece algum reparo. Pois, para
servir de base, ou antes de tronco em que se vem enxertar
alguma proposição subordinada (isto é, principiando
por que ou se, ou ainda por algum dos congeneres), o
mesmo verbo se offerece indifferentemente sob uma ou
outra das duas seguintes fórmulas :

tableau Pessoal ; | Impessoal ;
Sou eu… | Eu é que…
Es tu… | Tu é que…
E’ elle (ella)… | Elle (ella) é que…
Somos nós… | Nós é que…
Sois vós… | Vós é que…
São elles (ellas)… | Elles (ellas) é que…

Ora a troca de relações que, da differença de estado
em que ahi se apresenta ser, consiste nisto : que junto á
forma pessoal, os pronomes pessoaes enunciados constituem
sujeitos, e, junto á impessoal, predicados. A prova se deixa
deduzir do seguinte exemplo :428

« Não sou eu o — que hei de deixar as minhas raizes. »
(P. Ant. Vieira).

Pois a analyse syntaxica dá por sujeito ao facto sou
o pronome pessoal eu, e por predicado, o pronome demonstrativo —
o (Não sou eu aquelle…).

Porém, sendo a mesma oração transmudada do seguinte
modo :

« Eu não éque hei de deixar as minhas raizes »,
evidente se torna que a unica funcção que póde competir
a eu, antecedente necessario do relativo que, é a de predicado ;
porquanto, desapossado da funcção de reger ao
facto, não lhe sobeja outro meio de ingerencia na oração
senão o de votar ao ostracismo o pronome demonstrativo
do texto anterior (o), para fazer-lhe as vezes. Parece arremedo
de alta politica : « Safa-te, que ahi me metta! »

Observação. Com o verbo ser não deve confundir-se
o substantivo ser, synonymo de ente, e, por isso, susceptivel
do incremento que caracterisa os substantivos desta
terminação no plural (seres). Ex. « Donde sahiu tanta variedade
senão de vós, Senhor, cujo
ser encerra com eminencia
infinitos
seres ? » (P. Man. Bernardes).

Dos verbos pronominaes
como reflexivos, reciprocos ou ambiguos

522. Os verbos pronominaes são pessoaes ou impessoaes,
isto é, com sujeito ou sem sujeito.

Sendo pessoaes, ainda recahem em outra alternativa :
ou é o sujeito quem perpetra o facto, ou não é elle.

Sendo, emfim, o sujeito quem nelles perpetra o facto,
os mesmos verbos se apresentão, já como reflexivos, já como
reciprocos, já como ambiguos.

Desta divisão dos verbos pronominaes, estrictamente
motivada pela variedade de considerações a que dão lugar,
póde-se concluir, não menos do que da sua frequente apparição
no discurso, que o papel por elles desempenhado
na linguagem é digno de particular estudo.

523. Os pronominaes são reflexivos quando denuncião
um facto revertendo sobre quem o perpetra. O seu
çaracteristico é gozarem de ambos os numeros.429

Exemplo :

tableau Eu me queixo | Nós nos queixamos
Tu te queixas | Vós vos queixais
Elle (ella) se queixa | Elles (ellas) se queixão

524. Os pronominaes são reciprocos quando o facto
por elles denunciado vai perpetrado, vice versa, por uma
parte dos entes constituindo o sujeito, sobre a outra
parte do mesmo sujeito. O seu caracteristico é serem unicamente
conjugaveis no plural.

Exemplo :

tableau Nós nos desafiamos
Vós vos desafiais
Elles (cllas) se desafião.

525. Os pronominaes são ambiguos quando, embora
providos de ambos os numeros, não denuncião todavia de
per si no plural um sentido antes reflexivo do que reciproco,
mas prestão-se tanto a um como ao outro.

Exemplo :

tableau Eu me louvo | Nós nos louvamos
Tu te louvas | Vós vos louvais
Elle (ella) se louva | Elles (ellas) se louvão.

Estes ultimos rectificão a impropriedade que os vicia,
por meio de algum annexo pleonastico que faz desapparecer
a ambiguidade, attribuindo-lhes, conforme o pensamento,
um sentido, já reflexivo, já reciproco (Nós nos louvamos
a nós mesmos. — Nós nos louvamos uns aos outros).

Ex. Muitos, por não ter que jogar e perder, se entregarão
ao demonio ; e outros, por extrema desesperação
se
matárão a si mesmos
, ultimo arrojo a que póde chegar o
delirio humano
. (P. Ant. Vieira).

Por isso nos encommendou tanto o Senhor amor e paz no
Evangelho, dizendo
 : « Minha paz vos dou, minha paz vos
deixo
. amai-vos uns aos outros. Porque nisto quero que
vos conheção em todo o mundo por meus discipulos, se
vos
amardes uns aos outros. » (D. Fr. Bartholomeo dos Martyres).

Dos verbos pronominaes
em substituição aos passivos

526. Dous inconvenientes contribuem a tornar pouco
430azado o emprego frequente dos verbos passivos : o estiramento
da locução que os constitue, e, por isso mesmo,
maior dificuldade no assento de sua concordancia com o
sujeito. Proveiu a isso de remedio a faculdade de, na
maior parte dos casos, serem convertiveis em pronominaes.

Ex. Botem-se ao mar as cartas, causa de mais perdições
que as mesmas tempestades
. (P. Ant. Vieira). — (sejão
botadas
ao mar as cartas…).

527. Merece reparo que, neste caso, ao contrario do
que se dá na conversão dos activos em passivos, o sujeito
fica o mesmo (Sejão botadas as cartas…. Botem-se As cartas…).
— Esta particularidade vem assim a fornecer o distinctivo
que rasgadamente discrimina os pronominaes desta
classe dos que são reflexivos ou reciprocos. Nestes ultimos,
o sujeito é sempre quem perpetra o facto (Nós nos
louvamos) ; nos pronominaes substitutivos de passivos, o
sujeito não perpetra, nem sequer pode perpetrar o facto
(Botem-se as cartas!!), porque, como nos passivos, o
mesmo sujeito, em vez de ser autor, é meramente objecto
do facto.

Ex. Sendo tão frequente e ordinaria no jogo a perda do
dinheiro e da fazenda, isto é o menos
que nelle se perde,
porque são muito mais preciosas e para sentir as outras perdas
ou perdições em que a cegueira da cobiça não repara
. perdese
a autoridade ; perde-se o tempo ; perde-se a amizade
 ;
perde-se a piedade ; perde-se a mesma liberdade) perdese
a religião
 ; finalmente perdem-se, ou acabão de se
perder as
quasi perdidas almas. (P. Ant. Vieira).

Quando David quiz sahir a pelejar com o gigante, perguntou
primeiro
 : « que se ha de dar ao homem que matar
esse philisteo ?
 » Já naquelle tempo se não arriscava a vida
senão pelo seu justo preço. (P. Ant. Vieira).

O gazophylacio era uma caixa em que se lançavão as
esmolas
para a fabrica do templo. (P. Man. Bernardes).

E’ bem que se sáiba e se divulgue esta doutrina tão
mal aceita do mundo, que os pobres tambem hão de dar conforme
podem
.. (P. Man. Bernardes).

As escripturas publicas se faziab antigamente em pastas
de chumbo delgadas
. (Ant. de Souza Macedo).

A nossa lingua escreve-se como se lê, e assim se falla.
(Man. de Faria Severim).

Tal favor grangeou esta fórma pela alacridade com
que suppre os passivos, que ás vezes vai arrastando, por
mera euphonia, até aos neutros.431

Ex. Despede-se o mundo sem dizer-nos nada ; consome-se
a carne sem que ninguem o sinta
 ; passa-se a nóssa gloria
como se nunca fôra. (P. Ant. Vieira). — (… passa a nossa
gloria
…).

Dos verbos pronominaes
como impessoaes

528. Sendo uma vez dmittido como principio inconcusso
que um verbo, seja qual for a classe a que por natureza
pertença, torna-se impessoal pela deficiencia accidental
de todo e qualquer sujeito, não deixa de a experimentação
analytica dar a conhecer que os passivos tambem podem
passar a impessoais.

Ex. Sabido éque nos cabellos são significados os pensamentos.
(P. Man. Bernardes).

Ora parece razoavel inferir desta demonstração que,
se tal transmigração é licita aos passivos sob a forma que
propriamente e a que lhes compete, licita lhes deve ser
igualmente quando disfarçados em pronominaes. Pois é
exactamente o que se verifica pelo processo da substituição.

Ex. Sabe-seque nos cabellos são significados os pensamentos. —
(sabido é — sabe-se…).

Póde-se, portanto, concluir (e a pratica da analyse o
confirma) que todo o verbo apparentemente pronominal
pela concomitancia do pronome se, mas realmente impessoal
pela deficiência de um sujeito, representa meramente
um passivo impessoal.

Assim se acha outra vez theoricamente justificada a
doutrina innovada nesta obra : que, para a enunciação de
um pensamento singelo, basta muitas vezes o unico termo
syntaxico de pacto (E’ sabido… sabe-se…).

Mas, que vem ahi a ser analyticamente o pronome
pessoal se ? Um simples vocabulo expletivo como o il dos
Francezes em « il peutil fautil y ail est reconnu
que
… », isto é, a indicação concisa de que « sabe-se » está
em lugar de « é sabida ») ou, em absoluto, de que o impessoal
pronominal substitue a um impessoal passivo ; e é
tudo.

Entretanto nada obsta a que, praticamente, o mesmo
pronome se venha a ser declarado masculino e do singular,
por ser esta uma forma primordial, isto é, a forma para a
qual revertem todas as palavras que, appetecendo por indole
432sujeitar-se a uma concordancia, não chegão todavia a
realisar o seu postulado. Pois é pelo mesmo motivo que,
em « E’ sabido » o mesmo participio sabido não póde, de
modo algum, passar do mesmo genero e numero, visto não
encontrar sujeito com o qual se coadune. Póde-se considerar
tambem, syntaxicamente, como um complemento directo,
porém tão ficticio como o é, na qualidade de sujeito,
o il francez junto aos verbos impessoaes. Pois, não obstante
serem pronomes, nem um, nem outro tem referencia a substantivo
algum ; e portanto não são nada — senão vocabulos
expletivos.

Ex. escreve-se dos antigos Germanos que, depois de
perdido quanto tinhão, jogavão a sua liberdade, ficando perpetuamente
captivos
. (P. Ant. Vieira).

Mas dirão talvez que é necessario este divertimento, principalmente
nas viagens do mar, por serem mui compridas e
penosas. Mas a isto
se responde que é necessario, não ha
duvida, um divertimento, mas não este
. (P. Ant. Vieira).

Aprendão quando se ha de pelejar a ganhar o barlavento,
e, quando o vento é contrario, a não perder o ló nem a
derrota
. (P. Ant. Vieira).

Assim se usa commummente que, na mesma mesa, ás
iguarias succedem as cartas, e á comida, o jogo
. (P. Ant.
Vieira).

Se um ha de vencer a mil, segue-se que dous hão de
vencer a dez mil
. (P. Ant. Vieira).

Bem se póde dizer que o juizo é o mesmo que o entendimento ;
porém é um entendimento solido
. (Math. Ayres da
Silva de Eça).

529. Os propugnadores da theoria do sujeito a todo
o transe só attendêrão, para fundamentar a sua doutrina,
a um dos lados do theorema, e assim estorvárão a verdade,
tirando a conclusão exagerada de que todo o verbo tem o
seu sujeito.

Sendo sempre o sujeito, nos verbos de acção, o autor,
o nos de estado, o objecto do facto (Amemos [nós] ao proximo
— .
Seja o proximo de nós amado), os mencionados
theoristas deixárão-se mover pela plenitude do sentido que
resulta destas e de outras que taes combinações de termos,
para concluirem como concluirão.

Porém, se é summamente util, e até frequentemente
indispensavel para a lucidez do pensamento, que venha a
Ser revelado o autor ou o objecto do facto, ou mesmo um e
outro, não menos admissivel é a hypothese opposta, de
433que póde ser opportuno, e até necessario que, já o autor,
o objecto do facto fique indeterminado, quer por não
convir, quer por ser impossivel indigitá-lo (Canta-se. —
Anoitece
) ; e dahi a eliminação natural, não só do sujeito,
senão tambem dos demais termos. Pois, deixará de ser intelligivel
a enunciação deste facto, que se canta, porque
não se diz quem canta ou o que se canta ? e, quem já desvendou
o autor ou o objecto do anoitece ?

Não será, logo, de estranhar que a classe dos neutros,
que abrange tantos. verbos de acção (ir, andar, entrar…)
junto a todos os verbos de estado (ser, estar, parecer…),
tambem tenha alguns que, levados por indeclinavel necessidade
a prescindir casualmente de todo o qualquer sujeito,
procurem denunciar de um modo sensivel e terminante a
sua transmigração para o estado da impersonalidade. Pois,
este meio, achárão-no simulando, pela adjuncção do pronome
se, os passivos convertidos em impessoaes.

Ex. Necessario é que aos premios se entre pela porta
do merecimento
. (P. Ant. Vieira).

Ninive, côrte de Nino, foi a maior cidade do mundo :
andava-se de porta a porta não menos que em tres dias de
marcha
. (P. Ant. Vieira).

Quando se entra dentro da ilha Fortunata, vêm-se . as
ruas empedradas de marfim e ouro
. (P. Man. Consciencia).

A graciosa estancia é retrato de uma camara subterranea,
a que
se desce por alguns degráos. (Fr. Luiz de Souza).

Observação. Por um idiotismo procedido do latim,
onde tem por typo as expressões frequentemente reproduzidas :
aiunt, dicunt, referunt…, que são traduziveis por
contão, dizem, referem…, acontece que os verbos, em vez de
adoptar a forma de impessoaes pronominaes (conta-se, diz-se,
refere-se
…), cingem-se em numerosos casos, ao latinismo
referido, e assumem assim, sob o ponto de vista syntaxico,
a singular feição de factos meio pessoaes e meio impessoaes.
Dos pessoaes tomão a terceira pessoa do plural (dizem
que…), dos impessoaes tomão o caracteristico de nunca accusarem
sujeito algum, quer expresso, quer occulto, sendo
apenas toleravel na pratica da analyse, assignar-lhes um
por uma ficção que fá-los regidos das palavras mais ou
menos indeterminadas « os homens, — os historiadores, — os
eruditos, — os antigos
… ». Ex. dizem que primeiro se escreveu
em folhas de palmeira
. (Ant. de Souza Macedo). —
Quem é que diz ? — Não se sabe : diz-se, ou dizem os historiadores, —
os eruditos… Vê-se, portanto, que o assignalado
facto, por falta de um sujeito que se deixe francamente
434designar, disfarça sob sua forma pessoal um sentido
realmente impessoal.

Ora, se desta exposição resultasse simplesmente a verificação
de serem os impessoaes pronominaes suppriveis,
em these geral, pelo latinismo lembrado, escusado seria
deter-se num exame mais minucioso do caso, e bastaria
declarar summariamente que, por equiparar-se uma forma
com a outra em sentido, indifferente é usar da segunda em
lugar da primeira, ou vice-versa. Porém assim não é ; porquanto,
além de se vincular a esta questão um dos mais
clamorosos gallicismos da modernice litteraria, não é sempre
sem alguma impropriedade que uma forma póde ser substituida
pela outra. Pois não haveria na dicção, nem o
mesmo agrado, nem talvez a mesma lucidez, se o precedente
exemplo sahisse assim modificado : « dizem que primeiro
escreverão em folhas de palmeira. » (Quem escreveu ?
os mesmos que dizem ?).

Igual reparo se póde fazer no seguinte exemplo, extraindo
do mesmo autor, e versando sobre o mesmo assumpto :
« costumava-se escrever só de uma. parte do papel,
sem
escreverem nas costas delle. » — (« costumava-se escrever
só de uma parte do papel, sem
escrever-se nas costas delle. »)
Parece, portanto, que a intervenção trocada das duas formas
em uma mesma oração teve, para os classicos, o merito
de um artificio aproveitavel de estylo. E’ certo, todavia,
que este artificio não envolve a obrigação de um preceito
grammatical.

O que, porém, constitue, a tal respeito, a violação flagrante
de um principio da Grammatica, é um barbarismo
de que não se encontra vestigio entre os autores antigos,
mas que, por compensação, rasteja viçosamente nas producções
da actualidade.

Encaremos primeiro o caso sob sua forma correcta,
para depois discutí-lo sob a forma incorrecta em que o estampão
os letrados do tempo presente. O veneravel D. Pr.
Bartholomeo dos Martyres disse com a mais perfeita regularidade
grammatical, relatando palavras de S. João. « Nisto
quero que
vos conheção em todo o mundo por meus discipulos,
se vos amardes uns aos outros
. »

O que se poderia apostar, á vista do que hoje se escreve,
é que, tendo um moderno moralista de enunciar o
mesmo pensamento, transformá-lo-hia sem o menor pejo do
seguinte modo : « Nisto quero que se vos conheça em todo
o mundo por meus discipulos
… » Ora o que denuncia com
toda a clareza o processo analytico, é que, na transformação
alludida, o facto conheça viria a ter, contra todos os
435estylos, dous complementos directos de pronome, perfeitamente
distinctos um do outro : se o vos, e portanto incompativeis
junto ao mesmo verbo.

Debalde se allegaria que, sendo o primeiro (se) um
complemento moramente ficticio por se não referir a nada,
elle pode e deve ser desattendido analyticamente fallando,
a sua necessaria assistencia junto ao verbo em tal combinação
de termos attesta, máo grado da sua inanidade de
sentido, que é intoleravel a coexistencia de outro complemento
de igual cathegoria ; e é intoleravel porque se um
verbo pode englobar em um mesmo relance de relações
dous ou mais substantivos ou pronomes para delles formar
um termo composto, não pode já partir esta mesma, esta
unica relação em duas metades para, por exemplo, constituir
do se um meio complemento directo, e, de — vos — outro
meio complemento directo, e, do todo, formar uma cabeça
de Janus, com uma cara de um lado, e outra do lado
opposto.

E tanto é isto a verdade, que basta que o segundo
pronome venha a effectuar na mesma proposição um complemento
indirecto de preposição occulta, para que sua colligação
com o primeiro não apresente já, nem incorrecção,
nem irregularidade. Ex. Quero que se vos mostre que não
tendes razão
. — Isto é : que se mostre a vos, — ao vosso
entendimento…

Ora, que os escriptores da actualidade a nada disso
attendem, comprova-o o muito que, a tal respeito, se póde
respigar nas suas publicações, e de que apenas citamos a
esmo uns poucos de exemplos.

« Accusou-se-nos muito injustamente durante a discussão… »
(Periodico).

« O melhor meio de obter favores não é offender áquelle
a quem
se os pede. » (Periodico).

« Por isso mesmo que desrespeitas e desacatas estes homens,
és inimigo das leis, que mandão que
se os respeite, acate
e obedeça
. » (Periodico).

« O drama está abaixo da critica, por qualquer lado que
se o encare.) » (Periodico).

« Nestas reuniões, o espirito, não se o procura. » (Periodico).

Este ultimo exemplo que, por sua concisão, póde servir
do typo, encaminha naturalmente o espirito para a fonte
donde tão desazado barbarismo brotou. O estimavel folhetinista
que lhe deu as honras da publicidade, lêra, não ha
436duvida, em alguma obra franceza este mesmo pensamento ;
e, por lhe agradar, fé-lo seu em virtude do direito de conquista :
« Dans ces réunions, l´ésprit, on ne le cherche pas. »
Neste, como em outros tantos casos, o erro proveiu de uma
destemperada imitação da dicção franceza.

Outrosim, que esta loquela, apezar de alastrar-se presentemente
por toda a parte, não retrocede aos tempos em
que o portuguez se estudava nos escriptos portuguezes, e
não, como hoje, nas grammaticas francezas, deduz-se desta
observação que, por uma consequencia da lei que manda
contrahir os pronomes pessoaes quando apparecem assim
juxtapostos, os escriptores da epoca classica dirião infallivelmente :
« … o espirito, não s’o procura », como disserão :
« Elle m’o disse ; » — « eu t´o digo ; » — « nós lh’o diremos. »
— Mirem-se nisso os innovadores, e convenção-se que, além
de saber o do gosto, falta-lhes tambem a logica.

« Mas, replicará talvez mais de um inconciliavel contraditor,
se, em francez, é aceita como correcta, e perfeitamente
correcta a expressão de tal pensamento, porque
seria ella defeituosa em portugucz ? Não indicão concordemente
os grammaticos que tratão de ambas as linguas,
que o — on — francez traduz-se por se ? »

Respondemos : traduz-se, sim, quando a isso não se
oppõe o conjuncto dos demais termos da proposição. Ex.
On va, on vient., et on appelle cela vivre. — Vai-se, vem-se, e
a isso chama-se viver
. Porém em numerosissimos casos
obsta irresistivelmente a contextura dos termos concomitantes
a que sirva o mesmo processo do traducção, e só
se vence a difficuldade por meio de rodeios em que intervem,
já o latinismo lembrado (O drama está abaixo da critica,
por qualquer lado que o
encarem), já algum pronome
indefinito, como alguem, ninguem, quem… — (… o espirito,
ninguem o procura). — Veja-se, com effeito, em que moxinifada
redundaria a traducção do seguinte proverbio francez,
pela substituição do se portuguez ao on francez :

« Comme on fait son lit, on se couche. » — « Assim como
se aprompta a sua cama, assim tambem se se deita !!… » —
sendo o sentido real : « Assim como alguem aprompta a sua
cama, assim tambem nella fica accommodado
. »

Indagando-se agora donde póde provir tal anomalia
entro o on francez e o se portuguez, reconhece-se pela
analyse syntaxica que, constituindo on constante e forçosamente
um sujeito, ao passo que se só e só póde ser
complemento, o que dahi dimana, é que um deve
frequentemente discordar do outro na sua applicação á
anunciação dos pensamentos, em consequencia da differença
437com que se ageitão ao verbo junto ao qual exercem
funcções tão oppostas.

Aliás póde até certo ponto auxiliar na elucidação desta
questão a advertencia que, se tivera prevalecido outr’ora
na linguagem castiça a locução « a gente », do que tanto
usa o povo illetrado, nella teria a lingua portugueza um
equivalente muito apreciavel do on francez ; infelizmente o
seu vulgarismo fê-lo repellir. Ex. a gente vai, a gente
vem, e a isso chama a gente viver. — Assim como a gente
aprompta a sua cama, assim tambem nella se accommoda. —
E’ que o povo, e mesmo o boçal, póde dar boas lições de
lingua, porque falla como Deus lhe inculcou pelo bom senso
que fallasse. Que differença entre tão singelas, porém tão
lucidas glosas do vulgo, e os enroscamentos inextricaveis,
mas profundamente scientificos, dos doutos em grammatica
philosophica
, quando são andantes sendo procurantes ser impingentes
as receitas do seu formulario dogmatico !

Pelo que, neste particular, respeita aos classicos, apontamos
para o seguinte excerpto do P. Man. Bernardes,
como merecedor de especial estudo, por apresentar opportunamente,
além de algumas das usanças a que se prestão
os verbos pronominaes, mui acertados exemplos do latinismo
que tão frequentemente os suppre.

« Tudo está fervendo em movimentos que acábão e começão
Aqui se esta enfeitando um vivo; parede meia estão
amortalhando
um defunto. — Aqui contratão ; acolá distratão.
Aqui conversão ; acolá brigão. — Aqui estão á
mesa
rindo e fartando-se ; acolá estão no leito gemendo os
que rirão, e sangrando-se do que comerão. — Daquella porta
para dentro
ouvem a palavra de Deos ; e della para fora
apupão os que passão, e dão-lhe vaia
. »

« Aqui se está enfeitando um vivo. » — O que, nesta
proposição ; se deve notar, é que o pronominal enfeitar-se,
invertido em combinado gerundial estar-se enfeitando, denuncia
um facto reflexivo, por ser o sujeito um vivo quem o
perpetra, e o perpetra em si mesmo.

« Parede meia estão amortalhando um defunto. » — O
activo amortalhar, invertido em combinado gerundial estar
amortalhando
, não podia já, como o facto anterior, apparecer
sob a forma pronominal estar-se amortalhando ; porquanto,
vindo então o substantivo um defunto a ser sujeito,
em lugar de complemento directo que ahi é, tal troca de
funcção avocaria, máo grado da impossibilidade, a significação
de amortalhar-se um defunto a si mesmo. Portanto
bem cabido é neste caso o idiotismo latino.438

Não menos bem cabido é elle nas seguintes orações :
« Aqui contratão ; acolá distratão. — Aqui conversão ;
acolá brigão », — porquanto a inversão dos referidos factos
em impessoaes de forma pronominal (Aqui contrata-se ;
acolá distrata-se. — Aqui conversa-se ; acolá briga-se) recordaria
de modo mui malsoante, por causa da terminação
singular, uma significação reflexiva, quando os alludidos
factos implicão essencial e necessariamente ideas do reciprocidade,
isto é, idéas inseparaveis da feição de pluralidade.

« Aqui estão á mesa rindo e fartando-se. » — A colligação
do gerundial neutro estar rindo com o gerundial
pronominal estar-se fartando não deixava outro alvitro a
seguir que o do idiotismo latino adoptado pelo autor, visto
como a forma impessoal, além de malsoante, produziría
confusão (Aqui está-se á mesa rindo e fartando-se !!).

« Acolá estão no leitosangrando-se… os que rirão. »
O gerundial pronominal estar-se sangrando, cujo sujeito
claro o ostensivel consta do pronome demonstraivo — os,
isto é, aquelles, denuncia simplesmente um facto reflexivo.

« Daquella porta para dentro ouvem a palavra de Deos. »
— E’ certo que nada obstaria, em these, a inversão do
facto ouvem na forma passiva é ouvida, ou na pronominal
que a póde substituir ouve-se ; porém o idiotismo latino a
que se soccorreu o autor, offercce a vantagem do accentuar
melhor, pela sua terminação plural, o numero avultado dos
ouvintes em uma igreja, que as outras duas formas poderião
deixar reduzido a um (é ouvida — ouve-se a palavra de
Deos
).

Substantivos
Do genero e numero de alguns substantivos

530. Dentro os numerosos nomes proprios geographicos,
uns costumão andar precedidos do artigo definito,
os outros não.

Aos primeiros, fica-lhes o genero e numero predeterminado
pelo artigo.

Ex. O Brazil, a Itália, os Estados Unidos, as Guyanas ;
— o Ceará, a Beira, os Abruzes, as Calabrias ; — o Cáiro, a
Haya, o Porto, a Bahia ; — o Itacolumi, a Estrella, os Pyreneos,
as Cordilheiras ; — o Tejo, o Guadiana, o Tapajós, o
Amazonas
.

Aos que não vão necessariamente procedidos do referido
439artigo, fica-lhes o genero e numero determinado pelo
nome commum que lhes competo, sendo assim masculinos
os do mares, golphos, estreitos, cabos, etc., o femininos os
de ilhas, cidades, etc.

Ex. Ninive foi a maior cidade do mundo. Mas onde
está
essa ninive ? Ecbatanis era cercada de sete muralhas.
Mas, onde está
essa ecbatanis ? (P. Ant. Vieira).

531. Os nomes proprios de homens são tão susceptiveis
como os substantivos communs de tomar o incremento
caracteristico do plural. Porém tres são os sentidos que,
conforme o contexto da oração, desperta nelles esta forma.

O primeiro é simplesmente o de uma pluralidade de
homens designados polo mesmo appellido.

Ex. Os valorosos romanos de que lemos, dentre os rebanhos
sahírão a fazer no mundo formosas emprezas; cujos
nomes e appellidos ainda testemunhão seu nascimento, como
os
vitulos, vitellios, porcios, annios, capros, tauros, bubulcos,
e outros infinitos. (Franc. Rodr. Lobo).

Um Pacheco fortíssimo, e os timidos
almeidas, por quem sempre o Tejo chora.
(Camões).

O segundo sentido é de uma comparação encurtada
por ellipse (figura que em rhetorica se chama antonomase),
mas em que predomina a feição de pluralidade.

Ex. O roubar com pouco poder faz os piratas ; o roubar
com muito
, os alexandres. (P. Ant. Vieira). — (…. os
conquistadores).

Como ha poucos antonios veiras, ha tambem poucos
que amem só por amar
. (P. Ant. Vieira). — (… amigos dedicados).

De maneira que vejo dous prelados da ordem do meu glorioso
Padre S. Domingos, prelados santos e religiosos, convertidos
hoje em
platões e tullios, formando republicas gentilicas
com razões e preceitos em tudo humanos
. (Fr. Luiz de Souza).
— (… convertidos hoje em philosophos).

O terceiro sentido, posto que exclua no nome proprio
toda o qualquer feição do pluralidade, sujeita todavia o
mesmo nome a este numero, por cortezia e deferencia para
com o artigo plural que lhe vai então anteposto, sendo que
este artigo allude a um substantivo plural elidido.

Ex. Logo mal escreverão os jeronymos, os ambrosios,
440os agostinhos, (Fr. Luiz de Souza). — (…. os homens que
forão Jeronymo, Ambrosio, Agostinho
).

O que confirma, aliás, esta allegação, é que, vindo o
artigo a passar para o singular, para este numero tambem
reverte naturalmente o nome proprio.

Ex. Desse modo, em vão trabalharão um hilario, um
martinho, um nicolao
por nos deixarem santos exemplos.
(Fr. Luiz de Souza).

532. Dando-se o caso do vir uma palavra invariavel
por natureza a converter-se em substantivo (o que fica
sempre denunciado por lhe ir anteposto um artigo ou
algum adjectivo doterminativo), o genero que lhe cabe é
invariavelmente o masculino, sendo-lhe, outrosim, licito, se
tiver do passar para o plural, assumir o incremento caracteristico
deste numero.

Ex. E, quem tem a culpa de toda esta mudança tão
damnosa ao bem publico ? As dilações, as suspensões, as irresoluções
,
o hoje, o amanhãa, o outro dia, o nunca dos
vossos quandos. E, faz consciencia destes damnos algum dos
causadores delles ?
(P. Ant. Vieira).

533. Sendo os substantivos compostos palavras geralmente
conchegadas por ellipses, o incremento do plural
determina-se nelles pelo numero que a cada palavra componente
assigna a decomposição analytica.

Assim é que guarda-mór, gentil-homem, couve-flór, primo-co-irmão,
etc. fazem, passando para o plural, guardas-móres,
gentis-homens, couves-flôres, primos-co-irmãos
, porque as ampliações
que adduz o processo analytico, são : guardas em
categoria superiores, homens por sua condição nobres, couves
que são flores, primos que são como irmãos
.

Advertencia. A glosa relativa a primo-co-irmão funda-se,
não só sobre as inducções a que se presta a constituição
deste substantivo, senão tambem na observação que, em
linguas primitivas, e até no russo moderno, a expressão
irmão abrange mesmo os primos de primeiro gráo . (brát, ou
dvoiuródnyi brát — irmão de segunda geração) ; provavelmente
porque, convivendo todos os membros de uma mesma família,
em épochas patriarchaes, sob a autoridade do avô,
os netos consideravão-se equiparados entre si como o erão
em relação ao chefe supremo da familia, que veiu, por
isso, a ser denominado em francez grand-pére, em inglez
grandfather, em allemão Groszvater (o pai-mór) ; donde os
netos passarão a chamar-se em francez les petits-fils (os filhos
menores
). — Dada muito de passagem, esta nota é
441apenas uma indicação de numerosas observaçães que, por
meio do methodo analytico, podem entresemear de algum
interesse os estudos aliás aridos da philologia.

Porém os substantivos compostos que, como guarda-marinha,
meio-pensionista
, etc., correspondem ás ampliações
guarda da marinha, pensionista de meio preço, fazem guardas-marinha,
meio-pensionistas
, por serem as palavras guardas e
pensionistas as unicas susceptiveis de avocar a idéa de variabilidade.

Quanto aos substantivos compostos cuja formação tem
por typo as expressões guarda-vista, guarda-vestidos, nenhuma
das palavras é accessivel á variabilidade pela mudança
de numero, visto ser ahi de cada vez verbal o sentido
de guarda (um apparelho que serve para guardar a vista,
— uma mobilia que serve para guardar vestidos), o que
lhe tira a faculdade de assumir o incremento proprio dos
substantivos na indicação do plural, sendo que as demais
palavras se esquivão tambem, sob o processo analytico, a
uma modificação em numero (uns guarda-vista, uns guarda-vestidos).

Emfim outros assemelhaveis pela sua constituição a
porta-bandeira, porta-machado, etc., em que a palavra porta,
por proceder do verbo portar, nega-se igualmente ao incremento
plural dos substantivos, fazem todavia, passando
para este numero, porta-bandeiras, porta-machados, porque,
embora leve cada um dos militares assim designados uma
só bandeira, um só machado, a percepção mental da pluralidade
dos agentes envolve, por uma syllepse natural, a
idéa de pluralidade em relação aos objectos que levão.

Artigos
do emprego, omissão e repetição dos artigos

534. Os artigos podem ser considerados como um
genero de palavras meramente expletivas, porquanto, quer
andem, por essencia, appostos a substantivos (o pai, uma
mãi
), quer, por accidente, a pronomes (o meu, a mesma) ou
a infinitivos (o comer e o beber), o que ellos accrescentão á
palavra a que se prendem, é antes uma simples indicação
do que uma idéa. Dahi decorrem dous corollarios. O primeiro
é que devem necessariamente ir antepostos á palavra
por elles determinada, porque, reduzindo-se a sua funcção
a constituir uma advertencia, cumpre, para que ella actue
efficazmente, que seja prévia. O segundo é que, por conferirem
442tão sómente uma feição, comprohende-se que os
artigos puderão faltar, como ainda hoje faltão, a mais de
uma lingua culta, sem detrimento notavel para a lucidez
na enunciação dos pensamentos. e, com effeito, é intuitivo
que um vocabulo exercendo apenas uma influencia mais
ou menos fugaz sobre outra palavra não póde ter a importancia
de um adjectivo, por exemplo, que introduz na
dicção um elemento indispensavel, isto é, uma idéa. E
tanto é assim, que os artigos nunca chegão, como os adjectivos,
com que tantos grammaticos erradamente os confundem,
a formar um predicado, e sim tão sómente uma
apposição.

Não se originando assim de uma necessidade indeclinavel,
os artigos assentão, quanto ao seu emprego, selecção
ou omissão, antes em normas dictadas pelo habito do que
irremissivelmente predeterminadas pelo rigor do raciocinio.
Dá disso prova a faculdade com que póde muitas vezes
um dos dous artigos substituir-se ao outro sem violação do
sentido, nem grande impropriedade de dicção.

Ex. Que faz o lavrador na terra, cortando-a com o
arado ? (P. Ant. Vieira).

Que faz um lavrador numa terra, cortando-a com um
arado ?

Todavia, seja qual for a causa predominante que sujeita
os artigos a normas, já que estas existem radicadas
na lingua, tomão o valor de leis, o devem ser observadas.

535. Se fosse licito exprimir por modo concreto a intervenção
exercida por um e outro artigo na linguagem,
poderia dizer-se que ambos determinão a palavra a que se
prendem, apontando para o significado que ella tem : porém
o artigo definito aponta pela frente (o homem), e o indefinito,
pelas costas (um homem).

Pois o definito dá por conhecido em sua plenitude e
extensão o ente ou a abstracção à que se refere.

Ex. O que mais pesa, e o que mais luz no mundo, são
as riquezas. (P. Ant. Vieira). — Ninguem ha que, tendo
inteira percepção deste pensamento, careça mentalmente
inquirir sobre o que seja o mundo, o que sejão as riquezas :
são o que todos sabem.

O indefinito, porém, dá como apenas intrevisto, ou
como segregado de uma collecção, o ente ou a abstracção
designada.

Ex. E, que cousa são as riquezas senão um trabalho
para antes, um cuidado para logo ; e um sentimento para
443depois ? (P. Ant. Vieira). — Ahi bem se percebe que essa
cousa é um trabalho, um cuidado e um sentimento ; porém,
sendo tantos os sentimentos, os cuidados e os trabalhos de
que padece a humanidade, não deixa de o espirito inquirir
quaes sejão os que vêm a ser os correlativos das riquezas.

536. Pela omissão de um e outro artigo, como tambem
pola omissão de algum dos adjectivos determinativos que
supprem, o substantivo, baldo de proporções avaliaveis, só
representa então um ente em estado fraccionario, ou uma
abstracção incompleta.

Ex. As riquezas, diz S. Bernardo, adquirem-se com trabalho,
conservão-se com cuidado, e perdem-se com dôr. (P.
Ant. Vieira). — - Qual e quanto é esse trabalho, esse cuidado
c essa dôr ?
E’ porção indecisa de todas as dôres, de todos
os cuidados, de todos os trabalhos
que pesão sobre a humanidade
no correr dos seculos ; porém não é já, nem a dôr
toda, nem os cuidados todos, nem os trabalhos todos ; nem
tão pouco um dentro os trabalhos, um dentro os cuidados,
uma dentre as dôres : é quantidade incerta de tudo isso.

Advertencia. Embora mais especulativas em apparencia,
do que susceptiveis de applicação, as precedentes
considerações sobre os artigos encerrão um principio sem
o qual difficil é tornar sensivel o erro de um dos solecismos
que mais frequentemente occorrem na actualidade, o
que, por ser relativo ao adjectivo indefinito todo, vai mais
adiante ventilado. Por isso não será talvez inopportuno
verificar novamente, no seguinte exemplo, as tres hypotheses
aventadas, porque, comprehendidas numa mesma
oração, mais azadamente se prestão a um estudo comparativo.

Ex. Bem se póde dizer que o juizo é o mesmo que o
entendimento, porém é um entendimento Solido; por isso
póde haver
entendimente sem juizo, mas não juizo sem entendimento.
(Mathias Ayres da Silva de Eça).

537. Sendo o artigo definito o que admitte como indubitavelmente
conhecido o objecto representado pelo
substantivo, obvio é que se torna geralmente escusada a
sua anteposição a um nome proprio de pessoa, visto ser
essencia de um tal substantivo designar de per si mesmo
um ente segregadamente dos outros de mesma especie.

Ex. Entre os politicos, Xenophonte, Tacito, Cassiodóro ;
entre os historiadores, Tito Livio, Suetonio, Quinto
Curcio
 ; entre os philosophos, Seneca, Plutarco, Severino
Boécio
 ; entre os santos padres, Jeronymo, Chrysostomo,
444Gregorio, Agostinho, Bernardo (deixando os demais), todos,
só com discrepancia no encarecimento, dizem e ensinão concordemente
que os inimigos dos reis, e os maiores inimigos são os
aduladores
. (P. Ant. Vieira).

Francisco Rebello, famoso igualmente no pulso e no
conselho, expôz o que lhe parecia, dizendo que era mais temeridade
do que valor aquella resolução
. (Fr. Francisco de S.
Maria).

Entretanto, se em breve vier novamente lembrado o
mesmo nome, não é raro que se lhe anteponha o artigo
definito.

Ex. Não admittíu o governador estas razões,… accrescentando,
com imprudente ardor, que quem tivesse medo podia
ficar em sua casa. Mas
o Rebello, como tinha assentada a
opinião na solida base de illustrissimas proezas, fez pouco caso
de palavras menos consideradas, e dispôz-se generosamente ás
obras
. (Fr. Francisco de S. Maria).

Explica-se este idiotismo como sendo provocado pelo
adjectivo indefinito mesmo, elidido por amor da brevidade,
visto ser este o caso em que sóe apparecer junto aos substantivos
repetidos (… Mas o [mesmo] Rebello…). Em todo
o caso cumpre notar que, achando-se um nome proprio de
pessoa precedido de um adjectivo, já não prescinde geralmente
da anteposição de um ou outro artigo.

Ex. E, quando já parecia que a fortuna se nos mostrava
favoravel, acertou uma bala nos peitos
ao valoroso rebello,
de que cahiu morto. (Fr. Francisco de S. Maria).

Em Villa-Franca fez um fulano Topete umas rijas
festas
. (P. Man. Bernardes).

Esta foi a causa por que o grande Alexandre mandou
castigar um hortelão
. (Diogo do Couto).

Ante alguns cognomes apparece tambem o artigo definito,
mas pela obrigação de concorrer á formação de um
superlativo encurtado por elisão.

Ex. Plinio o Velho. — Plinio o Moço. — (Plinio o
[mais] velho. — Plinio o [mais] moço). Pois, em igual caso,
mas abstrahindo da elisão, disse o P. Man. Bernardes :
Catão o mais velho

538. Quanto á anteposição do artigo indefinito aos
nomes proprios de pessoas, ella é antes de tudo um artificio
de estylo, destinado a avivar a attenção pela extranheza
da fôrma, sendo que se póde aliás explicar por uma
elisão.445

Ex. Que foi um Affonso de Albuquerque no Oriente ?

Que foi
um Duarte Pacheco ? Que foi um d. João de
Castro ?
Que foi um Nuno da Cunha e tantos outros heróes
famosos, senão uns astros e planetas lucidissimos ?
(P. Ant.
Vieira). — (Que foi um [homem como] Affonso de Albuquerque… ?
Que foi um [homem como] Duarte Pacheco ?…).

539. A anteposição do artigo definito aos comparativos
de inferioridade e de superioridade é geralmente o
signal da passagem dos mesmos adjectivos para o gráo de
superlativos relativos, quer andem annexos a um substantivo
expresso, quer a um substantivo ou pronome elidido
por euphonia.

Ex. A mais refinada malicia é a que se disfarça com
as apparencias da virtude
. (P. Ant. Vieira).

Os cavadores não serieis os mais nobres e ricos da
terra
. (P. Ant. Vieira). — (… não serieis vós os mais nobres
e ricos
…).

O maior mal do homem é não se conhecer a si proprio.
(P. Ant. Vieira).

Amar a Deos é a maior das virtudes. (P. Ant. Vieira).
— (… é a maior virtude das virtudes).

Porém, se, em vez de irem antepostos ao substantivo,
os mesmos superlativos se lhe pospõem como apposições
inseparaveis, basta o artigo que então costuma determinar
o substantivo, para da mesma feita caracterisá-los tambem,
assim que se evidencia da comparação dos dous seguintes

A mais dura cousa que tem a vida, é chegar a pedir.
(P. Ant. Vieira).

A cousa mais facil do mundo é dar conselho a outrem.
(P. Ant. Vieira). — a cousa a mais facil… seria um gallicismo
insoffrivel, que nem por isso deixa de ser hoje muito
usado, tal é a força dos habitos de traducção, sem o correctivo
da grammatica.

Outros exemplos :

Os olhos são, em toda a organisação do corpo humano, a
farte mais humana, mais delicada e mais mimosa
. (P.
Ant. Vieira). — (Não : … a mais humana…).

A penna mais bem aparada sempre fica grossa, a lingua
mais fecunda
sempre se acha esteril e balbuciente nos
encomios de tanta felicidade
. (P. Man. Consciencia).

Para isso concorre o céo na benignidade dos ares mais
446puros e saudaveis, porque nenhum homem, de qualquer nação
ou côr que seja, estranhará a differença do clima : para os

do polo mais frio, com calor temperado ; para os da zona
mais ardente
, com moderada frescura. (P. Ant. Vieira).

A cousa mais necessaria e mais proveitosa para a
navegação é o conhecimento da altura do polo sobre o horisonte
.
(Pedro Nunes).

Verifica-se, aliás, a exactidão do motivo allegado, pelos
seguintes exemplos, em que os superlativos, embora pospostos
aos substantivos a que se referem, tornão todavia a
assumir o artigo definito, porque os mesmos substantivos
se achão desamparados do artigo que, nas anteriores citações,
compartião com os superlativos :

E, se a natureza, onde é incapaz de razão, não é capaz
de soffrer semrazões, que o homem
, creatura racional a mais
nobre, a mais viva e a mais sensitiva
de todas, com a
balança da mesma razão no juizo, não haja de pesar aggravos !
?…
(P. Ant. Vieira).

Que perda ! campos tão bellos sem cultura ; pastos os
mais preciosos
, e nem uma só rez se alcança com a vista

Temos visto por estes rios aves as mais lindas. (d.
Fr. Caetano Brandão).

540. Se nenhuma inducção se pode formar em absoluto
da funcção syntaxica dos substantivos communs, para
praticamente especificar os casos em que, por falta de adjectivos
determinativos, ou em concomitancia com estes,
deva-lhes ir anteposto ou omisso um ou outro dos dous
artigos, todavia nota-se que, junto aos verbos de estado, se
houver um substantivo, pronome ou infinitivo despido de
artigo ou de adjectivo determinativo, em competição com
um substantivo, pronome ou infinitivo determinado, aquelle
é o que constitue o predicado ; porquanto, nesta funcção
como na de apposição, os substantivos pronomes ou infinitivos
procurão, tanto quanto podem, adjectivar-se pela eliminação
dos artigos ou outros determinativos.

Ex. Fazenda é a sabedoria, exempta da jurisdicção da
fortuna
. (João de Barros). — (a sabedoria é fazenda exempta…)

O ver-se louvado era ver-se accusado ; o ver suas grandezas
referidas era
ver as suas culpas provadas. (P. Ant.
Vieira).

O edificio sem união é ruina ; o navio sem união é naufragio ;
o exercito sem união é despojo. (P. Ant. Vieira).447

Não é homem quem aqui não pasma. (P. Ant. Vieira).
— (Aquelle não é homem, — que aqui não pasma).

E’ particular circumstancia e honra da verdade ser
sempre uniforme
. (Fr. Luiz de Souza). — (Ser sempre uniforme
é
particular circumstancia e honra da verdade).

541. Resta considerar os artigos era relação aos substantivos
consecutivos
, isto é, aos substantivos que, pelo seu
conjuncto, formão um termo composto ; porque ahi se dão
alguns casos em que, já a repetição, já a omissão do artigo
é de regra estricta, e outros em que, tanto esta, como
aquella, é apenas aconselhada por motivos de clareza ou
de euphonia.

542. A repetição, não só do artigo, senão tambem de
algum adjectivo determinativo que por ventura o suppra,
é de obrigação estricta ante substantivos formando contraste,
porque o mesmo artigo, em os designando um por
um, melhor os discrimina, e portanto melhor os contrapõe.

Ex. Deve o homem saber igualmente o mal e o bem,
para obrar este, e fugir daquelle. (P. Ant. Vieira). — (Não :
o mal e bem…).

Pudera-se fazer problema onde ha mais pescadores, e mais
modos e traças de pescar, se
no mar ou na terra. (P. Ant.
Vieira). — (Não : … se no mar ou terra).

Os ditosos e os desgraçados, todos nascêrão. (P. Ant.
Vieira). — Não : Os ditosos e desgraçados…).

Os Romanos, tão entendidos na paz e na guerra, inventarão
para os soldados as coroas civicas e muraes, as
ovações, os triumphos e outros premios militares
. (P. Ant.
Vieira). — (Não : … na paz e guerra…).

Os milagres que o Senhor obrava,… fazia-os na cidade
e no campo, no monte e no valle, na terra e no mar
.
(João Franco Barreto). — (Não : … na cidade e campo,…).

A maior obra da sabedoria e da omnipotencia divina, que
foi o composto ineffavel de Christo, consistia em duas uniões :
 :
uma união entre o corpo e a alma, e outra união entre a
humanidade
e o verbo. (P. Ant. Vieira). — (Não : …entre
o corpo e alma
…).

543. A mesma repetição é ainda de obrigação estricta
ante substantivos ou qualificativos formando gradação, porque
a expressão posterior é considerada como apagando a
anterior por somenos.

Ex. A necessidade, a pobreza, a fome, a falta do
necessario para o sustento da vida é
o mais forte, o mais
448poderoso, o mais absoluto
imperio que despoticamente domina
sobre todos os que vivem
. (P. Ant. Vieira).

Antigamente estavão os ministros ás portas das cidades ;
agora estão as cidades ás portas dos ministros
. tanto coche !
tanta liteira ! tanto cavallo ! que os de pé não fazem
conto, nem delles se faz conta
. As portas, os pateos, as
ruas
rebentando de gente, e o ministro encantado ! sem se
saber se está em casa, ou se o ha no mundo, sendo necessaria
muita valia só por alcançar de um criado a revelação deste
mysterio !... E
e a afflicção, a confusão, a desesperação de
tantos miseraveis !
(P. Ant. Vieira).

544. Ella o é tambem geralmente ante substantivos
amparados por qualificativos ou complementos indirectos.

Ex. Por isso se vêm, com perpetuo clamor de justiça, os
indignos levantados, e as dignidades abatidas ; os talentos
ociosos, e as incapacidades com mando ; a ignorancia graduada,
e
a sciencia sem honra ; a fraqueza com bastão, e
o valor posto a um canto ; o vicio sobre os altares, e a
virtude
sem culto ; os milagres accusados, e os milagrosos
réos. (P. Ant. Vieira).

545. E’ ainda a mesma repetição, senão de obrigação
estricta, ao menos do muita conveniencia ante qualificativos
referindo-se ostensivelmente ao mesmo substantivo,
mas formando em realidade as apposições de substantivos
diversos, cuja reproducção é vedada por euphonia.

Ex. E’ no primeiro, no segundo, e no terceiro capitulo
do Genesis que Moysés narra os successos da creação
e do paraiso terrestre
.

Porquanto o que resalta claramente do processo analytico,
é que os adjectivos primeiro e segundo não se determinão o
capitulo que é o terceiro, e sim determinão o mesmo
substantivo duas vezes subentendido, como melhor parece
indigitá-lo a repetição do artigo. Todavia, em um caso de
perfeita analogia, o P. Ant. Vieira autorisou a suppressão
o artigo subsequente :

Pois, porque não deu Jacob a benção, ou investidura do
reino, nem a Simeão, nem a Levi, senão a Judas ; e, deixando
desherdados daquelle grande e supremo morgado
Ao segundo
e terceiro filho
, o assentou e instituiu no quarto ? Da
mesma benção de Jacob se colhe a causa
.

Porém o que não disse o P. Ant. Vieira nem classico
algum, escrevem-no ousadamente, em circumstancia analoga,
os casuistas de repartição, quando relatando os incidentes
de alguma operação eleitoral, dão a conhecer que ;
449« Forão successivamente chamados o primeiro e segundo
juizes de paz…
 ». Tão estridente discordancia só podia
encontrar favor em cabeças de rija tempera, como as do
que falla o psalmista : « Aures habent, et non audient. » —
« Orelhas têm, mas o ouvido é que falta. »

Aventurando-se em semelhante terreno, o P. Man. Bernardes
disse simplesmente :

A impudencia ou descaro é companheira da ingratidão,
porque
um e outro vicio negão os fóros da natureza, e inclinão
para tudo o que é torpe
. — Não lhe póde sahir da
penna : … um e outro vicios negão

Igualmente disse o P. Ant. Vieira :

« Averiguada conclusão é, entre os mestres de uma e
outra milicia
, que, comparada a da terra com a do mar,
esta é muito mais trabalhosa e perigosa
. »

Disse mais o mesmo P. Ant. Vieira :

« Servirá, porém, este exemplar para confusão dos que o
lerem. E, como Fr. Luiz de Souza escreveu
na primeira,
segunda e terceira parte
desta historia as acções de tão
heroicos sujeitos, assim será um dos mais excellentes que andarão
escriptos, na quarta. Este é o meu parecer
. »

Não se diga, portanto : « As escolas central e militar »,
o sim : « a escola central, e a militar. »

O mesmo classico disse ainda :

« Ajunte-se a republica interior e exterior do
homem
. » Não, porém, … as republicas interior e exterior…

546. E’ prohibida a repetição dos artigos, como tambem
a de algum adjectivo determinativo que por ventura
os possa supprir, ante substantivos designando, apezar de
sua colligação, um só e mesmo ente, ou uma só e mesma
abstracção.

Ex. Sobretudo lembre-se o capitão e soldado famoso
de quantos companheiros perdeu. (P. Ant. Vieira).

Se se guardar esta igualdade, entrará em esperanças o
mosqueteiro e soldado de fortuna
, que tambem para elle
se fizerão os grandes postos, se os merecer. (P. Ant. Vieira).

Afinal chega aquella inimiga da honestidade, e socia
das maldades, que é a noite. (P. Man. Bernardes). — (Não :
e aquella socia das maldades.-.).

547. Ella o é igualmente ante substantivos colligados
por mera synonymia.450

Ex. A impudencia ou descaro é companheira da ingratidão.
(P. Man. Bernardes).

Orando uma vez em Athenas o eloquentissimo Demosthenes,
introduziu com destreza
o conto ou fabula de um caminhante
que alquilára um jumento
. (P. Man. Bernardes).

Querendo Solon, philosopho atheniense, consolar a um
amigo seu, opprimido de vehemente tristeza, o levou a uma
torre eminente, donde se descortinava toda a cidade
, e lhe
disse
 : « Considerai, amigo, quantos prantos, lutos, afflicções,
desgraças e trabalhos
estiverão já, e actualmente estão debaixo
destes telhados
. (P. Man. Bernardes).

Antes do Egypto, Christo grangeou as perseguições e
tyrannias
de Éerodes... Em Nazareth, e em vida de Joseph,
grangeou
a sujeição e obediencia a um official com o nome
de pai seu, que não era...
Antes de sahir ou fugir da patria,
grangeou
o aborrecimento e desprezo dos seus naturaes, e
dos que erão seu sangue
. (P. Ant. Vieira).

548. Emfim a mesma omissão, se não é de regra estricta,
ao menos parece aconselhada pela lição dos classicos,
ante substantivos consecutivos amparados por uma mesma
apposição adjectival, ou por um mesmo complemento indirecto.

Ex. Bem necessario foi a S. Ex. todo o seu entendimento,
valor e christandade, e toda a assistencia e
juizo do duque
, para se conformar com a vontade de Deos.
(P. Ant. Vieira).

O grande imperio que os Portuguezes fundárão na India,
sem arrogancia nem affronta das outras nações, se podia
chamar monarchia
, com tantos reinos e reis sujeitos e
tributarios
. (P. Ant. Vieira).

549. A omissão do todo e qualquer artigo ou adjectivo
determinativo ante substantivos formando o complemento
directo ou indirecto de um verbo é caso digno de
especial reparo, visto ser isso frequentemente o indicio de
um idiotismo em que tão intimamente anda o verbo consorciado
com o complemento, que, do conjuncto resulta
uma verdadeira locução verbal. Assim podem ser capituladas
as seguintes e semelhantes colligações de palavras :
Assignar termo, — dar licença, — fazer caso, — pedir perdão, —
prestar attenção, — ter razão, — tomar alento
, etc. = acommetter
de frente, — andar a pé, — dar de mão, — montar a cavallo,
— passeiar de carro, — viajar por terra
, etc.

Ex. Assim se tempere o rigor da justiça, que os ministros
451mostrem compaixão, e não vingança ; e os culpados tenhão
occasião
de emendar as culpas passadas. (P. Ant. Vieira).

Ora a regra que dahi se deduz, é que nenhum dos
substantivos assim colligados pode vir a ser representado
por um pronome. Porquanto, sendo complementos directos
não se desprendem mentalmente do verbo, mas fazem corpo
com elle ; sendo complementos indirectos, formão o equivalente
de um adverbio, de sorte que, tanto neste, como
naquelle caso, achão-se fóra das condições em que se torna
possivel a sua substituição por pronomes.

Pois não seria admissivel dizer : Dou-vos licença que me
pedis. — Faço delle caso
que merece. — Elle tem razão ; não
a nego… = Montei a cavallo, que era baio. — Viajavamos
por terra ; ainda ninguem
a descobrira

Para tornar taes orações correctas, cumpre soccorrer-se
a um dos dous seguintes alvitres : ou restituir ao substantivo
a sua autonomia pela anteposição de um artigo
ou adjectivo determinativo, ou usar, na proposição subsequente,
do pronome pessoal estavel — o — , por caber-lhe
a propriedade de representar, não um substantivo, e sim
uma locução, ou mesmo uma proposição toda inteira.

Ex. Dou-vos a licença que me pedis:  : — Faço delle o
caso
que merece. — Elle tem razão ; não o nego. — Montei em
um cavallo que era baio. — Viajavamos por uma terra que
ainda ninguem descobrira

Note-se, outrosim, que, sendo o ultimo exemplo modificado
como se segue, já não acarretaria nelle nenhuma incorrecção
a omissão do artigo : « Viajavamos por terras
que
ainda ninguem descobrira », porquanto é a mesma
omissão, desta vez, antes apparente do que real, visto resultar
ella da faculdade inherente ao artigo indefinito, de
se deixar assaz frequentemente subentender no singular, o
quasi constantemente no plural. Haja vista, para um e
outro, caso, os seguintes exemplos : « Viajavamos por [umas]
terras que ainda ninguem descobrira. »

Não ha cousa mais cara que a que custa vergonha. (P.
Ant. Vieira). — (Não ha [uma] cousa mais cara que a que
custa vergonha
)

Não ha rei de vassallos pobres, que se possa chamar
rico
. (Diogo do Couto). — (Não ha [nenhum] rei de vassallos
pobres
, que se possa chamar rico).

Cumpre, portanto, não confundir, na applicação da
mencionada regra, as locuções verbaes com os complementos,
qu mesmo quaesquer dos substantivos accidentalmente despidos
452do artigo indefinito, e, por isso, de nenhum modo
inhibidos de ser representados por pronomes.

Ex. Aquella summa bondade que a todos nos creou á
sua imagem e semelhança, e nos fez capazes de sua mesma
bemaventurança, com muita razão nos obrigou a que, emquanto
caminhassemos
por este desterro esses quatro dias de vida que
nos dava, nos amassemos ; porque não se soffria que
gente
que
tem um mesmo pai celestial, e caminha juntamente para
uma mesma cidade celestial, não se ame no caminho
. (D. Fr.
Bartholomeo dos Martyres). — (… não se soffria que [uma]
gente que
tem…).

Adjectivos

Dos determinativos numeraes

550. As palavras milhar, milhão (conto), bilhão,
trilhão
, etc., não estando seguidas do outros vocabulos
numericos, constituem analyticamente meros substantivos ;
porquanto, com as mais palavras desta especie, avocão a
preposição de ante o substantivo computado, convertendo-o
assim em complemento indirecto.

Ex. Forão entregues a el rei muitos castellos que os tutores
havião alheado em tempo de sua menoridade, e, além
disso, cento e cincoenta
contos de maravedís, que naquelle
tempo, era somma mui consideravel
. (P. Man. Bernardes).

Estando, porém, seguidas do outros vocabulos numericos,
as mesmas palavras deixão de avocar a referida proposição,
visto formarem, com as mais expressões do numero,
um só adjectivo composto, entre cujas partes o uso requer a
interposição da conjuncção e, salvo, geralmente, antes e
depois de mil, milhão (conto), bilhão, etc.

Ex. Isto posto, no primeiro quarto de hora, e pelo primeiro
acto de caridade dobrou a Senhora o merecimento, e
mereceu dous gráos de graça… Em
noventa e seis, finalmente,
faz a somma de
quatro centos e treze mil quatrocentos
e setenta e cinco contos, quarenta e oito mil
quatrocentos e quarenta e nove milhões de milhões,
seiscentos e setenta e um contos noventa mil milhões e
trezentos e noventa e sete contos setecentos e oitenta
e sete mil cento e trinta seis
, que é o ultimo quarto de
hora de um dia natural
. (P. Ant. Vieira).

551. Tendo a lingua portugueza renunciado a continuação
da serie numerica por ordinaes ao chegar a 199
453(centesimo nonagésimo nono), visto não existir a expressão
ducentesimo, nem outra qualquer do igual jaez, substituiu-se-lhe
dahi em diante, com verdadeiro proveito para as
evoluções de computação, a serie de cardeaes, de enunciação
mais facil o mais expedita (299 : duzentos e noventa
e nove
).

Sendo, porém, absolutamente indispensavel que as duas
series numericas não viessem a ser confundidas (pois o seu
fim é muito diverso), a necessidade suggeriu um meio de
discriminação tão simples quão isento de ambiguidade, exigindo
que a expressão numerica, quando de significação
cardeal
, andasse sempre anteposta, e quando de significação
ordinal
, sempre posposta ao substantivo computado.

Ex. Herodes Agrippa deu, de uma vez, seiscentos pares
de gladiadores. (P. Man. Bernardes).

Foi este descobrimento da Terra de Santa Cruz no anno
de mil e quinhentos
. (Balthazar Telles).

Ficou, além disso, assentado que, no primeiro caso, os
numeros caracteristicos de genero concordassem com o
substantivo da computação (Um livro de trezentas e duas
paginas), o
que, no segundo, portando-se como meros pronomes
estaveis, repudiassem toda e qualquer concordancia
(Leia-se isso á pagina duzentos e dous).

Tal favor, aliás, veiu a grangear esta substituição, que
o seu uso se introduziu mesmo quando podia ser dispensado
pela existencia de ordinaes.

Ex. O vinte e nove, ou Honra e Gloria. (Theatro
Portuguez). — (Não : O Vigesimo nono…).

Não posso, comtudo, calar que, no mesmo dia seis de Fevereiro,
em que entrei nos oitenta e sete annos, foi tão critico
para a minha saúde este septenario, que apenas por mão alheia
me permitte dictar estas regras
. (P. Ant. Vieira). — (Não :
no dia sexto…).

552. Servindo a encabeçar argumentos formando serio,
os ordinaes tornão-se adverbios, e ficão, portanto, invariaveis.

Ex. As virtudes theologaes são tres : 1.° (primeiro), Fé ;
2.°
(segundo), Esperança; S.° (terceiro), Caridade. (Catecismo).

Observação. O adjectivo numeral fraccionario meio,
quando anteposto ao substantivo da computação, com elle
concorda em genero e numero.454

Ex. Meios homens chamou o poeta lyrico aos que servem,
e disse bem
. (P. Ant. Vieira).

Indo-lho, porém, posposto, só concorda em genero, porque
allude a uma unidade subentendida.

Ex. Cinco libras e meia. — (Isto é : … e meia libra).

Dos determinativos demonstrativos

553. Os tres demonstrativos simples : este, esse e
aquelle
, como os tres compostos : est’outro, ess’outro e
aquell’outro
, conservárão, dos vocabulos latinos a que
correspondem (hic, iste, ille), a propriedade essencial de indicarem
assumptos proximos, distantes ou remotos, quer em
tempo, quer em espaço.

Ex. Quer Vm. ver quão leve é a carga deste modo de
vida que toma ? Meça-a com o peso
dess’outra vida que
deixa. Ponha em balança a inquietação passada, os perigos,
os desgostos, a desordem dos affectos
, aquelle temer tudo,
não fiar de nada
… (D. Franc. Manoel de Mello).

554. Porém, além destes significados, os referidos demonstrativos
assumem ainda de vez em quando mais um,
de mui subtil e engenhosa applicação, por alludir ás tres
pessoas do discurso. Por esta nova accepção, o primeiro
(este, est’outro) vem a lembrar cousa ou lugar da pessoa
que está fallando ; o segundo (esse, ess’outro), cousa ou lugar
da pessoa a quem se está fallando ; o terceiro, emfim
(aquelle, aquell´outro), cousa ou lugar alheio, tanto á primeira,
como á segunda pessoa. e, a este respeito, tão estrictos
se mostrão os classicos na selecção dos mesmos
demonstrativos, quer sejão adjectivos, quer pronomes, que
pode ser esta observação erigida em regra. Assim é que,
escrevendo da Bahia para Lisboa, a um amigo, o P. Ant.
Vieira diz :

Meu Senhor. — Se estas regras (isto é, de mim) chegarem
ás mãos de Vm., o portador dellas é Antonio Brito de
Castro… que se vai livrar
a essa côrte (isto é, de Lisboa)
pelo modo com que o possa fazer sem se expor ao ultimo perigo.
... El rei D. João II deu occasião ao proverbio
 : « Mata,
que el rei perdoa
 », querendo antes aquelle prudentissimo
principe servir-se dos homens de valor, do que perdê-los.

Outra carta do mesmo :

Pelos avisos que vão a Sua Majestade entenderá Vossa
Alteza com que coração escrevo
esta… Sua Majestade não
deve esperar finezas, senão contentar-se muito de que se queirão

455vender aquelles que lhe fór necessario comprar… Os que
menos satisfeitos estiverem de Sua Majestade
, esses chegue
Vossa Alteza mais a si

Dos determinativos possessivos

555. Se, do emprego dos adjectivos possessivos, a expressão
do pensamento nada vem a lucrar em lucidez ou
energia, melhor é eliminá-los como formando um pleonasmo
reprovavel. Neste erro incorrería quem dissesse : « Dóe-me
a
minha cabeça ». Por isso, mui judiciosamente prescindiu
Fernão Mendes Pinto dos referidos adjectivos no seguinte
trecho :

A honrada dona, batendo então nos peitos (não : nos
seus peitos) por signal de grande espanto (não : de grande
espanto
seu), disse : « Que me matem, se assim não é !

Servindo, porém, a dilucidar, ou simplesmente a vigorar
a expressão do pensamento, já não é censurável o
pleonasmo que dahi póde occorrer :

Ex. O que a lei manda, é : « Amarás a Deos teu Senhor
com todo o
teu coração, com toda a tua alma, com
todo o
teu entendimento e com todas as tuas forças, e ao teu
proximo como a ti mesmo ». (P. J. B. de Castro).

556. Occorrendo não raras vezes que, do emprego do
determinativo seu, viria a oração a tornar-se amphibologica,
remedeia-se a este inconveniente pela substituição ou
accrescimo do pronome pessoal lhe, lhes ao mesmo vocabulo.

Ex. Os aduladores servem lisonjeiramente aos principes
para os ganhar, ou
lhes ganhar a graça. (P. Ant. Vieira).
— (Não : … ganhar a sua graça).

As arvores que lhe offerecêrão o governo, disserão-lhe :
« Vem ». (P. Ant. Vieira). — (Não : … que offerecêrão seu
governo…).

Entendeu David que maior guerra fazia a Absalão com
um homem que
lhe rompesse os seus segredos, que muitos mil
homens que
lhe rompessem os seus exercitos. (P. Ant. Vieira).
— (Não : … que rompesse… que rompessem…).

Dos determinativos indefinitos

557. O indefinito cujo, tão impropria quão obstinadamente
capitulado de pronome, não obstante a sua feição e
officio de adjectivo, sempre preso pela concordancia a um
456substantivo ou pronome da mesma proposição, não escapou
a um abuso que merece tanto mais reparo, que se aninhou
até no estylo official.

Ex. O desembargador F., juiz de orphãos e ausentes
faz saber aos que o presente edital de praça virem (e só a
estes), que, no dia tal de tal mez do corrente anno, será levado,
pelo porteiro dos auditorios da cidade, a publico pregão
de venda e arrematação, um par de esporas desirmanadas} um
castiçal com azinhavre, e uma caneca sem aza
, cujos bens
formão o espolio deixado pelo tocador de viola João Repolho,
vulgo Mata-bicho

O erro consiste em denunciar ahi o adjectivo cujos
uns bens possuidos, sem que, todavia, de todos os termos
anteriores ao mesmo vocabulo, um só se preste, como conviria,
a designar o possuidor, assim que deve ser, como se
vê do seguinte exemplo :

Os jogos dos gladiadores forão invenção do diabo, cujo
estudo
se não emprega em outra cousa que em desfigurar a
natureza humana
. (P. Man. Bernardes). — (Isto é : do qual
diabo
o estudo…).

Era aquelle o caso de soccorrer-se simplesmente do adjectivo
indefinito qual, quaes, que não allude á possessão,
ou de ladear a difficuldade por outro theor adequado (…os
quaes bens formão o espolio… ou … bens estes que formão
o espolio
…). Pois em circumstancia analoga lê-se :

Recebe a terra o grão de trigo ; e, depois de coberto, ella,
como mãi, o recolhe em seu seio ; o
qual grão se resolve e
converte depois em terra
. (Fr. Luiz do Granada). — (Não :
cujo grão…).

Observação. Um grammatico contemporaneo pretende
que cujo não pode, sem erro, cahir sob a regencia da preposição
de. Como, porém, não adduz motivo algum para
justificar tal allegação, o que os classicos nunca cogitarão
do tal requinte de purismo, fica ao alvedrío de cada um
escolher entre a autoridade novissima do grammatico, e a
autoridade gravissima dos classicos.

Ex. Alli está a hervazinha humilde de cuja propriedade
necessita a vida do rei para livrar-se. (P. Man. Bernardes).

Diogenes, philosopho, dizia que os que gastão sua fazenda
em banquetes e festins e lisonjeiros e más mulheres, são como
algumas arvores que nascem pelos penhascos e precipicios inaccessiveis
,
de cujos fructos comem só os corvos, abutres, e
outras aves de rapina
. (P. Man. Bernardes).457

558. Os vocabulos mais e menos devêrão a um simples
accidente do forma, o da sua invariabilidade, de terem sido
geralmente declarados meros adverbios, quando em realidade
podem ser, além disto, o são frequentemente adjectivos
ou pronomes indefinitos. Basta, para ficar disto
convencido, attender a que não são um e outro senão os
comparativos de superioridade de muito e pouco, por um
modo summamente analogo ao que faz de maior e menor
os comparativos de superioridade do grande e pequeno, e,
de melhor e peior, os de bom e mao. E tanto é assim,
que os primeiros podem, por colligação, formar com os ultimos
um termo composto, ou corresponder-se junto a dous
substantivos, o que se não daria, se não fossem identicos
de especie.

Ex. Esses que, ambiciosos ou enganados do novo dominio,
se occupavão em querer enxugar as lagrimas com que tal dominio
era pelos outros
(mais e melhores) recebido, pretendião
persuadir-lhes que os Portuguezes, com a mudança do principe,
se avantajavão no interesse da paz
… (Epanaphoras de D.
Franc. M. de Mello). — (… mais muitos e mais bons…).

A rainha D. Philippa, além de suas grandes virtudes,
era mulher de muita policia, e que com
menos regalo e melhor
criação
do que as senhoras de Hespanha fazem, instituia
seus filhos
. (Duarte Nunes de Leão).

Ora, se ninguem nega, porque ninguem o pode negar,
que muito e pouco são adjectivos junto a substantivos
(muito vento, pouca chuva), pronomes em substituição a
substantivos (a quem despreza o pouco, o muito lhe foge),
emfim adverbios quando modificativos de um verbo, participio,
adjectivo ou outro adverbio (Fallar muito, — pouco
temida, — muito generosos, — pouco lealmente), é de toda a
evidencia que mais e menos, quer permaneção comparativos,
quer subão a superlativos, nada têm que os possa
inhibir de acompanhar a seus positivos em todas as transmigrações
de classe por onde estes passão. A não ser
assim, como explicar, pela syntaxe do empirismo, as seguintes
analogias : mais vento, menos chuva. — Quem póde
o mais, póde o menos. — Fallar mais, — menos temida, —
mais generosos, — menos lealmente ? Pois não occorre discrepancia
alguma de funcção entre os vocabulos assim cotejados
com os do exemplo anterior.

Destas distincções, tão azadamente correspondentes ás
oxigencias de uma analyse que não se pareça com mystificação,
resulta alguma cousa mais do que a satisfação do
acertar em exercicios de classificação ; pois, além do estabelecer,
com muita proficiência, uma base segura para um
458estudo comparativo com outras linguas, as mesmas distincções
não servem pouco a dilucidar questões obscurecidas
por uma theoria incompleta ou inexacta, e resolvidas muitas
vezes ao avesso das prescripções da sciencia.

Assim é que, numa interminável mofina de periodico
um Aristarcho, tão ricamente dotado de sentimentos rancorosos
quão parcamente provido de conhecimentos grammaticaes,
aggrediu, durante mezes, a um seu desaffecto,
pelo supposto erro de ter escripto « as mais das vezes »,
quando, pela syntaxe do arguidor, devêra-se escrever « o
mais das vezes
 ». Se o caso era um tanto frivolo em si, não
o era pelo intento. Fosse, porém, como fosse, visto que,
nem o arguidor explicou a sua these, nem o arguido defendeu
a locução, licito é concluir que, onde um se firmava
em alguma autoridade empirica, o outro apenas se fundava
num uso recebido, sim, mas quiçá reprovavel. Et adhuc sub
judice lis est
.

Entretanto nada mais justificavel do que a locução
« as mais das vezes », logo que se admitta a registração
de mais e menos entre os pronomes ; porque ella corresponde
a um sem numero de formulas identicamente
ellipticas (as mais vezes das vezes), que se encontrão concordemente
sanccionadas pela lição dos classicos.

Ex. Até ora, o mais do tempo fui doente. (Pedro
Nunes).

As arvores, adornadas de perpétua e frondosa verdura,
repetem
os mais dos fructos todo o tempo do anno. (Franc.
do Brito Freire).

Ao grande Alexandre, já vencedor de Dario, caminhando
para Persepolis, sahirão ao encontro quasi oitocentos homens
,
os mais delles velhos. (P. Man. Bernardes).

Cobre Lisboa os outeiros e valles que já dissemos, com as
fabricas das casas e templos, dando com isto grande commodidade
de alegre vista
aos mais dos seus moradores, porque,
das mais das casas (estando edificadas nas ladeiras e cumes
dos montes), se vê grande parte da cidade e do seu rio
. (Luiz
Mendes de Vasconcellos).

Emfim o que, para o caso, é muito mais concludente
ainda, é o que se segue :

Que é a formosura humana ? Letra boa no sobrescripto,
estimulo da soberba conjugal, irrisão dos annos
, peccado em
flôr, que
as mais das vezes vinga. (P. Man. Bernardes).

Não excede o pêso do casamento nossas forças ; falta-lhe
as mais das vezes nossa prudencia para que o sustente, e
dahi vem que nos pareça grande
. (D. Franc. Man. de Mello).459

559. A syntaxe de todo, como adjectivo indefinito, é
verdadeiramente curiosa pelo numero e variedade de considerações
a que dá lugar.

Tanto vai elle anteposto como posposto aos substantivos
ou pronomes a que serve de apposição.

Ex. Não ha comparação do senhorio de uma terra, nem
do dominio de uma provincia ou reino, com o conhecimento
da
terra toda
, pela geographia, de todos os mares pela hydrographia,
de todos os astros pela astronomia, e geralmente do
universo todo
pela cosmographia. (P. D. Raphael Bluteau).

Quem ensinou naquelle corpo a metter todo o mundo
venal em uma praça ? A alma. (P. Ant. Vieira).

Ah ! idolatras do mundo ! que tantas vezes dais a alma,
e dobrais o joelho ao demonio, não
pelo mundo todo, senão
por umas partes tão pequenas delle, que nem migalhas do
mundo se podem chamar !
… (P. Ant. Vieira).

Os reis todos receberão o dominio e jurisdicção da mão
e consenso dos povos
. (P. Ant. Vieira).

E eu tambem perdí um amigo, e nas circumstancias que
el rei, o reino e
todos os mais o haviamos mister. (P. Ant.
Vieira).

Tomão o lugar de retabulos umas grandes frestas altas e
rasgadas
, as quaes todas estão guarnecidas e cerradas de
suas vidraças illuminadas de finas côres
. (Fr. Luiz de Souza).

Porém, quer ande anteposto, quer posposto ao substantivo
ou pronome, o mesmo vocabulo não consente amparar
a nenhum que não esteja determinado por um artigo, o
qual, como nos citados exemplos, é geralmente o definito
(todo o mundo… pelo mundo todo… os reis todos… todos
os mais… as quaes todas…), mas póde ser tambem o indefinito
(um, uma), ou um determinativo demonstrativo, de
todas as especies de palavras a mais parecida com os artigos.

Ex. El rei Dario, sendo ainda homem particular, recebera
de um grego, por nome Cyloson, uma capa de grãa.
Depois, dando-lhe em recompensa quantidade de ouro, não lh’o
aceitou, dizendo que pedia antes para a sua patria, Samos,
total exempção de tributos. e assim lhe foi concedido. Com
que chegou uma capa a cobrir
toda uma cidade. (P. Man.
Bernardes).

Mas, se a guerra é civil, sobem de ponto todos estes
males
. (P. Ant. Vieira).

Muito ferro e muito bronze, muito ouro e muita prata
460tinha a estatua ; mas, porque lhe faltou a união, não lhe servirão
de nada mais
todos esses metaes bellicos e ricos, que
de accrescentar maior peso para a cahida
. (P. Ant. Y ;eira).

O que todos aquelles orbes celestes fazem andando
em perpetua roda, e voltando sem nunca descansar, é temperar
com suas influencias o que ha de comer o homem
. (P. Ant.
Vieira).

Ficão tão sómente dispensados desta exigencia os pronomes
que, sendo já por natureza determinados, em caso
algum admittem o amparo dos artigos, ou do adjectivos
determinativos outros que não o mesmo todo.

Ex. Todo aquelle que se exalta, será humilhado ; e o
que se humilha, será exaltado
. (P. Balthasar Telles).

As paixões do coração humano, como as divide e numera
Aristoteles, são onze ; mas
todas ellas se reduzem a duas
çapitáes : amor e odio
. (P. Ant. Vieira).

« Depois que vimos em nossas terras o papel do Padre
grande, que, por amor de nós e da outra gente da nossa pelle,
se tinha arriscado ás ondas do mar alto, e alcançado de el
rei, para
todos nós, as cousas boas, logo no mesmo ponto lhe
demos inteiro credito
. » (P. Ant. Vieira).

Nas exequias de Crixio chegárão os gladiadores a cento
e cincoenta pares
, que todos morrerão. (P. Man. Bernardes).
— (… os quaes todos…).

Ficão ainda dispensados, e pelo mesmo motivo, os substantivos
proprios que por natureza repellem o artigo.

Ex. O caso do medico e hospede do leão teve por testemunhas
os olhos de
toda roma. (P. Man. Bernardes).

Emfim, sendo-lhe dada a precedencia ao substantivo
ou pronome, o mesmo adjectivo todo, como já em outra
parte foi lembrado, toma, da mesma feita, a dianteira, não
só aos mais adjectivos ou participios antepostos ao pronome
ou substantivo, como ainda ao proprio artigo, o que
nenhuma outra apposição pode fazer, salvo a de ambos
(ambas as cousas havia de fazer Josué).

Ex. Um só meio acho aos reis para salvarem ambos
estes inconvenientes
. (P. Ant. Vieira).

E, para que ninguem se admire deste grande poder da necessidade
sobre todos, a razão é, diz o proverbio, parque
todos
os outros poderes são sujeitos ás leis, e só a necessidade não
tem lei
. (P. Ant. Vieira).

Vai um soldado servir na guerra, e leva tres cousas:
 :
leva vontade, leva animo, leva alegria. Torna da guerra a
461requerer, e todas estas tres cousas se lhe trocão. (P. Ant.
Vieira).

Viveu o infante D. Henrique, em perpétua continencia,
vida solitaria e philosophica, exercitando
todas as boas
sciencias
, e, em especial, as da cosmographia e geographia.
(Fr. Luiz de Souza).

De todos estes principios, formulados depois de um
paciente e aturado estudo dos classicos, um se sobreleva
em importancia, e vem a ser o que declara todo como apposição
incompativel com um substantivo ou pronome
indeterminado. Entretanto nenhum principio seria mais
incerto do que este, se se fundasse unicamente nas observações
colhidas nos livros reproduzindo, aliás com o mais
louvavel intento, excerptos de classicos, para pelas escolas
se diffundirem as normas da boa linguagem. Pois, se na
maxima parte dos casos se verifica a mesma lei, ella tambem
apparece infringida em tantos, que é impossivel defender-se
de alguma hesitação sobre a sua legitimidade.

Porém, quando se reflecte que, aos erros ou descuidos
de uma primeira edição, vão-se ajuntando inevitavelmente
outros nas reimpressões successivas, é licito imputar ao copista
ou ao revisor incongruencias que não podem ter
sahido da penna de um escriptor esclarecido, e necessariamente
consequente comsigo mesmo. Como conciliar, com
effeito, que o mesmo P. Ant. Vieira tenha dito, de conformidade
com a regra : « toda a historia é mestra da vida »,
e contra a regra : « toda consolação é escusada quando os
males são sem remedio ?
 »

Como explicar que o mesmo P. Man. Bernardes dissesse
em orações quasi successivas :

« Oh ! Deos e Senhor meu ! por vossa infinita bondade
vos rogo me concedais que vos ame de
todo o coração!….
Ame-vos eu, Senhor, de todo coração para que me sujeite á
vossa vontade !
… »

Taes canivetadas na regra lembrão involuntariamente
aquell´outra, que tambem não é raro encontrar hoje : « Voltei
para casa », sendo esta bem certamente o resultado de
uma synalepha de pronunciação que não tem o direito de
supprimir o artigo onde a sua assistencia é indispensavel
(Voltei para a casa) ; pois, usando-se do processo da substituição,
a ninguem occorreria dizer : « Voltei para jardim,
para quarto… » e sim : « Voltei para o jardim, para o
quarto…
 » e portanto, apara a casa ».

Aliás o P. Man. Bernardes escreveu :

« Aqui tendes mil e quinhentos escudos, que, se da casa
sahirão, bem é que
para a casa voltem. »462

Em relação a todo, o principio que lhe veda o accesso
junto a um substantivo ou pronome indeterminado, funda-se,
com todos os visos da plausibilidade, na observação de
que, estando as mesmas palavras despidas de artigo ou de
adjectivo determinativo, o seu sentido torna-se fraccionario,
partitivo, incerto em quantidade (V. § 536). Ex. Queremos
pão. — Mas, quanto pão ? — a resposta é naturalmente :
algum. — Ora, se é algum tão sómente, claro é que não
póde ser todo, visto nenhum artificio conseguir estabelecer
uma conciliação entre duas expressões tão antinomicas : o
pleno e o partitivo. Portanto diga-se com todo : « Queremos
todo o
pão », ou « todo esse pão », e não : « todo pão ».
— « Ame-vos eu, Senhor, de todo o coração… e não : de
todo coração
. »

Todavia, para acabar de liquidar esta questão em todas
as suas partes, cumpre fazer uma reserva ; e vem ella a
ser que os adjectivos possessivos, por admittirem mais ou
menos facultativamente a antecessão do artigo definito,
parecem gozar do indulto de se pospôrem ou anteporem
tambem, a todo sem que lhes assista o referido artigo :
pelo menos o que dos classicos se collige, é que são quasi
tão frequentes os casos em que o mesmo artigo fica omisso,
como os em que está enunciado.

Ex. Salomão foi o rei que, em todo o seu reinado,
gozou da mais alta e segura paz de quantos houve dentro e
fóra de Israel
. (P. Ant. Vieira).

De doze tríbus de que constava, o reino perdeu em um
dia as dez, as quaes, nem nos dias de Roboão, nem nos de

todos seus descendentes se unirão ou sujeitárão á corôa.
(P. Ant. Vieira).

Cada palmo tem tanto que ver de delicadeza e artificio, de
trabalho e majestade, que, considerado com attenção, impossibilita
o engenho, e embota a penna para o declararmos e se entender
em
todas as suas partes. (Fr. Luiz de Souza).

Aquella grande praça de capellas é, quanto se póde desejar
por
todas suas partes, excellente de arcos e laçarias,
de policia de esculptura, de graça, de subtileza e diversidade
de lavor
. (Fr. Luiz de Souza).

Oh ! Senhor ! nascei no centro de minha alma, para esclarecer
toda a sua esphera ! (P. Man. Bernardes).

Quão magnificas e bem ordenadas são, Senhor, todas
vossas obras !
(P. Man. Bernardes).

El rei D. Duarte, como seus irmãos todos, foi bem doutrinado
nas letras e costumes
. (Duarte Nunes de Leão).463

Observação. A indevida omissão do artigo definito
em seguimento a todo, quando apposição, sendo hoje tão
frequente, que ella passou a verdadeiro solecismo, não será
fóra de proposito fazer notar que, como tantos outros
erros, não é mais que uma mal cabida imitação do francez,
em que tout (todo), vindo a assumir um sentido analogo
ao de chaque (cada), repelle então terminantemente a concomitancia
do artigo definito : « tout homme est mortel (não :
tout l’homme…), o que, entretanto se traduz com toda a
propriedade : « todo o homem ou todo e qualquer homem
é mortal », e sem notavel impropriedade « cada homem é
mortal
 ». Pois em caso perfeitamente identico digse o P.
Ant. Vieira : « todo o reinado desunido será assolado (tout
royaume
désuni sera bouleversé ». — Aprendão a jogar as
armas maritimas de
todo o genero. (Qu´ils apprennent à
manier les armes de mer de
tout genre). — Lê-se igualmente
uma carta de el rei D. Manoel ao rei de França :
« Em toda a occasião póde V. M. usar das minhas cousas
como se fossem communs a ambos
 ». (En toute occasion, V.
M. peut user de ce qui m´appartient, comme si c´était de lun
et de l´autre). — Julgue agora
todo o homem se é cousa dificultosa
e impossivel, antes muito facil e natural, amar os inimigos
.
(P. Ant. Vieira). (Que tout homme juge maintenant…).
Por proximo entende-se todo o homem. (D. Fr. Bartholomeo
dos Martyres). (Par prochain, on entend tout homme).

« Mas, objectará talvez alguem (e foi isso o motivo da
presente observação), em que vem a ficar a explicação
theorica de que todo, pela natureza do seu sentido, não
póde amparar a um substantivo indeterminado, isto é,
despido do artigo ou de algum determinativo ? Será a
verdade, em materia de logica, uma em portuguez, e
outra em francez ? »

Certamente a logica é uma, e só uma ; porém ahi as
linguas são duas. E tanto são duas em referencia ao assumpto
ventilado, que, para remover a objecção sem entrar
em uma dissertação inopportuna, basta advertir que a
questão dos artigos estabelece radical discrepancia entre as
mesmas linguas. Porquanto, além do definito e do indefinito,
o
francez possue mais um artigo : o partitivo (de, du,
de la, des), o
que não póde deixar do provocar nelle, em
referencia aos substantivos, relações syntaxicas que nada
têm de commum em uma e outra lingua.

560. Ainda fica por observar em todo uma feição bastante
singular, e vem a ser a propriedade que lhe compete,
como aos demais adjectivos indefinitos, de se constituir em
modificativo, com o mesmo alcance de qualquer adverbio,
464sem que todavia, ao contrario dos outros, perca em tal
caso a variabilidade adjectival, do que dá sobejas provas a
constante concordancia que conserva em numero e genero
com o vocabulo por elle modificado, não podendo ser isso
explicado senão como concessão á euphonia.

Ex. E, que faz a mesma natureza toda movida e governada
pelo mesmo Deos ? (P. Ant. Vieira).

Que ahi é o vocabulo toda um mero modificativo dos
participios movida e governada, torna-se evidente pela
nenhuma repugnancia com que se presta a uma conversão
em algum adverbio correspondente : « totalmente, — inteiramente
movida e governada… » — O mesmo se verifica
nos seguintes exemplos :

E’ a ilha toda composta de um confuso e intrincado labyrintho
de rios e bosques
. (P. Ant. Vieira).

Começa a sahir e a crescer o sol : eis o gesto agradavel
do mundo, e a composição da mesma natureza
toda mudada.
(P. Ant. Vieira).

Via-se no quadro a deosa toda ornada e enriquecida
de joias. (P. Ant. Vieira).

Se o mundo todo inteiro pesa tão pouco, como pesão
tanto estes pedacinhos do mundo ?
(P. Ant. Vieira).

Oh ! Senhor ! se sondamos vossa grandeza com o cordel
do discurso e investigação philosophica, logo este se
some todo
(P. Man. Bernardes).

Ordinariamente fazem os seus banquetes fora da cidade,
em um prado muito ameno, que chamão Elysio, e está
todo
cheio
das mais raras formosuras da natureza, cercado todo
de um bosque que lhe forma verdes pavilhões de frescas sombras.
(P. Man. Consciencia).

O marmore muito alvo e fino, lavrado, todo em roda, de
um silvado de meio relêvo
… (Fr. Luiz de Souza).

Confesso que tomara ver esta linguagem em toda outra
pessoa. (Fr. Luiz de Souza).

Porém, vindo todo a constituir de per si só o regime
de uma preposição, elle passa então a tomar ar feição de
pronome indefinito estavel, e forma analyticamente com a
mesma proposição, uma locução adverbial.

Ex. Se a guerra em si é de todo injusta, ella não pertence
ao principe christão
. (João do Barros). — (… totalmente
injusta
…).465

Dos adjectivos qualificativos

561. Embora seja erro crasso o do sujeitar um superlativo
a novamente subir os degraos de significação, como
se fosse mero positivo, não deixa de haver alguma opportunidade
em advertir que uma qualidade, considerada no
seu auge, não póde mais figurar como termo de comparação
(tão, mais, menos facillimo !!), nem tão pouco ascender
do auge para o auge (o mais acerrimo, mui facillimo !!) ;
pois falha no engenho humano a craveira para
tal aferição. Entretanto, que não é de todo inopportuno
lembrá-lo, vai attestado pelas numerosas excentricidades
deste genero que se encontrão diariamente nas publicações
periodicas, o que se deve attribuir ao gôsto infrene de superlativar
tudo, donde já resultou que o soffrivel veiu a ser
regular, e o ruim ordinario. Neste andar em pernas de páo,
lá vem um que se queixa de nunca ter visto mais pessima
administração ; outro apregoa as suas cebolas dizendo que
são tão optimas como as melhores do Egypto ; emfim um
terceiro demonstra, por mais isto e menos aquillo, quanto
deve merecer ao publico tão previdente e utilissima associação.
E’ esta, aliás, uma tendencia que apenas consegue
apoucar a lingua, sem engrandecer a litteratura.

Na mesma interdicção incorrem uns poucos de adjectivos
que, embora não sejam declaradamente superlativos
de incremento, com esta accepção, todavia, provierão do
latim, onde a tinhão. Os que se mais habitualmente offerecem,
são :

principal | (de primus, prior, princeps) ;
postremo | (de posterus, posterior, postremus) ;
supremo | (de supernus, superior, supremus) ;
total | (de totus) ;
ultimo | (de ulterior, ultimus) ;
unico | (de unus) ;

e, dubitativamente, os seguintes, por serem de vez em
quando encontrados com o mero valor de positivos :

extremo | (de externus, exterior, extremus) ;
intimo | (de internus, interior, intimus) ;
proximo | (de propinquus, propior, proximus).

Pois diz-se bastante a miudo :

A mais extrema necessidade. — No mais intimo do coração.
— O mais proximo lugar.

Entretanto repugnou ao P. Ant. Vieira sujeitar extremo
a tão ; e faz gôsto ver com que graça e dexteridade
466se esquiva o insigne classico ao laço que lhe arma o sentido
da oração.

Morto Salomão, succedeu-lhe na coroa Roboão, seu filho.
e a primeira proposta que lhe fizerão os povos juntos em
cortes, foi que tivesse piedade delles, e os alliviasse dos tributos
com que estavão opprimidos em tempo de seu pai, porque erão
insupportaveis. e chegou esta instancia a termos
tão apertados
e do cabo (não : tão extremos), que não querendo Roboão
condescender no que tão justamente pedião, dos doze tribus
de que constava todo o reino, os dez lhe negarão a obediência,
e se rebellárão, e fizerão outro rei e outro reino, que nunca
mais se sujeitou nem restituiu aos herdeiros de Salomão
.

O que parece, aliás, confirmar a allegação aventurada
em relação ao P. Ant. Vieira, é uma nova observação que,
sobre o mesmo assumpto, fornece a continuação do mesmo
excerpto.

Agora entra o meu reparo. Se o peso do ouro, e a quantidade
da prata que contribuião as minas, era tão excessiva
(além dos direitos ordinarios do reino, que erão muito avultados),
com toda esta immensidade de thesouros, com todos estes
rios de prata e ouro, que estavão sempre a correr
(per singulos
annos : um anno atraz do outro), como não se alliviava
a oppressão dos vassallos ? como não se levantavão ou diminuião
os tributos dos povos ? antes crescião e se multiplicavão
ao mesmo passo com tal excesso, que os obrigarão a uma
tal
desesperação, e reduzirão o reino a extrema ruina !

Para que o P. Ant. Vieira não dissesse « a tão extrema
ruina », era necessario que julgasse illicita tal colligação
de palavras ; pois para lá levava-o, por attracção de
conformidade, o theor da precedente proposição, pela ingerencia
de tal, em que tão se aninha por contracção (… a
uma
tal desesperação !… a tão extrema ruina !). Portanto,
se deve prevalecer a lição do mais eminente dos classicos,
nenhum dos referidos superlativos póde ser usado em outro
gráo de significação que não seja o que lhes competia em
latim.

Ex. « Assim que, Senhor, consciencia e mais consciencia
é
o principal e unico talento que se ha de buscar nos que
vierem governar este Estado
. » (P. Ant. Vieira). — (Não :
... os mais principaes factos…. como escreveu em programma
de estudos um director de collegio ; — nem tão
pouco como no seguinte apparatoso titulo : « Arte versificatoria
na qual se assignão( ! ?) as regras
mais principaes
para a composição dos versos latinos… Lisbôa, 1866 » Naturalmente,
conspicuos latinistas não podem cuidar do rasteiro
vernaculo.467

562. Nas locuções bom senso, boa ou ma fé, boa ou
ma vontade
, vai o adjectivo tão indivisivelmente preso em
sentido com o substantivo, que do conjuncto resulta um
verdadeiro substantivo composto. O que dahi se segue, é
que, nem um, nem outro dos mesmos adjectivos, não só
repugna a dissociar-se da locução para formar as contracções
melhor ou peior, como ainda um e outro tolerão
em anteposição qualquer comparativo ou superlativo idoneo.

Ex. Para a boa direcção da vida, preferivel é ter mais
bom senso
do que grande engenho.

O que fôra emprehendido na melhor boa fé, deturpou-o
a mais requintada má vontade.

Pronomes

Dos pronomes pessoaes

563. O pronome pessoal si, sempre e necessariamente
regime do uma preposição expressa, encontra em elle um
competidor com o qual não deve ser confundido na contextura
das orações.

Usa-se de si em referencia ao sujeito da mesma proposição,
e de elle em referencia a um termo de outra
proposição anterior.

Ex. O infante D. Henrique mostrou ao mundo o — que
o mesmo mundo não conhecia de si. (P. Ant. Vieira).

Este mundo ri-se de todos os — que se não riem delle.
(P. Man. Bernardes).

Assim succede, concluiu Christo, a quem (áquelle — que)
não cuida mais do que juntar
para si, sem se lembrar de
Deos nem dos pobres
. (P. J. B. do Castro).

Do meio das turbas sahiu um homem a pedir ao Senhor

quizesse fazer — com que um irmão seu repartisse com elle
dos bens — que herdara. (P. J. B. de Castro).

Dos pronomes numeraes

564. A instituição do uma classe do pronomes numeraes
na primeira edição desta obra não pouco excitou a
mofa dos empiricos « em Grammatica ; pois Noel e Chapsal
não tinhão della cogitado, e menos ainda os seus subservientes
asseclas. Que novidade ridicula não era essa ! Mera
appetencia dedistinguir-se pela singularidade…468

Entretanto esta instituição resulta simplesmente da
generalisação de um principio aceito, não só pelos referidos
grammaticos, como por todos os mais ; e vem a resumir-se
no seguinte : Todo o adjectivo, quer demonstrativo, quer
possessivo, quer indefinito, que deixa de acompanhar a um
substantivo ou outro pronome, para fazer de per si mesmo
as funcções do um substantivo, deve ser e é tido formalmente
por pronome. E nada mais são a mór parte dos
pronomes demonstrativos, possessivos e indefinitos. Ora,
se assim é, porque deixar do considerar tambem como
pronomes os numeraes cardeaes quando, segregados de todo
e qualquer substantivo ou outro pronome, fazem do per si
mesmos as funcções de um substantivo ? Pois, que podem
ser os numeraes do seguinte exemplo, senão pronomes :
« um e um são dous ? »

« Nada ! nada ! » exclamão una voce os empiricos.
« Quem não vê que ahi, junto aos referidos adjectivos,
está subentendido um substantivo : Um objecto e um
objecto são dous objectos ? Isto é claro. »

Ora, homens !

Se a maior parte dos pronomes são pronomes tão sómente
por isso mesmo, isto é, só porque lembrão um substantivo
que lhes pudora andar annexo,… o que é claro, é
que os mencionados numeraes são tão propriamente pronomes,
como o são os determinativos dos seguintes exemplos :
pois ainda ninguem se lembrou de tê-los por adjectivos :

Vêm voces aquelle que alli vai ? (P. Man. Bernardes).
— (… aquelle homem…).

E’ grande nobreza usar do seu. (P. Ant. Vieira). —
(… do seu bem).

Quasi todos querem ensinar com razões ; com exemplos,
poucos ensinão. (P. Ant. Vieira). — (… todos os homens…
poucos homens…).

Por isso pretendemos que o numeral dous do seguinte
exemplo não póde ser qualificado senão como pronome :

Se o homem timido não tem coração, o teimoso não tem
cabeça ; porque não conhece que, sendo o errar um
defeito,
o sustentar o erro são
dous. (P. Ant. Vieira).

« Pois bem ! » replicão levemente os empiricos, « mas
que é o que se vem a lucrar com tão entezada innovação ? »

Isso é outra cousa.

Ser consequente com os principios reputou-se sempre
469condição indispensavel em sciencia, porque a doutrina só
se firma pola homogeneidade das partes.

Em segundo lugar, póde-se aprender que, vindo o numeral
um a ser pronome, não consente já formar contracção
com a preposição em.

Ex. Em um ha unidade, mas não póde haver união. (P.
Ant. Vieira). — (Não seria toleravel dizer : num ha unidade…).

Por mais insignificante que seja o proveito, sempre é
proveito.

Dos pronomes demonstrativos

565. Sendo considerados em referencia ás suas relações
syntaxicas, os pronomes desta classe formão duas secções
bem distinctas.

Na primeira cabem tanto os instaveis simples ou compostos :

este, a, es, as ;
esse, a, es, as ;
aquelle, a, es, as ;
est’outro, a, os, as ;
ess’outro, a, os, as ;
aquell’outro, a, os, as
 ;

como os estaveis :

isto, isso, aquillo.

Na segunda cabe o instavel — o, a, os, as ; e o estavel
o.

Ora a divergencia que separa os referidos pronomes
(divergencia muito digna de reparo nas versões), cifra-se
nisso, que os da primeira secção, do sentido essencialmente
absoluto, não se negão todavia a apparecer accidentalmente
restringidos, ao passo que os da segunda secção são necessariamente
submissos a uma restricção.

A restricção que em tal caso nelles actúa, manifesta-se,
ou pela subsequencia de um pronome relativo, ou por um
mero complemento directo. Ex.

Pron. demonstr. da primeira secção

(sem restricção)

Tudo está fervendo em movimentos que acabão e começão :
aquelles cantão, dalli a pouco chorão ; est’outros chorão,
dalli a pouco cantão
. (P. Man. Bernardes).470

Mais facil era antigamente conquistar dous reinos na
India, que repartir duas commendas em. Portugal
. isto foi, e
isto ha de ser sempre. (P. Ant. Vieira).

(com restricção)

Mofino e miseravel é aquelle que não tem inimigos. (P.
Ànt. Vieira).

Isto de ter inimigos é uma semrazão ou injuria tão
honrada, que ninguem se deve doer ou offender della
. (P. Ant.
Vieira).

Pron. demonstr. da segunda secção

(com restricção)

Gosta antes dos que (daquelles que) te argúem, que dos
que
te adulão. (P. Ant. Vieira).

Assim como motivo de amar é o bem proprio, assim o
de aborrecer (esse de aborrecer) são os bens .alheios. (P. Ant.
Vieira).

Póde haver maior desgraça que não ter um homem bem
algum digno de inveja ? Pois é
o que (aquillo que) se segue
de não ter inimigos
. (P. Ant. Vieira).

Destas considerações, que haja quem as julgue talvez
ociosas, por parecerem meramente especulativas, deduz-se,
mais adiante, a demonstração de um frequente solecismo,
interessando os vocabulos todo e tudo.

Dos pronomes possessivos

566. Merece reparo que os pronomes desta classe,
quando instaveis, isto é, subordinados á concordancia com
um substantivo anterior, não prescindem da anteposição
do artigo definito.

Ex. Nenhum destes apparatos tão estrondosos e formidaveis
tem bastado, nem para que os Assyrios guardassem o seu

imperio dos Persas, nem os Persas o seu dos Gregos, nem
os Gregos
o seu dos Romanos, nem os Romanos finalmente o
seu daquelles a quem o tinhão tomado. (P. Ant. Vieira).

Sendo, porém, estaveis, isto é, despidos de referencia
a um substantivo anterior, os mesmos pronomes, já tomão,
já dispensão o artigo, conforme têm de enunciar um sentido
determinado ou indeterminado, como é o caso com os
substantivos.

Ex. Mais inventarão e fizerão os homens a este fim de
471conservar, a cada um o seu : inventarão e firmarão leis… (P.
Ant. Vieira). — (… a cada um o bem de cada um…).

Depois que a terra se dividiu em differentes senhores, logo
houve guerras e batalhas, e se acabou a paz, porque houve

meu e teu. (P. Ant. Vieira). — (… porque houve bem de
mim, e
bem de ti).

Dos pronomes relativos

567. Dos tres pronomes relativos (que, quem, o qual),
um só, o primeiro, bastaria para tudo o que éda alçada
desta classe de palavras, se não fôra a estabilidade de sua
forma, que fá-lo nimiamente enigmatico. Pois, quer seja
sujeito ou complemento, predicado ou apposição ; quer seja
masculino ou feminino, do singular ou do plural ; quer emfim
seja representante de pessoas, do cousas ou de abstracções,
o que portuguez a nada se move : é sempre que.

Não é, portanto, de admirar que tanto custe classificá-lo.
e comtudo a exacta classificação deste vocabulo é,
não só indispensavel para acertar na declaração de suas
funcções syntaxicas, como para escolher-lhe, em outras
linguas, representantes idoneos, visto serem mais ou menos
variados os vocabulos que, nellas lhe correspondem.

Todavia existe um criterio certo, e certissimo, para
distrinçar, não só em que, senão, tambem em quem, o caracter
de pronomes relativos : este criterio consiste na possibilidade
da conversão de um e outro em o qual, a qual.
os quaes, as quae sendo de notar subsidiariamente que,
em tal caso, quem se apresenta invariavelmente regido de
uma preposição expressa, o que faz com que,como pronome
relativo, só exerça a funcção de complemento indirecto,
proprio, já improprio. Não sendo, porém, possivel
a mencionada conversão, quem torna-se pronome indefinito,
e que passa a ser, conforme as indicações do § 175, adjectivo
ou pronome indefinitivo, adverbio ou conjuncção.

observação. Por mais inconveniente, por mais incompativel
que pareça ser com as boas normas da didactica,
baseia-se a distribuição de que por todas estas diversas
classes de palavras em considerações tão incontestaveis,
que, a reduzí-la, como querem os empiricos, á simples alternativa
de ser que, ou pronome relativo, ou conjuncção,
e só isso, seria repudiar, da mesma feita, em relação a este
vocabulo, a applicação das leis imprescriptiveis da syntaxe.
Seria mais do que isto : seria pôr-se na impossibilidade de
conciliar, por um modo natural e logico as operações a
472que elle concorre em portuguez, com as que effectua, sob
formas variadas, em qutras linguas. Attenda-se, por exemplo,
ao que com elle succede em allemão, onde sua reproducção
avoca até mais do uma palavra em cada classe, e
demonstra, pelo mero cotejo das expressões avocadas,
quantos são os empregos que sorrateiramente cumula.

Adjectivo indefinito

que livro é esse ? Was fuer ein Buch ist dieses ?

Pronome relativo

E’ um livro que acabo de comprar. — Es ist ein Buch,
Welches ou das ich jetzt cben gehauft habe.

Pronome indefinito

Mas que queria dizer-me o Sr. ? — Abar Was wollten Sie
mir sagen ?

Adverbio

Ora, que bonitos cavallos tem o Sr. ! — , Wie schcen
sind Ihre Pferde !

Conjuncção

Creio até que são mais bonitos que os do barão de
Cayapó. — Ich glaube sogar
, dasz sie schœner sind, als die
des Barons von Cayapó
.

568. A necessidade de prover de remedio aos numerosos
casos de ambiguidade que originaria o emprego exclusivo
de que como pronome relativo, suggeriu a idea de
lhe dar por « substantivos quem ou o qual, porém com a
reserva de que destes se usaria só para fugir a uma equivocação
possivel. Assim se explica a predominancia que,
no discurso, o primeiro exerce sobre os dous ultimos.

O relativo quem denuncia sufficientemente por sua
forma contracta (que homem) a sua peculiar idoneidade
para representar substantivos de pessoas.

Ex. Forão inventores destes jogos Hercules, Pytho, Theséo
e outros heroes
de quem (dos quaes) os tomárão os Gregos e
Romanos
. (P. Ant. Vieira).

Nem os Romanos, finalmente, conservárão o seu imperio
daquelles
a quem (aos quaes) o tinhão tomado. (P. Ant.
Vieira). — (…’tomar-lhes. .. complem. indir. proprio).

Se foramos verdadeiros christãos, cessava entre nós este
preceito, porque não havia de haver inimigos
a quem (aos
473quaes) amar. (P. Ant. Vieira). — (amá-los… comp. indir.
improprio).

Por um natural consorcio de idéas, o mesmo relativo
substitue com toda a propriedade quaesquer substantivos
designando entes intelligentes, ou simplesmente personificados.

Ex. A nossa alma, immersa na materia, e dependente de
orgãos, não é, emfim
, como as intelligencias separadas em
quem
(em as quaes) não ha esquecimento. (P. Man. Bernardes).

Se o soldado se vê despido, folgue de descobrir as feridas,
e de envergonhar com ellas a patria
, por quem (pela qual)
as recebeu
. (P. Ant. Vieira).

Os classicos forão mais longe ainda : bastou-lhes que
ao substantivo, sendo embora de cousa ou de abstracção,
estivesse imputado um acto proprio de pessoas, para que o
substituissem por quem.

Ex. Se as cousas são pelos effeitos conhecidas, e elles
testemunhão a excellencia ou maldade dellas, qual o foi de
maiores males e damnos na redondeza, e mettendo os homens
em mais perigosos trabalhos, que o ouro
, a quem (ao qual),
com muita razão, podião todos chamar peste do mundo. (P.
Ant. Vieira).

E os céos, a quem (aos quaes) o profheta chamou livros,
que contão as obras mais gloriosas do Creador, não deixão de
ser bons historiadores
. (P. Balth. Telles).

O santo patriarcha Isaac comparou a fragrancia dos
campos ferteis com a benção e graça dos santos, fazendo
 : « O
cheiro e fragrancia de meu filho é como o de um campo cheio
,
a quem (ao qual) o Senhor abençoou. » (Fr. Luiz de Granada).

569. O relativo o qual deve á constante assistencia
do artigo o ser caracteristico de genero e numero ; e, como
se presta a representar, em todas as funcçõos proprias dos
pronomes, tanto pessoas como cousas ou abstracções, elle é
summamente idoneo paira substituir a que ou quem nos
casos em que estes se tornão ambiguos por sua immutabilidade.

Ex. Ao tem destes nossos brados sahiu de baixo do toldo
uma mulher já de dias, que, no aspecto e na gravidade de
sua pessoa, mostrava bem ser quem depois soubemos que era
 ;
a qual, em nos vendo da maneira que estavamos, como quem
se apiedava de nós
,… fez chegar a barcaça á terra. -(Fernão
Mendes Pinto).474

No numero destes legumes entrão os que dentro de si
gerão pevides, que depois servem para se tornarem a semear
,
entre os quaes se contão aquelles por que suspiravão os filhos
de Israel no deserto
. (Fr. Luiz do Granada).

Os instrumentos que creou a natureza, ou fabricou a arte
para serviço do homem, todos têm
certos termos de proporção
dentro dos quaes se podem conservar, e fora dos quaes
não podem. (P. Ant. Vieira).

Dos pronomes indefinitos

570. Tão fundada está na natureza das cousas a distincção
dos vocabulos que, quem o qual em pronomes, já
relativos, já indefinitos, que arrebanhá-los a todos promiscuamente,
como é de uso em uma unica classe, a dos relativos,
longe de simplificar a doutrina, contribue a torná-la
inextricavel. Pois, nem o raciocinio analytico se accommoda
a esta confusão, nem com ella é possivel fazer obra
no estudo comparativo das linguas.

Esta distincção é fundada em facto, porque já o latim
enunciava os tres referidos vocabulos por qui, quæ, quod
quando relativos, e por quis, quæ, quid quando indefinitos,
dando-se apenas, em theoria, algumas alterações mais apparentes
que reaes, por motivo de ellipses peculiares daquella
lingua.

Ex. Que é o ouro e a prata ? sangue do corpo da republica,
que (o qual) anda em movimento circular. (P. Man.
Bernardes). — (quid est aurum et argentum ? sanguis corporis
reipublicæ ?
, qui circulariter novetur).

Ella é fundada em theoria, porque, se a nomenclatura
grammatical tem uma significação, a denominação de pronome
relativo implica uma referencia necessaria deste
vocabulo a um substantivo ou pronome anterior (antecedente :
sangue… que…), quando, pelo contrario, a de pronome
indefinito, mórmente na sua applicação aos estaveis,
como alguem, ninguem, outrem, tudo, nada, nenhuma semelhante
referencia implica (que é o ouro… ??), sendo que
tudo quanto póde dar em tal caso o desmanche analytico,
se reduz a um substantivo ou pronome mais ou menos occultamente
incluido no mesmo indefinito (que cousa é o
ouro
…).

Ex. A quem não tem bens ninguem lhe quer mal. (P.
Ant. Vieira). — (A’quelle que não tem bens, nenhum homem
lhe quer mal.

E, se ainda assim parece insufficiente a demonstração,
475considere-se que, nem um, nem outro dos indigitados indefinitos
que e quem se presta á conversão que anteriormente
os denunciava como relativos (o qual, a qual, os quaes, as
quaes
).

Verdade é que um ou outro grammatico, tendo tambem
deparado com algumas das incompatibilidades ahi
assignaladas, julgara prover de remedio ao caso, creando
para os referidos indefinitos uma classe especial de pronomes,
sob a denominação de interrogativos. Mas isso, longe
do resolver a dificuldade, apenas a deslocava : pois tanto
se encontrão os mesmos indefinitos em orações que nada
têm de interrogativo, como em orações determinadamente
interrogativas.

Ex. Que é o nascer ?… Nascemos sem saber para que
nascemos. (P. Ant. Vieira). — (que oousa é o nascer ?
Nascemos sem saber para que cousa nascemos).

Deixando, outrosim, de expor a theoria syntaxica de
seus interrogativos, os mesmos grammaticos inutilisavão
assim a sua indicação. Pois, que importão distincções que
não conduzem a nenhum resultado apreciavel ?

Ora a theoria syntaxica dos tres mencionados vocabulos
é muito diversa, conforme são relativos ou indofinitos.

Como relativos, enuncião sempre dous termos, um dos
quaes é necessariamente o de ligação ; « como indefinitos,
sempre tres, porquanto participão então de duas proposições.

Ex. Que é o ouro e a prata ? (Pergunto pela cousa
que é o ouro e a prata). — Sangue do corpo da republica, —
que (o qual) anda em movimento circular.

Que é o nascer ? (.Pergunto pela cousa — que é o nascer)…
Nascemos sem saber da cousa — para a qual nascemos.

Porém, já que se trata de um ponto de doutrina tanto
mais obscurecido quanto mais debatido, seja licito, para o
pôr em plena luz, readduzir os criterios que praticamente
denuncião que, quem e qual como indefinitos, porque dahi
tirão-se valiosas deducções a bem da pontuação.

571. Que é pronome indefinito quando se deixa resolver
em que cousa ou cousa que, ou ainda occasionalmente
em que quantidade, que porção.

Ex. Sejão ouvidos nesta causa todos, pois toca a todos.
que é que dizem ? (P. Ant. Vieira). — (que cousa é a cousa
que
dizem) ?476

Que de tempos costuma gastar o mundo, não digo no
ajustamento de qualquer ponto de uma paz, mas
em registrar
e compôr as ceremonias della !
(P. Ant. Vieira). — (que
quantidade, — que porção
de tempos…).

E’ digno de particular reparo que este pronome, assim
como mais alguns da mesma classe, para prevenir equivocos,
está levado a firmar o seu sentido de indefinito pela
adopção do artigo definito (o que). Mas, prestando-se,
mesmo sob esta forma, á conversão em que cousa ou cousa
que
, elle fica assim sufficientemente resguardado contra uma
confusão o demonstrativo o que, forçosamente convertivel
em aquelle que ou aquillo que (O que (aquelle que) commette
todo o governo aos velhos, mostra ser inhabil
. (P. Ant.
Vieira). — O que (aquillo que) o principe puder haver em
paz, não haja por guerra
. (P. Ant. Vieira).

Ex. O parapeito, lavrado em rede, é coroado de uma
metas como flôres de liz
 ; o que tudo junto faz uma machina
muito crespa e vistosa
. (Fr. Luiz de Souza). — (… cousa
que
toda junta faz uma machina…).

Tudo isto sahe do sangue e do suor dos tristes indios, aos
quaes trata como tão escravos seus, que nenhum tem liberdade,
nem para deixar de servir a elle, nem para poder servir a
outrem
 ; o que, além da injustiça que se faz aos indios, é occasião
de padecerem muitas necessidades os portuguezes, e de
perecerem os pobres
. (P. Ant. Vieira). — (… cousa que… é
occasião de padecerem
…).

Pelo dito, pois, se entenderá que, não somente são barbaros
os homens que vivem nús como selvagens debaixo da linha
equinoccial, senão tambem muitos dos que arrastão sedas e velludos
 ;
o que se entenderá por este exemplo. (Fr. Luiz do
Granada). — (… cousa que se entenderá…).

Além do artificio e regras de bem fallar, era el rei D.
Duarte naturalmente eloquente
 ; pelo que attrahia a si os
corações dos homens
. (Duarte Nunes de Leão). — (… cousa
por que
attrahia…).

Foi el rei D. Duarte em tudo mui sizudo e prudente ;
pelo que, sendo el rei seu pai velho, descarregada nelle os
negocios e governo de todo o reino
. (Duarte Nunes de Leão).
— (… por que cousa, sendo el rei…).

572. Quem é pronome indefinito quando se deixa resolver
em que homem ou homem que, ou ainda em aquelle
que ou homem a quem
, discriminando-se, outrosim, do seu
homonymo relativo por não estar, como elle, adstricto á
regencia de uma preposição, e sim por gozar da faculdade
477de duplamonte desempenhar todas as funcções proprias dos
pronomes, tanto no singular como no plural.

Ex. Quem era Seneca ? Era aquelle grande estoico em
cuja estimação a maior riqueza era o
desprezo de todas. (P.
Ant. Vieira). — (que homem era Seneca ?…).

Os cavadores não serieis os mais nobres e ricos da terra ;
mas
, quem havião de ser senão os seus escravos ? (P. Ant.
Vieira). — (… mas, que homens havião de ser [os cavadores] ?…).

Quem trabalha, trata da sua vida ; quem está ocioso,
trata das alheias
. (P. Ant. Vieira). — (o homem que trabalha
o homem que está ocioso…).

Quem ama, não faz mal a quem ama. (D. Fr. Bartholomeo
dos Martyres). — (aquelle que ama, não faz mal
ao homem a quem ama).

573. Assim como só se costuma lançar mão do relativo
o qual para remediar as ambiguidades a que não podem
sempre fugir seus dous consocios, assim tambem o indefinito
qual acóde aos seus em semelhante aperto. Mas, por
isso mesmo que tanto pode vir em soccorro de que como
em soccorro de quem, a sua conversão analytica se effectua,
conforme o caso, já em cousa, já em homem.

Ex. E, para que não fiquemos com um só exemplo, passemos
a outro reino ou a outro reinado mais sabio
, qual foi,
sem injuria dos presentes nem dos futuros, o de Salomão
. (P.
Ant. Vieira). — (… passemos a outro reino ou a outro rei
nado mais sabio
, cousa que foi… o de Salomão).

Mas, como o amor dos inimigos é mais alto, e elle só heroico,
vejamos quem é Deos, e
quaes nós devemos ser neste
ponto
. (P. Ant. Vieira). — (… vejamos quem é Deos, e [ [vejamos]
que homens nós devemos ser neste ponto).

574. Em seguida a esta exposição theorica do caracter
especial dos tres indefinitos que, quem e qual, apresenta-se
um problema syntaxico de algum interesse, porque, sendo
encontradas as lições que, nos classicos, lbe dizem respeito,
apenas póde ser resolvido por inducção. O problema é o
seguinte.

Póde o indefinito quem receber, como o relativo que,
a personalidade de um pronome pessoal anterior, para
impô-la, como este, ao verbo de que por acaso venha a
constituir-se o sujeito ?

Theoricamente, a resposta parece que deve ser negativa.
Porquanto, abrangendo em si mesmo o seu antecedente
478(homem que, — aquelle que, — o que), o referido
indefinito está ou deve estar ao abrigo de outra influencia,
qual a de um pronome pessoal anterior ; e, como todos
estes antecedentes adduzidos por extracção são da terceira
pessoa, parece concludente que quem, como sujeito, não
possa impôr ao verbo outra pessoa senão esta. Outrosim
fica a supposição verificada pelo seguinte exemplo :

Pelo que, não sendo só vós quem padece (isto é : o homem
que, — aquelle que, — o que padece), accommodai-vos á
condição dos outros mortaes
. (P. Man. Bernardes).

Porém eis-ahi o mesmo classico encarregando-se de
tornar a solução bastante duvidosa, por dizer em outra
parte :

Vós que entendeis que não servis, sois o que servis.

Ora toda a questão se reduz a considerar se póde
haver, logicamente, tal differença entre o contracto quem
o o complexo o que para ser o primeiro dispensado de uma
referencia a — vós — , e o segundo obrigado a uma referencia.
Pois tal é a identidade de sentido, que nada obstaria
a que se dissesse : Vós não sois só quem ou o que padece.
Vós sois o que ou quem servís. — Quanto a
admittir que as duas formulas, embora tão dispares, possão
vigorar com a mesma legitimidade, é o que repugna. Portanto
só uma é ligitima ; e só uma discussão de principios
póde rescindir a duvida, tanto mais que escasseão os
exemplos estabelecendo tradição.

São numerosos os casos de syllepse que levão o verbo
a dirigir-se, na sua concordancia em numero e pessoa,
antes para uma expressão de sentido determinado, do
que para uma de sentido indeterminado. Tão longe vai
esta appetencia, que ha mesmo casos em que o sujeito
fica, por isso, supplantado pelo predicado V. § 483 :
Tudo erão armas). Ora, no caso vertente, do pronome
pessoal (vós, por exemplo), e dos seus affins quem ou o
que
, a expressão mais saliente, mais determinada é certamente
a primeira, pois que ella designa uma entidade que,
por visivel, deve, na imaginação prevalecer sobre as outras,
que são vagas (o homem, aquelle, o…). Portanto parece
concludente que quem, seguindo o exemplo do o que, vá
tomar ao pessoal anterior, como em segunda mão, o numero
e a pessoa, para transmittir um e outro ao verbo por elle
regido. Mas é necessario que, em tal caso, o pessoal antecedente
sáia enunciado anteriormente ao indefinito.

E’ notavel que, em circumstancias analogas, o P. Ant.
Vieira, autoridade suprema em purismo de dicção, usa
479constantemente da locução o que, fazendo sempre concordar
o relativo que com o sujeito do verbo anterior.

Ex. Christo disse : « Amai a vossos inimigos, porque eu
sou o que o digo. »

O espinheiro disse : « Não sou eu o que hei de deixar
as minhas raizes, senão vós as vossas. »

« E eu fui o que descompuz o governador de Sua Majestade,
e não o governador de Sua Majestade a mim ?
 »

Porém um folhetinista esperançoso escrevia ultimamente :
« Fui eu o que menos admirou-se do phenomeno. »
Effeito da grammatica philosophica.

Aliás a fórma patrocinada pelo P. Ant. Vieira póde
ser considerada como um archaismo procedido do latim,
onde ella se encontra typicamente representada na sublime
definição que Deos de si mesmo dá na Escriptura Sagrada :
« Sum qui sum : Eu sou o que sou. » Os francczes, porém,
levados pelas necessidades da sua syntaxe dizem : « Je suis
celui qui est. » Fica assim ao alvedrío de cada um escolher entre o
latinismo do P. Ant. Vieira, e o gallicismo de um folhetinista
approvado nos exames de preparatorios, porquanto
declarou espontaneamente ter banca de advogado.

575. Os vocabulos todo e tudo, como pronomes indefinidos,
differem tão sómente um do outro por ser o primeiro
instavel (toda, a, os, as), e o segundo estavel (tudo).

O primeiro é instavel por se referir constantemente a
um substantivo ou pronome anterior, ou, quando menos, a
um substantivo facilmente supprivel ; e esta é a razão de
sua variabilidade em genero e numero.

Ex. Como pesão tanto estes pedacinhos do mundo, que
todos se vão ao fundo, e nos levão a alma após si ! (P. Ant.
Vieira)

Uns para uma parte, outros para outra, todos estão
cansando-se em buscar o descanso, e
todos cansados de o não
achar
. (P. Ant. Vieira).

Sendo certo que todos hão de chegar á sepultura sem
nenhum remedio, só tu, por comer menos, chegarás á sepultura
mais tarde
. (P. Ant. Vieira). — (… todos os homens…).

O estavel tudo, pelo contrario, nem allude a um substantivo
anterior, nem mesmo o admitte colligado por
experimentação (tudo passa). e, se for, como os demais
estaveis, analyticamente resolvido em seus elementos, fica
constrangido, pela apparição de um substantivo, a convertesse,
em todo (toda a cousa passa).480

Ora, tanto em relação a um como ao outro destes vocabulos,
introduziu-se, por uma synalepha de perfeita
analogia com a que vem relatada no § 559, o mais clamoroso
solecismo. Porquanto, máo grado dos numerosos
exemplos que o reprovão nos classicos, a mão de mais de
um copista ou de um typographo descuidoso deu-lhe tão
frequente ingresso nas obras dos mestres, que, sob esses
fallazes auspicios, veiu a medrar entre os contemporaneos
como autorisado pela boa tradição, e pullula em todos os
escriptos.

Reduzindo-se a questão a uma illusão do ouvido, que
encaixa, uma na outra, syllabas successivas e de igual
sonoridade, será talvez mais consentaneo discutir o caso
sobre exemplos que lhe resumão as principaes feições, do
que ventilá-lo em exposição abstracta.

Será licito usar igualmente de uma ou outra das seguintes
formulas ? E, se não é licito, qual é dellas a correcta,
e porque ?

A outra cousa digna de notar é a amenissima vista que
daquelle mosteiro apparece, que
todos os que a vem, — ou —
todos que a vêm, confessão ser a mais deliciosa do mundo.
(Duarte Nunes de Leão).

No cavalgar á brida e á gineta, levou el rei D. Duarte
a vantagem
a todos os do seu tempo — ou — a todos do
seu tempo
. (Duarte Nunes de Leão).

E eu tambem o perdi, e nas circumstancias que el rei, o
reino e
todos os mais — ou — todos mais o haviamos mister.
(P. Ant. Vieira).

O rio Amazonas corre ameaçando estrago a tudo o que
— ou — tudo que se lhe põe diante. (D. Fr. Caetano
Brandão).

Vão assim os homens contribuindo uns aos outros, e todos
á memoria dos que lhes derão o ser, a que, depois de Deos,
somos mais obrigados que
a tudo o mais — ou — a tudo
mais
. (D. Franc. Man. de Mello).

Em todos estes exemplos, a primeira das formulas é a
unica correcta ; a segunda é mera imitação das neologias
que esmaltão as publicações da actualidade.

E, porque será aquella a unica correcta ?

Porque todo e tudo, como pronomes, isto é como vocabulos
enunciando de per si sós algum dos termos essenciaes,
quaes os que se relacionão com um verbo, não podem
ser restringidos. E não podem ser restringidos, porque,
exprimindo a universalidade, passarião pela restricção a ser
mera parte, o que repugna.481

Ora, no primeiro exemplo, todos ficaria restringido
pela proposição subordinada que a vem ; — no segundo, pelo
complemento indirecto do seu tempo ; — no terceiro, pelo
adjectivo indefinito mais (outros).

Do mesmo modo ficaria tudo, no quarto exemplo, restringido
pela proposição subordinada que se lhe põe
diante…
; — e emfim, no quinto, pelo já referido adjectivo
indefinito mais.

Logo, quem vêm a ser em tal caso os vocabulos todos
E tudo ?

Meros adjectivos indefinitos, por ampararem, como
simples apposições, o pronome que immediatamente lhes
vai no encalço. E a prova frisante de que não são ahi
pronomes, e sim meros adjectivos, está em que podem ser
dispensados sem transtorno maior dos pensamentos, o que
seria impossivel que se desse, se fossem elles os pronomes,
e se fossem as palavras pospostas, não se sabe já o que.

A outra cousa digna de notar é a amenissima vista que
daquelle mosteiro apparece, que
os que a vem, confessão ser
a mais deliciosa do mundo
.

No cavalgar á brida ou á gineta, levou el rei D. Duarte
a vantagem
aos do seu tempo.

E eu tambem o perdí, e nas circumstancias que el rei, o
reino e
os mais o haviamos mister.

O rio Amazonas corre ameaçando estrago ao que se lhe
põe diante
.

Vão assim os homens contribuindo uns aos outros, e todos
á memoria dos que lhes derão o ser, a que, depois de Deos,
somos mais obrigados que
ao mais.

Outrosim, reunindo o seguinte exemplo ambas as hypotheses
da dissertação, dahi sobresahe com mais evidencia
o acerto da conclusão : « Oh ! se todos [os] que fazem semelhantes
provimentos, fizessem este exame ! e se ao menos o
fizessem
os que os pretendem : e são providos ! » (P. Ant. Vieira).
— Como deixou o collector de ver que o demonstrativo —
os — que omittiu junto a todos, era tão indispensavel como
o que enunciou mais adiante ? porque, afinal, o sentido não
é que todos fazem provimentos.

Em abono a estas considerações, e como prova irrefragavel
de sua exactidão, acóde, com a mais notavel coincidencia,
um curioso idiotismo, que é pena ver, não só cahir
em desuso, senão tambem ser contrariado hoje por novidades
incongruentes como as que ahi procuramos debellar,
O P. Ant. Vieira disse, citando palavras de Christo :482

« Todos os que andais cansados (que sois todos), vinde
a mim, e eu vos alliviarei
. »

Em que consiste o idiotismo ? Em ser ahi o primeiro
todos um simples adjectivo indefinito, por formar a apposição
do pronome pessoal — vós — , cuja elisão é recommendada
pela indole da lingua (Vinde a mim [vós] todos…).
Porém, apresentando-se ahi o mesmo todos no inicio da
oração, por inversão de proposições, com todos os visos de
um pronome por seu isolamento, não lhe soffreu, ao P.
Ant. Vieira, que sob esta capciosa apparencia, o referido
vocabulo, vindo a topar com que, estabelecesse a presumpção
anti-logica de ser restringivel ; e, por isso, soccorrendo-se
ao emprego de uma palavra expletiva (o pronome
demonstrativo — os), determinou por ella, sem ambages
possiveis, o caracter adjectival de todos ( — Todos os que…).
O mesmo vai, aliás verificado no seguinte exemplo :

Para as religiosas é esta historia espelho ; para os religiosos
estimulo; e, para
todos os que professamos observancia
regular, ou reprehensão ou louvor
. (P. Ant. Vieira).

Observação. Não será talvez sem interesse para os
que se dedicão aos estudos philologicos, ver corroborada
esta theoria dos enxertos expletivos por uma applicação
que, com o caso vertente, não é sem analogia.

Os relativos allemães Welcher e der, pela diversidade
de classes em que cabem, e de officios a que acodem, não
têm, como os relativos portuguezes, e os do outras linguas,
a faculdade de tomar ao seu antecedente as feições da primeira
e da segunda pessoa do discurso : por si mesmos, são
sempre da terceira, quer do singular, quer do plural. Ora,
dando-se o caso que devão forçosamente alludir á primeira
ou á segunda pessoa, prega-se-lhes nas costas, para se lhes
conferir tal sentido, o pronome pessoal que terião de representar,
e dá-se-lhes assim a feição que lhes falta. Por
isso não dizem os Allemães : « Padre Nosso, que está no
céo
… » e sim : « Padre Nosso que tu estas no ceo…. »
(Vater Unser, der du bist in Himmel…).

E’ ainda por motivo analogo que, em francez, quando
o sujeito de uma proposição interrogativa é um substantivo
ou um pronome não pessoal, denuncia-se a interrogação
pela posposição pleonastica de il, elle, ils, elles, ao
verbo.

Ex. Votre pére est-il vivant ?Tous sont-ils morts ?

576. O antiquado vocabulo al, que apenas persiste
como expressão jurídica, e se resolve analyticamente em
outra cousa, deve ser tido por pronome indefinito estavel.483

Ex. Solte-se o preso, se por al não está detido.

Mas, se as junturas se deixão enxergar, porque não podia
al ser, é tão sem offensa da arte, que difficultosamente se divisa
nellas signal de cal
. (Fr. Luiz de Souza).

Preposições

577. O sentido das preposições é geralmente tão voluvel,
tão fugaz quando tomado em abstracto, isto é, isoladamente
das palavras entre que estabelece uma relação,
que em todas as linguas é considerada como parte integrante,
com o seu regime, de um complemento, posto que
a escolha que della se faz, seja determinada pela palavra
anterior ou regedora. Aliás este modo de encarar syntaxicamente
a preposição é sobejamente justificado pela circumstancia
de se prestar ella, nas diversas linguas, á mais
estreita união com o seu regime, por muitas e variadas
contracções, e de esquivar-se totalmente no adverbio.

Mas, por isso mesmo que as preposições escapão a uma
classificação systematica de suas relações, e dependem, como
se sóe dizer, do uso, o methodo analytico, em Grammatica,
tem, sobre o dogmatico, a innegavel vantagem de attrahir
e, por assim dizer, de concentrar a attenção sobre tão interessante
assumpto, sendo que, por este modo, a assiduidade
das observações suppre o que se nega a fornecer a
theoria.

Poderia ser, aliás, longa a lista dos exemplos por meio
dos quaes se demonstraria que, sem a mais leve alteração
de sentido, uma mesma palavra avoca livremente proposições
differentes ; porém, como mesmo assim ficaria a lição
sem conclusão pratica, tomar-se-hão as citações que se seguem,
como meras indicações do que convem fazer em
analyse a tal respeito.

Ex. Se me coube em sorte a pobreza, porque me não fará
rico o
contentar-me com ella ? (P. Ant. Vieira).

Os frades de cá não me contentarão, nem em pulpito,
nem em pratica
, sobre esta tormenta da terra que ora
passou
. (Gil Vicente).

Certo homem que ia de Jerusalem para Jerichó, foi, no
caminho, accommettido dos ladrões, que, não
contentes de o
roubar
, o ferirão em muitas partes. (P. J. B. de Castro).

O que governa a republica, e commette todo o governo aos
velhos, mostra ser inhabil ; o que o
fia dos moços, é leviano,
(P. Ant. Vieira).484

Se a Providencia Divina fiou e encarregou os principios
desta celestial conquista a um infante de Portugal, os fins
della, já tão facilitados, porque os não
fiara a outro. (P.
Ant. Vieira).

Se o soldado se vê morrer a fome, deixe-se morrer, e
vingue-se… Não faltará quem diga por elle
 : « Quantos mercenarios
arrebentão de fartos, e eu
morro de fome ! (P. Ant.
Vieira).

578. A preposição por allude geralmente á causa, e a
preposição para, ao fim. Entretanto os classicos usárão
frequentemente da primeira em lugar da segunda, o que
não é de lastimar que tenha cahido em desuso.

Ex. S. Pedro Damião, por fugir longe das côrtes, renunciou
a purpura
. (P. Ant. Vieira). — (… para fugir…).

Adverbios

Aqui, ahi, alli — cá, lá — acolá

579. Os adverbios de lugar aqui, ahi, alli têm, em
referencia ao espaço e á personalidade, o mesmo alcance
significativo como os demonstrativos este, esse, aquelle.

Ex. Comei, vós outros, pobres estrangeiros, e não vos
desconsoleis por vos verdes dessa maneira, porque
aqui estou
eu
. (Fernão Mendes Pinto).

El rei Luiz XI mandou dar ao homem aquelle rabão, dizendo :
« ahi tendes valor de mil cruzados, que é muito mais
que o do vosso cavallo
. (P. Man. Bernardes).

Quem lograr a dita de viver na ilha Fortunata, lograra
alli
formosos espectaculos. (P. Man. Consciencia).

Os adverbios ca e la, meros supplementares de aqui
e alli, costumão andar em correlação um com o outro, e
implicão frequentemente idéa de movimento.

Ex. O mesmo Deos se fez homem para trazer do céo á
terra o que
ca não havia, e levar da terra ao céo o que la
não ha. (P. Ant. Vieira).

Quantos ministros reaes, e quantos officiaes de justiça, de
fazenda, de guerra vos parece que havião de ser mandados
ca
para a extracção, segurança e remessa deste ouro e prata ?
(P. Ant. Vieira).485

O adverbio acolá é pela sua vez mero supplementar
de la ; mas quando entra em correlação é commummente
como aqui.

Ex. Se alguem visse desde um pôsto eminente todas as
mudanças que no mundo succedem em espaço de meia hora, que
admirado ficára de ver com que furia esta roda se revolve !

Veria
aqui prantos, acolá festas ; aqui banquetes, acolá
brigas ; …estes edificão, aquell’outros destroem… (P. Man.
Bernardes).

Onde, aonde, donde, até onde, para onde,
por onde

580. O adverbio onde, por implicar analyticamente a
preposição em, serve para enunciar uma relação isenta de
movimento.

Ex. Onde se frequenta muito o jogo, cedo faltará o
comer
. (P. Ant. Vieira). — (Cedo faltará o comer no lugar
em que…
).

Quanto a seus congeneres, formados, quer por contracção,
quer por colligação, o seu uso fica regulado pela
preposição que lhes anda annexa.

Ex. Senhor, aonde iremos, que vossa palavra, são palavras
de vida!
(João Franco Barreto).

Donde sahiu tanta variedade, senão de vós, Senhor ? (P.
Man. Bernardes).

Até onde alcançava a vista, tudo estava alagado.

Homem nescio, não sabes para onde vais, e oque levas ?
(P. Ant. Vieira).

Os rios que vêm de longe, sempre tomão a côr e o sabor
das terras
por onde passão. (P. Ant. Vieira).

Nota. O vulgarissimo adonde tem por defeito insanavel
o de reunir relações inconciliáveis (a e de), e portanto
torna-se tão inaceitavel em theoria como desprezivel
na pratica.

581. Tanto ao adverbio onde como ao adverbio quando,
em que o processo analytico encontra quasi sempre dous
termos associados por contracção, cabe o singular idiotismo
de fornecerem, como os pronomes de igual constituição, em
um dos mesmos termos, um sujeito ou um predicado, e no
outro, o complemento indirecto que os faz adverbios.486

Ex. Onde se vê a agua borbulhar da terra, é onde mais
serve
. (Fr. Luiz de Souza). — (o lugar — em que se vê a
agua borbulhar da terra
, — É o lugar — em que mais serve).

Quando Deos disse estas palavras a Josué, foi quando
elle estava com as armas vestidas para passar da banda dalém
do Jordão a conquistar a Terra de Promissão
. (P. Ant.
Vieira). — (a occasião — em que Deos disse estas palavras
a Josué
, — foi a occasião — em que elle estava…).

Nota. Não se confunda o adverbio tambem com o
comparativo adverbial tão bem. Este ultimo póde se converter
no comparativo de superioridade melhor. Ex. Na
China, não ha cidade nem villa a que se não possa ir e vir
de qualquer outra
tão bem por agua como por terra. (P. João
de Lucena). — (… melhor por agua do que por terra). —
tambem não se presta a nenhuma semelhante substituição.
Ex. tambem as pedras morrem. (P. Ant. Vieira). — (Não :
melhor as pedras morrem).

Conjuncções

Porque — por que

582. O que das publicações da actualidade se deixa
inferir, é que reina grande indecisão entre os escriptores
sobre quando se deve escrever porque ou por que. Parece,
portanto opportuno sujeitar o caso a uma regra especial,
embora já tenha sido ventilado nas considerações geiraes da
syntaxe.

Porque é adverbio ou conjuncção.

Ex. Porque não achava a pomba onde descansar ? porque
buscava o descanso onde o não havia. (P. Ant. Vieira).

E é adverbio ou conjuncção quando a decomposição
analytica avoca, junto a que, um substantivo ou pronome
não expresso (por que motivo não achava a pombapelo
motivo que
buscava…).

Ex. Sabeis porque vos querem mal vossos inimigos ? Ordinariamente
é
porque vêm em vós algum bem que elles quizerão
ter, e lhes falta
. (P. Ant. Vieira). — (Sabeisi por que
motivo
vos querem mal vossos inimigos ? Ordinariamente é por
isso que
vêm em vós algum bem…).487

Observação. Aliás tem esta distincção de porque em
adverbio e conjuncção um alcance de intuitiva utilidade na
sua applicação a outras linguas, porquanto a traducção
effectua-se por palavras bastante dessemelhantes.

Exemplo :

tableau Adverbio | Conjuncção
Port. | Porque… ? | porque
Lat. | Quare… ? | quia
Fran. | Pourquoi… ? | parce que
Ingl. | With… ? | because
Allem. | Warum… ? | weil
Russo | Potchemú… ? | Potomú tchtó
… | … | …

Em por que, o segundo vocabulo é sempre adjectivo
indefinito, como apposição de um substantivo que lhe vem
mediata ou immediatamente em seguida ; ou é pronome relativo,
com referencia a um substantivo anterior ; ou, emfim,
é pronome indefinito, com referencia a um pronome estavel.

Ex. Caso notavel é que, repartindo Jacob, na hora da
morte, a benção que tocava ou havia de tocar a cada um de
seus filhos, a do sceptro e corôa de Israel, a desse e collocasse
no quarto… Mas
, por que razão. (P. Ant. Vieira). — (Mas
por quaes e quantas razões ?).

A razão porque não achamos o descanso, é porque o
buscamos onde não está
. (P. Ant. Vieira). = a razão pela
qual…).

Isto por que todos trabalhão, hei de ensinar hoje o modo
com que se possa alcançar sem trabalho
. (P. Ant. Vieira). —
(Isto pelo que…).

583. Aliás, assim como os classicos usárão frequentemente
da proposição por em vez de para (V. § 578), assim
usárão elles não menos frequentemente da conjuncção porque
em lugar da locução conjunctiva para que.

Ex. Socrates diz : « Foge dos aduladores como de inimigos,
porque te não succeda algum infortunio dos que a
adulação traz sempre comsigo
. (P. Ant. Vieira). — (… para
que
te não succeda…).

Pois, que hão de fazer os reis ? a questão era para mais
vagar. Mas
, porque não fique indecisa, digo entretanto que,
um só meio acho aos reis para salvarem ambos estes inconvenientes
.
(P. Ant. Vieira). — (… Mas, para que não fique
indecisa
…).488

Porquanto — por quanto

584. Não se confunda a conjuncção porquanto com o
complemento indirecto por quanto. Aquella se resolve
sempre em visto como, visto que ou porque ; o segundo
admitte por accrescimo o indefinito tudo, ou se resolve, já
em adjectivo, já em pronome indefinito.

Ex. S. João, em pessoa sua, e de todos os verdadeiros
discipulos de Christo, diz assim
 : « Nisto conhecemos nós outros
que somos trasladados da morte espiritual á vida
, porquanto
amamos os irmãos. » (D. Fr. Bartholomeo dos Martyres). —
(… visto como, visto que, porque amamos os irmãos).

« Peço-te, por quanto comtigo valho, que tomes em boa
parte o que ácerca dellas dizer-te quero
. (Hist. de D. Manoel).
— (Peço-te, por tudo quanto comtigo valho…).

Por quanto vendes isso ?por quanto dinheiro Vendeste
tu a tua honra ?

Nem

585. Nem costuma substituir-se a sem quando esta
preposição, por vir repetida, teria de andar precedida da
conjuncção e.

Ex. Vêdes aquelle entrar e sahir sem quietação nem
socego ? (P. Ant. Vieira). — (… sem quietação e sem socego).

Os outros ladrões furtão debaixo de seu risco; estes, sem
temor nem perigo. (P. Ant. Vieira). — (… estes, sem temor e
sem
perigo).

Da analyse syntaxica

586. Assim como a analyse loxicologica é a classificação
das palavras pelas suas especies, assim é a analyse
syntaxica a classificação das mesmas palavras pelas suas
funcções.

Pela primeira declara-se apenas o que é a palavra ;
pela segunda declara-se o que ella faz no caso sobre que
versa a indagação analytica. A nomenclatura desta ultima
reduz-se assim á consignação concisa, junto a cada palavra,
do termo syntaxico que ella constitue.489

Todavia, para eliminar das tabellas algumas raras complicações
que as afeiarião, sem que dahi proviesse grande
utilidade na determinação rigorosa dos termos, assentou-se :

1.° Que toda a preposição solta ficaria indicada como
relação, por ser esta a expressão predominante de sua definição.
Porém, para ao mesmo tempo obstar a que tal
expressão seja havida como indicação de um termo, convem
que appareça encerrada entre parenthesis. Quando a preposição
vai presa pela contracção a outra palavra, não se
menciona, visto ser sempre lembrada pelo termo de complemento
indirecto, de que necessariamente faz ella parte
integrante.

2.° Que só se designaria pelo termo de ligação a
conjuncção, ou seu equivalente, a locução conjunctiva. Nas
palavras de funcção complexa, o outro termo é o que deve
sempre prevalecer. E, se, além disso, vão até a tres os
termos comprehendidos numa só palavra, designa-se tão
sómente o que é mais ostensivel.

Ex. A quem não tem bens, ninguem lhe quer mal.

A decomposição analytica de quem adduz ahi nelle
tres termos :

Ninguem lhe quer mal Áquelle — que não tem bens.

Pois, por áquelle é complemento indirecto ; por que, ligação,
e ao mesmo tempo sujeito do facto tem. Porém,
sendo destas tres funcções a de complemento indirecto a
mais ostensivel pela assistencia da preposição (a quem…),
esta é tambem a que deve prevalecer na declaração analytica.

3.° Emfim as interjeições, quer proprias, quer improprias,
são designadas pelo nome da figura de syntaxe a
que pertencem (exclamação).

Por este modo fica eliminada toda e qualquer causa de
confusão entre a analyse syntaxica e a lexicologica, e cada
um dos processos desvenda com precisão e rapidez o que
de cada palavra cumpre saber para ajuizar se o seu emprego
está conforme ou não com as leis da Grammatica :490

Especimen
de analyse syntaxica

(V. o argumento da analyse lexicologica)

tableau Salomão, | Suj. / destes | App. contr.
o | App. / dous | App.
mais | C. ind. impl. / extremos, | C. ind.
sabio | App. / quem | Suj.
de | (Rel.) / não | O. ind. impl.
todos | App. / imaginará | Facto
os | C. ind. / que | Lig.
que | Suj. / se | C. dir.
nascérão | Facto / compara | Facto
faz | Facto / o | App
uma | App. / dia | Suj.
comparação | C. dir. / com | (Rei.)
tão | C. ind. impl. / a | App.
superior | App. / noite, | C. ind.
ao | App. contracta / a | App.
nosso | App. / luz | Suj.
juizo, | C. ind. / com | (Rei.)
que | Lig. / as | App.
s6 | C. ind. impl. / trevas, | C. ind.
podia | Facto / a | App.
caber | C. dir. / alegria | Suj.
no | App. contr. / com | (Rei.)
seu. | C. ind. / a | App.
Compara | Facto / tristeza, | C. ind.
o | App. / a | App.
dia | C. dir. / felicidade | Suj.
da | App. contr. / com | (Rei.)
morte | C. ind. / a | App.
com | (Rel.) / desgraça, | C. ind.
o | C. ind. / a | App.
do | App. contr. / cousa | Suj.
nascimento ; | C. ind. / mais | C. ind. impl
e, | Lig. / desejada | App.
na | App. contr. / com | (Rei.)
differença | C. ind. / a | App.
491

tableau mais | C. ind. impl. / que | C. dir.
temida, | App. / tem | Facto
e, | Lig. / o | App.
com | (Rel.) / dia | Suj.
a | App. / da | App. contr.
mais | C. ind. impl. / morte | C. ind.
terrivel | App. / para | (Rel.)
a | App. / ser | C. ind.
mais | C. ind. impl. / melhor | Pred.
amavél ? | App. / que | Lig.
Sendo, | C. ind. absol. / O | App.
porém, | Lig. / dia | Suj.
tão | C. ind. impl. / do | App. contr.
prenhe | Prcd. / nascimento ? | C. ind.
de | (Rel.) / O | App.
admiração | C. ind. / dia | Suj.
a | App. / do | App. contr.
proposta | Suj. / nascimento | C. ind.
mais | C. ind. impl. / não | C. ind. impl.
digna | Pred. / é | Facto
de | (Rel.) / o | App.
espanto | C. ind. / mais | C. ind. impl.
é | Facto / alegre, | Pred.
a | App. / e | Lig.
sentença. | Suj. / o | Suj.
Resolve | Facto / da | App. contr.
Salomão | Suj. / morte, | C. ind.
que | Lig. / o | App.
melhor | Pred. / mais | C. ind. impl.
é | Facto / triste ? | Pred.
o | App. / O | Suj.
dia | Suj. / do | App. contr.
da | App. contr. / nascimento | C. ind.
morte | C. ind. / não | C. ind. impl.
que | Lig. / é | Facto
o | App. / o | Pred.
dia | Suj. / que | Suj.
do | App. contr. / povôa | Facto
nascimento. | C. ind. / o | App.
E, | Lig. / mundo ; | C. dir.
492

tableau o | Suj. / vida, | o. ind.
da | App. contr. / e | Lig.
morte, | C.ind. / o | App.
o | Pred. / nascimento | Suj.
que | Suj. / não | C. ind. impl.
abre | Facto / é | Facto
e | Lig. / o | Pred.
enche | Facto / que, | Suj.
as | App. / sendo | C. ind. absol.
sepulturas ? | C. dir. / ella | Suj.
o | Suj. / mortal, | Pred.
do | App. contr. / a | Ç. dir.
nascimento, | Ç. ind. / immortalisa ? | Facto
o | Pred. / Que | Pred.
que | Suj. / é | Facto
veste | Facto / o | App.
de | (Rel.) / nascer | Suj.
gala | C. ind. / senão | Lig.
as | App. / o | App.
famílias | C. dir. / remédio | Pred.
e | Lig. / do | App. contr.
as | App. / não | C. ind. impl.
còrtes ; | C. dir. / ser ? | C. ind.
o | Suj. / e, | Lig.
da | App. contr. / que | Pred.
morte, | C.ind. / seria | Facto
o | Pred. / do | App. contr.
que | Suj. / mundo, | C. ind.
as | C. dir. / se, | Lig.
cobre | Facto / em lugar (de) | (Rel.)
de | (Rel.) / doa | App. contr.
luto ? | C. ind. / mortos, | C. ind.
A | App. / não | C. ind. impl.
morte | Suj. / nascérão | Facto
não | C. ind. impl. / outroa | Suj.
é | Facto / que | Suj.
o | App. / lhes | C. ind. impl.
maior | App. / succedessem ? | Facto
inimigo | Pred. / Até | C. ind. impl.
da | App. contr. / em | (Rel.)
493

tableau Deoe | C. ind. / quaes | C. dir.
necessita | Facto / todos | App.
de | (Rel.) / funesta, | Facto
nascimento | C. ind. / consume | Facto
a | App. / e | Lig.
mesma | App. / acaba | Facto
Trindade, | Suj. / o | App.
porque, | Lig. / dia | Suj.
sendo | C. ind. absol. / da | App. contr.
| C. ind. impl. / morte, | C. ind.
a | App. / que | App.
pessoa | Suj. / motivo | C. dir.
do | App. contr. / teve | Facto
Padre | C. ind. / o | App.
innascivel, | Pred. / juizo | Suj.
Deos, | Suj. / de | (Rel.)
sem | (Rel.) / Salomão | C. ind.
nascimento, | C. ind. / para | (Rel.)
seria | Facto / antepôr | C. ind.
um, | Pred. / o | App.
mas | Lig. / dia | C. dir.
não | C. ind. impl. / da | App. contr.
seria | Facto / morte | C. ind.
trino. | Pred. / ao | App. contr.
Pois, | Lig. / dia | C. ind.
se | Lig. / do | App. contr.
tantos | Pred. / nascimento ? | C.ind.
são | Facto / Entendeu- | Facto
os | App. / o | C. dir.
bens | Suj. / melhor | C. ind. impl.
e | Lig. / que | Lig.
felicidades | Suj. / todos, | Suj.
que | C. dir. / o | App.
traz | Facto / maior | App.
comsigo | C. ind. / interprete | Suj.
o | App. / das | App. contr.
dia | Suj. / Escripiuras. | C. ind.
do | App. contr. / e’ | Facto
nascimento, | C. ind. / melhor | Pred.
os | App. / diz | Facto
494

tableau S. Jeronymo, | Suj. / e | Lig.
o | App. / Dimas, | C. ind.
dia | Suj. / se | C. dir.
da | App. contr. / levantasse | Facto
morte | C. ind. / figura | Suj.
que | Lig. / certa | App.
o | App. / ao | C. ind.
dia | Suj. / que | Pred.
do | App. contr. / cada um | Suj.
nascimento, | C. ind. / havia | Facto
porque, | Lig. / de | [Facto]
no | App. contr. / ser | [Facto]
dia | C. ind. / Em | (Rel.)
do | App. contr. / sua | App.
nascimento, | C. ind. / vida, | C. ind.
ninguem | Suj. / a | Suj.
póde | Facto / do | App. contr.
saber | C. dir. / primeiro | C. ind.
o | C. dir. / diria | Facto
para | (Rel.) / que | Lig.
que | C. ind. / havia | Facto
nasce, | Facto / de | [Facto]
e | Lig. / ser | [Facto]
, | C. ind. impl. / apostolo, | Pred.
no | App. contr. / e | Lig.
dia | C. ind. / a | Suj.
da | App. contr. / do | App. contr.
morte, | C. ind. / segundo, | C. ind.
se | C. dir. / que | Lig.
sabe | Facto / havia | Facto
o | App. / de | [Facto]
fim | Suj. / ser | [Facto]
para | (Rel.) / ladrão ; | Pred.
que | C. ind. / e | Lig.
nasceu. | Facto / assim | C. ind. impl.
Se, | Lig. / forão | Facto
no | App. contr. / na | App. contr.
nascimento | C. ind. / vida. | C. ind.
de | (Rel.) / Mas | Lig.
Judas | C. ind. / o | App.
495

tableau verdadeiro | App. / e | Lig.
juizo | Suj. / esse | App.
do | App. contr. / dia | Suj.
fim | C. ind. / declarou, | Facto
para | (Rel.) / com | (Rel.)
que | C.ind. / assombro | C. ind.
cada um | Suj. / do | App. contr.
delles | C. ind. / mundo, | C. ind.
nascera, | Facto / que | Lig.
ainda | C. ind. impl. / Judas | Suj.
estava | Facto / nascera | Facto
incerto. | Pred. / para | (Rel.)
Veiu | Facto / morrer | C. ind.
finalmente | C. ind. impl. / enforcado | Pred.
o | App. / como | Lig.
dia | Suj. / ladrão, | Pred.
da | App. contr. / e | Lig.
morte, | C. ind. / Dimas, | Suj.
que | Suj. / para | (Rel.)
foi | Facto / confessar | C. ind.
o | App. / e | Lig.
mesmo | Pred. / prigar | C. ind.
em | (Rel.) / a | (Rel.)
que | C. ind. / Christo | C. ind. impr.
ambos | Suj. / como | Lig.
acabárão, | Facto / apostolo. | Pred.

Observação. Para que tal exercicio dê todo o fructo
de que é susceptivel, cumpre que a indicação de cada
termo seja vocalmente justificada pela demonstração, usando-se
do seguinte, ou de outro equivalente theor :

Tal palavra

1.° E’ facto porque é um verbo em um modo que
não é o infinitivo ;

2.° E’ sujeito porque é a palavra que rege a tal verbo
em numero e pessoa ;

3.° E’ complemento directo porque inteira o sentido
de tal verbo, sem preposição, quer expressa, quer occulta ;496

4.° E’ complemento indirecto por ser o regime de
tal preposição (expressa ou occulta), — ou é complemento indirecto
implicito
por ser um adverbio, — ou é complemento
indirecto absoluto
por não ter referencia a um termo especial
da proposição, e sim á mesma proposição tomada no
seu complexo, — ou é complemento indirecto improprio porque
suppre a um complemento directo, o que se prova pela possibilidade
do convertê-lo em sujeito do mesmo verbo apassivado
(… para ser christo por elle confessado e prégado…) ;

5.° E’ predicado porque, andando em connexão com
um verbo de estado, concorda ou procura concordar com o
sujeito da proposição, a não ser que o sujeito falte por ser
o verbo impessoal ;

6.° E’ apposição por concordar, ou appetecer a concordancia
em genero e numero com tal palavra ;

7.° E’ ligação por ser uma conjuncção ou locução
conjunctiva, ou ainda por abranger em si, ostensivel ou
disfarçadamente, que ou se.497

Terceira parte
Orthographia

Considerações preliminares

587. Orthographia é a parte da Grammatica que trata
do modo mais adequado de escrever as palavras. Ella
versa, portanto, sobre as letras e signaes orthographicos.

588. As letras são traços convencionaes que, já de per
si mesmos, já por agrupamentos, representão os diversos
sons articulados da falla. As letras de que se usa em portuguez
são vinte e seis : a b c d e f g h i j k l m n o p q
r s t u v w x y z
.

589. Os signaes orthographicos são traços supplementares
destinados a subsidiar, a bem da elocução ou do
sentido, o que de per si mesmas não podem indicar as
letras. Reduzem-se em portuguez a cinco : os accentos, o
til, a cedilha, a risca de união
e o apostropho.

Alguns lhes accrescentão, á imitação do francez, a
dieresis
 ; porém, não se verificando a sua necessidade, melhor
é eliminá-la.

590. Nas linguas que, como a portugueza, são immediatamente
derivadas do latim, a primeira e mais remota
reproducção graphica das palavras ficou naturalmente subordinada
ao principio que só era nellas possivel de transformação,
o que o idioma novo phoneticamente alterava.
Pois, que motivo houvera para não se conservarem na sua
integridade syllabas soando tão identicamente na nova
como na antiga falla ? E assim é que, por se escrever no
latim homo, mulier, escreveu-se em portuguez homem,
mulher
. Foi pelo mesmo motivo ainda, isto é, porque as
498seguintes palavras de origem grega se escrevião em latim
philosophus, ethiopicus, embora se pronunciassem filosofus,
etiopicus
, que passárão a escrever-se tambem em
portuguez philosopho, ethiopico.

O systema orthographico da lingua portugueza apparece
assim na sua origem como baseado em uma transacção
entre duas tendencias divergentes : a da tradição, que procura
resalvar a filiação das palavras pela manutenção do
elemento etymologico ; e a da phonicidade, que labuta, a
bem da leitura e da escripta, pela reducção ao emprego das
letras ao que estrictamente requer a recta elocução.

Não deixa, a este proposito, de causar reparo que o
idioma mais directamente filiado ao latim, o italiano, reformando-se
em uma epoca comparavelmente pouco remota,
rompesse de todo com a tradição, e adoptasse resolutamente
o systema puramente phonetico, escrevendo, por exemplo :
homem, uomo, mulher moglie, philosopho filosofo, ethiopico
etiopico…

591. Ora, sendo a orthographia portugueza o resultado
de um compromisso tão latamente concebido na sua
formula primaria, não é de admirar que se prestasse na
applicação, como aliás succedeu com todos os mais idiomas
de igual procedencia, a discordancias summamente arbitrarias
sobre o que convinha deixar á etymologia, e o que se
lhe devia tirar. Os tempos corrêrão sem que, nem uma
epoca ou escola, nem uma corporação ou notabilidade litteraria
conseguisse deter o movimento oscillatorio entre as
duas tendencias oppostas, pela organisação de um padrão
orthographico definitivo ; de sorte que, neste particular,
reina ainda hoje, em relação, não a centenas, e sim a milhares
de palavras, a mais desanimadora anarchia. Pois, se
as variantes que a cada passo occorrem, não envolvem precisamente
um desmerecimento litterario, por ser incontestavel
a supremacia que exerce o fundo sohre a forma, nem
por isso deixa de este senão amesquinhar a lingua, tirando-lhe
os foros de madura, que a todos os mais titulos tem ;
desautorando-a aos olhos da infancia, que não sabe a que
se ater ; e emfim abrindo largamente, a favor da ignorancia,
da desidia, da presumpção, neste primeiro de todos
os estudos, a porta dos pretextos, que e por onde passão
os abusos.

Entretanto não falta quem pretenda que disso mesmo
deve-se ufanar a lingua como de um precalço invejável !
Com effeito.

Estas considerações levão involuntariamente o espirito
para uma eventualidade que não póde deixar de verificar-se
499com frequencia, quando se attende ao numero de casos
em que a lei prescreve, como condição a uma candidatura
ou simplesmente a um accesso a cursos superiores, a exhibição
do provas de capacidade, entre as quaes não constitue
naturalmente um dos menos essenciaes requisitos o de uma
boa orthographia. Se os tres membros conspicuos da mesa
examinadora que tem de conhecer do caso, estejão por ventura
mais ou menos radicalmente divergindo um do outro
em materia orthographica (e a supposição contraria seria
provavelmente uma temeridade) ; se, por exemplo, o primeiro
quer que se escreva hum em vez de um, porque assim se
lê nos bilhetes do Thesouro, repartição competente, em
bellas letras ; se o segundo quer que se escreva cathecismo
em vez de catecismo, porque assim era intitulado, a despeito
da etymologia, o livrinho em que aprendeu a doutrina
christãa ; se o terceiro quer que se escreva caza em
vez de casa, porque assim o têm nas suas lanternas os
botequins do bom gosto ; se emfim o proprio examinando
allega, para escrever he em vez de É, que assim o queria
o seu mestre, luzeiro em dogmatica grammatical… em que
virá a redundar tudo isso ? Em um retrocesso grotesco aos
tempos da Torre de Babel. Ora a questão não é de retroceder,
e sim de passar avante, e de sahir da confusão.

592. Em virtude do principio por que se constituiu a
orthographia portugueza, ella assenta em duas bases bem
distinctas : uma para a parte immutavel das palavras, outra
para a sua parte mutavel. A primeira tem a sua sede na
lexicographia ; a segunda na grammatica. A linguagem
escripta obedece assim á dous codigos, que tão impossivel
é reunir como inverter, porque cada um tira a sua razão
de ser de causas diversas.

As seis especies de palavras variaveis que registra a
lexicologia, apresentão á observação esta particularidade
bastante attendivel, de serem relativamente poucas as terminações
que caracterisão primordialmente cada espeeie.
Assim é que todos os verbos acabão em ar, er, ir, or ; o
que todos os participios, que delles se derivão, acabão
tambem, salvas poucas excepções, em ado, ido, ido, osto.
E’ de notar mais que, mesmo nos participios que fazem
excepções, a desinencia propriamente variavel é exactamente
a mesma como nos participios regularmente formados
(o, a, os, as). os substantivos, artigos, adjectivos e
pronomes têm geralmente uns com os outros, não só grandes
analogias de terminação, senão tambem, na mór parte dos
casos, identidade de inflexões. A grammatica, portanto,
encontra já na lexicologia o natural ensejo de determinar
500quanto lhe compete em orthographia. Apenas incumbe-lhe,
nesta terceira parte, a conveniencia de expender os motivos
por que as formas nella adoptadas forão julgadas preferiveis
ás que lhe oppõem outros tratados ; pois que, neste
particular tambem, não poucas são as divergencias.

Ora, onde finda a competencia da grammatica, ahi começa
a da lexicographia. Colligindo uma por uma, sob
sua forma primordial, todas as palavras da lingua, e coordenando-as
por ordem alphabetica, porque qualquer outro
systema de generalisação lhe fallece, o lexicographo designa-lhes
summariamente a especie e classe, de conformidade
com as funcções syntaxicas que são chamadas a
exercer, e trata de justificar, de um lado pela pronunciação,
e do outro pela etymologia, a feição graphica que lhes assigna,
para que todos lh’a aceitem como a unica legitima.
Completa elle a sua tarefa, indicando as variadas accepções
que por ventura cáibão ás palavras, assim como as diversas
preposições que cada accepção avoca, e emfim remata utilmente
a sua obra, se nella introduz os idiotismos consagrados
pelo uso.

Donde vem, portanto, que, não faltando á lingua portugueza,
nem diccionarios, nem grammaticas, a sua orthographia
esteja ainda em tal desamparo ? Porque o que se
deve commetter, em proveito de todos, a uma unica vontade,
nunca se resolve, quando fica entregue ao arbitrio
das individualidades.

Ha cerca de tres seculos, andavão os Francezes desgarrados
a tal respeito nas mesmas, senão em peiores condições.
Foi a Academia Franceza incumbida de elaborar
um diccionãrio normal, que o governo adoptou ; e em breve,
sob o influxo desta organisação definitiva, a que aliás adherírão
patrioticamente as mais altas intelligencias, veiu o
idioma daquella nação a assumir a imponente preponderancia
que exerceu e ainda exerce no mundo das idéas,
que é afinal donde dimana a civilisação.

Este é um exemplo que, sem risco de comprometter-se,
podem seguir os povos de lingua portugueza ; tanto mais
que a experiencia que o sanccionou, não abre espaço a
outra combinação mais azada. Attribua a autoridade a
cujo regimen são confiados os interesses da instrucção publica,
os foros do normal a algum dos diccionarios existentes ;
decrete que por elle sejão impressos todos os compendios
admissiveis nos estabelecimentos escolares do primeiro
e do segundo gráo, e em poucos annos estabelecer-se-ha
sem sobresalto uma uniformidade urgentemente reclamada
pelo desenvolvimento dos estudos. Pois parece até ironico
que os aspirantes a uma academia, por exemplo, tenhão
501do escrever com bastante correcção o latim, o francez e o
inglez, e estejão, em portuguez, ao beneficio da mesma tolerancia
que faz com que sáião tão exquisitas as participações
officiaes dos subdelegados da roça « ao sr. Dr. xefe
de poliçia
. »

Pois grammaticos ha que ensinão que, em virtude da
orthographia de uso, cada um escreve correctamente escrevendo
como bem lhe apraz.

E, como, sem algum impulso, nada se fará, se a autoridade
acha que nenhum dos diccionarios existentes lhe
merece approvação, commetta a obra a quem lh’a possa
fazer ao sabor della ; pois não deve ser esta uma empresa
que lhe dê cuidado, neste tempo que corre, á vista da
phalange sempre crescente dos benemeritos da instrucção
publica, que a solicitude dos governos recommenda, nos
fastos honorificos da nação, ao reconhecimento e admiração
dos povos. Tantos commendadores e barões ! Cada qual
deve estar no caso de servir, e até para muito mais.

Signaes orthographicos

Dos accentos

593. Os acentos são só dous em portuguez : o agudo
(´) e o circumflexo (^). Um terceiro, o grave (ˋ), adduzido
por alguns grammaticos, á imitação do francez, torna-se
escusado, por ser sempre supprivel pelo circumflexo.

594. O emprego dos accentos, bem como o dos mais
signaes orthographicos, é geralmente restricto aos unicos
casos em que servem de meio de elucidação. Fóra dahi,
devem ser eliminados como afeando a impressão, e difficultando
a escripta sem utilidade. Todavia, encontrando-se
um accento numa palavra da qual se formão outras por
augmento ou por incremento, é de regra que tambem
nestas permaneça o accento : assim em dispor do por, em
sómente de só. Porém não é licito dar mais de um accento
a qualquer palavra.

595. O accento agudo tem idoneidade para se sobrepor
a todas as vogaes, com excepção do y, que nunca recebe
signal orthographico algum. O seu alcance de indicação é
triplice, pois serve : 1.°, já como signal prosodico ; 2.°, já
como signal phonetico ; 3.°, já como signal contractivo.

1.° Como signal prosodico, o accento agudo tem de
502tomar saliente a syllaba tonica ou predominante de uma
palavra :

A) Quando, sendo menos usada do que outra que se
escreve com as mesmas letras, convem discriminar-lhes
assim a differença de sentido pela differença de pronunciação.
Por isso escreve-se publico, varias… dos verbos publicar,
variar
, para obviar a uma confusão dos mesmos
vocabulos com os adjectivos publico, varias…, que mais frequentemente
occorrem ; e era com o sentido de epoca, para
discriminar este substantivo da forma era do verbo ser ; etc.

B) Quando, não sendo as mesmas palavras de uso muito
vulgar, a tonica vem nellas a recahir sobre a antepenultima
syllaba : assim em cáfila, lépido, tímido, sôfrego, púcaro

C) Quando, sendo as mesmas palavras substantivos ou
adjectivos, a tonica recahe na vogal terminativa : assim em
pá, cará ; — pé, rapé ; — quí, sirí ; — dó, cipó ; — nú, lundú

2.° Como signal phonetico, o accento agudo discrimina,
nas palavras susceptiveis da tonica, as em que a
identidade de letras não corresponde a uma identidade de
pronuncia, caso que se verifica só com as vogaes e e o.
O accento agudo confere-lhes o som qualificado de aberto
que se nota em cré, lé ; — cór, fóra…, por opposição ao
que, qualificado de fechado, se nota em crê, lê (dos verbos
crer e ler) ; — côr, fôra…, e se marca pelo accento circumflexo.

3.° Como signal contractivo o accento agudo accusa
a fusão de duas vogaes iguaes em uma só, no feminino, do
artigo definito e do pronome demonstrativo a, as (por a a,
a as), e
ainda todas as vezes que os vocabulos aquelle, a,
es, as e aquillo
se achão sob a regencia da preposição a
(áquelle, áquella, áquelles, áquellas, — áquillo
).

E’ por motivo analogo que o mesmo accento se sobrepõe,
nos verbos regulares da segunda e da terceira conjugação,
á vogal i quando, nas mesmas pessoas da primeira
conjugação, corresponde-lhe um diphthongo :

tableau 1.ª Conj. | 2.ª Conj. | 3.ª Conj.
Amais | Punis (puniis).
Amei | Rendí (rendii) | Puní (punii).
Amai | Puní (punii).

Emfim, por outra especie de contracção, apenas fundada
no uso, o accento agudo recorda ainda a suppressão do i
em substantivos como idéa, assembléa…, que se escreverão,
503e ainda por alguns se escrevem, ideia, assembleia… Porém
a solução definitiva deste ultimo caso é da alçada da lexicographia.

596. O accento circumflexo só se sobrepõe ás vogaes
e e o, ou como signal meramente phonetico, assim que
acima se disse (crê, lê, — côr, fôra), ou como sendo, além
disso, contractivo, caso que se verifica nos vocabulos da
terceira pessoa do plural dêm, lêm, têm, vêm (dos verbos
dar, ler, ter, ver e vir), que, por inducção, terião de escrever-se
deem, leem, teem, veem.

597. Mas é mórmente na sua applicação ás conjugações
que os accentos merecem particular attenção, pela
presteza e propriedade com que servem a diversincar
tempos ou pessoas que a identidade de terminações faria
frequentemente confundir (V. a tabella synoptica das inflexões
dos verbos regulares).

Assim é que a ausencia de accento nas terminações

tableau amos, | emos, | imos,

as denuncía como pertencentes ao primeiro tempo do indicativo,
ao passo que a assistencia de um accento as colloca
no terceiro :

tableau ámos, | êmos, | ímos.

Assim é igualmente que aos tres tempos do terminação
ra (o quinto ao indicativo, o terceiro do condicional, e o
terceiro do sujunctivo) adscreve-se um accento em todo o
seu desenvolvimento, para obstar a uma confusão dos
mesmos tempos com o setimo do indicativo (futuro), o
qual, pela sua parte, accentua-se na segunda e terceira
pessoa do singular, por ahi recahir a tonica na ultima
syllaba.

Emfim o accento que se nota nas seguintes pessoas do
verbo dar : dás, dá, — déste, déstes, — désse, désses, — tolhe
a possibilidade de as confundir com os vocabulos das, da,
— deste, destes, — desse desses
, artigos, adjectivos ou pronomes
contractos.

Do til

598. A letra n tem duas sonoridades bem distinctas,
conforme, na mesma syllaba, vai anteposta ou posposta a
uma vogal : no primeiro caso tem um som liquido (na-ta,
Nos-sa) ; no segundo, um nasal (an-ta, son-sa).

Os latinos não parecem ter attribuido uma sonoridade
504nasal senão as suas terminações am (nautam), em (laborem),
im (sitim) e um (templum). Ao menos é quanto se
deixa deduzir de sua prosódia.

Fosse, porém, como fosse, tendo a sonoridade nasal
passado a affectar tambem em portuguez as syllabas terminadas
por n, os pristinos escriptores do idioma novo vierão
a topar em alguns casos com uma difficuldade que nenhum
dos signaes graphicos do latim se prestava a resolver.
Estes casos erão todos os em que, a uma syllaba nasal,
succedia immediatamente uma vogal. Tendo, por exemplo,
do escrever lãa e cão (em latim lana, canis), tudo quanto
se lhes offerecia na lingua originaria para reduzir estas
palavras á pronunciação portugueza, era lana e cano. Ora
é obvio que um tal conjuncto de letras, antes se prestava
a ser lido de conformidade com a pronunciação latina la-na,
ca-no
, do que com a portugueza lan-a, can-o. Que havia,
portanto, a fazer ? Supprimir nestas occurrencias o malfadado
n, mas recordá-lo de algum modo por amor da etymologia.
Foi o que se fez pela introducção do til (~)
entre os signaes orthographicos.

O til é assim simplesmente um traço graphico destinado
a rememorar a eliminação de um n nasal collocado
entre duas vogaes, porém pertencendo, por isso mesmo
que é nasal, não á syllaba posterior, e sim á syllaba anterior
(lan-a, can-o).

Dahi decorre que o mesmo signal nunca deve andar
sobreposto á ultima vogal, o sim á anterior (-a, -o) ;
que a suppressão da ultima vogal, que, por mal pensada
sovinaria, alguns se permittem quando occorrem dous a
(lã, vã, chrístã), é de todo o ponto inconveniente, visto
que destróe o complexo de syllabas que motivou a adopção
do til ; emfim que, pela approximação fortuita das duas
vogaes, de duas syllabas formou-se uma só, caracterisada,
ou por um diphthongo (lãa, cães), ou por um triphthongo
(quão, peões).

599. Da mesma exposição deduz-se a verificação do
acerto com que o til intervem em tres pessoas do 1.° tempo
do indicativo, e em uma do imperativo do verbo por ; porquanto
este verbo, derivado ao latino ponere, tivera de
conservar, pelas inflexões naturaes de sua conjugação, o n
primitivo, porém tornado nasal em portuguez, nas pessoas :
tu pões, elle põe, elles põem, — põe (tu), — que, sem o til,
serião necessariamente : tu pon-es, elle pon-e, elles pon-em,
— pon-e (tu
).

600. Alguns, que escrevem sem accento, nos verbo
regulares, as terceiras pessoas do plural do 3.° e do 5.°
505tempo do indicativo, do 3.° do condicional, o do 3.° do
subjunctivo

(amarão, — renderão, — punirão),

vírão-se levados, no intuito de discriminar estas formas da
que lhe corresponde no 7.° tempo do indicativo (futuro), a
transferir o til sobre a ultima vogal, para por este meio
abrir espaço á introducção de um accento sobre a vogal
anterior, e designar assim o futuro

(amaráõ, — renderáõ, — puniráõ).

Porém, além de ser contra os estylos das linguas modernas
cumular dous signaes orthographicos no mesmo
ponto ou syllaba, como ahi é o caso, pela atrapalhação
que, da adopção lata deste principio, resultaria para a arte
typographica, parece mais azado collocar os accentos, como
signaes de distincção, sobre os passados, porque previnem
em tempo que ahi se acha a tonica

(amárão, — rendêrão, — punírão),

e deixar a voz escorregar, no futuro, até á ultima syllaba

(amarão, — renderão, — punirão).

Tanto mais que por este modo obvia-se a uma dualidade
de formas que não deixa do apresentar alguns inconvenientes.
Pois os mesmos que transpõem indevidamente
o til no futuro dos verbos regulares

(amaráõ, — renderáõ, — puniráõ),

deixão-no na posse patriarchal do lugar que lhe compete
quando lhes occorre um verbo irregular

(terão, — haverão, — serão, — estarão, — dirão, —
farão, — porão, — trarão, etc.),

visto ser impossivel uma confusão destas formas com as
que os mesmos verbos ostentão nos passados

(tiverão, — houverão, — fôrão, — estiverão, — disserão, —
fizerão, — puzerão, — trouxerão, etc.).

Ora quem não está afeito ás lides do ensino, mal póde
imaginar quantos embaraços a cada passo surgem de taes
desconchavos, pela difficuldade com que chega um principiante
a comprehendor, e, depois de ter comprehendido, a
se lembrar que, por escrever-se amaráõ, não só não é necessario,
como, até torna-se inconveniente ecrever teráõ,
haveráõ, seráõ, estaráõ
, etc.506

601. Outros (e estes são talvez os mais numerosos),
no mesmo intuito de discriminação, adoptão am para todas
as terminações verbaes não tonicas, e ão para as tonicas,
donde resulta que escrevem

amam amavam, amaram ;
rendiam, renderam, — rendam ;
puniam, — puniram, — punam ;

mas, no futuro, de concordancia comnosco,

amarão, | renderão, | punirão.

E, além disso, hão, são, estão, dão, vão, etc. ; não, porém,
ham, sam, estam, dam, vam, etc.

Este systema, se bem que justificavel por mais de um
lado, apresenta todavia menos uniformidade do que o escolhido
para servir de norma nesta obra, visto que carece
da interferencia de duas formas differentes para a representação
de um só e mesmo som (am, ao), o que causa
alguma estranheza.

Debalde se allega que a differença de tonicidade sufficientemente
motiva a divergencia. Se o argumento procedesse,
não deixaria de haver tambem opportunidade de
applicá-lo aos substantivos em que a tonica não recahe
sobre a terminação ão, o que faria com que, em vez de
órgão, órphão, sótão… se devesse escrever orgam, orpham,
sotam

Da cedilha

602. A cedilha ( ̧) confere ao c, ante as vogaes a, o,
u, o som sibilante que lhe é proprio ante e, i ; assim em
lança, lenço, doçura. O seu emprego é de tal modo restricto
á subsequencia das tres mencionadas vogaes, que
escrever reçebi ou reçibo, como faz mais de um capitalista,
é incorrer em erro crasso.

A opportunidade da adopção deste signal explica-se
pela preoccupação de que andavão possuidos os mais antigos
escriptores da lingua, de resguardar o mais possivel
o elemento etymologico, pela conservação, nos derivados,
das letras dos primitivos. Assim lança, e não lansa, por
ser lancea a mesma palavra em latim. Assim lenço, e não
lenso, por provir de linteum (teia, tela), pronunciado, por
corrupção, linceum. Assim, emfim, doçura ; e não dosura ou
dossura, por ser formado de doce, procedente de dulcis,
dulce
.

O mesmo motivo militou para que, nos verbos apparentemente
507irregulares em cer como pertencer, o e fosso
conservado nas inflexões que em seguida lhe adduzem a
ou o : pertenço, pertença. Porém, nos verbos da mesma categoria
era çar, como lançar, a cedilha tem do ser eliminada
quando, ao c, a inflexão adduz a vogal e : lancei, eu
lance
, visto como formaria excrescencia desenxabida.

Da risca de união

603. A risca de união (-), ou é signal de juncção, ou
é signal de adhesão.

604. E’ signal de juncção quando, no fim de uma
linha, marca o córte accidental de uma palavra por deficiência
de espaço. Em tal caso, como é obvio, cumpre resguardar
a integridade das syllabas, abstendo-se de partí-las.
E, occorrendo uma duvida, convem consultar um diccionario ;
pois a questão é propriamente de lexicographia, pela
impossibilidade de systemar praticamente as differentes hypotheses
que lhe dizem respeito.

605. E’ signal de adhesão quando, por interposição
entre palavras, as denuncia como indivisiveis em sentido,
ou inseparaveis em pronunciação. Dous são os casos em
que o allegado se verifica :

1.° Entre os vocabulos que, não sendo nomes proprios
pertencentes á lingua vernacula, formão por conchego uma
expressão de um sentido só ; assim : arco-iris, capellão-mór,
vice-almirante, luso-brazileiro, semi-barbaro, recem-chegado, ante-hontem

2.° Entre um verbo e os pronomes pessoaes

tableau me, te, se,
nós, vós, se,
o, a, os, as,
lhe, lhes
,

E entre os mesmos pronomes seguidamente enunciados,
quando succedem a um verbo, ou nelle vêm interpolados,
ou emfim quando ficão transformados por uma ou outra
das duas figuras de dicção chamadas antíthese e próthese,
de que mais adiante se trata.

Ex. Dizei-me, voadores : não vos fez Deos para peixes ?

Pois, porque vos metteis a ser aves ?
(P. Ant. Vieira).

Dir-me-heis que vos deu Deos maiores barbatanas que
aos outros de vosso tamanho
. (P. Ant. Vieira).508

Mas, porque quiz o voador ser borboleta das ondas,
vierão-se-lhe a queimar as azas. (P. Ant. Vieira).

Morreu algum homem : vereis logo tantos sobre o miseravel
a
despedaçá-lo e comê-lo ! comem-no os herdeiros ; comen-no
os testamenteiros ; comem-no os legatarios ; comem-nos os
acredores
… (P. Ant. Vieira).

Buscais mil traças e invenções para ajuntar o alheio ao
vosso, e essas são as que, em lugar de
vo-lo accrescentar,
vo-lo roem e vo-lo desbaratão. (P. Ant. Vieira).

A roça, havião-vo-la de embargar para os mantimentos
das minas ; a casa
havião-vo-la de tomar de aposentadoria
para os officiaes das minas
. (P. Ant. Vieira).

Do apostropho

606. O apostropho (’) marca o lugar onde uma ou
mais letras vêm a ser accidentalmente supprimidas (Diga-m’o),
porém não substituidas como na antíthese (Diga-no-lo).
E’ assim um signal de contracção, mas de uma contracção
que menos habitualmente occorre do que as que transformão
os artigos (do, da, dos, das…), alguns adjectivos
determinativos (deste, desta, destes, destas…) alguns
pronomes (delle, della, delles, dellas…), e emfim alguns
adverbios (donde, dalli…), e por isso pede ser formalmente
indicada.

607. As contracções passíveis do apostropho são, umas,
communs ; outras, especiaes.

608. As communs são tão proprias dos escriptos dos
prosadores como dos dos poetas. Reduzem-se, na realidade,
a um numero limitadíssimo de casos, porquanto apenas interessão :
1.°, aos tres demonstrativos est’outro, ess’outro,
aquell´outro
 ; 2.°, aos pronomes pessoaes me, te, lhe, lhes,
quando colligados com o pronome igualmente pessoal — o ;
emfim ao adverbio composto outr´ora.

Ex. Comparemos agora esta doutrina com ess’outras
razões ; ponhamo-la com ellas em balança. (Fr. Luiz de
Souza).

Vossa Paternidade, que foi o meio de se me lançar esta
Braga, que não trago só nos pés, como a trazem os captivos,
mas tambem sobre o pescoço e coração, póde, com
m’a fazer
tirar, juntamente atalhar meus erros, e usar commigo de grande
misericordia
. (Fr. Luiz de Souza). — (... com me-a fazer
tirar
…).509

O cego, tendo juntos uns quinhentos cruzados, os enterrou,
porque
lh’os não furtassem, (P. Man. Bernardes). — (…porque
lhe-os não furtassem).

S. Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a
fealdade deste escandalo, mostrou-
lh’o nos peixes. (P. Ant.
Vieira). — (… mostrou-lhes-o nos peixes).

609. As contracções especiaes são, além de facultativas,
unicamente proprias dos escriptos em versos, Onde
gozão, com mais algumas irregularidades toleradas neste
genero de composição, do indulto de licenças poeticas. Consistem
na eliminação de uma ou mais letras, não só no
inicio ou no fim, como mesmo no corpo das palavras, para
reduzir, em um verso, o numero das syllabas ao que determinão
as regras da metrificação.

Exemplo :

O homem co’a invenção supera o bruto ;
O impulso das paixões co’a razão doma :
Amor o faz humano ; a honra, probo ;
Orna-lhe a mente o ’studo.

Mas, no olvido dos seculos, a morte
Tudo some, se vós, porção do Eterno,
Vós, que ao Eterno semelhais o homem,
Não lhe endeosais o ’sp’rito.
(Borges do Barros).

Observação. O habito bastante diffundido do contrahir
por meio do apostropho, não no verso, onde se entende
que poderia ser licito, mas em prosa, a preposição de com
um nome proprio principiando por vogal (Thomaz d’aquino,
Affonso d’albuquerque), ou mesmo com alguns substantivos
communs (Conselho d’estado, — Deposito d’armas),
insinuou-se na lingua provavelmente á imitação do francez,
mas de um modo tão desazado, que nada se póde colligir
do intento com que um mesmo escriptor adoptou em um
caso a contracção, e em outro mais ou menos identico a
desprezou. Em francez, tal uso se justifica por decorrer
de um principio de applicação determinada ; em portuguez,
porém, o mesmo principio não se poderia generalisar sem
alterar profundamente a lingua, tal qual ella existe e é
conhecida. Qual seria, com effeito, a vantagem de escrever
Mathias d’eça (em vez de eça) enunciou uma maxima
mui judiciosa, dizendo : Fazemos vaidade d’errar com subtileza,
e temos pejo
, d’acertar rusticamente. Lucraria muito,
por ventura, a lingua, que se escrevesse, por exemplo : Eu
510soube d’um que lá estava, que, d’onze que erão, não menos
d’oito perecerão, por falta d’ir alguem a seu soccorro ?

Se, portanto, tal emprego do apostropho não póde ser
deduzido, nem de uma regra, nem mesmo de uma excepção
clara e implicitamente formulada, melhor é abstrahir inteiramente
deste signal nestes e em semelhantes casos, e
escrever, por exemplo : Thomaz de Aquino, Affonso de albuquerque ;
Conselho de estado, deposito de armas, etc. ;
tanto mais que, eliminando-se assim uma causa escusada
de erros, ficão melhoradas as condições da impressão,
afeiada pelo frequente apparecimento do apostropho.

Das letras

ão

610. A voz Ão é exclusivamente terminal de uma palavra :
tão, quão, vão, mão, irmão, christão… Passando, por
algum augmento, a entrar no corpo da palavra, ella se
converte em an ; assim em : tanio, quanto, vangloria, mancommunar-se,
irmAmnente, christandade

Logo não se percebe porque, derogando a um principio
assim generalisado, a mór parte dos publicistas conservão
a voz ão ou ãa quando internada na palavra por
um augmento do diminutivo, escrevendo, por exemplo,
irmãozinho, irmãazinha, em vez de sujeitá-la, por amor da
conformidade, á regra geroal : irmanzinho, irmanzinha.

611. Esta conversão de ão em an deu, porém, azo a
uma tão diffundida e enraizada equivocação grammatical,
que, não obstante redundar abertamente em erro pela dissertação,
mal é de esperar vê-la desapparecer. Ella diz
unicamente respeito aos dous adjectivos grande e santo,
aos quaes o uso retrahe a ultima syllaba (de e to) em um
certo numero de idiotismos (g. Turco, g. Bretanha ; — S.
Sepulcro, S. Petersburgo
).

Ora verifica-se pelo estudo das linguas um principio
aliás natural, e é que, tirando-se accidentalmente a um vocabulo
variavel a sua terminação, como ahi é o caso, o
vocabulo assim mutilado fica totalmente incapaz de variabilidade,
porque a syllaba em que ella se podia manifestar,
já não existe. Portanto invariaveis são os vocabulos acima
representados pelas maiusculas G. e S.

Mas, tratando-se de escrevê-los explicitamente, o que
parece ter geralmente prevalecido, foi a idéa que, assim
como ão ou ãa, internando-se, passavão a ser an, assim
511tambem o mesmo an, vindo occasionalmente a externar-se
como terminação, devia passar a ser ão ou ãa (Grão
Turco, Grãa Bretanha ; — São Sepulcro, Sãa Petersburgo
).
Pois nisso é que está o desacerto. Porquanto, da lei que
prescreve imperiosamente a invariabilidade ao vocabulo encurtado,
e da terminação que se lhe attribue, terminação
essencial e necessariamente variavel em genero e numero
(ão, ãa, ãos, ãas), resulta uma anomalia que, pouco sensivel.
no singular, relucta decididamente a uma solução
qualquer no plural. Com effeito, ao passo que a pronunciação
requer que se diga, por exemplo : gran duques, gran
duquezas
, a variabilidade exige que se escreva grãos duques,
grãas duquezas
. Ora isso é inconciliavel.

A unica solução racional desta difficuldade, solução
aliás indicada pelo que se pratica em outras linguas, e notavelmente
no francez (des grand’ méres, des grand’ messes…),
consiste em deixar inalterada a primeira syllaba dos vocabulos
encurtados, e em representar pelo apostropho a terminação
eliminada (gran’ pará, san’ paulo ; — gran’
mestres, san’ benitos
 ; — gran’ turco, gran’ bretanha ;
san’ sepulcro, san’ petersburgo).

Ex. Esse foi o pensamento profundo do gran’ principe
da Igreja, san’ pedro, o qual chamou ao fim do mundo desunião
do universo
. (P. Ant. Vieira).

h

612. Os Gregos, de cuja lingua os Latinos tanto tomárão
por emprestimo, parecem ter usado de duas aspirações
gutturaes : uma fraca, que assignalavão por uma
especie de accento chamado espirito ; e outra forte, que
representavão por uma letra (x, pron. Khi). A primeira,
os Latinos a figurárão pelo h, sem todavia lhe darem
talvez mais sonoridade do que ella tem hoje em portuguez
na palavra hippodromo, por exemplo. A segunda, afigurárão-na
por ch, que pronunciavão talvez tambem sem aspiração,
como é igualmente o caso hoje em portuguez na
palavra christão (cristão), cherubim (querubim).

O h é, portanto, por origem, uma consoante, pois que
creou-se para representar uma articulação. Repugnando,
porém, tal articulação á indole phonetica do portuguez, o
idioma novo a adoptou, a principio, simplesmente por amor
da etymologia ; mas, com o andar dos tempos, tirou-se proveito
de sua nenhuma serventia articular, para della fazer
uma letra auxiliar.

Ella veiu, por etymologia, do latim, por exemplo, em
512halito, heroe, hirsuto, horta, humor, hymno. Dalli procede ella
igualmente, mas já combinada com outras consoantes para
representar sons proprios do grego : Chersoneso (Quersoneso),
chimera (quimera
) ; — phalange, physica ; — rhetorica,
rhythmo ; — theologia, thesouro

Porém tornou-se letra auxiliar para afigurar as articulações
desconhecidas dos Latinos, que se notão em chave,
lhano, nhandú
 ; como tambem para, por interposição entre
vogaes, obviar a que formem diphthongo : cahe, cahir, sahida,
bahia, lembrar-me-hei, desculpar-te-hias, tê-lo-hião dito
….

Em epocas recentes, os geographos lançárão mão della
para reproduzir, com a mais approximada exactidão aspirações
rudes de linguas estrangeiras : Srádschin (Bohemia),
Khárkof (Rússia), Afghanistán (região ao sul da Pérsia),
Bhotán (índia), Dhawalghiri (Thibete)…

Observação. E’ bom notar de passagem que, em
alguns nomes geographicos modernos onde se encontra ph,
fôra conveniente disgregar as duas consoantes pelo apostropho,
para por este meio obstar a que viessem a se pronunciar
como p, sendo que nelles, em realidade, o p e o h
soão separadamente : Knip’hausen (Allemanha), Top’hanê
(Constantinopla), Nip’hon (Japão)…

k

613. O k, ao qual os Gregos chamavão kappa, não
fez propriamente parte do alphabeto latino, porquanto
apenas se encontra nessa lingua em tres ou quatro palavras
de extracção grega, como kalendas… Era nelle substituido
pelo c ante a, o, u, como em carne, corpo, cunha,
e por qu, que se pronunciava qv, ante e, i, como em
questor, quinto. Por esta razão não existe o K em nenhuma
palavra genuinamente portugueza.

614. Tendo, porém, sido adoptada esta mesma letra
nos alphabetos dos povos de raça, quer germanica, quer
eslavonica, forçoso foi dar-lhe tambem ingresso no alphabeto
portuguez, pela conveniencia de reproduzir sem estorvo
os nomes proprios provenientes daquellas linguas,
como Kœnigsberg, Kief ; — Éepler, Karamzin

Desta judiciosa tolerancia aproveitou-se a sciencia moderna
para, nas diversas nomenclaturas que extrahiu quasi
exclusivamente do grego, usar do K todas as vezes que o
vocabulo derivado encontra o kappa no primitivo, e o não
póde representar por c nem por qu; assim em kilogramma,
ankylose, kysto
513

m, n

615. Nas syllabas finaes de sonoridade nasal, m sóe
constituir a letra terminativa das palavras que não acabão
em ãa, ãi, ão (rãa, mãi, não), como é o caso em bem, fim,
bom, jejum, — rendem, punem

Exceptuão-se apenas algumas palavras que vierão quasi
litteralmente transcriptas de outras linguas, como afan,
colon, especimen, galan, gluten, hymen, hyphen, iman, joven,
lichen
… as quaes aliás se achão registradas sob esta fórma
nos diccionarios.

616. No corpo das palavras, as syllabas nasaes sóem
escrever-se com n, assim em anterior, enlouquecer, incorrer,
ondulação, unguento
…, a não ser que o n venha a topar
com b, m ou p, caso em que troca-se por m, como em ambar,
emmurchecer, imperio, hombrear, umbraes

Observação. Como não é raro encontrar nomes proprios
de linguas estrangeiras em que, a b, m ou p, vai
anteposto n, não se deve pensar que isso tenha sempre
succedido por erro ou por descuido ; porque, em muitas
linguas, e mórmente em allemão, por motivos que não vem
ao caso expender, a troca do n por m ante as referidas
letras, longe de ser um requisito orthographico, constituiria
um erro tanto mais crasso, que a syllaba alli não é nasal :
assim em Oldenburgo, Lauenburgo, Orenburgo, Oedenburgo,
Oranienbaum
g-utenberg (pron. Gut´nberg).

617. Porém o m fica inconvertivel em n, seja qual
fôr a letra que se lhe segue, nas palavras formadas dos
augmentos alem, aquém, bem, circum, com, decem,- duum,
sem, trium
, como alémtejano, aquémtejano, bemdizer, circumstancia,
comtudo, decemvir, duumvir, semsabor, triumvirato

Porta-se do mesmo modo o augmento em nas conjuncções
emfim e emquanto.

q

618. Merece algum reparo que o q só appareça desacompanhado
de u em nomes proprios transcriptos das
linguas falladas na Arabia e Barbaria, ou antes Bereberia,
como Barqah, Qous, Qoceyr

s

619. A consoante s, cuja sonoridade é propriamente a
que deixa perceber quando inicia ou termina uma palavra
(simples), ou ainda quando, dentro da palavra, acha-se interposta
entre uma consoante e uma vogal (ganso, cysne),
514troca esta sonoridade pela de z entre duas vogaes (uso), a
não ser que appareça redobrada (missa).

620. Sendo, porém, s a letra inicial de uma palavra,
como em sim, som, sol, suppôr, seguir, salvar, sahir, syllaba…,
não se lhe troca a sua sonoridade genuina pela de — z
quando, por accrescimo de um augmento, acha-se casualmente
interposta entre duas vogaes : assim em outrosim,
unisono, gyrasol, presuppôr, proseguir, resalvar, sobresahir, polyssyllabo

v, w

621. Por usarem os Gregos de uma só e unica letra
(béta ou véta) para representar as duas articulações que os
Latinos afigurarão por b e v, licito era aos primeiros dizer,
como o é ainda aos Transmontanos e Minhotos do hoje :
Olha lá, vento, que na benda do vernardo veve-se tão
vom binho berde de bianna, e assão-se castanhas tão savorosas,
que é mesmo de reventar. Porém, nem Gregos,
nem Romanos conhecêrão o w ; o que faz com que, não se
encontrando tambem a mesma letra em nenhuma palavra
portugueza, apresente-se como mera hospeda no alphabeto,
isto é, simplesmente para conservar aos vocabulos inglezes
ou allemães que têm de ser transcriptos em portuguez, a
sua catadura original ; pois que della, nem uma, nem outra
das mesmas linguas póde prescindir.

Com effeito, o w é o que sôa v em allemão : Waldeck,
Worms
(pron. Valdec, Vorms) ao passo que o v sôa alli
exactamente como : Vorarlberg, Verdenberg (pron. ForarIberg,
Ferd’nberg
).

Quanto ao w inglez, elle costuma soar como u, formando
diphthongo com a vogal junta : Wells, Windsor
(pron. Uells, Uinds’r).

x

622. Não ha nenhuma letra em portuguez de pronunciação
mais indeterminada que o x ; porquanto sôa como
ch em xadrez, como ks em nexo, como ç em defluxo, emfim
como z em exigir. Portanto só a lexicographia é que compete
regular-lhe o uso, e determinar-lhe a pronunciação.

y

623. Os Gregos escrevião o i como a mesma vogal se
escreve em portuguez, menos o pontinho com que o rematárão
os Latinos, provavelmente para determinar-lhe uma
feição graphica menos sujeita a ser confundida, na escripta
515cursiva, com o c. O ypsilon, porém, escrevia-se om grego
como um v arredondado ; mas não é do crer que alli tivesse,
como é hoje o caso nos idiomas derivados do latim, uma
sonoridade identica á do : um povo tão atilado, tão pratico
como o grego não podia cahir em tal absurdo, de
representar por uma dualidade de letras um só e mesmo
som. O que a observação induz a suppôr, é que o y se
pronunciava em grego como se pronuncia em francez o u.

Ora os Latinos, passando a transpôr para a sua lingua
vocabulos gregos onde se encontrava o ypsilon, derão-lhe
a forma que hoje tem. Porém, sendo-lhes a emissão vocal
desta letra tão avessa como o é a um portuguez a do u
francez, conferirão-lhe a sonoridade mais parecida, que é a
do i (typus, nympha ; — tipo, nimpha), absolutamente como
ainda fazem todos os dias os principiantes de francez ao
lerem : A-t-on vu un lustucru plus dru ?A-t-on vi ein listicri
pli dri ? (Já se tem visto um gaiato mais jocoso ?
)

A permanência do y na lingua portugueza é assim um
mero protesto de deferencia pelo elemento etymologico.
Pena é sómente vê-lo tão frequentemente empregado ou
substituido sem nenhum criterio, quando bastaria apenas
consultar um diccionario acreditado para se eximir da
pecha de ir barbarisando mais e mais a orthographia. Pois
escreve-se elypse, sophysma, hypodromo… o que, pela etymologia,
deve ser escripto ellipse, sophisma, hippodromo…
o apócripho, emphitéuta o que, pelo mesmo principio, deve
ser escripto apócrypho, emphytéuta…

624. Sendo assim o ypsilon, nas palavras derivadas
do grego, uma letra phoneticamente desnecessaria, succedeu
que esta mesma circumstancia suggerisse, em tempos relativamente
modernos, a idéa de adoptá-la, com um valor
phonetico proprio, a expressão de creação recente, mas
sem referencia alguma a um primitivo grego. Deu-se-lhe,
neste caso, o officio do representar um i sensivelmente prolongado,
ou até dobrado, como em Niteroy, Paraguay, Goyaz,
Guyana, Yayn
(Háiti), Yi (rio do Uruguay).

z

625. A consoante z não é isenta da incerteza que
difficulta o emprego de algumas outras letras. Porquanto,
embora dotada, no inicio e no fim das palavras, de uma
articulação exclusivamento sua (zangão, nariz), ou ainda
quando intercalada entre uma consoante e uma vogal
(bronze), ella tem, com o s entre duas vogaes, perfeita identidade
de som. De sorte que, em falta de habito, só o
recurso a um diccionario póde habilitar a escrever correctamente,
por exemplo, azo e uso.516

Das maiusculas

626. O emprego da maiuscula no inicio de uma palavra
fornece um accrescimo de indicações que não pouco
concorre á dilucidação dos pensamentos. Usa-se della :

1.° No principio de toda e qualquer oração.

Ex. Quereis saber o que é uma alma ? olhai para um
corpo sem alma
. se aquelle corpo era de um sabio, onde estão
as sciencias ?
forão-se com a alma, porque erão suas. (P.
Ant. Vieira).

2.° Em todos os nomes proprios, quer simples, quer
compostos (V. § 114).

Ex. A primeira maravilha forão as pyramides do Egypto ;
a segunda, os muros de Babylonia ; a terceira, a torre de
Pharo ; a quarta, o colosso de Rhodes ; a quinta, o mausolêo
de
caria ; a sexta, o templo de Diana Ephesina ; a setima,
o simulacro
de Júpiter Olympico. (P. Ant. Vieira).

observações. Nos nomes proprios compostos, a maiuscula
só cabe aos substantivos o adjectivos que os constituem
(Diana Ephesina, — Jupiter Olympico), não, porém, aos artigos
ou preposições que por acaso lhes andem de permeio.
Ex. sãn’ sebastião do Rio de janeiro. — san’ salvador
da bahia de todos os santos.

Em alguns casos de denominações geographicas, sendo
a paragem designada juntamente por um nome commum e
por um adjectivo (o mar Baltico, o mar Adriatico, o mar
Negro
), só ao adjectivo é que se dá o distinctivo da maiuscula,
por ser elle o vocabulo caracteristico. Ex. Navegava
Alexandre em uma poderosa armada pelo mar
erythreo
(hoje mar de Oman) a conquistar a India. (P. Ant. Vieira).

Fóra destes casos, a maiuscula não compete aos adjectivos,
ainda que derivados de um nome proprio de região,
estado, cidade ou outra semelhante localidade goographica,
porque, deixando de parcial ou integralmente constituir um
nome proprio, confundem-se com os mais qualificativos.
Escreva-se, portanto, o continente americano, e não Americano ;
— a nação
portugueza, o não Portugueza ; — o solo
brazileiro, e não Brazileiro ; — o assucar pernambucano, e
não Pernambucano

Ex. Para que, neste particular, diga o que entendo, depois
de larga lição que tive de muitos historiadores
latinos,
gregos, italianos, hespanhoes
e portuguezes, no fim me
vim a resolver que aquelles melhor compuzerão, que, com a felicidade
da boa materia, tiverão a dita do bom estylo, escrevendo

517de maneira que juntamente deleitassem e ensinassem.
(P. Balthazar Telles).

Aos substantivos proprios devem ser assemelhados os
que, indicando em geographia os pontos cardeaes, vêm a
designar occasionalmente latas regiões continentaes.

Ex. Aqui se eclipsou a gloria lusitana; aqui fenecerão
os triumphos, as victorias, os tropheos do
Oriente e do Occidente.
(Luiz Torres de Lima). — (Não : … do oriente e do
occidente
).

Tambem tomão a maiuscula, a titulo de nomes proprios,
os substantivos geralmente compostos que designão
em especial uma associação religiosa, politica, litteraria,
mercantil, industrial, ou outras que taes, como a Ordem de
S. João de Jerusalem, — a Liga Hanseatica
,. — a Academia
das Sciencias, — a Companhia das Indias Orientaes

3.° Nos substantivos que, embora communs, designão,
sob a forma plural, a totalidade de uma nação, povo ou
tribu.

Ex. O grande imperio que os Portuguezes fundárão na
India, não acabou de repente como a monarchia dos
Babylonios,
em uma noite em que Cyro venceu a Balthazar ; nem
como a dos
Persas, em um dia em que Alexandre venceu a
Lario ; mas como a dos
Gregos e Romanos, que, pouco a
pouco e por partes, forão perdendo o que tinhão ganhado
. (P.
Ant. Vieira).

Conta Tito Livio de um principe dos Piezenigos, chamado
Cures, que, querendo-lhe tomar suas terras Suatisláo,
principe dos
Ruthenos, elle o houve ás mãos em uma emboscada.
(P. Ant. Vieira).

Na grande boca do rio Amazonas está atravessada uma
ilha de maior comprimento e largueza que todo o reino de
Portugal, e habitada de muitas nações de
Indios, que, por
serem de linguas differentes e dificultosas, são chamados geralmente

Nheengaibas. (P. Ant. Vieira).

Deixando, porém, os mesmos substantivos de ser encarados
pelo lado da generalidade, desapparece tambem a
conveniencia da maiuscula.

Ex. Usa esta gente de canoas ligeiras e bem armadas,
com as quaes, não só impedião e
infestavão as estradas, que,
nessa terra, são todas por agua, em que roubarão e matarão
muitos
portuguezes, mas chegavão a assaltar os indios christãos
em suas aldeias
. (P. Ant. Vieira).

4.° Nas palavras constituindo o titulo de um livro,
folheto, periodico ou capitulo.518

Ex. O primeiro apologo que se escreveu no mundo, foi
aquelle que refere a
Sagrada Escriptura no capitulo nono
dos
Juizes. (P. Ant. Vieira).

Obedecendo á ordem de V. a., li com particular attenção
esta terceira parte da
Historia de S. Domingos. (P. Ant.
Vieira).

El rei D. Duarte escreveu outro tratado, dirigido á rainha
sua mulher, cujo titulo era
Leal Conselheiro. (Duarte Nunes
do Leão).

5.° Na primeira palavra de todo e qualquer paragrapho,
ainda que o anterior não acabe pelo ponto final.

Ex. As obras espirituaes de misericordia são estas :

Dar bom tonselho ;
Ensinar os ignorantes ;
Castigar os que errão ;
Consolar os tristes ;
Perdoar as injurias ;
Soffrer com paciência as fraquezas do proximo ;
Rogar a Deos pelos vivos e pelos mortos.
(Catecismo).

6.° Na primeira palavra de cada verso.

Exemplo :

Horas breves do meu contentamento,
Nunca me pareceu, quando vos tinha,
Que vos visse mudadas tão azinha
Em tão compridos dias de tormento.
(O infante D. Luiz).

7.° Na primeira palavra de toda a citação textual,
ainda que só precedida de dous pontos.

Ex. S. João nos admoesta dizendo : « Irmãos, não amemos
àe palavras e de mostras, senão com verdadeiro coração
e obras
. » (Fr. D. Bartholomeo dos Martyres).

8.° Nas palavras de tratamento, de dignidade ou officio,
quando dirigidas a quem competem.

Ex. Faça-se Vossa Alteza amar, e nesta só palavra
digo a
Vossa Alteza mais do que pudera em largos discursos.
(P. Ant. Vieira).

Tem Vossa Majestade a seus pés Antonio Vieira neste
papel
. (P. Ant. Vieira).

Vindo, outrosim, a ser abreviadamente escriptas, as
referidas palavras não prescindem por isso da maiuscula,
nem de um ponto que, no interior da oração, póde ser seguido
519immediatamente do outro signal do pontuação, porquanto
o mesmo ponto só marca a abreviatura.

Ex. Os que menos satisfeitos estiverem de S. M., esses
chegue Vossa Alteza mais a si
. (P. Ant. Vieira).

9.° Emfim em um certo numero de substantivos communs,
desviados, por antonomásia, do seu sentido mais
vulgar : assim em Igreja, conjuncto de crentes christãos,
por opposição a igreja, edifício ; — Estado, conjuncto de
cidadãos governados pelas mesmas instituições politicas,
por opposição a estado, modo de ser ; — Administração,
entidade governativa, por opposição a administração, modo
de reger ; — Grammatica, sciencia absoluta da linguagem,
por opposição a grammatica, tratado ou livro ; — Justiça,
complexo de funccionarios empregados na#repressão dos
delictos, por opposição a justiça, virtude…

Ex. Se um terceiro filho de el rei D. João o Primeiro foi
o que lançou a primeira pedra no edifício já tão levantado da

Igreja Oriental, o filho quarto de el rei D. Pedro o Segundo,
do mesmo sangue real
, …porque não será aquelle para
quem Deos tenha guardado o fechar as abobadas do mesmo
edifício ?
(P. Ant. Vieira).

Ao lado direito da igreja estavão os principaes das nações
christãas, com os melhores vestidos que tinhão, mas sem
mais armas que suas espadas
. (P. Ant. V ieira).

Quem quizer formar cabal conceito do que foi e é agora
o
Estado da India, deve considerá-lo nas quatro idades do
homem, pueril, juvenil, varonil e de velhice
. (Manoel Godinho).

O grande imperio que os Portuguezes fundárão na India,
em tempo de el rei D. Manoel teve o seu augmento ; em
tempo de el rei P. João III, o seu
estado ; e, de muitos
tempos a esta parte, padece a sua declinação
. (P. Ant.
Vieira).

Diogenes, que tudo via com mais aguda vista que os
outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros
de
Justiça levavão a enforcar uns ladrões.

Começou a bradar : Lá vão os ladrões grandes a enforcar
os pequenos! Ditosa Grecia, que tinha tal prégador! E mais
ditosas as outras nações, se nellas não padecera a
justiça as
mesmas affrontas
. (P. Ant. Vieira).

Das figuras de dicção

627. Chamão-se figuras do dicção certas alterações que
o uso introduziu nas formas normaes das palavras, e que
520o assenso geral sanccionou, por abrandamento de pronunciação.
Reduzem-se a cinco, que são a synalepha, a tmesis,
a antíthese, a próthese e a apócope
.

Synalepha

628. Synalepha é a denominação que genericamente
abrange todas as contracções licitas, quer intervenha o
apostropho, como em est’outro por este-outro, m’o por me-o…,
quer não, como em do, no, por de o, em o ; em delle,
nelle
, por de elle, em elle ; em dantes, dalli, por de antes,
de alli

Tmesis

629. A tmesis consiste na interpolação dos pronomes
pessoaes constituindo complementos sem proposição, entre
o radical e a terminação dos dous futuros do indicativo, e
dos dous condicionaes genuinos, porque veda o uso que,
nestes quatro casos, os referidos pronomes andem pospostos
ao verbo. Assim é que se diz, por exemplo : queixar-me-hei,
por queixarei-me ; ter-se-ha sumido, por terá-se sumido ;
dir-m’o hião, por dirião-m’o ; ter-lhe-heis escapado, por
terieis-lhe escapado

Antíthese

630. A antíthese designa a conversão, l euphonico,
das consoantes r, s, z quando, sendo letras finaes de um
verbo, venhão por acaso a topar com o pronome pessoal
o, a, os, as.

Ex. Grandes razões tem o homem para não servir, porém
muito maiores para não mandar homens. E, porque? Porque
maior servidão é
mandá-los que serví-los. (P. Ant. Vieira)

Cresce a cobiça com a dita : quê-la a soldado seguir emquanto
lhe respondem tão bem as cartas
. (P. João de Lucena).
— (… quer-a o soldado seguir…).

Ama o teu inimigo : porque, se o não queres amar porque
é inimigo
, devê-lo amar porque é homem. (P. Ant. Vieira).
— (… deves-o amar…).

Não buscais o descanso na lei de Christo porque a não
tendes por descansada, senão por muito trabalhosa. Vós
tendê-la
por trabalhosa, dizendo Christo que só ella vos póde alliviar
do trabalho. Vós
tendê-la por cansada, dizendo Christo que
só nella está o descanso
. (P. Ant. Vieira). — (… Vós tendes-a…).521

Ao homem, fê-lo Deos para mandar; aos brutos, para
servir
. (P. Ant. Vieira). — (Ao homem, fez-o Deos…).

O que, não só era inútil, mas pernicioso, pô-lo a natureza
longe de nós, escondido e occulto
. (P. Ant. Vieira). — (… pôz-o
a natureza
…).

631. A antíthese estende-se ainda aos pronomes possoaes
nos e vos quando complementos indirectos do preposição
occulta, e bem assim á preposição verbal.

Ex. E’ o alheio pontualmente como o vomitorio… Guardai-vos
de o metter no estomago, porque primeiramente não

vo-lo ha de lograr, e ha-vos de puxar, e levar comsigo o mais
que tiverdes nelle
. (P. Ant. Vieira).

Os inimigos, ei-los.

Observação. Movidos da consideração que, na antíthese,
tudo se reduz a uma mera troca de letras, a mór
parte dos publicistas julgão mais acertado escrever, por
exemplo : amal-o, — vol-o, — eil-o…, do que : amá-lo, —
vo-lo, — ei-lo. Porém, á vista dos principios que regem a
materia, é isso uma incorrecção.

O em que todos concordão, é que, posposto ao verbo,
o pronome pessoal o, a, os, as tem de ao mesmo verbo
ligar-se pela risca de união ; porque, constituindo sempre
uma syllaba brevissima, carece este vocabulo do amparo
do verbo para conservar sua sonoridade fugaz. O pronome
pessoal vem a formar por este modo parte integrante do
verbo. E, se assim não fosse, que significação viria a ter
a risca de união ?

Ora o que demonstra a mais perfunctoria observação,
é que, em uma palavra accrescida por incremento, a ultima
consoante do vocabulo primitivo vem frequentemente
a ser a primeira consoante do accrescimo. Pois ninguem
negará que, se a consoante r é a ultima letra do monosyllabo
mar, a mesma consoante forma a primeira letra da
segunda syllaba do derivado maré (ma-ré). Pois, se a
ninguem occorresse cortar esta ultima palavra, no fim de
uma linha, por este modo : mar-é, visto como seria estropear
a ultima syllaba, que outra cousa fazem entretanto
os que escrevem amal-o, vol-o, eil-o, senão estropear essas
mesmas palavras, cortando contra todos os estylos, uma
syllaba pelo meio ?

Próthese

632. A próthese consiste no accrescimo por augmento,
do n euphonico ao mesmo pronome pessoal o, a, os, as,
quando posposto a uma terminação nasal (ão ; em).522

Ex. Este peixe, os pescadores encalhão-no, e depois de
lhe despirem o toucinho
, fregem-no. (Francisco de Brito
Freire).

Observação. Não são poucos os publicistas que, por
ignorancia dos principios da grammatica, julgão necessario,
para mais expressamente resalvar o alcance meramente euphonico
do referido n, separa-lo do pronome pelo apostropho,
escrevendo n´o, n´a, n´os, n´as. E’ o mesmo como
pôr dous topes em chapéo armado.

Pois, não se dando caso algum em que, de um lado, o
pronome pessoal o, a, os, as possa vir a ser regido da
preposição em, que fórma a contracção no, na, nos, nas,
nem tão pouco de outra preposição qualquer ; e, de outro
lado, não se dando caso algum em que o artigo definito ou
o pronome demonstrativo contracto no, na, nos, nas possa
vir a ser ligado a um verbo pela risca de união, este ultimo
signal orthographico basta amplamente para denunciar
a próthese. Escreva-se, portanto, simplesmente : encalhão-no,
fregem-no, — e não : encalhão-n’o, — fregem-n’o.

Ex. A’quelles reis e senhores gentios, offereceu-lhes o
grande Affonso de Albuquerque as armadas de el rei de Portugal
para destruirem os Mouros, e
lançarem-nos fora da
terra
… (Commentarios do gr. Af. de Albuquerque).

Apócope

633. A apócope consiste na suppressão de uma ou
mais letras finaes, mas sem substituição de letras ; assim
em san’ jose, gran’ mogol (Santo José, Grande Mogol),
e em todas as primeiras pessoas do plural dos verbos
quando lhes venha por acaso em seguida o pronome pessoal
nos, com a funcção do complemento sem preposição expressa.

Ex. Estes serião os perigos ou inconvenientes das minas ;
e, quaes poderião ser os uteis ? Para bem os avaliarmos
, sirvamo-nos
de exemplos visinhos. (P. Ant. Vieira).523

T1-Quarta parte
Prosódia

Considerações preliminares

634. Prosódia é a parte da grammatica que versa
sobre a pronunciação metrica das palavras.

Por pronunciação metrica entende-se unicamente a que
se manifesta por uma tonicidade mais ou menos intensa
das syllabas. Chama-se metrica porque ella é que serve de
base á metrificação ou Arte de compor os versos, sendo que,
com esta applicação, ella constitue uma doutrina, especial,
a Arte poetica. Em sua relação á Grammatica, apenas
aventa a prosódia algumas considerações que dizem respeito,
umas á orthographia, outras á syntaxe.

Da tonicidade nas palavras

635. A prosodia discrimina tres especies de syllabas,
que podem ser typicamente representadas pela palavra
serpente : uma longa em ser, uma tonica em pen, e uma
breve em te.

636. A longa differe apenas da breve por uma leve
prolongação da voz, que só fica bem perceptivel no discurso
emphatico. A tonica, porém, destaca-se por uma notavel
sobrelevação da voz, e tão caracteristica se torna,
que sua deslocação acarreta na palavra, ou uma differença
de significação (pára, pará), ou o mais insoffrivel dos
erros com que póde um estrangeiro offender o melindre
acustico. (Queró vinhó do Portó, e mangás da Bahiá).524

Assim se vê que a tonica é a syllaba reguladora da
pronunciação. Por isso é tambem que, dando-se com ella,
na leitura, a possibilidade de um equivoco, cumpre então
notificá-la por um accento (sábia, de sabio ; sabía, de saber ;
sabiá, passaro).

Da tonica

637. A tonica não é propria de todas as especies ou
classes de palavras ; e, dentre as a que compete, nem todas
a conservão sempre : o que, junto a mais algumas anomalias,
torna bastante esquiva a sua determinação theorica.

638. As especies de palavras a que compete a tonica,
são : os verbos, os substantivos, os adjectivos, a maior parte
dos pronomes, os participios, os adverbios, algumas conjuncções,
e as interjeições.

639. Sejão, porém, quaes forem as palavras, em cada
uma a tonica é uma só, e a syllaba em que ella recahe, é
sempre a ultima, a penultima ou a antepenultima da palavra
(mar, ma-, ma-ru-jo, ma-ri-timo). São, todavia, exceptuados
os adverbios que procedem de um superlativo
de incremento, por se devisarem nelles duas tonicas
(o-ptima-men-te, nobi-lis-sima-men-te, fa-cil-lima-men-te, li-ber-rima-men-te…) ;
e mais alguns vocabulos compostos por
augmento, em que o mesmo se dá (o-mnipo-ten-te, to-do-pode-ro-se…).

640. Em todos os verbos, a ultima syllaba do tempo
primordial é sempre a tonica, pelo motivo obvio que a ella
compete caracterisar a conjugação (am-ar, ren-der, pu-nir,
pôr). Fóra dahi, a tonica vai recahindo, já nesta, já naquella
syllaba, conforme o verbo passa por suas diversas
inflexões de modo, tempo, numero e pessoa, mas recahe
symetricamente nas tres conjugações regulares, assim como
se verifica pela tabella synoptica dos verbos.

641. Nos substantivos e adjectivos, a determinação da
tonica deixa de ser grammatical para se tornar meramente
lexicographica : porquanto, já do numero avultado de terminações
que seria preciso adduzir para chegar a uma exposição
completa, já do numero não menos avultado das
excepções que surgirião da mesma exposição, travar-se-hia
uma questão de erudição mesquinha, posto que laboriosa,
e de uma proficuidade muito problematica, recordando o
insulso, estirado, e todavia tão deficiente vocabulario com
que os grammaticos Noël e Chapsal julgárão, no capitulo
XI de sua obra, sujeitar a regulamento a orthographia
525franceza. Basta, com effeito, para se convencer da inefficacia
de um tal recurso, considerar, em alguns vocabulos
apanhados a esmo, quão voluvel é a tonica nestas especies
de palavras, não obstante a analogia de terminação :

tableau órgão, | pagão ; / efficácia | advocacía ;
pêcego, | socêgo ; / supplicio, | rocío ;
cáfila, | mochila ; / parietária, | cantaría ;
mystério, | poderío ; / antíphona, | sanfôna ;
cantico, | salpíco ; / relógio, | elogío ;
tépido, | latido ; / cópia, | utopía ;
figado, | legado ; / sóbrio, | sombrío ;
taboa, | lagôa ; / escrúpulo, | casúlo ;
júbilo,’ | sibílo ; / pantano, | arcáno ;
industria, | aletría ; / cúpola, | saccóla ;
frámeas, | lamprêas ; / jactancia, | melancía ;
cócegas, | adêgas ; / objurgatórías | comedorías
computo, | tributo ; / cadáveres | caractéres

642. Dentre os pronomes, os a que cabe a tonica,
são :

1.° Os pessoaes fazendo funcção de sujeito, ou, de
complementos indirectos de preposição expressa.

Ex. E e-u fui o que descompuz o governador de S. M.,
e não o governador de S. M. a mim ? (P. Ant. Vieira).

2.° Todos os numeraes singelos.

Ex. Em um ha unidade, mas não póde haver união ;
em
do-us, que são duas unidades, já pode haver união. (P.
Ant. Vieira).

Porém, em virtude de um principio de que mais adiante
se trata, e é : que duas tonicas não podem subsistir em immediato
contacto
, quando nos numeraes compostos vem a
dar-se este caso, o segundo vocabulo perde a tonica.

Ex. Se um vence a mil, dous, porque não hão de vencer
a do-us
mil, senão a dez [mil] ? (P. Ant. Vieira).

3.° Todos os demonstrativos.

Ex. Com que furia esta roda do mundo se revolve!
Es-tes edificão ; aquell´ouj-tros destroem. (P. Man. Bernardes).

4.° Todos os possessivos.

Ex. Aonde não ha diferença de mim a ti, nem de me-u
a
te-u, logo se acerta no caminho. (P. Ant. Vieira).

5.° Os relativos, com excepção de que.526

Ex. Os ladrões [ [que] ] mais propria e dignamente merecem
este titulo, são aquelles a
quem os reis encommendão os exercitos
e legiões, ou o governo das provincias, ou a administração
das cidades, os
qua-es, já com manha, já com força, roubão e
despojão os povos
. (P. Ant.Vieira).

6.° Todos os indefinitos.

Ex. Os fidalgos que escapárão deste diluvio,… que sentirião ?
que imaginarião ? que farião ? que dirião ? em que
cuidarião ? (Luiz Torres de Lima).

Houve al-guem que dissesse ou propuzesse tal cousa a
estas arvores ?… Pois, se
nin-guem lhes faliou em haverem de
deixar os seus fructos, porque se excusão todas ?
(P. Ant.
Vieira).

« Desta traça, dizião elles, não póde Christo escapar. »
Mas, coitados! armárão teias de aranha, que vem a dizer : é
tu-do na-da. (Fr. João de Ceuta).

643. Nos participios, quer sejão regulares, quer irregulares,
a tonica recahe sempre na penultima (a-ma-do,
ren-
di-do, pu-ni-do, di-to, fei-to…) Por isso é que fér-vido,
-lido, por exemplo, são meros adjectivos, ao passo que fer-vido
é participio de ferver, e va-li-do participio de valer, ou
substantivo, com o sentido de favorito.

644. Nos adverbios de incremento, a tonica recahe
sempre na penultima (anticonstitucional-men-te) ; nos demais,
a sua determinação pertence, como a dos substantivos e
adjectivos, á lexicographia (ma-xime, de--ras, ama-nhãa).

645. Dentre as conjuncções, as preventivas tirão de
sua feição adverbial a propriedade de accusar a tonica
(toda-vi-a, com-tu-do, ali-ás, outro-sim…). Porém as copulativas
(e, nem, ou) e as subordinativas (que, se com os
congeneres) só a podem accusar em casos excepcionaes, de
que mais adiante se trata.

646. Nas interjeições, que, por concentrarem em si
um pensamento, reclamão geralmente uma enunciação energica,
percebe-se que a tonica é imprescindivel.

Ex. Aqui, levantando a voz, el rei D. Henrique III de
Gastella bradou
 : « o-l! o-lá! gente da minha guarda! »
(P. Man. Bernardes).

E-ia, meu principe, despida-se V. a. dos livros ! (P. Ant.
Vieira).527

Dos encliticos

647. Encliticos, ou encostados (que tal é em grego o
sentido desta palavra), são os vocabulos cujas syllabas, ou
breves, ou quando muito longas, não chegão á accentuação
predominante da tonica. Chamão-se encostados porque tal
é a necessidade que têm do amparo de outro termo, que
nunca conseguem, quer por ellipse, quer como exclamações,
a formar de per si sós uma proposição. São meros auxiliantes,
sem prestimo proprio : apoião.

648. Os encliticos são :

1.° Os artigos, quer sejão incontractos :

tableau o, a, os, as ;
um, uma, uns, umas
 ;

quer sejão contractos :

tableau ao, á, aos, ás ;
do, da, dos, das ;
no, na, nos, nas ;
pelo, pela, pelos, pelas ;
num, numa, nuns, numas
.

Exemplos :

Quereis ver o que é [uma] alma ? Olhai, diz S. Agostinho
para [um] corpo sem alma… Se
[o] corpo é de [um] artifice,
quem fazia viver
[as] taboas e [os] marmores ? quem amollecia
[o] ferro ? quem derretia [os] bronzes ? quem dava nova forma
e novo ser [á] mesma natureza ? quem ensinou, naquelle corpo
regras
[ao] fogo, fecundidade [á] terra, caminhos [ao] mar,
obediência
[aos] ventos, e a unir [as] distancias [do] universo,
e metter todo
[o] mundo venal em [uma] praça ? [2] alma
Que palmo de terra ha [no] mundo, que não tenha levado
muitas almas [ao] inferno
, [pela] demanda, [pelo] testemunho
falso
, [pela] escriptura supposta, [pela] sentença injusta, [pelos]
odios
, [pelos] homicidios, e por infinitas maldades ? (P. Ant.
Vieira).

Sobresahe, aliás, a fraqueza de tonicidade no artigo —
o — , quer contracto, quer não, quando vai comparado com
o sou homonymo, pronome demonstrativo, ao qual compete
a tonica.

Ex. Mas vejamos [a] alma em nós : no que [o] corpo
ha de ser, vejamos o que ella é… Apartou-se o que se não
via; ficou o que se póde ver
. (P.Ant. Vieira),528

[A] mais refinada malicia é a que se disfarça com [as]
apparencias [da] virtude ; a que se manifesta é um mal, porém
a que se encobre, é mal dobrado
. (P. Ant. Vieira).

Por igual comparação torna-se sensivel a differença de
tonicidade em um, adjectivo ou pronome numeral, ou ainda
pronome indefinito, e um, simples artigo ; pois a tonica que
sempre lhe foge no ultimo caso, compete-lhe, pelo contrario,
nos tres primeiros.

Ex. Digo que menos mal será um ladrão que dous, e
que mais dificultosos serão de achar dous homens de bem que

um. Sendo propostos a Catão dous cidadãos romanos para o
provimento de duas praças, respondeu que ambos lhe descontentavão
 :
um, porque nada tinha ; outro, porque nada lhe
bastava. — Finalmente os mesmos vicios nossos nos dizem o
que é a alma
 : [uma] cobiça que nunca se farta ; [uma] soberba
que sempre sobe
 ; [uma] ambição que sempre aspira ;
[um] desejo que nunca aquieta ; [uma] capacidade que todo o
mundo a não enche, como a de Alexandre
 ; [uma] altiveza
como a de Adão, que não se contenta menos que com ser Deos
.
(P. Ant. Vieira).

2.° Os pronomes pessoaes fazendo funcção do complementos
directos, ou de indirectos sem preposição expressa :

me, te, se, o, a, lhe ;
nos, vos, se, os, as, lhes
.

Exemplos :

A um prindpe virtuoso, tudo [se lhe] rende ; a um principe
vidoso, parece que a terra
[se lhe] levanta. (P. Ant.
Vieira).

Morreu algum delles, vereis logo tantos sobre o miseravel
a despedaçá-[lo] e comê-
[lo] ! Comem-[no] os herdeiros ; comem[no]
os legatarios ; comem-[no] os acredores ; comem-[no] os
officiaes dos òrphãos, e
os de defuntos e ausentes ; come-[o] o
medico que
[o] curou ou ajudou a morrer ; come-[o] o sangrador
que [lhe] tirou o sangue ; come-
[o] a mesma mulher,
que de má vontade [lhe] dá para mortalha o lençol mais velho
da casa ; come-
[o] o que [lhe] abre a cova, o que [lhe] tange
os sinos, e
os que, cantando [a] levão a enterrar ; emfim
ainda o pobre defunto
, [o] não comeu a terra, e [o] tem
comido toda a terra
. (P. Ant. Vieira).

3.° O pronome relativo que.

Ex. Algum [que] sempre errou, [que] nunca fez cousa
boa, nomeado, applaudido, premiado ! o [que] acertou, o [que]
529trabalhou, o [que] subiu á trincheira, o [que] derramou o
sangue, enterrado, esquecido, posto a m canto !
(P. Ant.
Vieira).

4.° As preposições.

Ex. [Para] guardar os reinos e os imperios, os homens
inventarão as armadas [por] mar, e os exercitos [por] terra,
tantos mil soldados [a] pé, tantos mil [a] cavallo
, [com] tanta
ordem e disciplina
, [com] tanta variedade [de] armas, [com]
tantos artificios e maquinas bellicas
. (P. Ant. Vieira).

5.° As conjuncções copulativas.

Ex. Nunca permanece o homem no mesmo estado, succedendo-se,
como revoluções da roda, a saude [e] a enfermidade,
o trabalho [e] o descanso, a honra [e] o desprezo, o tormento

[e] o deleite, o temor [e] a esperança. (P. Man. Bernardes).

Terrivel palavra é um non. Não tem direito [nem]
avesso… Não ha correctivo que o modere
, [nem] arte que o
abrande
, [nem] lisonja que o adoce. (P. Ant. Vieira).

Isto é mundo, [ou] é mar ? São homens, [ou] são ondas ?
E’ vida humana
, [ou] é roda ? Tudo é, irmão. (P. Man.
Bernardes).

Achando-se, porém, os mesmos vocabulos em estado de
suspensão, por apparecerem isoladas entre dous signaes de
pontuação, ou vindo successivamente repetidos ante todas
as partes de um mesmo termo composto, o seu valor prosodico
ergue-se até á tonica.

Ex. E, que turba-multa é aquella que vai cobrindo os
campos de armas e carruagens ? E’ um exercito que vai a
uma de duas cousas
 : ou a morrer, ou a matar. e, sobre
que ? Sobre que dous palmos de terra são de cá, e não são
de lá
. e, que arvores são aquellas que vão voando pelas ondas
com azas de panno ? São navios
… (P. Man. Bernardes).

Os ditosos [e] os desgraçados, todos nascerão ; e, como
são mais os que accusão a fortuna, que os que lhe dão graças,
maior materia dão os nascimentos ao temor que á esperança.
A esperança promette bens ; o temor ameaça males
 ; e, entre
promessas [e] ameaças, tanto vem a se padecer o que se espera,
como o que se teme
. (P. Ant. Vieira).

6.° As conjuncções subordinativas.

Ex. Peccou David… e o que os palacianos discorrião na
sua antecamara, era desta maneira : [que] o amor de Bethzabé
fôra um galanteio de principe soldado ; [que] o casar-se com
ella fôra uma honrada restituição de sua fama ; [que] o matar
a Urias fôra um conselho necessario, prudente e generoso : generoso,
530[porque] o fez morrer nobremente na guerra ; prudente,
[porque] pareceu acaso o que foi industria ; e necessario,
[porque] o modo mais seguro de sepultar o aggravo é metter
debaixo da terra o aggravado
. (P. Ant. Vieira).

Com mulheres não sabe o homem [como] ha de haver-se :
[se] não as ama, têm-no por néscio ; [se] as ama, por leviano ;
[se] as deixa, por cobarde ; [se] as segue, por perdido j [se]
as serve, não o estimão ; [se] as não serve, o aborrecem ; [se]
as quer, não o querem ; [se] as não quer, o perseguem ; [se]
as frequenta, é mais que louco ; [se] não as frequenta, é menos
que homem
. (P. Ant. Vieira).

E’ digno de especial reparo que os vocabulos como,
porque, quando, quão e que
, aos quaes cabe a propriedade
de serem, já adverbios (V. § 266), já conjuncções (V. § 276),
conformando-se com a regra, tomão a tonica quando adverbios,
e a perdem quando conjuncções.

Ex. « Vem cá, Lucifer ! vem cá, Adão !… co-mo appeteceis
o que não podeis ?
 » — Ambos quizerão ser [como] Deos.
(P. Ant. Vieira).

No principio do mundo, por-quê não havia guerras ?
[Porque] usavão os homens da terra [como] do céo. (P. Ant.
Vieira).

Quan-do fazem os ministros o que devem fazer ? — e que
vivão, e obrem com tanta inhumanidade homens que se confessão
,
[quando] procedião com tanta razão homens sem fé nem
sacramentos !
(P. Ant. Vieira).

649. Além de todos "estes encliticos que, por o serem
por natureza, podem ser chamados essenciaes, ainda ha
outros que, vindo a o ser por mero acaso de posição, apresentão-se
assim como accidentaes. A sua determinação,
porém, só se torna exequivel em vista de uma consideração
geral sobre a prosódia.

Da observação que, a uma palavra, por mais extensa
que seja, só cabe uma tonica (anticonstitucional-men-te), e
que as poucas a que, por derogação desta regra, cabem
duas, só as recebem com o espaçamento de duas ou mais
breves (pes-sima-men-te, anticonstituciona-lis-sima-men-te, to-do-pode-ro-se),
o que se torna obvio, é que a enunciação
seguida, immediata, sem pausa, de duas ou mais tonicas
repugna á indole da lingua.

Se, não obstante, a expressão do pensamento vem a
adduzir duas ou mais tonicas em immediato contacto (caso
que se verifica mais habitualmente com os monosyllabos),
a voz, soltando-se das péas da regra para só se ater á euphonia,
531converte sem rebuço em incliticos os vocabulos que
lhe embargão a cadencia, e conserva por este modo á linguagem
a melopéa que lhe é natural.

Sobresahe esta occurrencia no seguinte exemplo, adrede
composto de monosyllabos por natureza providos da tonica :
Não tem que dar quem não tem bens. Pois não tem a
tonica por ser adverbio ; tem, por ser verbo ; que, por ser
pronome indefinito ; dar, por ser verbo ; quem, por ser
pronome indefinito ; … emfim bens, por ser substantivo.
Entretanto, destas oito syllabas, apenas quatro conservão
na enunciação corrida a accentuação predominante : Não
tem que dar quem não tem bens.

Vê-se por isso a quantas anomalias que não é dado
predeterminar, mas em que todavia não tropeça o ouvido
dos nacionaes, abre espaço á theoria da tonica, e em
quantos pontos a prosódia não póde ficar subordinada a
outro regimento que não seja o uso.532

Quinta parte
Pontuação

Considerações preliminares

650. Pontuação é a parte da grammatica que versa
sobre os casos em que convem separar por signaes os pensamentos
escriptos, e suas partes.

651. Os signaes de pontuação são oito, quatro dos
quaes são principaes, e quatro accessorios.

Os quatro principaes constão da virgula (,), do ponto
e virgula
(;), dos dous pontos (:), e do ponto final (.).
Chamão-se principaes porque são os unicos necessarios em
toda a oração normalmerite constituída.

Os quatro accessorios constão do ponto interrogativo (?),
do ponto exclamativo (!), dos pontos suspensivos (…), e do
parenthesis ( ). Chamão-se accessorios porque só occorrem
em orações constituidas anormalmente, já por ellipses, já
por interrupções.

652. Dahi decorre que, se a pontuação tem por especial
alcance o de marcar uma separação entre proposições,
as quaes são a expressão dos pensamentos, e entre
termos syntaxicos, os quaes são as partes ou membros de
que se compõem as mesmas proposições, claro é que nenhum
signal desta especie deve vir interposto ; quer entre
termos, quer entre proposições que, desenvolvendo-se na sua
ordem natural ou logica, prendem-se pelas relações de indeclinavel
conchego. Ha, portanto, na pontuação, dous escolhos
a que cumpre igualmente fugir : o da collocação de algum
de seus signaes entre termos ou proposições necessariamente
533inseparaveis, e o da omissão de algum dos mesmos
signaes entre proposições ou termos tambem necessariamente
separaveis.

Porém, para chegar á solução juntamente racional e
pratica deste interessante problema, até aqui tão descurado
nos tratados de grammatica,. torna-se indispensavel possuir,
além dos criterios que a analyse syntaxica fornece, os que
ministra a analyse logica, pela discriminação das diversas
especies de proposições.

E, a este proposito, não será inopportuno ficar prevenido
de que a analyse logica aqui ventilada, pouca, ou
antes nenhuma paridade tem com a de mesma denominação
que voga nas escolas, sob o influxo dominante e fatidico
da substantividade do ser, ou de ser com estar.

Theoria da analyse logica

653. Analyse logica é a indagação da importancia
respectiva das proposições.

654. Todas as proposições reduzem-se summariamente
ás tres especies de principal, de complementaria e de incidente.

655. A principal forma sentido completo intelligivel
do per si só, ou serve de fundamento a uma ou mais proposições
logicamente subsequentes e connexas.

656. A complementaria só forma sentido com o auxilio
de outra proposição logicamente anterior, ficando-lho
tão intimamente annexa, que procurar desaggregá-la torna-se
impossivel sem falseamento ou anullação da oração.

657. A incidente, assim como a complementaria, fica
sempre dependente de outra proposição tambem logicamente
anterior ; mas differe da complementaria pela propriedade
de se deixar eliminar sem invalidar o sentido da
proposição a que se prende.

658. Taes são os caracteres intrinsecos das tres especies
de proposições. Se fosse necessario, na pratica, fazer
obra só por elles, não ha duvida que a determinação das
proposições acarretaria frequentes hesitações. Por felicidade,
porém, andão sempre providas de caracteres extrinsccos
que tornão facillima a sua discriminação.

As principaes nunca ficão iniciadas por uma ligação
subordinativa (que e se, com os congeneres).534

As complementarias apresentão-se sempre iniciadas por
uma ligação subordinativa, e as incidentes quasi sempre.
Porém, para discriminar estas daquellas, carece soccorrer-se
ao alvitre do caracter intrinseco, isto é : se a proposição
não se deixa eliminar sem desvirtuamento da oração, é ella
complementaria ; no caso contrario, é ella incidente.

Nisto resume-se toda a theoria da analyse logica, e
nada mais é preciso para nella assentar as mais importantes
das regras da pontuação.

Advertencia. Nos exemplos attinentes á pontuação,
as riscas de separação (—) denuncião o lugar onde as diversas
regras encontrão a sua applicação.

Exemplos
sobre as tres especies de proposições

As obras da natureza, e ás da arte, todas se oonservão
e permanecem na união, — e todas, na desunião,
se desfazem, — se destróem — e se acabão
. (P.
Ant. Vieira).

Esta oração consta de cinco proposições, pois que
tantos são os factos syntaxicos que se lhe contão. Todas
as mesmas proposições são principaes, visto nenhuma se
achar iniciada por uma ligação subordinativa, e cada uma
apresentar de por si só sentido intelligivel.

Seis mil annos haque dura o universo, sem se
sentir nem ver nelle o menor signal de desunião
.
(P. Ant. Vieira).

Nesta oração, só dous são os factos syntaxicos (ha
dura…), e portanto só duas as proposições. A primeira é
principal porque, embora não apresente de per si só um
sentido intelligiveí, nenhuma ligação subordinativa a inicia,
e logicamente serve de fundamento á segunda. Esta, porém,
encetada por uma ligação subordinativa. é complementaria ;
visto que, considerada isoladamente, não só deixa de formar
sentido de per si, como ainda, por sua separação, annullaria
o sentido da principal (Seis mil annos ha… ?!). A segunda
cumpre assim, em relação á primeira, um officio
assemelhavel ao de um complemento junto a um verbo, e
dahi a sua denominação de complementaria (… que dura o
universo
…).

A maior obra da sabedoria e da omnipotencia humana, —
que foi o composto ineffavel de christo, — consistia em
535duas uniões : uma união entre o corpo e a alma, e outra união
entre a humanidade e o Verbo
. (P. Ant. Vieira).

Das duas proposições que tambem compõem esta oração,
a que vem intercalada, é incidente, porque, principiando
por uma ligação subordinativa, pode ser eliminada sem que
por isso deixe a principal de conservar a integridade do
seu sentido (a maior obra da sabedoria e omnipotencia divina
consistia em duas uniões
…). e dahi a sua denominação
de incidente, visto que recahe na oração como uma elucidação
util, como um argumento azado, como uma prova
attendivel, mas de que seria licito prescindir em absoluto
(… que foi o composto ineffavel de Christo…).

Ampliações
sobre a analyse logica

659. O facto syntaxico de uma proposição principal
encontra-se necessariamente no indicativo, no condicional
ou no imperativo ; nunca, porém, no subjunctivo, a não ser
este um imperativo disfarçado. Exemplo :

(Indicativo) :
A mentira é filha primogênita do ocio. (P. Ant. Vieira).

(Condicional) :
Não fazerem mercês os reis seria não serem reis. (P. Ant.
Vieira).

(Imperativo) :
Ama o teu inimigo. (P. Ant. Vieira).

(Imperativo disfarçado) :
Conheça-se o homem a si mesmo. (P. Ant. Vieira).

660. O facto de uma proposição complementaria encontra-se
necessariamente no indicativo, no condicional ou
no subjunctivo ; nunca, porém, no imperativo, quer manifesto,
quer disfarçado. Exemplo :

(Indicativo) :
Toda a consolação é escusadaquando os males são
sem remedio. (P. Ant. Vieira).

(Condicional) :
Perguntou o Senhoronde acharião pão. (P. Ant.
Vieira).536

(Subjunctivo) :
Importaque se desenterrem os talentos escondidos.
(P. Ant. Vieira).

661. O facto de uma proposição incidente encontra-se,
já no indicativo ou no condicional, já no imperativo ou no
subjunctivo. Exemplo :

(Indicativo) :
Partimos para a cidade de Trento, — onde então se celebrava
o sagrado concilio. (Pantaleão de Aveiro).

(Condicional) :
Se cinco mil homens, com mulheres e filhos, entrassem de
repente em uma grande cidade, não haveria promptamente que
lhes dar a comer
, — quanto mais [não haveria] em um deserto.
(P. Ant. Vieira).

(Imperativo) :
Pois, — crêde-me, — o banco de Veneza pode quebrar
(P. Ant. Vieira).

(Subjunctivo) :
Ainda que enterrem a verdade, — a virtude não se
sepulta
. (P. Ant. Vieira).

662. E’ tambem consideração de subido alcance, não
só para activar o desempenho dos exercicios analyticos,
como ainda para confirmar em mais um ponto o principio
do imperio da logica na constituição da linguagem, que as
tres ligações copulativas (e, nem, ou) não consentem em
servir de nexo a proposições que não sejão da mesma
especie, isto é, que não sejão ambas igualmente principaes,
ambas igualmente complementarias, ou ambas igualmente
incidentes. Exemplo :

(Principaes) :
A cousa mais facil do mundo é dar conselho a outrem, —
e a mais ardua é tomá-lo para si. (P. Ant. Vieira).

(Complementarias) :
Do grande poder da necessidade, a razão é — porque
todos os outros poderes são sujeitos ás leis
, — e [porque] só
a necessidade não tem lei
. (P. Ant. Vieira).

(Incidentes) :
A quarta sala, — que excede a todas na preciosidade, —
e por isso lhe chamão a sala do thesouro, — tem em si pedras
e joias de preço inestimavel
. (P. Man. Consciencia).537

E tão rigorosamente impera esta lei, que mal póde vir
ella a ser infringida sem produzir na oração um desconcerto
sensivel, embora nada appareça, a primeiro intuito,
que contrarie as regras da grammatica. Haja vista o seguinte
exemplo :

O papa Adriano V era já mui velho e achacado — quando
foi assumpto ao throno apostolico
, — e o não logrou mais que
trinta e nove dias
. (P. Man. Bernardes).

O erro está em que, sendo a primeira proposição uma
principal ; e a segunda uma complementaria, nem a esta,
nem áquella podia ser annexada a terceira pela conjuncção
copulativa e, porque é ella mera incidente : o caso avocava,
portanto, uma ligação subordinativa, que pudera ser visto
como, porquanto
, ou outra adequada.

O papa Adriano V era já mui velho e achacado quando
foi assumpto ao throno apostolico
, porquanto o não logrou
mais que trinta e nove dias
.

663. Desta observação decorre a opportunidade de
distinguir, num interesse summamente pratico, dous generos
de complementarias : as encadeadas e as collectivas.

Encadeadas são as complementarias que, no desenvolvimento
dos pensamentos, de tal modo se prendem uma a
outra, que a anterior não forma sentido sem a posterior.

Ex. Não seise já houvequem dissesseque
sempre conseguiraquanto desejára.

Não menos me maravilho daquellesque crêmque
nenhum homem póde saber aquilloque não tem sersenão
[se não tem ser] no segredo da eternal Sabedoria. (Gil Vicente).

Collectivas são as complementarias que se prendem
todas igualmente a uma mesma proposição anterior.

Ex. Fallando a Saul de David, Doeg disseque era
prudente
, — que era guerreiro, — que era esforçadoque era
gentil-homem
, — que era virtuoso, — que era dotado de muitas
outras boas partes
. — Isto é ; Doeg disseque David era
prudente, — disse
que era guerreiro, — disseque era esforçado

Se acaso Deos vos fez mercêque soubesseis pôr os pés
por uma rua
, — que soubesseis apertar na mão uma espada,
que fosseis discreto, generoso, ou rico, ou honrado, no mesmo
ponto tivestes culpas no tribunal da Inveja
. (P. Ant. Vieira).

664. A conveniencia desta distincção das complementarias
em encadeadas e em collectivas torna-se obvia quando
538se attendo que as primeiras não admittem entre si signal
algum do pontuação, a não ser em dous casos excepcionaes,
de que mais adiante se trata ; ao passo que as segundas
nunca prescindem, entre si, de um ou outro dos mesmos
signaes, como se vê nos exemplos ahi adduzidos, e como
se verifica ainda melhor no exemplo que se segue, por
andar uma encadeada presa a cada uma das tres collectivas
que o compõem :

Importa

que não roube a negociação oque se deve ao merecimento ;

que se desenterrem os talentos escondidosque sepultou
a fortuna ou a semrazão
 ;

que não haja benemeritoque não seja bem afortunado.
(P. Ant. Vieira).

Isto é : Importa que não roube a negociação… importa
que se desenterrem… importa que não haja benemerito

665. Quanto ás principaes e ás incidentes, nenhuma razão
de utilidade solicita a sua subdivisão respectiva. A nomenclatura
da analyse logica fica assim reduzida ás tres denominações
de proposições principaes, complementarias ou incidentes,
o mais á discriminação das complementarias em
encadeadas e em collectivas, o que simplifica notavelmente o
processo analytico, sem todavia tirar-lhe nada de sua proficuidade.

Dos quatro signaes principaes de
pontuação

666. Do todos os signaes de pontuação, é natural suppôr
que o primeiro cuja adopção parecesse, não só util como
ainda indispensavel aos escriptores primevos, foi o ponto ;
e o segundo a virgula : aquelle para marcar uma evolução
completa do espirito sobre um só pensamento, ou sobre
muitos pensamentos connexos ; este, para dentro da mesma
evolução ou oração, marcar interrupções eventuaes de relação
immediata entre pensamentos ou seus termos syntaxicos.

Ex. Terrivel palavra é um non.

Lêde-o do principio para o fim, — ou do fim para o principio, — sempre
é non
. (P. Ant. Vieira).539

667. Porém é igualmente de suppor que, á vista da
diversidade das causas occorrendo para avocar um signal
separativo dentro da oração, a virgula parecesse em breve
insufliciente, quer por não obstar de todo á confusão que
ella devia atalhar, quer mesmo por induzir ás vezes em
equivocos : accrescentou-se-lhe, portanto, o ponto e virgula
para separar proposições sensivelmente independentes, embora
connexas ; e os dous pontos para chamar a attenção
sobre uma citação textual, ou ainda sobre um desenvolvimento
a fazer ou sobre uma conclusão.

Ex. Por mais que confeiteis um não, sempre amarga; —;
por mais que o enfeiteis, sempre é feio ; — por mais que o
doureis, sempre é de ferro
.

Assim disse Bersabé a Salomão : — « Trago-vos, senhor,
uma petição:
 : — não me envergonheis a face ! » Porque dizer
não a quem pede, é dar-lhe uma bofetada com a lingua
 : —
tão dura, tão aspera, tão injuriosa palavra é um não. (P.
Ant. Vieira).

Taes são, em resumo, as generalidades sobre que assentão
as regras determinando o emprego dos referidos
signaes de pontuação.

Da virgula

Collocação da virgula dentro da proposição

1.ª Regra
(termos compostos)

668. Separão-se pela virgula os membros, quer complexos,
quer incomplexos, de um mesmo termo composto.

São tidos por incomplexos, não só os membros constando
de uma só palavra, como ainda os em que a mesma
palavra vai apenas precedida de vocabulo inseparável,
como seja : 1.°, um artigo ou outro determinativo ; 2.°, uma
preposição ; 3.°, um adverbio de quantidade.

Ex. a luz, em sua pureza, é uma qualidade branda, —
suave, — amiga. (P. Ant. Vieira).

Que faz o requerente nos tribunaes, pedindo, — allegando,
replicando, — dando, — promettendo, — annullando ?
Busca pão. (P. Ant. Vieira).

Para guardar as cidades, os homens inventarão os muros,
540os fossos, — as torres, — os baluartes, — as fortalezas,
os presidios, — a artilheria, — a polvora. (P.
Ant. Vieira).

A necessidade, — a pobreza, — a fome, — a falta do
necessario para o sustento da vida é
o mais forte, — o mais
poderoso
, — o mais absoluto imperio que domina sobre todos
os que vivem
. (P. Ant., Vieira).

A estas injustiças, — a estas calumnias, — a estas
injurias, — a estes enganos
se deve a decadencia do nosso
imperio na India
. (P. Ant. Vieira).

São tidos por complexos os membros em que a palavra
constituindo parte do termo composto vai amparada :
1.°, de um complemento directo ; 2.°, de um complemento
indirecto ; 3.°, de um qualificativo ; 4.°, de uma proposição
complementaria.

Ex. Que faz o estudante nas universidades, tomando
postillas, — revolvendo livros, — queimando as pestanas !

Busca pão. (P. Ant. Vieira).

O solicitador com a diligencia, — o escrivão com a
penna, — a testemunha com o juramento, — o advogado
com a allegação, — o julgador com a sentença…
todos
forão ordenados para conservarem a cada um no seu, e todos
por differentes modos, vivem do alheio
. (P. Ant. Vieira).

Que palmo de terra ha no mundo, que não tenha levado
muitas almas ao inferno
pelo testemunho falso, — pela
escriptura supposta, — pela sentença injusta
. (P. Ant.
Vieira).

Finalmente os mesmos vicios nossos nos dizem o que é a
alma
 : uma cubiça que nunca se farta, — uma soberba
que sempre sóbe, — uma ambição que sempre aspira
, —
um desejo que nunca aquieta, — uma capacidade que
todo o mundo a não enche
. (P. Ant. Vieira).

669. A unica opportunidade desta distincção dos membros
de um mesmo termo em complexos e incomplexos
consiste no seguinte :

A intervenção de uma ligação copulativa (e, nem, ou)
entre membros de um termo composto só póde annullar a
virgula quando os mesmos membros são incomplexos, porque
só então se achão elles em um contacto que é ou reputa-se
immediato ; pois é condição essencial, para que a
abrogação da virgula corresponda ás intoaçõees naturaes da
dicção, o isento a oração de ambiguidades, que as copulativas
reunão palavras de funcções inteiramente identicas.541

Ex. Toda a nobreza — e excellencia do homem consiste
no livre alvedrio
. (P. Ant. Vieira).

Deve o homem saber igualmente o mal — e o bem. (P.
Ant. Vieira).

A occupação do céo — e da terra — e de todo este
mundo
é buscar pão para a bocca. (P. Ant. Vieira).

Até o sol — e a lua — e as estrellas não deixamos
estar ociosos desta pensão
. (P. Ant. Vieira).

Baste por prova que a sevicia — e crueldade dos
neros — e dioclecianos
commutavão a morte — e os tormentos
dos christãos com os mandar servir — e trabalhar
nas minas. (P. Ant. Vieira).

Sansão foi tratado com taes escarneos — e indecencias,
que, de corrido — e affrontado, com suas proprias mãos se
tirou a vida
. (P. Ant. Vieira).

Os olhos são, em toda a organisação do corpo humano, a
parte
mais humana — mais delicada — e mais mimosa. (P.
Ant. Vieira).

Como é possivel que homens com olhos — e com entendimento
antepuzessem as trevas á luz ! (P. Ant. Vieira).

Mas vámos a esse inimigo. Já que esse inimigo — e
esse odio
é tão irreconciliavel, porque não matais esse inimigo ?
(P. Ant. Vieira).

E’ possivel que uma cousa tão pequenia, — tão branda,
tão leve — e tão mudavel como a lingua, tenha poder
para vos pôr ás costas um jugo
tão pesado, — tão duro
e tão durador ! (P. Man. Bernardes).

Vêdes aquelle entrar — e sahir sem quietação — nem
descanso ?
(P. Ant. Vieira).

Pudera-se fazer problema onde ha mais pescadores, se no
mar
— ou na terra. (P. Ant. Vieira).

O ser pobre — ou rico consiste em nosso desejo. (P. Ant.
Vieira).

Que descanso — ou que contentamento póde haver no
reino — ou republica onde não ha paz ! (João de Barros).

Que Jonathas, depois de tão qualificadas experiencias de
seu coração — e de seu amor
, se se resolvesse, segunda vez,
a fazer juramento de sempre amar, isto sim ! isto é amor !
(P.
Ant. Vieira).

Ainda que esta doutrina do Senhor, por sua pureza, —
alteza, — excellencia — e majestade, merecia por si só
ser
ouvida — e abraçada de todo o mundo, comtudo, para
542maior autoridade — e confirmação della, quiz que fosse
acompanhada de
innumeraveis, — proveitosissimos — e gravissimos
milagres, para que ninguem se pudesse excusar, vendo
que erão
tantas — e tão averiguadas as provas — e testemunhos
que a confirmavão
, quantos erão os milagres que
o Senhor obrava em presença
de muitos — e de poucos, —
de sabios — e de ignorantes, — de amigos — e de inimigos.
(João Franco Barreto).

Observação. Este ultimo exemplo fornece o ensejo
de mais uma demonstração que não é sem importancia, e
vem a ser a seguinte :

Quando, junto ao primeiro ou ao ultimo membro de
um termo composto, vai um annexo (adjectivo, complemento,
ou mesmo proposição, complementaria), cumpre que
o mesmo annexo possa competir a todos os membros para
que a ligação copulativa apague a virgula.

Este é justamente o caso na proposição … merecia por
si só ser
ouvida — e abraçada [de todo o mundo], porque
tanto compete o complemento indirecto de todo o mundo
ao participio ouvida, como ao seu consocio abraçada.

Caso analogo se dá em [por maior] autoridade — e
confirmação
[della], porquanto tanto compete a apposição
maior ao substantivo confirmação, como ao seu consocio autoridade ;
e tanto compete o complemento indirecto della
ao primeiro, como ao segundo dos mesmos substantivos.

Emfim a virgula desappareceu igualmente entre … as
provas — e testemunhos
porque a complementaria — que
a confirmavão
se refere com a mesma propriedade a provas
como a testemunhos.

Succedendo, porém, que um annexo desses só tenha
referencia ao primeiro ou ao ultimo dos membros, não se
deve supprimir a virgula, porque já não são os membros
de identica funcção.

Ex. A razão natural desta diferença é porque o sol
(como dizem os philosophos), ou verdadeiramente é fogo, ou de
natureza mui semelhante ao fogo : elemento terrivel, — bravo, —
indomito, — abrazador
, — executivo — e consumidor de tudo.
(P. Ant. Vieira). — Para se poder apagar ahi a virgula
antes de consumidor, seria preciso que fosse licito dizer ;
executivo de tudo.

O que o Senhor ensinava, era a sabedoria do céo, altissima
soberana, — e digna de um mestre que era homem
e Deos
. (João Franco Barreto) — Sendo ahi tambem impossivel
attribuir á apposição soberana o complemento
543indirecto que com tanta propriedade compete a digna
(… soberana de um mestre !!…), a virgula tem de intervir,
máo grado da ligação, para restringir a referencia ao ultimo
membro.

Quereis ver a differença da luz ao sol ? Olhai para o
mesmo sol, — e para a mesma luz de que elle nasce
, a
aurora
. (P. Ant. Vieira). — E’ tão manifesto ahi que a
complementaria … de que elle nasce… nenhuma referencia
tem ao primeiro membro …para o mesmo sol…, e sim tão
sómente ao segundo …para a mesma luz…, que se torna
obvia a conveniencia de separá-los pela virgula, não obstante
a ligação ; pois que, de outro modo, o sentido viria a ser
que o sol nasce tambem do mesmo sol, quando a tenção evidente
do autor foi dizer que o sol nasce da aurora.

Vendo o philosopho Demetrio a um mancebo diligente
e industrioso, — e inimigo do ocio
, disse-lhe approvando o
seu espirito
 : « Continuai, mancebo,… » (P. Man. Bernardes).

670. Sendo complexos os membros de um mesmo
termo, a interposição de uma ligação copulativa não abroga
entre elles a virgula, porque, em tal caso, as palavras que
se apresentão em contacto immediato, não são associaveis,
por exercerem forçosamente funcções diversas.

Ex. O peccado da usura, — e a enfermidade da lepra
parecem-se em muitas cousas
. (P. Man. Bernardes).

Na côrte ha parcialidades antigas, — dissensões presentes, —
juizos temerarios, — e testemunhos evidentes ; entranhas
de viboras, — e linguas de serpentes. (P. Ant.
Vieira).

Não ha velha tão carregada de annos, — nem velho
de tão podres membros, que não tenha o coração são para
cuidar ruindades
, — e a lingua inteira para dizer mentiras.
(P. Ant. Vieira).

Sobre o peso da servidão, haver de sustentar tambem o da
honra é muito maior
sujeição, — e muito mais pesada carga.
(P. Ant. Vieira).

Será justo que, para levantar uma casa, — e abaixar
outra, queiramos assolar todo o reino ? (P. Ant. Vieira).

De maneira que governar, — e governar bem não póde
ser com as raizes na terra
 ; governar mal, — e para a destruição
do bem commum, isso sim. (P. Ant. Vieira).

Na terra bornêa-se a peça a coberto de um parapeito de
pedra de cinco pés
, — ou de uma trincheira de faxina de
dezoito ; no mar, detraz de uma taboa de tres dedos
. (P. Ant.
Vieira).544

Se os olhos vêm com amor, o corvo é branco ; se com odio,
o cysne é negro… Por isso se vêm, com perpetuo clamor da
justiça
, os indignos levantados, — e as dignidades abatidas ;
os talentos ociosos, — e as incapacidades com mando ; a
ignorancia
graduada, — e a sciencia sem honra ; a fraqueza
com bastão, — e o valor posto a um canto ; o vicio
sobre os altares, — e a virtude sem culto ; os milagres accusados,
e os milagrosos réos. (P. Ant. Vieira).

671. Além dos casos acima ventilados sobre a intervenção
das ligações copulativas entre membros de um
mesmo termo, dá-se mais um, que autores didacticos incluirão
entre as figuras de palavras, sob a denominação de
repetição, porque apresenta a ligação, não só reproduzida
entre cada membro do termo composto, mas mesmo anteposta
ao primeiro. Dahi resulta que a dicção vai procedendo
por vibrações isóchronas analogas ás que produzem
as ligações iterativas (já… já — ora… ora — quer… quer),
o que torna obvia a conveniencia de lhes antepor, a umas
como ás outras, a virgula, se por acaso não estiver já o
primeiro membro precedido de outro signal de pontuação.

Ex. Os nossos ministros, ainda quando vos despachão
bem, fazem-vos os mesmos tres damnos : o do dinheiro porque
o gastais ; o do tempo, porque o perdeis ; o das passadas, porque
as multiplicaes
 : — e estas passadas, — e este tempo,
e este dinheiro, quem o ha de restituir. (P. Ant. Vieira).

O provincial foi proseguindo no mesmo argumento dizendo :
Que faustos demasiados, — nem os louvava, — nem lh’os
persuadia
. (Fr. Luiz de Souza).

Porque não deu Jacob a benção, ou investidura do reino,
nem a simeão, — nem a levi, senão a Judas ? (P. Ant.
Vieira).

Para negociar o reino do céo, — nem a Balthazar, —
nem a David, — nem a Alexandre, — nem a Cesar, —
nem ao mesmo Cyro, a quem Deos chamava o seu rei e o
seu ungido, valêrão nada as corôas
. (P. Ant. Vieira).

Tanto que se reflecte no trabalho,… já se não quer ser, —
nem poeta, — nem orador, — nem astronomo, — nem philosopho,
nem geometra, — nem theologo. (P. D. Raphael
Bluteau).

Basta que, aos que têm o supremo poder, lhes suba á cabeça
um vaporzinho
, — ou de cubiça, — ou de ambição, —
ou de inveja, — ou de odio, — ou sómente de vaidade,
para que, contra uma fortaleza ou sobre uma cidade, chova
tanta multidão de raios quantas são as pedras de suas muralhas
.
(P. Ant. Vieira).545

A vida e o tempo nunca pára ; e, — ou indo, — ou estando, — ou
caminhando, — ou parados, todos sempre e com
igual velocidade passamos
. (P. Ant. Vieira).

Não ha dia vago em que a morte ou o infortunio não
andem visitando
, — já esta, — já aquella casa. (P. Man.
Bernardes).

Mares, rios, arvores,… tudo passa : os mares em continuas
crescentes e mingoantes ; os rios, sempre correndo ; as
arvores, sempre remudando-se
, — ora seccas, — ora floridas,
ora murchas. (P. Man. Bernardes).

Se o uso da nossa linguagem se perder, e, com elle, por
acaso acabarem todos os nossos escriptos, que não os Lusiadas,
e as obras de Vieira, o portuguez
, — quer no esttlo da
prosa, — quer no poetico
, ainda viverá na sua perfeita indole
nativa, na sua riquissima cópia e louçania
. (D. Franc.
Alexandre Lobo).

672. Se, nos casos em que as ligações copulativas costumão
abrogar a virgula, intervierem, em lugar dellas,
ligações preventivas, quer sejão essenciaes como mas, porém…,
quer accidentaes como não, e não, e sim, senão (com o sentido
de e sim)…, nenhuma dellas póde abrogar a virgula,
porque o seu alcance significativo consiste sempre em assignalar
um contraste entre os membros assim associados.

Ex. Apelles, com brandura cortez, — mas picante, disse à
Alexandre Magno
 : « Senhor, veja que se ri o moço que móe
as tintas
. » (Pi Man. Bernardes).

Pretendia certo fidalgo illustre e rico, — porem ja
velho
, ás segundas bodas com Santa Marcella, viuva de
pouca idade
. (P. Man. Bernardes).

Admitta o principe homens aos cargos pelo ser, — não
pelo parecer
. (P. Ant. Vieira).

As obras, — e não a duração, são a medida certa da
vida humana
, (P. Ant. Vieira).

Os ministros mostrem compaixão, — e não vingança.
(P. Ant. Vieira).

Nesses jogos de dados e cartas, nenhum lugar tem a
razão e o juizo, — senão
[e sim] a temeridade e o acaso.
(P. Ant. Vieira).

673. Quando, porém, ambos os membros assim postos
em confrontação vão precedidos de locuções effectiva ou
accidentalmente conjunctivas, que os sujeita a uma especie
de ponderação correlativa, cumpre que, para assignalar a
546tempo esta operação do espirito, a virgula vá anteposta,
não só ao segundo, senão tambem ao primeiro membro.

Ex. E’ nesta singular abundancia, Lisboa, — não só a
mais bem provida, — mas tambem a mais deliciosa
terra
do mundo
. (P. Ant. Vieira).

Esta casta de amigos, — não meus, — senão do meu, tem
várias semelhanças
. (P. Man. Bernardes).

Deos concedeu muito aos reis, — não para terem mais,
senão para darem mais. (P. Man. Bernardes).

Ouçamos a Seneca, — não como mestre da estoica, —
mas como estoico da côrte romana. (P. Ant. Vieira).

Ama de coração, — não sómente aos amigos, — mas
tambem aos inimigos e perseguidores
, por amor do Pai
celestial, que manda seu sol e sua chuva e outros mil beneficios
,
não sómente sobre seus amigos e justos, — mas
tambem sobre seus inimigos e máos
. (D. Fr. Bartholomeo
dos Martyres).

Saibamos agora, — e não de outrem, — senão das mesmas
arvores
, se este bom governo, do modo que éllas o entenderão,
se póde conseguir e exercitar com as raizes na terra
.
(P. Ant. Vieira).

Mas permitte o mesmo Deos semelhantes invenções, —
assim para castigo dos mãos, — como para gloria e exaltação
de seus santos
. (P. Ant. Vieira).

Livros têm os Chins, em que mui curiosa e particularmente
estão os nomes dos vassallos
, — assim para a arrecadação
dos tributos e direitos reaes, — como para outros
effeitos
. (P. João de Lucena).

2.ª Regra
(apposições dispensaveis)

674. Separão-se pela virgula as apposições complexas
ou incomplexas que, enunciando uma nota meramente explicativa,
formão por isso mesmo um termo tão accessorio,
que por sua eliminação a oração não fica desvirtuada.

Ex. Lançou Jacob a benção a Judas, — seu quarto
pilho
. P. Ant. Vieira).

Diogenes, — philosopho cynico, — queria tão pouco das
cousas deste mundo, que nem uma choupana ? tinha em que
viver, e morava dentro de uma cuba
. (P. Ant. Vieira).

Houve de passar pelo mesmo mar o fundador de Lisboa,
Ulysses, — e, — usando de sua sciencia e sagacidade, —
que fez ? (P. Ant. Vieira).547

Ao grande Alexandre, — já vencedor de dario, — caminhando
para persepolis
, — sahírão ao encontro quasi
oitocentos homens
, — os mais delles velhos,aos quaes os
antepassados reis da Persia tinhão torpemente mutilado os narizes
e labios
. (P. Man. Bernardes).

Levados de ambição, — querem os homens mais do que
podem e devem
. (P. Ant. Vieira).

Chegou uma mulher a apresentar a el rei D. Sebastião
um memorial. Recebeu-o e entregou-o a um fidalgo dos que o
acompanhavão. Ella
, — affligida, — disse : « Senhor, corre
minha honra perigo na tardança
. » (P. Man. Bernardes).

Até o cadaver do avarento mais em paz fica com os bichos
da sepultura, do que estava com a alma
, — sua inquilina.
(P. Man. Bernardes),

As mitras, coroas, tiaras, e outros semelhantes ornatos se
determinão para a cabeça
, — escola viva, — e mestra perpetua
de tudo o que se sabe no mundo
. (P. D. Raphael
Bluteau).

Anaxilio, — capitão atheniense, — sendo captivo dos
lacedemonios
, — foi mettido a tormentos para que dissesse o
que el rei Agesiláo tinha determinado
. (Diogo do Couto).

O diadema antigo, — insignia dos reis e imperadores,
era uma faixa atada na cabeça. (P. Ant. Vieira).

Seja exemplo desta lastimosa fragilidade Helena, — aquella
famosa e formosa grega, — filha de tyndaro, — rei de
laconia
, — por cujo roubo foi destruida Troya. (P. Ant.
Vieira).

Cleopatra, — rainha do egypto, — que, quantas acções
fez, tantas pyramides deixou erigidas á posteridade
, — umas
de lascivia, — outras de vaidade
, — fez que o seu Marco
Antonio pescasse por sua mão peixes fritos
. (P. Man. Bernardes).

A aranha, diz Salomão, não tem pés, e, — sustentando-se
sobre as mãos
, — móra nos palacios dos reis. (P. Ant.
Vieira).

Taes são os aduladores de palacio, — ainda os de maiores
obrigações, e de menos corrupto juizo
. (P. Ant. Vieira).

3.ª Regra
(complementos indirectos dispensaveis)

675. Separão-se igualmente pela virgula os complementos
indirectos que, complexos ou incomplexos, se deixão
eliminar sem desvirtuar a oração.548

Ex. Esta machina tão bem composta do mundo, — com
ser obra do braço omnipotente
, — que é o que a sustenta
e conserva, senão a perpetua e constante união de suas partes ?

(P. Ant. Vieira).

As arvores entendêrão, — sem terem entendimento, —
que quem aceita o governo dos outros, só ha de tratar delles,
e não de si
. (P. Ant. Vieira).

Os reinos e imperios, — segundo a sentença do ecclesiastico,
passão de umas gentes a outras gentes pelas culpas
dos que os perdem
. (P. Ant. Vieira).

O grande imperio que os Portuguezes fundarão na India
sem arrogancia nem affronta das outras nações, se podia
chamar monarchia
, — com tantos reinos e reis sujeitos e
tributarios
. (P. Ant. Vieira).

Quem quer mais do que lhe convem, perde o que quer, e
o que tem. Exemplo temos
, — além de outros muitos, — no
filho prodigo
. (P. Ant. Vieira).

Posto que os avarentos, — por não gastar, — costumem
andar a pé, a avareza anda sempre de carroça
. (P ; Ant.
Vieira).

Tenho por certo que, se David, — pelo contrario, — se
vingara, ainda que Deos o tivesse destinado para a corôa,
lh’a não havia de dar
. (P. Ant. Vieira).

O reino e a primeira benção, — segundo o uso dos patriarchas,
e conforme a lei natural que ainda hoje se
observa
, — pertencia ao primogenito. (P. Ant. Vieira).

Guardai-vos de metter o alheio no estomago, porque, —
primeiramente, — não vo-lo ha de lograr, e ha-vos de puxar,
e levar comsigo o mais que tiverdes nelle
. (P. Ant. Vieira).

O que todos aquelles orbes celestes fazem, — andando em
perpetua roda, e voltando sem nunca descansar
, — é
produzir e temperar com suas influencias o que ha de comer o
homem
. (P. Ant. Vieira).

4.ª Regra
(complementos indirectos transpostos)

676. Separão-se tambem pela virgula os complementos
indirectos não eliminaveis, quando, andando antepostos ao
verbo de que dependem, apparecem em posição tão isolada,
que o espirito fica suspenso sobre o sentido que lhes cabe
internar.

Eá, Finge-se que o patriarcha Noé, — ao plantar a
549vinha, — a regou com o sangue de quatro animaes,… a saber:
 :
bugio, leão, cochino e cordeiro. (P. Man. Bernardes).

Nos casamentos, — todo o erro está em cubiçar a fazenda
que está na bolsa, e não examinar á pessoa que se traz para
a casa
. (P. Ant. Vieira).

para conquistar os reinos da terra, — o melhor cabedal
é uma corôa ; mas
, — para negociar o reino do céo,
é genero que quasi não tem valor. (P. Ant. Vieira).

nas primeiras viagens, — com mão tremula governa o
piloto o leme ; mas
, — depois de pratico na arte nautica,
accommette confiado o fluctuante abysmo. (P. D. Raphael
Bluteau).

O homem, — por lhe parecer que um só bem o não
póde fazer feliz
, — busca muitas. (P. Ant. Vieira).

Salomão foi o rei que, — em todo o seu reinado, —
gozou da mais alta e segura paz de quantas houve dentro e
fóra de Israel
. (P. Ant. Vieira).

Fabricou Salomão um palacio real em Jerusalem, que, —
depois do templo que elle edificara, — foi o segundo milagre.
(P. Ant. Vieira).

No tempo da afflicção e trabalho do amigo, — é lei
indispensavel assistir-lhe com allivio, conselho, prestimo e ainda
com a pessoa
. (P. Man. Bernardes).

Os elephantes que servem para a carga, a tomão deitados,
que
, — de outra sorte, — por sua altura, — ninguem lh’a
poderia pôr
. (João Ribeiro).

O imperador Julio Cesar, — nos principios de seu governo,
portou-se com moderação e suavidade, attendendo á
disposição das leis
 ; depois, — não punha grande reparo em
as quebrar, usando de absoluta autoridade ou violencia
. (P.
Man. Bernardes).,

Como, — na clareza do juizo e engenho, — el rei D.
Duarte era insigne, não somente aprendeu para si, mas para
doutrinar a outros
. (Duarte Nunes de Leão).

No Testamento Novo, — o filho prodigo, porque, — no
gastar e alardear
, — quiz o que não podia nem pedia o
estado de filho, veiu a pedir por misericordia fortuna de criado
.
(P. Ant. Vieira).

Dizei-me : se, — no monte de piedade de roma, ou no
banco de Veneza
, — se déra a cento por um, houvera quem
alli não mettêra o seu dinheiro ?
(P. Ant. Vieira).

Os males padecem-se porque se temem ; os bens padecem-se
porque se esperão : e
, — para affligir, — o mal basta ser
550possivel ; para molestar, — o bem basta ser duvidoso. (P.
Ant. Vieira).

A vide disse que ás suas uvas, — comidas, — erão o sabor,
e
, — bebidas, — a alegria do mundo. (P. Ant. Vieira). —
(…em serem comidas… em serem bebidas…).

Com a vantagem só de nossa união podemos igualar e
exceder largamente o numero de nossos inimigos
. desunidos,
somos menos ; unidos, — seremos muito mais. (P. Ant.
Vieira). — (… Estando desunidos… em estarmos desunidos
estando unidos… em estarmos unidos…).

Observação. Quando a inversão de uma proposição,
era vez de parcial, é total, não se assignala mais pela virgula,
porque nenhuma pausa avoca a elocução.

Ex. Dos animos grandes é propria a liberalidade. (P.
Ant. Vieira).

Destes dous mandamentos nascem todos os outros. (D. Fr.
Bartholomeo dos Martyres).

Com inveja e com ciumes é aspide a melhor mulher.
(P. Ant. Vieira).

5.ª Regra
(complementos indirectos absolutos)

677. Os complementos indirectos absolutos ficão caracterisados
por constarem de um gerundio que, expresso
ou occulto, possue um sujeito exclusivamente seu, a não
ser que proceda de verbo impessoal ; o que faz com que,
não se prendendo elles directamente a nenhum dos termos
da proposição a que vão annexos, torna-se intuitiva a conveniencia
da intervenção da virgula entre elles e a mesma
proposição (V. § 468).

Ex. El rei Artaxerxes, — sendo-lhe tomada a sua bagagem
pelos inimigos
, — veiu, fugindo, a parar onde não
achou, para comer, mais que uns figos seccos com pão de cevada
.
(P. Man. Bernardes).

morto salomão, — succedeu-lhe na corôa Roboão, seu
filho
. (P. Ant. Vieira). — (Estando morto Salomão…).

não querendo roboão condescender no que tão justamente
pedião
os povos, — das doze tribus de que constava
todo o reino, os dez lhe negarão obediencia
. (P. Ant. Vieira).

sendo tão frequente e ordinaria no jogo a perda
do dinheiro e da fazenda
, — isto é o menos que nelle se
perde
. (P. Ant. Vieira).551

indo um dia o abcebispo em visita, — não se achou
um pão de trigo para a sua mesa
, — havendo abundancia
de tudo
o mais. (Fr. Luiz de Souza).

O homem começa, — renovadas suas forças, — a sua
tarefa quotidiana
. (P. Man. Bernardes). — (… sendo renovadas
suas forças
…).

Pois, — vindo ao tabernaculo e ao templo de salomão,. —
sempre nelles houve musica com que os sacrifícios se
celebravão
. (João de Barros). — (Pois, — vindo [nós] ao tabernaculo
e templo de Salomão
…).

expugnada a cidade de pirene, — os proprios moradores
lhe derão sacco
. (P. D. Raphael Bluteau). — (Sendo
expugnada a cidade
…).

vagando a abbadia de S. dionysio em pariz, —
muitos a pretendêrão por ser illustire e com bom dote. (P. Man.
Bernardes).

isto supposto, — formo daqui o argumento para o nosso
ponto
. (P. Man. Bernardes). — (Sendo isto supposto…).

Já quasi sol posto, — vimos vir a remo pelo rio acima
uma barcaça carregada de sal
. (Fernão Mendes Pinto). —
(Estando já quasi sol posto…).

sendo certo que todos hão de chegar a sepultura
sem nenhum remedio
, — só tu, por comer menos, chegarás á
sepultura mais tarde
. (P. Ant. Vieira).

Triste e miseravel condição é haver um homem de servir
a outro
, — sendo todos iguaes. (P. Ant. Vieira).

caminhando socrates, — um atrevido se descomediu com
elle, e lhe deu um couce
. (P. Man. Bernardes).

6.ª Regra
(complementos pleonasticos)

678. Nos casos de complementos pleonasticos, quer
sejão directos (V. § 450), quer sejão indirectos (V. § 463),
convem, para assignalar a anomalia da construcção, separar
pela virgula o dos dous complementos que menos intimamente
se prende ao verbo.

Dos dous complementos, o que mais intimamente se
prende ao verbo, é sempre o que, constando de um pronome
pessoal, vincula-se pela risca de união ao verbo, se
por acaso lhe vier posposto.

Ex. Dizei-me, voadores : não vos fez Deos para peixes ?

Pois, porque vos metteis a ser aves ? O
mar, — fê-lo Deos
para vós, e o ar para elles
.552

Aos outros peixes do alto, — mata-os o anzol ou a
fisga
 ; a vós, — sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presumpção
e o vosso capricho
.

Aos outros peixes, — mata-os a fome, e enganados a
isca
 ; ao voador, — mata-o a vaidade de voar, e a sua isca
é o vento
.

Grande ambição é que, sendo o mar tão immenso, lhe
não baste, — a um peixe tão pequeno, — todo o mar, e queira
outro elemento mais largo
.

Mas vede, peixes, o castigo da ambição. o voador, —
fê-lo Deos peixe, e elle quiz ser ave ; e permitte o mesmo Deos
que tenha os perigos da ave, e mais os do peixe
. (P. Ant.
vieira).

Ama o teu inimigo, porque, — amigos, — os não ha ;
e, se não amares os inimigos, estará ociosa a tua vontade, que
é a mais nobre potencia
. (P. Ant. Vieira).

Agora vos pergunto eu : estes martyrios de minas, —
se as vossas se descobrissem, quem os havia de padecer ?

Tudo isto, — não o havião de fazer nem padecer os que
passeião em Lisbôa
.

A roça, — havião-vo-la de embargar para os mantimentos
das minas
 ; a casa, — havião-vo-la de tomar de aposentadoria
para os officiaes das minas
. (P. Ant. Vieira).

Se a interpretação de um sonho lhe valeu, — a josé, —
o vice-reinado do Egypto, que honras não merecerão tantos
sabios que, com suas obras, illustrárão a patria, e ensinarão o
mundo !
(P. Ant. Vieira).

Tanto pelo fundador, como pelo amplificador, lhe compete,
a lisbôa, — a precedencia de todas as metropoles dos
imperios do mundo
. (P. Ant. Vieira).

A um principe virtuoso, — tudo se lhe rende ; a um
principe vicioso
, — parece que a terra se lhe levanta. (P.
Ant. Vieira).

Ao doudo, — não lhe atalho a furia ; ao nescio, — não
trabalho para
lhe dar razão ; ao pobre, — não lhe devo ;
ao rico, — não lhe peço ; ao vão, — nem o gabo, nem o repreendo ;
ao lisongeiro, — não o creio. (Lobo).

679. Esta regra soffre tres excepções. a virgula não
intervem :

1.° Quando, constando ambos os complementos de
pronomes pessoaes, ambos vão juntos um ao outro, ou
agrupados ao redor do verbo.553

Ex. « e, que vai nisso ? » disse o arcebispo ao pastorinho.
— « a mim — me vai muito ; » tomou elle ; a que tenho
pai em casa, que pelejará comigo ; e tão bom dia, se não forem
mais que brados ! Eu vigio o gado ; elle
mevigiaa
mim
. » (Fr. Luiz de Souza).

Então batalhastes com os inimigos ; agora é tempo de vos
vencera vós. (P. Ant. Vieira).

Os vossos inimigos são testemunhas em causa propria de
vos ter dado Deos os bens que
lhesnegoua elles. (P.
Ant. Vieira).

No mar estamos com os companheiros á vista ; e nem
elles muitas vezes
, nospodem soccorrera nós, nem nós, a
elles
. (P. Ant. Vieira).

A razão está em que, sendo ahi a redundancia, antes
um artificio de estylo para augmentar a energia do discurso,
do que um meio syntaxico para desfazer uma equivocação,
a dicção não toleraria a pausa que costuma ser
avocada pela virgula.

2.° Quando os dous complementos, juntando-se a um
verbo pronominal, determinão nelle a significação, já reflexiva,
já reciproca.

Ex. Outros, por extrema desesperação, sematárão
a si mesmos.

« Amai-vosuns aos outros ; porque nisto quero que
vos conheção em todo o mundo por meus discipulos, se
vos : —
amardesuns aos outros. » (D. Pr. Bartholomeo dos Martyres).

A razão está em que os dous complementos andão tão
indissoluvelmente ligados para, pela redundancia, formar
sentido claro, que, nem o espirito, nem a locução os póde
dissociar.

3.° Quando o primeiro dos complementos pleonasticos.
consta de um pronome relativo.

Ex. Finalmente os mesmos vicios nossos nos dizem o que
é à alma… Uma capacidade
que. — todo o mundoa não
enche, como a de Alexandre
. (P. Ant. Vieira).

Porque se não ha de desenganar o pobre pretendente que
tanto mais — o empobreceis quanto mais — o dilatais f (P.
Ant. Vieira).

A quemnão tem bens, ninguem lhe quer mal. (P. Ant.
Vieira).

A razão está em que os pronomes, preenchendo ahi a
funcção de complementos, exercem, além disso, a de ligação
554entre as proposições, dando-se tão sómente ahi esta differença
que, no primeiro exemplo, o pronome vem a encetar
uma complementaria ; no segundo, uma incidente ; emfim,
no terceiro, uma complementaria invertida ; porém, em
nenhum destes casos pode elle ser seguido da virgula, porque
a suspensão que avocaria este signal, destruir-lhe-hia o
valor de ligação.

7.ª Regra
(elisão de facto)

680. Quando, em proposições successivas, o facto é o
mesmo em todas, costuma-se geralmente, por amor da brevidade
e da euphonia, enunciá-lo só na primeira ; porém é
de regra, em tal caso, assignalar pela virgula o lugar que
occuparia na proposição ou proposições subsequentes, se não
viesse elidido.

Ex. Os valorosos levão as feridas, e os venturosos, —
os premios
. (P. Ant. Vieira).

O temor não é de homens fortes, nem o agouro, — de homens
sabios
. (P. Ant. Vieira).

Das intemperanças do comer, por mais que o tempere a
gula
, nascem as cruezas ; das cruezas, — a confusão e a discordia
dos humores ; dos humores discordes e descompostos, —
as doenças ; e das doenças, — a morte
. (P. Ant. Vieira).

Tudo isto se vê e experimenta com vantagem no tiro de
uma peça : o fumo
é a nuvem ; o fogo, — o relampago ; o estrondo, —
o trovão ; a bala, — o raio
. (P. Ant. Vieira).

A’ parcimonia chamavão escaceza ; á ordem e moderação
no gasto, — pura miseria ; ao trabalho continuo e santo, — vileza
e desautoridade ; á humildade, — baixeza, e animo apoucado
.
(Fr. Luiz de Souza).

Os erros que, do céo abaixo, padecem commummente os
olhos dos homens, e com que fazem padecer a muitos, digo que
não são da ignorancia, senão da paixão
. a paixão é a que
erra ; a paixão, — a que os engana ; a paixão, — a que lhes
perturba e troca as especies, para que vejão umas cousas por
outras
. (P. Ant. Vieira).

« O’ soldado mais valente, mais guerreiro, mais generoso
e mais soldado que eu ! Tu, até agora
, foste meu soldado, e
eu, — teu capitão ; desde este ponto, tu
seras meu capitão, e
eu, — teu soldado
. » (P. Ant. Vieira). .

No horto grangeou Christo as agonias e as prisões ; no
palacio de Annás, — as bofetadas ; no de Gaiphás, — as blasphemias ;
no de Herodes, — os desprezos ; no pretorio de Pilatos
,
555as accusações, os falsos testemunhos, os açoutes, a
corôa de espinhos ; e, por remate de tudo, — a morte dá cruz
entre ladrões no Calvario
. (P. Ant. Vieira).

Variamente pintarão os antigos o a que elles chamávão
Fortuna. Uns
lhe puzerão na mão o mundo ; outros, —
uma cornucópia; outros, — um leme : uns
a formárão de
ouro ; outros, — de vidro ; e todos
a fizerão cega ; todos, —
em figura de mulher ; todos, — com azas nos pés, e os pés sobre
uma roda
. (P. Ant. Vieira).

8.ª Regra
(palavras em apostrophe)

681. Separão-se pela virgula as palavras em apostrophe
quando não implicão o sentido de uma invocação
ou de um sentimento apaixonado, porque, neste ultimo caso,
fica a segunda das virgulas substituida por um ponto exclamativo.

Ex. « Que homem ha, — senhores, — que não busque o
descanço ?
 »

« Não dou, — ó cesar, — conforme a vossa grande fortuna,
senão conforme a minha curta possibilidade
. » (P. Man.
Bernardes).

« mestre, — que hei de fazer para me salvar ? » (P. J.
B. de Castro).

« Pedes-me, — ó phaetonte, — a concessão de uma empreza
bem ardua e elevada
. » (P. Man. Consciencia).

« Agora conheço, — david, — agora conheço, — filho, —
e sei certissimamente que has de reinar. » (P. Ant. Vieira).

« Mas, para que conheçais a que chega a vossa crueldade,
considerai
, — peixes, — que tambem os homens se comem
vivos, assim como vós
. » (P. Ant. Vieira).

« Vem cá, — lucifer ; vem cá, — Adão : tu anjo, e o
mais sabio de todos os anjos ; tu homem e o mais sabio de
todos os homens
. » (P. Ant. Vieira).

9.ª Regra
(ligações preventivas transpostas)

682. Separão-se pela virgula as ligaçõos preventivas
que, por agrado de dicção, vão occasionalmente transferidas
para dentro da proposição ou oração que são normalmente
incumbidas do iniciar (V. § 287).

Ex. Arrenegue, — pois, todo o navegante do jogo, se
556não se guer perder. (P. Ant. Vieira). — (Pois arrenegue todo
o navegante do jogo
…).

Se, — emfim, — o soldado se vê morrer a fome,- deixe-se
morrer, e vingue-se
. (P. Ant. Vieira). — (Emfim, se o soldado
se vê morrer a fome
…).

Necessario é, — logo, — que haja premios para que haja
soldados
. (P. Ant. Vieira). — (Logo necessario é que haja
premios
…).

Importa, — pois, — que não roube a negociação o que se
deve ao merecimento
. (P. Ant. Vieira). — (Pois importa que
não roube a negociação
…).

E, se, — todavia, — ainda contra isto ha que dizer, o
remedio não está longe. (Fr. Luiz de Souza). — (e todavia,
se ainda contra isto ha que dizer
…).

Assim, — pois, — acontece aos soberbos. (P. Man. Bernardes).
— (Pois assim acontece…).

Justifica-se a intervenção da virgula em tal caso pela
consideração de em nada actuar a ligação assim transposta
sobre as palavras entre as quaes appareça collocada.

10.ª Regra
(construcção equivoca)

683. Emfim a virgula tem de intervir ainda entre
termos que, aliás por suas relações reciprocas a repellem,
se ella consegue, por sua interposição, obstar a uma amphibologia
proveniente de uma construcção mais ou menos
descuidada.

Ex. E, sendo estes jogos dos gentios tão honestos, tão
racionaes e tão sizudos, que affronta é dos christãos
que tomassem
delles os dados e cartas
! (P. Ant. Vieira).

Com esta pontuação pode alguem hesitar sobre se se
deve entender dos jogos ou dos gentios a qualificação de tão
honestos, tão racionaes e tão sizudos
. Porém, interpondo-se
uma virgula entre gentios e tão honestos… (e, sendo estes
jogos dos gentios, — tão honestos, tão racionaes e tão sizudos
…),
basta este signal para desfazer a amphibologia, por indicar
que a referencia dos mencionados qualificativos retrocede a
jogos, e não a gentios ; que esta tambem foi a tenção do
autor.

Outrosim evitára-se mais naturalmente a amphibologia
por uma construcção diversa : e, sendo tão honestos, tão racionaes
e tão sizudos estes jogos dos gentios, que affronta é dos
christãos
557

Assim como é natureza da união de muitos fazer um,
assim é milagre da união de poucos fazer muitos
. (P. Ant.
Vieira)..

Quem leria sem pausa : … natureza da união de muitos
milagre da união de poucos… transtornaria o pensamento do
escriptor. Basta a intervenção da virgula para tomar o
sentido claro :

Assim como é natureza da união, — de muitos fazer um,
assim é milagre da união, — de poucos fazer muitos
.

Por ventura a fome do pobre é prato do rico ? ou o padecer
aquelle é arrecadar este ?
(P. Man. Bernardes).

Para obstar a que um leitor distrahido dê a entender
que … aquelle é arrecadar… convem pontuar a oração como
se segue :
ou o padecer aquelle, — é arrecadar este ?

Reprehender obras alheias é cousa facil ; fazê-las sempre
custa mais
. (Franc. Rodrigues Lobo).

Seria transtornar o pensamento pronunciar juntamente :
fazê-las sempre…. Escreva-se, portanto : …. fazê-las, —
sempre custa mais
. Porém mais regularmente fora evitada
a amphibologia pela simples posposição de sempre a custa
(fazê-las custa sempre mais
).

Não parece justiça que, por culpa de poucos, padeção
muitos inconvenientes
. (D. Hieronymo Osorio).

Ficaria igualmente transtornado o pensamento, se o tem
da voz fizesse de muitos uma apposição de inconvenientes.
Pois o sentido é que : Não parece justiça que muitos, por
culpa de poucos, padeção inconvenientes
. Porem, não sendo
licito alterar uma citação, remedeia-se-lhe em tal caso pela
virgula : … padeção, — muitos, — inconvenientes.

Seja, aliás, como for, deve o que escreve, e môrmente
o que escreve para o publico, procurar fugir ás ambiguidades
de dicção, antes por construcções bem estudadas, do
que pelo paliativo de um recurso, tão excepcional á virgula.

Collocação da virgula entre proposições

1.ª Regra
(proposições de termos ou annexos communs)

684. Quando, em duas ou mais proposições successivas
da mesma ordem, isto é, igualmente principaes, complementarias
558ou incidentes, os factos têm, em commum, um
mesmo sujeito, um mesmo complemento directo ou indirecto,
um mesmo predicado, ou emfim ficão todos correlacionados
com uma complementaria ou incidente igualmente
commum, as mesmas proposições se separão umas das
outras pela virgula.

Ex. Os porques desta desunião nenhuma cousa valem, —
nenhuma cousa montão, — nenhuma cousa pesão; e
as consequencias
della
montão tudo, — pesão tudo, — e levão tudo.
(P. Ant. Vieira).

As riquezas, diz S. Bernardo, adquirem-se com trabalho,
hconservão-se com cuidado, — e perdem-se com dôr. (P. Ant.
Vieira).

A aranha não tem pés, — e tem pequena cabeça, — e
sabe muito bem o seu conto
. (P. Ant. Vieira).

Um non, por qualquer parte que o tomeis, sempre é serpente,
— sempre morde, — sempre fere, — sempre leva o veneno
comsigo
. (P. Ant. Vieira).

Para derribar um reino e muitos reinos onde ha
desunião
, não são necessarios batterias, — não são necessarios
trabucos, — não são necessarios balas nem polvora : basta uma
pedra
. (P. Ant. Vieira).

Levados de ambição, querem os homens mais do que podem
e devem
 : por isso, os altos cahem, — os grandes rebentão, —
e todos se perdem
. (P. Ant. Vieira).

Deste modo se conquista no mundo a fama immortal, —
e se assegura tambem no céo a gloria eterna
. (P. Ant. Vieira).

Com a carga demasiada cahe o jumento, — rebenta o
canhão, — e vai-se o navio a pique
. (P. Ant. Vieira).

Se a carga for proporcionada ao calibre da peça,
ao bojo do navio, e á força ou fraqueza do animal
, no
mar far-se-ha viagem, — na terra far-se-ha caminho, — e na
terra e no mar tudo andará concertado
. (P. Ant. Vieira).

Os que vivem e reinão das portas a dentro, estes são os
aduladores
, que louvão o que não devêrão louvar, — e applaudem
o que não devêrão applaudir, — e ajudão o que devêrão
estorvar
. (P. Ant. Vieira).

Antigamente, na republica hebrêa, e em muitas outras, os
tribunaes e os ministros estavão ás portas das cidades… Vinha
o lavrador, — vinha o soldado, — vinha o estrangeiro
com a sua
demanda, com a sua pretenção, com o seu requerimento
 ;
e sem entrar na cidade, voltava respondido no mesmo dia para
a sua casa
. (P. Ant. Vieira).559

Aqui vereis qual é o fructo das minas, e o que fazem
esses rios de ouro e prata trazidos de tão longe
 : com as suas
enchentes
inundão a terra, — opprimem os povos, — arruinão
as casas, — destroem o reino
. (P. Ant. Vieira).

Quando as frotas havião de partir, uns concorrido
com o prestimo de suas artes para os apprestos, — outros com
as contribuições das suas herdades para os bastimentos, —

outros com o dinheiro amoedado para os soldos, — outros com
as proprias pessoas, embarcando-se forçados
. (P. Ant. Vieira).

Na côrte, cada dia mudão senhores, — renovão leis, —
despertão paixões, — levantão ruidos, — abatem os nobres, —
favorecem, os indignos, — desterrão os innocentes, — honrão os
roubadores, — amão os lisongeiros, — desprezão os virtuosos, —
abração os deleites, — escouceião as virtudes, — chorão pelos
máos, — e riem-se dos bons
. (P. Ant. Vieira).

A dilação são dous males ; o desengano sem dilação é um
mal temperado com um bem ; porque
, se me não dais o que
peço
, livrais-me do que padeço:  : — livrais-me da suspensão,- —
livrais-me do cuidado, — livrais-me do engano, — livrais-me da
ausencia da minha casa, — livrais-me da côrte, e das despezas
della, — livrais-me do vosso tribunal, — livrais-me das vossas
escadas, — livrais-me dos vossos criados, — emfim livrais-me de
vós. E, é pouco ?
(P. Ant. Vieira).

685. As ligações copulativas (e, nem, ou) só abrogão
a virgula entre semelhantes proposições quando os factos
por ellas vinculados, estando em immediato contacto, compartem,
além de um mesmo sujeito, os mesmos complementos
ou annexos, caso os tenhão.

Ex. O que sustenta — e conserva os reinos, é a união.
(P. Ant. Vieira).

Accende — e provoca esta batalha a trombeta da fama,
dizendo e bradando que é honra
. (P. Ant. Vieira).

Finalmente o mesmo Deos condemna o meu inimigo porque
é meu inimigo ; pois, se Deos o
condemna — e aborrece, porque
o hei de amar eu ?
(P. Ant. Vieira).

Não ha cidade tão forte, que, por batteria ou por assalto,
ou minada por baixo da terra, ou pelo ar, se não
expugne
e renda. (P. Ant. Vieira).

Mais inventárão — e fizerão os homens a este mesmo
fim de conservar a cada um o seu
 : inventarão — e firmárão
leis. (P. Ant. Vieira).

Tudo o que nasce — e vive neste mundo, a este fim
nasce — e vive. (P. Ant. Vieira).560

O avarento com a rapacidade apanha, — ajunta — e
rouba
quanto pode — e não pode ; e com a tenacidade retem, —
conserva — e afferrolha tudo de tal parte, que nada
lhe sahe da mão
. (P. Ant. Vieira).

Para se gerar um raio é necessario que a materia seja
crassa e pingue, porque se não
dissipe — ou apague o fogo
antes que chegue á terra
. (P. Ant. Vieira).

Eu bem creio do bom entendimento de alguns, que, no mesmo
tempo em que
louvão — e applaudem com a boca, gemem
e chorão com o coração. (P. Ant. Vieira).

A verdadeira caridade não afaga — nem condescende
ao proximo em suas culpas, mas reprehende — e castiga
como póde — e deve. (D. Fr. Bartholomeo dos Martyres).

A lepra pega-se aos vestidos e ás casas, e os consome
e afeia ; tambem a usura destróe as casas e familias, e as
empobrece, despeja — e affronta. (P. Man. Bernardes).

686. Succedendo, porém, que os factos, embora unidos
pela regencia de um sujeito commum, ou não venhão a
topar um com o outro, ou tenhão cada um o seu proprio
complemento ou annexo, ou emfim que, sendo o complemento
um só, este não cáiba senão ao facto junto ao qual
se acha, a ligação copulativa não póde já abrogar a virgula,
porque basta uma ou outra destas disparidades de relações
para desirmanar os factos.

Ex. Tudo renunciou Seneca, — e applicou ao fisco
real
. (P. Ant. Vieira).

Não é homem quem aqui não pasma, — ou não diga
olhando para si
 : « Não posso ! » (P. Ant. Vieira).

Que disserão as arvores que offerecêrão o governo ? Disserão
a cada uma das outras
 : « Vinde, — e governai-nos. »
(P. Ant. Vieira).

Se, emfim, o soldado se vê morrer a fome deixe-se morrer,
e vingue-se. (P. Ant. Vieira).

Estas minas são como as da polvora, que sempre arruinão,
derribão, — e põem por terra
o que lhes fica mais perto.
(P. Ant. Vieira).

A necessidade é a que mette ou precipita o mineiro ao
mais profundo das entranhas da terra ; e, sem temer que as
mesmas montanhas que tem sobre si
, cáião, — e o sepultem,
elle lhes vai cavando as raizes, — e sangrando as veias.
(P. Ant. Vieira).

Porque não lhe diz Deos, a Josué : « esforçai-vos, — e
tende valor
, porque haveis de conquistar esta terra aos inimigos; »
561senão : « esforçai-vos, e — tende valor, porque
haveis de repartir esta terra ao povo de Israel ?
 » (P. Ant.
Vieira).

Finalmente perdem-se, — ou acabão de se perder as
quasi perdidas almas
.. (P. Ant. Vieira).

Com essa mal considerada vaidade, que e o que adquiristes,
ou o que perdestes ? (P. Ant. Vieira).

O que adquiristes com o que tinheis, — e com o que
não tinheis
, forão as invejas dos amigos, as murmurações dos
sizudos, as perseguições dos credores, e a desgraça e máo conceito
dos mesmos principes a quem quizestes lisonjear
. (P. Ant.
Vieira).

Oh ! caso estupendo e inaudito ! ninguem pôz a mão na
pedra ; ella por si
se despegou, cahiu, — e rodou do monte,
e desfez. (P. Ant. Vieira).

A isto me respondeu o infante D. Duarte : « Assim quero
eu que
nos vejão, — e entendão como devem de tratar
seus mestres
. (Mestre André de Rezende).

687. Vindo a verificar-se, junto a factos entre si correlacionados,
uma ou outra das theses ventiladas em relação
a termos compostos nos §§ 671, 672 e 673, a interposição
da virgula tem lugar pelos mesmos motivos alli allegados.

Ex. a amizade, — ou suppõe, — ou induz igualdade nos
sujeitos
. (P. Man. Bernardes).

Concluirei finalmente por dizer que, — nem se devem inteiramente
desprezar os aduladores, — nem seguir cegamente
o que elles dizem
.

E’ a guerra aquella calamidade composta de todas as
calamidades, em que não ha mal algum que
, — ou se não
padeça, — ou se não tema
, nem bem que seja proprio e seguro.
(P. Ant. Vieira).

Mas, por mais que destas circumstancias conjecture a vansabedoria
felicidades, o certo é que
, — nem o tempo as influe,
nem a patria as produz, — nem dos mesmos pais se
herdão
. (P. Ant. Vieira).

A adolescência, em quem ferve o sangue, e, com elle, os vicios,
corre como bruto sem rédea, precipita-se como cégo sem
guia, se
, — ou a não encaminhão, — ou a não soffreião.
(Fr. Man. Consciencia).

Sahiu a pomba da arca, e diz o texto sagrado que, —
ia, — já tornava, — já tomava para uma parte, — já
para outra
, e que não achava onde descansar. (P. Ant.
Vieira).562

A el rei D. João III disse um fidalgo muito pobre, e de
muitos serviços
 : « Senhor, sei-vos servir, — e não sei vos
pedir
. (P. Man. Bernardes).

Os jogos são tão antigos como o tempo ; e, porque este
passa, — e não torna, não sei se com razão ou sem ella,
lhes chamavão passa-tempos
. (P. Ant. Vieira).

As primeiras creaturas que com suas vozes nos injurião e
envergonhão, entre aquelles que o mesmo Senhor
creou, — mas
não remiu
, — são as aves. (P. Ant. Vieira).

E’ a luz mais benigna que o sol, porque o sol, — não só
allumia, — mas abraza;
a luz allumia, — e não offende.
(P. Ant. Vieira).

Toda a creatura dotada de vontade livre, — não só appetece
sempre ser mais do que é, — senão tambem quer
mais do que pode
. (P. Ant. Vieira). — (… e sim tambem
quer
…).

Primeiramente sahia este rio de fogo da boca de Deos,
porque
, — não só as cousas naturaes são effeitos da sua
boca e da sua voz, — senão tambem as artificiaes
, quando,
querendo ou permittindo, dispõe sua providencia que se fação
,
(P. Ant. Vieira).

Tão tyrannisadas andão entre os aduladores as mesmas
majestades aduladas, que
, — não só lhes não dizem a verdade,
nem querem que outros a digão, — mas afastão e
lanção muito longe da côrte a todos os que lh’a podem
dizer
. (P. Ant. Vieira).

2.ª Regra
(proposições complementarias)

688. Assim como já forão definidas, as proposições
complementarias são as que se arrimão, ou a uma proposição
deficiente, para lhes perfazer o sentido (Pediu Sansão
a seus pais
que lhe dessem por mulher uma philistéa),
ou a um simples termo de outra proposição, para lhe tornar
a significação estricta (Concederão-lhe o — que pedia). —
(P. Ant. Vieira).

Porém, em um como no outro caso, o seu caracteristico
essencial é que, sendo sempre encetadas por uma ligação
subordinativa (que e se, com os congeneres), não se
possão subtrahir sem que disso fique invalida a oração
(Pediu Sansão a seus pais… ?! — Concedêrão-lhe o… ?!).

Tão intima, tão indefectivel correlação entre a proposição
complementaria e a proposição ou termo anterior a
563que se prende, deveria de per si bastar para tornar intuitiva
a conveniencia da omissão de toda e qualquer virgulação
no lugar onde se effectua o enlaçamento ; porém
dá-se mais outra consideração, não menos valiosa, e vem
a ser que, sendo as incidentes tambem geralmente iniciadas
por uma ligação subordinativa, ellas, pelo contrario, requerem
a anteposição da virgula como signal de discrime,
constando disso que, podendo ser eliminadas sem invalidação
da oração, o seu prestimo é meramente accessorio ;
pois apenas adduzem ao pensamento geral uma explicação,
uma confirmação, azada sim, mas, em rigor, desnecessaria.

Ex. Os homens com suas más e perversas cubiças vêm
a ser como os peixes
, — que se comem uns aos outros. (P.
Ant. Vieira). — Pois, tirando-se a incidente, nem por isso
deixa de permanecer intelligivel e veridica a oração : Os
homens com suas más é perversas cubiças vêm a ser como os
peixes
.

Não reparo agora em que o Senhor afirme que mais erão
aquelles dous ceitis do que aquell´outras ofertas maiores
, —
porque logo elle mesmo deu a razão disso, — Comparando
o que ficava aos ricos
, — que era muito, — com o que ficava
áquella pobre
, — que era nada. (P. Man. Bernardes). — Não
reparo agora em que o Senhor afirme que mais erão aquelles
dous ceitis do que aquell´outras ofertas maiores, comparando o
que ficava aos ricos com o que ficava áquella pobre
.

Observação. Este criterio, que discrimina pòr um
meio facil duas especies de proposições essencialmente diversas,
é a contestação categorica do seguinte aphorismo,
de grande voga nas escolas, apezar de ser um dos mais
absurdos do empirismo grammatical : « Em portuguez, antes
de
que, sempre virgula. » Que não haja nesta qualificação
de absurdo nenhuma irrespeitosa exageração de censura,
deprehende-se da curiosa observação que, na mesma obra
onde tal preceito apparece preconisado em teor de oráculo,
como nas mais que com toda a deferencia o adoptárão,
podem-se contar ás centenas os ques não precedidos do
virgulino batedor, o que é certamente a confissão mais
ingênua de, mesmo para os adeptos, ser tão absoluto principio
inconciliavel, em grande numero do casos, com os
estylos constantes da lingua portugueza. Imagine, com
effeito, alguem, por menos versado que seja em questões de
pontuação, se leria sem pasmo o tão notorio proverbio do
P. Ant. Vieira, que ahi se segue, recortado pela virgula de
conformidade com a citada regra : « Quem quer mais do, —
que lhe convem, perde o, — que quer, e o, — que tem ! »

Ora dahi proveiu o que sempre provem do dogmatismo
564desprezador da experimentação : uma anarchia tão completa
nesta parte da pontuação, que, até nas obras destinadas a
servir de normas nos cursos de lingua, trechos da mais
perfeita identidade ostentão-se discordemente pontuados,
sendo assim de suppôr que a tarefa da revisão foi incumbida
a quem nenhum principio tinha assente na materia.

Um pernicioso preconceito que se originou de tantas
variantes inexplicadas e inexplicáveis, é a opinião assaz
goralmente diffundida que a pontuação, mera questão de
tino pratico, não merece as honras de um regulamento
baseado no raciocinio, e menos ainda as ventilações de um
estudo detido e tanto é assim, que a maior parte dos
grammaticos enfeixárão inconsideradamente os signaes de
pontuação com os signaes orthographicos, como se houvesse
alguma cousa commum entre traços graphicos interessando
apenas a pronunciação das palavras, e traços
graphicos graduando os pensamentos conforme a sua mutua
dependencia ou independencia.

Entretanto bom é ficar advertido de que não é nada
somenos o papel que representa a pontuação no assento
das transacções sociaes ; porquanto, quer nos tratados internacionaes,
quer na redacção das leis, quer emfim nas
simples convenções de interesse particular, o desejo de
acertar na applicação de seus signaes desperta nos homens
serios quasi a mesma circumspecção e desvelo que a propria
formulação do texto, porque sabem quão poderosamente
ella concorre a firmar um sentido determinado, ou a prevenir
equivocações.

Porém, voltando ao aphorismo que motivou estas reflexões,
não se póde negar que elle tem toda a applicação
em allemão, porquanto complementarias e incidentes se encontrão,
nessa lingua, igual e invariavelmente precedidas
da virgula. Todavia nenhuma inferência se póde deduzir
desse uso para legitimar a sua introducção nos idiomas
neo-latinos em geral, e no portuguez em particular. Basta,
com effeito, attender á estructura artificiosamente enroscada
da falla tudesca para chegar á convicção de que póde
ter nella todo o cabimento uma virgulação que nenhum
tem em linguas de construcção mais lisa, como as neo-latinas.
e afinal, ainda quando assim não fosse, bem pouco
importa o que fação outros, comtanto que o que fazemos,
tenha o cunho do bom senso.

689. E’ consequencia natural do principio aqui adoptado
que as complementarias encadeadas, isto é, normalmente
infileiradas umas após as outras, não admittam a
interposição da virgula ; porque, sendo successiva e indefectivelmente
565solidarias, não apresentão ao espirito solução
alguma de continuidade.

Ex. E’ impossivelque a inveja deixe de perseguir
a quem os principes amão. (P. Ant. Vieira).

Não é bom para amigo oque me revela os segredos
de outros — com quem primeiro teve amizade
. (P. Man.
Bernardes).

Primeiramente assentemosque a verdadeira amizade
não pode consistir entre pessoas — que a não têm com
deos
. (P. Man. Bernardes).

Costumava o sabio D. Afonso, rei de Aragão, não negar
seus favores ás pessoas
que sabia muito bem — que dizião
mal delle
. (P. Man. Bernardes).

Confessoque tomára ver esta linguagem em toda
outra pessoa antes que na boca dos — que tanto me
tocão
. (Fr. Luiz de Souza).

Quereisque se cuide — que sustentais o pobre pretendente
na falsa esperança — porque são mais rendosos
os — que esperão — que os desenganados ?
(P. Ant. Vieira).

Confessoque não me atrevo nem posso acabar de
commigo despender nem um se real fora dos termos

que devo á vida monastica — que professei. (Fr. Luiz
de Souza).

Não ha palavrasque possão encarecer nem declarar
o sobresalto — que o homem recebeu — quando conheceu

que tinha o arcebispo em casa. (Fr. Luíz de
Souza).

Eis-aqui oque vem a não poder os — que querem
mais — do que podem
. (P. Ant. Vieira).

Considero euque ha mandamentos da lei da inveja
assim como ha mandamentos da lei de deos. (P.
Ant. Vieira).

Andava Saul pelos montes á caça de David para lhe
tirar a vida
quando acaso entrou se em uma gruta
onde o mesmo david estava escondido com os poucos
que seguião sua fortuna. (P. Ant. Vieira).

Nós espantados de uma cousa tão nova, lhe respondémos
que lhe pediamos — que nos dissesse — que homem
era aquelle
. (Fernão Mendes Pinto).

690. Achando-se, porém, uma complementaria encravada
em outra proposição, convem assignalar-lhe por uma
virgula o lugar onde acaba, para por este meio obstar a
566que os termos das duas proposições venhão a ser por acaso
confundidos, e porque, além disso, uma pausa sensivel da
voz o requer.

Ex. A maior pensãocom que deos creou o homem,
é o comer. (P. Ant. Vieira).

A mais dura cousaque tem a vida, — é chegar a
pedir
. (P. Ant. Vieira).

Dar só aosque merecem, — é premiar. (P. Ant.
Vieira).

A primeira vezque se prophetisou neste mundo
haver um homem de servir a outros
, — foi com o nome
de maldição
. (P. Ant. Vieira).

A lingua hebraica chama ao negar oque se pede, —
envergonhar a face. (P. Ant. Vieira).

Istoque faz a natureza nos bosques, — faz a adulação
nos palacios
. (P. Ant. Vieira).

Oque disse a primeira voz, — é o — que todos uniformemente
repetem
. (P. Ant. Vieira).

Oque sustenta e conserva os reinos, — é a União.
(P. Ant. Vieira).

Para derribar um reino e muitos reinosonde ha desunião,
não são necessarios balas. (P. Ant. Vieira). —
(… em que ha desunião…).

O amigoque se ha de escolher e aceitar, — não
ha de ser de natural suspeitoso, iracundo, mudavel, chocalheiro
e verboso
. (P. Man. Bernardes).

Está posto em razão — quequem fez muitos pobres,
lhes fizesse casa — onde os recolher. (P. Man. Bernardes).
— (Está posto em razão — que aquelleque fez muitos
pobres
, — lhes fizesse casa — em que os [pudesse] recolher).

Tudoquanto houve, — passou ; — tudoquanto é,
passa. (P. Ant. Vieira). — (Tudo oque houve, —
passou ; tudo oque é, — passa).

Quem quer, — vai ; quem não quer, — manda. (P. Man.
Bernardes). — (Aquelleque quer, — vai ; aquelleque
não quer
, — manda).

692. Se succede que, em vez de uma só complementaria,
venhão a se achar encravadas duas ou mais encadeadas,
a virgula se remove para depois da ultima.

Ex. Para fundamento doque pretendo dizer sobre
o soberano nascimento — de que celebramos a memoria
567neste felicissimo dia
, — consideremos primeiro — que cousa é
nascer, — e philosophemos um pouco
. (P. Ant. Vieira).

Oque mais se deve sentir nestas desattenções
dos — que têm officio de responder
, — são os damnos publicos —

que déllas se seguem. (P. Ant. Vieira).

A pedraque fez aquelle tiro fatal — com que de
um golpe obrou tamanho estrago
, — que mão e que impulso
foi o — que a atirou ?
(P. Ant. Vieira).

Mas, no mesmo tempoem que estás chorando o
que condemnas, — has de louvar o — que choras ! (P. Ant.
Vieira).

Respondeu S. Andréque todos os pães — que havia,
não passavão de cinco. (P. Ant. Vieira).

3.ª Regra
(complementarias transpostas)

693. As complementarias são transpostas quando a
ligação que as enceta, não se acha, por qualquer motivo,
immediatamente posposta á proposição ou ao termo ao
qual ella se prende pelo sentido. Ora, por ampliação de
um principio já aventado em relação aos termos, é natural
que, em tal caso, a mesma complementaria tenha de ser
precedida da virgula, para ficar estabelecido por este signal
que elle nada tem de destrinçar com o que lhe vai immediatamente
anteposto. E esta é a razão tambem por que
as complementarias collectivas aceitão entre si a virgula
que as encadeadas repellem.

Ex. Houve jamais algum anachoreta dos — que habitavão
as covas
, — que fizesse tal penitencia ? (P. Ant. Vieira).
— (Dos anachoretas — que habitavão as covas, — houve jamais
algum
que fizesse tal penitencia ?).

O mesmo Salomão confessa de si que nenhuma cousa
virão seus olhos, nem inventarão seus pensamentos, nem appetecêrão
os seus desejos
, — que lhes negasse. (P. Ant. Vieira).
— (… nenhuma cousa — que lhes negasse).

Um é affeiçoado á caça; e, — quando os cães andão
luzidios e anafados
, — ver-lhe-heis os criados pallidos e
mortos a fome
. (P. Ant. Vieira). — (… e ver-lhe-heis os criados
pallidos e mortos a fome
quando os cães andão luzidios
e anafados
).

Porém, — depois que a terra se dividiu em differentes
senhores
, — logo houve guerras e batalhas. (P. Ant.
568Vieira). — (Porém houve guerras e batalhas logodepois
que a terra se dividiu em differentes senhores).

E me affirmou pessoa — que o podia saber, — que o escrivão
desta judicatura trazia provisão de sua majestade
.
(P. Ant. Vieira). — (e pessoa — que o podia saber, —
affirmou-me
que o escrivão desta judicatura trazia
provisão de sua majestade
).

Grande alegria será a dos — que agora padecem, —
quando oução dizer : céo ! céo ! (P. Ant. Vieira). — (Dos —

que agora padecem, — grande será a alegriaquando oução
dizer
 : céo! céo!).

Muito ferro e muito bronze, muito ouro e muita prata
tinha a estatua ; mas
, — porque lhe faltou a união, — não
lhe servirão de nada estes metaes béllicos e ricos
. (P. Ant.
Vieira). — (… mas não lhe servirão de nada estes metaes bellicos
e ricos
porque lhe faltou a união).

Elles, — quando nos virão, — parárão um pouco. (Fernão
Mendes Pinto). — (Elles parárão um poucoquando nos
vírão
).

« Faze conta — que o teu reino é tua casa, — e que os
teus vassallos são os teus amigos
. » (P. Man. Bernardes).
— (… e faze contaque teus vassallos são teus amigos).

« Estas palavras querem dizer — que V. A. é pó e cinza,
e que nella se ha de tornar muito brevemente. »
(Fr. Luiz de Souza). — (... e estas palavras querem dizer
que nella…).

Observaçães. A suppressão accidental da ligação subordinativa
não autorisa a intervenção da virgula.

Ex. Pediu Sansão a seus paisque lhe dessem por
mulher uma philistéa. Da mesma maneira pediu o prodigo a
seu pai
lhe desse em vida a herança que lhe havia caber
por sua morte
. (P. Ant. Vieira).

4.ª Regra
(complementarias por comparativos)

694. Toda e qualquer comparação é a operação que
effectua o juizo quando, tendo de se pronunciar sobre dous
termos syntaxicos que lhe são parallelamente propostos,
opina pela sua igualdade, inferioridade ou superioridade
correlativa.

O primeiro dos dous termos é geralmente notificado
pela assistencia de um adverbio de quantidade, ou por uma
569palavra implicando em sentido ou por contracção um tal
adverbio ; o segundo o é sempre por uma conjuncção ou
locução subordinativa, ou palavra implicando por contracção
uma conjuncção desta especie.

As expressões caracteristicas dos tres gráos do comparativos
são :

Para o de igualdade,

tãocomo ou quão,
tal
como ou qual,
tanto
como ou quanto ;

Para o de inferioridade,

menosque ou do que ;

Para o de superioridade,

maisque ou do que.

Dá-se tão sómente, em relação aos comparativos de
igualdade, uma excepção, que é a seguinte :

Falta frequentemente, junto ao primeiro termo, o vocabulo
que o tem de caracterisar (tão, tal, tanto).

Ex. Sejão os principescomo Christo no repartir, e
sejão os vassallos
como os discipulos no contentar-se, e cessarão
as queixas
. (P. Ant. Vieira). — (Sejão os principes
taes — como Christo… e sejão os vassallos taes — como os
discipulos
…).

Semelhante omissão se nota nos seguintes exemplos :

As sortes seriãoquaes quiz a ventura ; mas a peior e
mais certa foi a da pobre casa
. (P. Ant. Vieira). — (As sortes
serião
[taes] — quaes quiz a ventura…).

O avarento, com a rapacidade, apanha, ajunta e rouba
quanto póde e não póde. (P. Ant. Vieira). — (… ajunta e
rouba
tanto — quanto póde e não póde).

695. De tudo o que fica exposto, o que intuitivamente
occorre, é que, sendo da essencia da comparação adduzir
ao espirito, em acto continuo, dous termos para que sobre
elles opere o juizo, não pode razoavelmente separar-se por
algum signal de pontuação o que mentalmente anda tão
abraçado.

Ex. Os jogos são tão antigoscomo o tempo. (P. Ant.
Vieira).

Assim illudido pelos Magos, o triste de Herodes andaria
tão raivosocomo parvo. (Fr. João de Ceita).570

« Lá vai o senhor D. João de Mascarenhas, tal — qual
os Mouros e Gentios confessão. » (D. João de Castro).

Galvisio Sabino era tão pobre de memoriacomo abastado
de fazenda
. (P. Man. Bernardes).

A doutrina que ensinaes é tal — como à vossa vida. (Pr.
João de Ceita).

Nestes e outros semelhantes exemplos, taes importava
fossem os sacrificios
qual era o deos a quem se dedicavão.
(P. Man. Bernardes).

Porque se não ha de desenganar o pobre pretendente que
tanto mais o empobreceisquanto mais o dilatais ? (P. Ant.
Vieira).

Menos mal será um ladrãoque dous. (P. .Ant.
Vieira).

Parece-me que vejo menos os estragos da violencia de
um rio
que de um trovão subterraneo. (D. Pr. Caetano
Brandão).

Mais louvavel é evitar as injuriasdo que vingar-se
dellas
. (P. Ant. Vieira).

Mais força tem a verdade simplesque a mentira eloquente.
(P. Balthazar Telles).

Mais dificultosos serão de achar dous homens de bem
que um. (P. Ant. Vieira).

Maior gloria é emendarque castigar. (P. Ant. Vieira).

E’ melhor a ruim pazque a boa guerra. (P. Ant.
Vieira).

São peiores os homensque os corvos. (P. Ant.
Vieira).

Parece menor temeridade tirar do fundo do mar perolas
e aljofar
que do seio da terra o inimigo ouro. (Franc.
Rodrigues Lobo).

Então o lobo, enfadado tanto maisquanto mais convencido,
disse
 : « Pois, se não fostes vós, foi carneiro vosso pai. »
(P. Man. Bernardes).

Observação. O adverbio antes serve frequentemente
a formar um comparativo que pode ser equiparado ao do
superioridade, e por isso exclue do mesmo modo a virgula.

Ex. Dizia Seneca que antes queria offender com a
verdade
que agradar com a mentira. (P. Ant. Vieira).

Antes queira o principe mediocridade propriaque demasia
571alheia
. — antes queira bons ladosque pés ligeiros.
(P. Ant. Vieira).

Estimão-se e conservão-se livros de fabulas, comedias, novellas,
cavallarias, e outros de mesma raça, que fôra melhor
estarem
antes na fogueiraque na estante. (Fr. Man.
Consciencia).

O mesmo se dá com um ou outro adverbio avocando
tambem a ligação que ou do que.

Ex. Esta doutrina ha de ser dourada e pequenina como
pilula, que quasi se sente
primeiro engulidado que amargosa.
(P. Man. Bernardes).

696. Apresentando-se, porém, invertidos os termos
constitutivos da comparação, a virgula tem de intervir
para, como em todos os casos de transposição, assignalar a
anomalia de estructura.

Ex. Este é o primeiro privilegio dos pobres, a quem a
Providencia divina
, — quanto nega de abundancia e regalo,
tanto accrescenta de vida. (P. Ant. Vieira). — (… a quem
a Providencia divina
, « accrescenta tanto de vidaquanto
nega de abundancia e regalo).

Como ninguem póde servir a dous senhores sem amar a
um, e ser inimigo do outro, provado fica sem replica que
, —
quantos forem nos palacios os amigos dos seus interesses, —
tantos são os inimigos dos reis. (P. Ant. Vieira). — (… provado
fica sem replica que
tantos são os inimigos dos reis
quantos forem nos palacios os amigos dos seus interesses).

A virgula tem de intervir igualmente quando, estando
embora normalmente constituidos os termos da comparação,
uma proposição vem a interpôr-se entre um e outro,
porque fica assim interrompida a simultaneidade de apreciação
na operação do juizo sobre os mesmos termos.

Ex. Gosta antes dos — que te argúem, — que dos — que
te adulão
. (P. Ant. Vieira).

Disto lhe resultou, diante delles, novo louvor, e nova gloria,
edificando-se muito
mais do desacostumado genero de vingança

que tomava de suas injurias, — do que se tinhão escandalizado
da semrazão dellas
. (Fr. Luiz de Souza).

Os titulos de senhores da conquista, navegação e commercio
mais dizem o — que eramos, — do que o — que somos.
(P. Ant. Vieira). — (… mais dizem o — que eramos, — do
que
[dizem] o — que somos).

Entendeu David que maior guerra fazia a Absalão com
um homem — que lhe rompesse os seus segredos
, — que com
572muitos mil homens que lhe rompessem os exercitos. (P. Ant.
Vieira).

5.ª Regra
(complementarias pelos superlativos
tão, tal e tanto)

697. O principio que veda a interposição de um signal
de pontuação ante complementarias normalmente enlaçadas
com o termo ou a proposição com a qual pelo sentido se
prendem, soffre duas derogações, das quaes é esta a primeira.
Toda a questão, no caso vertente, pousa em uma
distincção que parece nunca ter sido ventilada em grammatica
alguma, e por isso merece exame mais detido.

Tem-se considerado a enunciação do adverbio tão como
a indicação indefectivel de um comparativo de igualdade
porque ella o é effectivamente em grande numero de casos.
Porém, se o mesmo vocabulo vem a actuar sobre um termo
ao qual nenhum outro, nem expressa, nem occultamente
corresponde, claro é que não ha mais comparação. Ora
isto é o que se verifica em um sem-número de casos, não
só em relação a tão, senão tambem em relação a tal e
tanto, onde o mesmo adverbio apparece contrahido.

Ex. Dizer não a quem pede, é dar-lhe uma bofetada com a
lingua
 : tão dura, tão aspera, tão injuriosa palavra é um
não
. (P. Ant. Vieira).

Pois, como appeteceis o que não podeis ? Porque tal é a
cegueira de um entendimento ambicioso, e a ambição de uma
vontade livre
. (P. Ant. Vieira).

Levados de ambição, querem os homens mais do que podem
e devem… Por isso se vêm
tantas quedas, tantos desastres
e
tantos naufragios no mundo. (P. Ant. Vieira).

Nestes tres exemplos, como em todos os casos analogos,
o alcance significativo de tão, junto á palavra em que
actúa, recorda de um modo tão frisante os superlativos
compostos, que nenhuma inconveniencia se dá em considerá-lo
como concorrendo a formar este gráo de significação
(… muito dura, muito aspera, muito injuriosa palavra é
um não
 ; — … muito grande é a cegueira de um entendimento
ambicioso
 ; — … por isso se vêm muito frequentes
quedas, muito frequentes desastres, muito frequentes naufragios
no mundo
).

Mas, se até aqui nenhuma opportunidade ha, quanto
á pontuação, em attribuir a tão o referido alcance significativo,
o caso torna-se muito diverso quando, com este
573mesmo valor do superlativo, chega elle a avocar em seguimento
uma proposição que, por andar sempre encetada por
uma ligação subordinativa, e ser inauferivel, constitue uma
complementaria tão formal quanto o são as que se originão
de um comparativo.

Sómente, como nada se intrometteu a esmo nessa admiravel
estructura da linguagem, apezar da crença em
contrario que procurão diffundir espiritos superficiaes,
existe um signal que torna impossivel a confusão das complementarias
por comparativo com as complementarias por
superlativo : este signal é que, constando a ligação sempre
e necessariamente de como, quão, qual ou quanto nas de
comparativo, ella sempre e necessariamente consta da conjuncção
que nas de superlativo (tão, tal, tanto, — que).

Ora, como se mesmo assim fosse ainda insufficiente a
indicação, todos os escriptores de nota forão levados, póde-se
dizer instinctivamente, a procurar, por mais um meio,
de obstar a qualquer equivocação entre estas duas especies
de complementarias, e esse meio foi o de introduzir constantemente
a virgula ante as complementarias de superlativo,
desprezando-se deste modo a applicação restricta de
uma formula geral para, em caso especial, resalvar-se a
lucidez e integridade dos pensamentos.

Ex. No exercido das armas era el rei D. Duarte tão
dextro, — que
ninguem o excedia. (Duarte Nunes de Leão).

Em umas flores, o feitio é tão exquisito, — que parece
que seu artifice estava então curioso e applicado
. (P. Man.
Bernardes).

São os dous moimentos (monumentos) tão juntos, — que
parecem um só. (Fr. Luiz de Souza).

Estão estas vidraças todas tão fortes no assento, tão
cristallinas
na vista, e tão vivas nas cores, — que, passando
já de duzentos annos que servem, parecem na representação
obra moderna
. (Fr. Luiz de Souza).

E’ cousa tão natural o responder, — que até os penhascos
duros respondem, e, para as vozes, têm echos. Pelo
contrario, é
tão grande violencia não responder, — que, aos
que nascerão mudos, fez a natureza tambem surdos
. (P. Ant.
Vieira).

A altura da igreja é tal, — que um braceiro chega mal,
atirando com uma pedra, ao alto do tecto
. (Fr. Luiz de
Souza).

Por outras partes sobem coruchéos mui altos, fabricados
por tal ordem
, — que dão fácil subida ao alto. (Fr. Luiz de
Souza).574

E’ tal o doce veneno da lisonja, — que, entrando pelos
ouvidos, cega tambem os olhos
. (P. Ant. Vieira).

Tal é o mundo, — que muitas vezes parecem finezas da
amizade o que são odios refinadissimos
. (P. Ant. Vieira).

Taes são os bens da fortuna, — que carecer delles é miseria,
e possui-los, perigo
. (P. Ant. Vieira).

O avarento afferolha tudo de tal parte, — que nada lhe
sahe da mão
. (P. Ant. Vieira).

Sansão, tirado em publico para ludibrio do povo, foi tratado
com
taes escarneos e indecencias, — que, de corrido e
affrontado, com suas proprias mãos se tirou a vida
. (P. Ant.
Vieira).

Achar algum amigo é o mesmo que achar um thesouro, e
tal, — que os de ouro e prata não têm comparação com elle.
(P. Man. Bernardes).

A variedade das flores é tanta, — que não sei onde havia
thesouro de tão diferentes ideas que as desenhasse
. (P. Man.
Bernardes).

Cada palmo tem tanto que ver de delicadeza e artificio,
de trabalho e majestade
, — que, considerado com attenção, impossibilita
o engenho, e embota a penna para o declararmos
.
(Fr. Luiz de Souza).

Tudo isto fazião ellas com tanto primor e concerto, e
com uma quietação
tão honesta, grave e severa, — que
nós iamos como pasmados. (Fernão Mendes Pinto).

Sesostris, rei do Egypto, depois de vencer outros quatro
reis vizinhos, se desvaneceu a
tanta soberba, — que, em lugar
de outros tantos cavallos, mandou que os quatros reis vencidos
tirassem pela sua carroça
. (P. Ant. Vieira).

Mais facil era antigamente conquistar dous reinos na
India que repartir duas commendas em Portugal. Isto foi, e
isto ha de ser sempre. E esta, na minha opinião, é a maior
dificuldade que tem o governo do nosso reino ; e
tanto assim,
que se póde pôr em problema na politica de Portugal se é
melhor que os reis fação Mercês, ou que as não fação
. (P.
Ant. Vieira).

A mòr pena que os Athenienses tinhão em suas leis, era
a que se dava ao que descobria o segredo ; e, em
tanto se
guardava
, — que tendo um tempo guerra com Philippe de Macedonia,
tomarão acaso umas cartas que mandava á sua mulher
Olympia, e lh’as tornarão a mandar cerradas
. (Liogo do
Couto).

A prata, no tempo de Salomão, diz a Sagrada Escriptura
575que era tanta em Jerusalem como as “pedras da rua ; e neste
mesmo tempo erão
tantos, tão multiplicados e tão excessivos
os tributos com que o glorioso e miseravel povo sustentava
a fama de ser seu um tal rei
, — que, não podendo
supportar o peso tão intoleravel com que em toda a vida os
opprimiu, e nem na morte os alliviou, a primeira cousa que
pedirão a seu successor Roboão, foi a suspensão e remedio
destas oppressões
. (P. Ant. Vieira).

Observação. O adverbio assim, quando convertivel
em de tal maneira, avoca por isso mesmo a mesma ligação,
e conseguintemente o mesmo signal de pontuação.

Ex. Assim se tempere o rigor da justiça, — que os ministros
mostrem compaixão, e não vingança
. (P. Ant. Vieira).
— (De tal maneira se tempere o rigor da justiça, — que os
ministros mostrem compaixão, e não vingança
).

Advertencia. Não se confunda com os termos tanto
e que das referidas complementarias a locução conjunctiva
tanto que, de sentido analogo ao de logo que ou já que ;
visto como, por ser uma locução, isto é, uma expressão de
significado indivisivel, não admitte a interposição da virgula.

Ex. A primeira cousa que fzerão os Nheengaibas tanto
que
se resolverão á guerra com os Portuguezes, foi desfazer e
como desatar as povoações em que vivião
. (P. Ant. Vieira). —
(… logo que se resolverão…).

Com toda a minha alma lhe digo que, tanto que chegar
esta nova, V. A.
se sáia a cavallo por Lisboa. (P. Ant.
Vieira). — (… logo que chegar esta nova…).

Nota. Com sentido e valor da locução conjunctiva
comtanto que encontra-se, porém menos frequentemente, a
locução com tal que.

Ex. Aplacado, o rei disse que perdoava com tal que,
antes de sahirem de palacio, havião de dar conta de todas as
suas rendas e estados
. (P. Man. Bernardes).

6.ª Regra
(complementarias por — se)

698. Todas as proposições iniciadas pela ligação se
são complementarias, porque nenhuma se deixa eliminar
sem desvirtuar o pensamento ao qual se prende. Entretanto,
como a significação deste vocabulo não é uma só e sim
dupla (V. o § 275), a pontuação interveiu para estremar-lhe
as accepções.576

699. O se condicional, reconhecível por se prestar a
ser supprido pela locução caso que, passando então para o
subjunctivo o facto em que ella actúa, a não ser que ahi
já se ache, enceta um genero de proposição de indole essencialmente
movediça ; porquanto até mais habitualmente
encontra-se ella anteposta do que posposta á proposição de
que depende, o que a faz um tanto parecida com as incidentes.

Seja por este ou por outro motivo, a regra que lhe
assigna a observação aos estylos mais seguidos e mais
aceitaveis, é que a virgula a separe da proposição a que
se arrima, tanto nos casos de collocação normal ou directa
como nos do collocação anormal ou invertida, vindo a ser
assim este o segundo dos dous casos de derogação á lei
que rege as complementarias.

Ex. Que se corte a lingua á fama, — se for injusta.
(P. Ant. Vieira).

Se se guardar esta igualdade, — entrará em esperanças
o mosqueteiro e soldado de fortuna
. (P. Ant. Vieira).

Como se animará o soldado a iscar a honra por meio
das bombardas e dos mosquetes
, — se vê em um peito o
sangue das balas, e noutro a purpura das cruzes ?
(P.
Ant. Vieira).

Se alcança mais este com o seu engano que o outro
com a sua verdade
, — quem haverá que trabalhe ? quem haverá
que se arrisque ? quem haverá que peleje ?
(P. Ant.
Vieira).

Que importa que os cansemos em fechar as cidades de
muros
, — se a brecha está aberta nos corações ? (P. Ant.
Vieira).

Pois, — se na união está o remedio, e na desunião,
a ruina
, — porque nos não aconselhamos com a nossa mesma
desunião para nos unirmos ?
(P. Ant. Vieira).

Não nos enganára o demonio com o mundo, — se nos
viramos e conhecêramos bem o que é a alma
. (P. Ant.
Vieira).

Se o mundo todo não pesa uma alma, — como pesão
tanto estes pedacinhos do mundo ?
(P. Ant. Vieira).

Este modo de accrescentar fazenda, tambem me atrevera
eu a dizer que é bom
, — se neste mundo não houvera uma
conta, e noutro mundo, outra
. (P. Ant. Vieira).

se no outro mundo não houvera inferno, e neste
mundo não houvera justiça
, — era muito bom. (P. Ant ;
Vieira).577

Aguas e annos, — se se não aproveitão com bons empregos,
perdidos são, e pouco de estimar. (Fr. Luiz de
Souza).

Observação. Importa notar que todas as vezes que
um imperativo disfarçado (V. § 421) se deixa converter,
por meio de se, em proposição condicional, o seu valor
logico não é já o de uma principal, e sim o de uma mera
complementaria, em tudo adstricta á referida regra.

Ex. Ponde uma coroa na cabeça de alexandre, —
conquistará os reinos de Dario. (P. Ant. Vieira). — (se puzerdes
uma coroa na cabeça de alexandre
, — conquistará
os reinos de Dario
).

Seja este meu trabalho de vós favorecido, — e eu o
haverei por bem empregado
. (Franc. Rodrigues Lobo). — se
fôr este meu trabalho de vós favorecido
, — eu o haverei
por bem empregado
).

Estimai o fructo dos engenhos, — e darão fructo.
(Franc. Rodrigues Lobo). — (se estimardes o fructo dos
engenhos
, — darão fructo).

castigue o principe culpados, premeie benemeritos,
instrua-se em religião
, — será eternizado. (P. Ant. Vieira).
— (se castigar o principe culpados, premiar benemeritos,
instruir-se em religião
, — será eternizado).

Além de não ser esta observação de pouca valia, por
contribuir a systematisar o jogo tão intrincado, e todavia
tão importante da pontuação, ella não se funda de modo
algum em um principio mais ou menos ficticio, senão muito
real, como aliás se presta a verificá-lo o seguinte exemplo,
em que ambas as formas se encontrão por ventura em confrontação,
o podem passar por uma conversão reciproca.
Fallando do principe, o p. Ant. Vieira diz :

Use de doçura, — domará elephantes ; — se de violencia,
irritará cordeiros.

Isto é :

Se usar de doçura, — domará elephantes ; — use de
violencia
, — irritará cordeiros.

Comprova-se mais pelo seguinte exemplo, em que a
proposição condicional transforma-se mui natural e suavemente
em imperativo disfarçado :

Terá augmento seu officio, credito seu governo, — se a
cada um obrigar a fazer bem o seu
.578

Isto é :

Obrigue a cada um a fazer bem o seu, — e terá augmento
seu officio, credito seu governo
.

700. O se dubitativo, cujo caracteristico consiste em
não se deixar supprir por outra expressão, denuncia uma
proposição muito mais reluctante á inversão do que a condicional ;
o que, conchegando-a com as complementarias
normaes, veda que se lhe anteponha a virgula.

Ex. Vejão os odiados, ou pensionados do odiose se
devem prezar ou offender de ter inimigos !
(P. Ant.
Vieira).

Vêdese foi grande favor e providencia do céo
que se não descobrissem minas ! (P. Ant. Vieira).

Os jogos são tão antigos como o tempo; e porque este
passa e não torna, não sei
se com razão ou sem ella
lhes chamavão passa-tempos
. (P. Ant. Vieira).

Póde-se pôr em. problema na politica de Portugalse e
melhor
que os reis fação mercês, ou que as não fação. (P.
Ant. Vieira).

Se algumas vezes queria o infante ir fóra folgar e caçar,
mandava-me recado : « Vai dizer a meu mestre
se me dá
licença para ir
. » (André de Rezende).

Os pharisêos havião introduzido na casa um hydropico
para ver
se christo o sarava em dia de sabbado. (P.
J. B. de Castro).

Succedendo que a mesma ligação venha a ser repetida,
a segunda vai precedida da virgula, por encetar, não uma
encadeada, e sim uma collectiva.

Ex. Não se póde facilmente julgarse esta aqui a
terra no mar, — se o mar na terra
. (P. Simão do Vasconcellos).

Antigamente estavão os ministros ás portas das cidades ;
agora estão as cidades ás portas dos ministros… As portas,
os pateos, as ruas rebentando de gente, e o ministro encantado !
sem se saber
se esta em casa, — ou se o ha no
mundo
. (P. Ant. Vieira).

Com este mesmo dictame vai o famoso Lipsio dizendo aos
principes : Que Deos e os homens puzerão no seu regaço a republica,
mas para a fomentarem de modo que venhão a duvidar
os subditos
se saudão a seu senhor, — se a seu,
pai
. (P. Man. Bernardes).

701. Se vier, porém, a mesma complementaria a se
579achar deslocada, quer por inversão, quer pela interposição
de outra proposição, ou de termos eliminaveis, a virgula
tem de intervir para assignalar a anomalia de estructura.

Ex. Se a fofice da vangloria, — ou se o desempenho
da magnificencia metteu os reis do egypto nestas
portentosas emprezas
, — não o ponho em questão. (P. D.
Raphael Bluteau). — Não ponho em questãose a fofice
da vangloria, — ou se…
).

Eu não sei — qual a maior tentação, — se a necessidade,
se a cubiça. (P. Ant. Vieira). — (Eu não seise a necessidade,
se a cubiça é a maior tentação).

Por isso eu lá dizia que não sei — qual lhe fez maior
mal, ao Brazil
, — se a enfermidade, — se as trevas. (P.
Ant. Vieira). — (Por isso eu lá dizia que não seise a
enfermidade, — se as trevas forão
o que lhe fez maior
mal, ao Brazil
).

Saibamos agora, — e não de outrem, — senão das mesmas
arvores
, — se este bom governo, — do modo que éllas o entenderão,
se pode conseguir e exercitar com as raizes
na terra
. (P. Ant. Vieira). — (Saibamos agorase este
bom governo se póde…
).

Se Diogenes então perguntasse — quaes erão os — que
passavão
, — se os do triumpho, — se osque estavão vendo,
— não ha duvida que parecia a pergunta digna de riso
. (P.
Ant. Vieira). — (Se Diogenes então perguntassese os do
triumpho, — se
os — que estavão vendo, — erão osque
passavão, — não ha duvida
…).

7.ª Regra
(ligação — senão)

702. São propriamente duas as ligações senão : uma
subordinativa, outra preventiva.

A subordinativa discrimina-se pela faculdade de se
deixar supprir pela locução a não ser que, com a introducção
de um facto no subjunctivo.

Ex. Que querieis vós ver na rodasenão voltas, ou no
mundo
senão mundo, isto é inconstancia e vaidade ? (P.
Man. Bernardes). — (Que querieis vós ver na rodaa não
ser que quizesseis
ver voltas, ou no mundo — a não ser
que quizesseis
ver mundo…).

A mesma ligação, considerada sob outro aspecto, revela-se
como simples contracção da conjuncção condicional
se com o adverbio não, por omissão de um facto em que
580actue, sendo geralmente este facto o da proposição anterior,
ou simplesmente ser.

Que querieis vós ver na roda, — se não querieis ver
voltas ; ou no mundo
, — se não querieis ver mundo… ?

Prova-se, outrosim, por contraposição, pelo seguinte
exemplo : O provincial pediu ao arcebispo… não fiasse de seu
parecer, nem o seguisse
, — se não fosse em cousas averiguadas
(Fr. Luiz de Souza). — (… nem o seguissesenão
em cousas averiguadas).

Ora, ao contrario do que succede como se condicional,
que avoca sempre a virgula, por conferir á proposição por
elle encetada uma volubilidade que lhe não confere em
igual gráo o se dubitativo (se não querieis Ver voltas,
que querieis vós ver na roda ? Ou se não querieis ver
mundo
, — que querieis vós ver no mundo ?), a subordinativa
senão, máo grado de sua procedencia, rejeita a virgula, já
porque nada tem que destrinçar com o se dubitativo, já
porque não se presta ás inversões do se condicional não
contracto : senão voltas, — que querieis vós ver na roda ? [!!!]
senão mundo, — que querieis vós ver no mundo ? [!!!]. Torna
assim a ser este caso o das complementarias, mas com
omissão constante do facto.

Outros exemplos :

Que cousa são as honras e dignidadessenão fumo ?
fumo que sempre cega, e muitas vezes faz chorar… Que cousa
é a prosperidade humana
senão um vento que corre todos
os rumos ? se diminue, não é bonança; se cresce, é tempestade
.
(P. Ant. Vieira).

E, tendo cada um daquelles quatro animaes do Apocalypse
quatro rostos e quatro linguas, nenhuma cousa dizião
nem sabião dizer
senão : Amem! (P. Ant. Vieira).

Que são todos os elementossenão uns roubadores universaes
de tudo
o que grangeia e trabalha o genero humano ?
(P. Ant. Vieira).

Como o amor da vida é tão natural, quem se atreverá a
(arriscá-la intrepidamente
senão alentado com a esperança
do premio ?
Quando David quiz sahir a pelejar com o gigante,
perguntou primeiro
 : « Que se ha de dar ao homem que matar
esse philisteo ?
)) Já naquelle tempo se não arriscava a vida
senão por seu justo preço. (P. Ant. Vieira).

Porém, como em todos os mais casos de complementarias,
a virgula tem de se antepor ao mesmo senão, se,
por transposição ou intercalações, não se achar em successão
immediata a proposição a que se prende.581

Ex. Até a mesma formusura que parece dote proprio do
corpo, e tanto arrebata e captiva os sentidos humanos ; aquella
graça, aquella proporção, aquella suavidade de côr, aquelle
ar, aquelle brio, aquella vida, que é tudo — senão alma ? e
, —
senão, — vede o corpo sem ella. (P. Ant. Vieira). — (e vêde
o corpo sem ella
a não ser que tudo não seja alma).

O que, entre fumos de nobreza e fidalguia, vive á mercê
da sua herdade, a qual, quando as novidades não mentião, só
dava para sarja no verão, e baeta no inverno, agora que já
se não sabe o nome ás lãas, de que se ha de vestir, — sendo o
gallo de sua aldéa
, — senão das pennas dosque podem
menos ?
(P. Ant. Vieira). — (… de que se ha de vestir
senão das pennas…).

O mercante que tomou os assentos ou contractos reaes do
publico, e se contratou de secreto com os zeladores da fazenda
do mesmo rei, de que modo se ha de soldar — quando se vê
quebrado
, — senão com o soldo e fardas dos miseraveis soldados,
tomando a comprar os já comprados ministros, para
que lhe subão os preços, e ajustem as quebras ?
(P. Ant. Vieira).
— (… de que modo se ha de soldarsenão com o soldo e
as fardas
).

Observação. Succedendo de vez em quando que o
subordinativo senão fique supprido pela conjuncção que ou
que não, ainda assim vigorão os mesmos preceitos.

Ex. Quem está ocioso, não tem mais que fazerque
pôr-se a imaginar. (P. Ant. Vieira). — (… senão pôr-se a
imaginar
).

El rei Antigono vendo que seu filho se ensoberbecia, lhe
disse
 : « Não sabes, filho, que o nosso reino e o reinar não é
outra cousa
que um captiveiro honrado ? » (P. Ant. Vieira).
— (… senão um captiveiro honrado).

Se o uso da nossa linguagem se perder, e, com elle, por
acaso acabarem todos, os nossos escriptos
que não (senão)
os Lusiadas, e as obras de Vieira, o portuguez, quer no estylo
de prosa, quer no poetico, ainda viverá na sua perfeita indole
nativa, na sua riquissima copia e louçania
. (D. Pr. Alex :
Lobo).

703. Como conjuncção preventiva, senão equivale á
locução e sim, e portanto pede a anteposição da virgula
pelo mesmo motivo por que a pedem todas as ligações
que, como mas, porém, todavia…, denuncião opposição ou
contraste.

Ex. Não se devem julgar as cousas pelo appetitesenão
pela razão. (João de Barros). — (… e sim pela razão).582

A razão porque não buscais o descanso na lei de Christo,
é porque a não tendes por descansada
, — senão por muito trabalhosa.
(P. Ant. Vieira). — (… e sim por muito trabalhosa).

Ama o teu inimigo ; porque, se o seu odio vil é filho da
inveja, mostre o teu amor generoso que por isso não é digno
de vingança
, — senão de compaixão. (P. Ant. Vieira). —
(… e sim de compaixão).

Não deve queixar-se de ser invejado o que tem feito obras
dignas de inveja
, — senão o que tem feito acções que mereção
ser mordidas da inveja
. (P. Ant. Vieira). — (… e sim o que
tem feito acções que mereção
…).

Se em nossos costumes ha frouxidões e descuidos, não está
a culpa nos defeitos das leis
, — senão no defeito da execução
dellas
. (Fr. Luiz de Souza). — (… e sim no defeito da execução
dellas
).

8.ª Regra
(proposições incidentes)

704. Enunciando meras annotações sem coexistencia
necessaria com as proposições ou termos a que se annexão,
as incidentes se separão, não só da proposição ou termo
de que dependem, senão tambem umas das outras, pela
virgula.

O seguinte exemplo, pelo numero crescido de incidentes
que ostenta reunidos em uma mesma oração, pode
ser considerado como typico no assumpto.

E não se acha gente, — por barbara que seja, — que
não tenha sua musica, — má ou boa, — segundo o — que cada
um della alcança
, — como vemos em toda a terra de ethiopia,
— cujos naturaes, — como nós, — são testemunhos
desta verdade
, — levando ordem e compasso em seu tanger,
ainda que seja barbaro, — e os rusticos do campo, —
a quem não faltão suas gaitas. (João de Barros).

O que nesta oração denuncia o processo analytico como
essencial á formação de um sentido claro e aceitavel, cifra-se
em duas proposições tão sómente : uma principal, e uma
complementaria :

E não se acha gente — que não tenha sua musica.

Tudo o mais é a diversos titulos dispensavel, e portanto
fica em summa sujeito a uma mesma lei de virgulação.

Junto á musica é dispensavel a apposição composta
ou bôa.583

Junto á mesma apposição má ou bôa é dispensavel o
complemento indirecto segundo o com a complementaria
que lhe inteira o sentido : que cada um della alcança.

E’ igualmente dispensavel a apposição que se refere a
cujos naturaes, e consta do gerundio levando com os seus
complementos ordem e compasso em seu tanger.

Emfim são tambem dispensáveis, e portanto incidentes,
todas as mais proposições, quer esteja nellas o facto expresso,
como em cujos naturaes são testemunhos desta verdade,
quer esteja occulto, como nas intercalações como nós
[somos testemunhos desta verdade] — … e [como são testemunhos
desta verdade] os rusticos do campo
 ; ás quaes se ajunta
mui caracteristicamente a ultima proposição a quem não
fáltão as suas gaitas
.

Outros exemplos :

Em a parte que desta serra se levanta mais, ha um monte
feito á maneira de méda ou pyramide
, — a que os da terra
chamão serra do cantaro, — que tem no contorno da
raiz algumas milhas, — e é de notavel altura
. (Duarte
Nunes de Leão).

Não me admira tanto ver um homem amigo da rapina,
ou iracundo, ou luxurioso, como ver a um homem ingrato
, —
porque aquelles vícios procedem de corruptela e fragilidade
da natureza humana, — e este
, de mais a mais,
tem grande deformidade contra a mesma natureza. (P.
Man. Bernardes).

Nero, — que foi um demonio humano, — fez sahir quatrocentos
senadores, e seiscentos da ordem equestre para os
jogos de gladiadores
. (P. Man. Bernardes).

Accomodemo-nos a viver juntos, — porque ninguem tem
que se rir de seu proximo. (P. Man. Bernardes).

Perguntado um outro com que se parecia o avarento, respondeu :
« Com o porco, — porque só approveita morto. »
(P. Man. Bernardes).

A verdade é desabrida, e sempre amarga : na prospera
fortuna
, — quando se não teme damno, — gera odio ; na adversidade,
quando se vê o mal ao olho, — ainda magôa.
(Fr. Luiz de Souza).

São os prologos um antecipado remedio aos achaques dos
livros
, — porque andão sempre de companhia os erros e
as desculpas
. … Escrevi esta historia com verdade de memorias
fieis
, — sem que a pena ou o affecto alterasse o
menor accidente
. (Jacintho Freire de Andrade).584

Estas são as difficuldades que todos reconhecem e chamão
grandes neste preceito [de amar os inimigos
], — que verdadeiramente
é o grande
. (P. Ant. Vieira).

O rustico, — porque é ignorante, — vê que a lua é maior
que as estrellas ; mas o philosopho
, — porque é sabio, — e
mede as quantidades pelas distancias
, — vê que as estrellas
são maiores que a lua
. (P. Ant. Vieira).

O ocioso, — como não tem que fazer, — mente, — porque
diz o
que imagina. (P. Ant. Vieira).

Os bens deste mundo, — como são corruptiveis, — ainda
que não haja
quem os furte, — elles mesmos se nos roubão.
(P. Ant. Vieira).

S. Antonio, — que pregava aos homens, — para encarecer
a fealdade deste escandalo, mostrou-lh’o nos peixes ; e
eu
, — que prego aos peixes, — para que vejais quão feio
e abominável é, — quero que o vejais nos homens
. (P. Ant.
Vieira).

E, — para que eu tambem accrescente a minha comparação, — são
parecidos os aduladores aos quatro animaes
do Apocalypse
. (P. Ant. Vieira).

Põe-se da parte do odio e da vingança o mundo todo, —
que assim o manda, — que assim o julga, — que assim o
applaude, — que assim o tem estabelecido por lei
. (P.
Ant. Vieira).

705. Devem ser tidas como incidentes, e conseguintemente
ficar sujeitas á mesma lei de virgulação, as proposições
que, embora despidas de ligação subordinativa, vão
atiradas dentro de uma citação para designar de quem
ella é, ou intromettem de passagem no discurso uma reflexão
toda occasional.

Ex. A aranha, — diz salomão, — não tem pés, e, sustentando-se
sobre as mãos, mora nos palacios dos reis
. (P. Ant.
Vieira).

Quereis ver o que é uma alma ? Olhai, — diz S. agostinho, —
para um corpo sem alma. (P. Ant. Vieira).

E não só trazião as frotas ouro, senão tambem muita
prata, cuja quantidade era tão immensa, que
, — affirma a
mesma escriptura
, — igualava as pedras da rua. (P. Ant.
Vieira).

Se taes minas se descobrissem, encher-se-hia, — É verdade,
a terra de ouro e prata. (P. Ant. Vieira).

El rei D. Heniique Terceiro de Castella sentou-se, e, estando
todos suspensos e temerosos, sem saber onde se encaminhavão
585preparações tão funestas e estrondosas, foi perguntando
a cada um de per si quantos reis de Gastella conhecera. Uns
disserão que tres, outros, que quatro ; e os que mais disserão,
que cinco
. « Como póde isso ser, — replicou o rei, — se, sendo
eu mais moço que vós todos, conheço mais de vinte ?
 » — « Não
entendemos o que Vossa Alteza quer dizer nisso
, — disserão
elles
. » — « Pois eu me explicarei, — tornou elle. Vós outros
sois os reis, e eu não ; porque as rendas da coroa são
vossas para banqueteardes cada noite, e eu ceei hontem do que
se fiou sobre este gavão. Mas eu saberei pôr-lhe remedio, e bem
efficaz, e logo logo
. » (P. Man. Bernardes).

Que todas as nações da Europa se alistem contra Portugal,
ah ! que gloria ! Mas que na guerra de Portugal se
vejão tambem portuguezes contra portuguezes, oh ! que desgraça !
por lhe não chamar outro nome. Que aggravo
pergunto,
e que offensa nos fez Portugal, ou que nos tem desmerecido
a pátria ?
(P. Ant. Vieira).

Supposto, pois, que todos havemos de morrer, — e todos
imos para a sepultura
, — o maior favor que Deos póde conceder
a um mortal, é que morra e chegue lá mais tarde
. (P.
Ant. Vieira).

Mas a verdade é, — e vós o sabeis muito bem, — que
a razão por que não buscais o descanso na lei de Christo, é
porque a não tendes por descansada, senão por muito trabalhosa
.
(P. Ant. Vieira). .

706. Emfim são incidentes da mesma especie as intercalações
explicativas isto é, ha dias, a saber, por assim dizer…,
e mais algumas do semelhante teor.

Ex. Que querieis vós ver na roda senão voltas, ou no
mundo senão mundo
, — isto é, — inconstancia e vaidade. (P.
Man. Bernardes).

Pouco ha, — dissemos que o fogo natural era esteril, e
não gerava ; mas depois que o artificial se ajuntou á polvora
em todo o genero de viventes, tem filhos de fogo
. (P. Ant.
Vieira).

Correm, — já ha dias, — com o passaporte de segredo,
os desatinos dos medicos matasanos
. (Fr. João de Ceita).

Finge-se que o patriarcha Noé, ao plantar a vinha, a
regou com o sangue de quatro animaes, que escolheu da arca
para este effeito
, — a saber : — bugio, leão, cochino e cordeiro.
(P. Man. Bernardes).586

Do ponto e virgula

707. O ponto e virgula não differe essencialmente da
virgula em alcance de indicação a não ser porque recorta a
oração em uns grupos dentro dos quaes a virgula tem de
intervir, senão sempre, ao menos mais geralmente como
signal de subdivisão ; porquanto o ponto e virgula, assim
como a virgula, interpõe-se, não só entre proposições, como
tambem entre membros de um mesmo termo composto.

1.ª Regra
(entre membros de um mesmo termo)

708. Entre membros de um mesmo termo composto
ou repetido deve ser substituida a virgula pelo ponto e
virgula quando aos mesmos membros andão annexos quaesquer
outros termos ou proposições avocando por natureza
a virgula.

Ex. Finalmente a doutrina de Christo é a medalha de
todos os prophetas
, e uma summa de toda nossa redempção ;
sol que, com sua claridade, illustra escuridades e sombras
da lei antiga
 ; — mar oceano da immensa sabedoria de Deos ;
— thesouro riquissimo da Igreja ; — pão do Céo ; — ponte
de aguas vivas ; — luz, medicina, sustento, saude e vida
das almas que della se deixão ensinar. (João Franco Barreto).

Os nossos ministros, ainda quando vos despachão bem,
fazem-vos os mesmos tres damnos
 : o do dinheiro, porque o
gastais
 ; — o do tempo, porque o perdeis ; — o das passadas,
porque as multiplicais. (P. Ant. Vieira). — (Os nossos ministros
fazem-vos os tres mesmos damnos
 : o do dinheiro, — o
do tempo, — o das passadas
).

Este rio, pois, de fogo arrebatado e furioso de polvora se
dividiu logo em tantos canaes, uns maiores, outros menores,
quantos são os canos de ferro ou bronze por onde o mesmo
fogo furiosamente rebenta ; e por isso se chamão bocas de fogo:
 :
na cavallaria, as pistolas e as carabinas ; — nos infantes,
os mosquetes e os arcabuzes ; — nos exercitos, e nos muros
das cidades
, os canhões e as culebrinas. (P. Ant. Vieira).
— (Este rio de fogo arrebatado e furioso de polvora se dividiu
logo em tantos canaes quantos são os canos de ferro ou
bronze por onde o mesmo fogo furiosamente rebenta ; e por isso
se chamão bocas de fogo
as pistolas e as carabinas, — os
mosquetes e os arcabuzes, — os canhões e as culebrinas
).

Peccou David, … e o que os palacianos discorrião, era
587desta maneira : … Que o matar a Urias, fôra um conselho
necessario, prudente e generoso
 : generoso, porque o fez morrer
nobremente na guerra
 ; — prudente, porque pareceu acáso o
que foi industria
 ; — necessario, porque o modo mais seguro
de sepultar o aggravo é metter debaixo da terra o aggravado
.
(P. Ant. Vieira).

Entre os politicos, Xenophonte, Tacito, Cassiodóro ; —
entre os historiadores, Tito Livio, Suetonio, Quinto Curcio ;
entre os philosophos, Seneca, Plutarco, Severino Boecio ;
entre os Santos Padres, Jeronymo, Chrysostomo, Gregorio,
Agostinho, Bernardo
(deixando os demais), todos,
só com discrepancia no encarecimento, dizem e ensinão concordemente
que os inimigos dos reis, e os maiores inimigos são
os aduladores
. (P. Ant. Vieira).

Assim entendeu Saul, posto que obrava o contrario, que
um homem que, tendo na sua mão a vingança, não sabia vingar
aggravos
 ; — um homem que, podendo fazer mal ao seu maior
inimigo, lhe fazia os maiores bens
 ; — um homem que pagava
o odio com amor, e a morte que lhe querião dar, com a vida
 ;
um tal homem como este, não o tinha Deos dotado de um
coração tão generoso e tão real senão porque o queria e havia
de fazer rei
. (P. Ant. Vieira).

Qual é a causa de tantos reinos se terem perdido, de que
apenas se conserva a memoria, e outros se verem tão arruinados
e enfraquecidos, senão o appetite desordenado e cego de
quererem os reis mais do que podem ? Daqui se seguem
as
guerras, e a ambição de novas emprezas
, como as de
Membroth ; — daqui
as fabricas de edificios magnificos e
insanos
, como a Torre de Babel ; — daqui a prodigalidade
de excessivas mercês
, amontoando em um o que se tira a
muitos, como as de Assuéro em Aman ; — daqui
as festas e
jogos publicos
, com apparatos mais monstruosos que extraordinarios,
sem outro fim que a falsa ostentação do que não ha
nem é
. (P. Ant. Vieira).

Que foi um Affonso de Albuquerque no Oriente ? Que foi
um Duarte Pacheco? Que foi um D. João de Castro ? Que
foi um Nvno da Cunha, e tantos outros heroes famosos senão
uns astros e planetas lucidissimos que, assim como allumiárão
com estupendo resplendor aquelle glorioso seculo, assim escurecerão
todos os passados ? Cada um era, na gravidade do aspecto
,
um saturno ; — no valor militar, um marte ; — na
prudencia e diligencia
, um mercurio ; — na altivez e magnanimidade,
um jupiter ; — na religião, na fé, e no zelo de a
propagar e estender entre aquellas vastissimas gentilidades
, —
um sol. (P. Ant. Vieira).588

Estes dons affectos cégos, amor e odio, são os dous polos
em que se revolve o mundo, por isso tão mal governado… Por
isso se vêm, com perpetuo clamor de justiça
, os indignos levantados,
e as dignidades abatidas ; — os talentos ociosos,
e as incapacidades com mando ; — a ignorancia graduada,
e a sciencia sem honra ; — a fraqueza com bastão, e o valor
posto a um canto
 ; — o vicio sobre os altares, e a virtude
sem culto
 ; — os milagres accusados, e os milagrosos reos.
(P. Ant. Vieira).

2.ª Regra
(entre principaes)

709. Separão-se pelo ponto e virgula as principaes que
não estão consorciadas pela communidade de um mesmo
termo, ou de uma mesma complementaria, quer tenhão
annexos passíveis de virgulação, quer não.

E, por annexos passíveis de virgulação, tanto se entendem
as incidentes, as apposições dispensáveis, e os
complementos indirectos tambem dispensáveis, como as inversões
avocando a virgula.

Em confirmação desta regra convem estudar com algum
cuidado o seguinte exemplo, porque apresenta reunidas em
uma mesma oração as duas hypotheses que, entre principaes,
avocão, já simplesmente a virgula, já o ponto e virgula.

E, se este natural appetite de quererem os homens sempre
mais do que podem, nem na soberania dos que podem tudo, se
farta, que será dahi abaixo, desde os maiores entre os grandes,
até os minimos dentre os pequenos ?
O official pode viver
como official
, e quer viver como escudeiro ; — o escudeiro
pode
viver como escudeiro, e quer viver como fidalgo ; — o
fidalgo pode
viver como fidalgo, e quer viver como titulo ; —
o titulo pode viver como titulo, e quer viver como principe.
e, que se segue deste tão desordenado querer ?
(P. Ant. Vieira).

Note-se noste excerpto que, na parte da oração onde
se verifica a dupla hypothose lembrada, se intervem simplesmente
a virgula, é porque ambas as principaes, por
terem um sujeito commum (O official pode viver, e quer
viver…), se achão consorciadas ; logo, porém, que se passa
de um tal sujeito para outro de todo diverso (o escudeiro
pode
viver…), as relações de communidade entre as principaes
deixão de existir, e então bem cabido é o ponto e
virgula (o fidalgo pode viver… ; o titulo pode viver…).

Vê-se mais, pelo mesmo exemplo, que as complementarias,
589quando normalmente collocadas, nenhum, effeito produzem
em tal caso sobre a pontuação, porque confundem-se,
por assim dizer, com a proposição a que se apegão :

O official póde viver — como [vive um] official, — e quer
viver — como [vive um] escudeiro ; — o escudeiro póde viver —

como [vive um] escudeiro, — e quer viver como [vive um] fidalgo

Outros exemplos :

Em buscar pão se resolve tudo, e tudo se applica a o
buscar. Os pobres dão pelo pão o trabalho ; — os ricos dão
pelo pão a fazenda ; — os de espiritos generosos dão pelo pão
a vida ; — os de nenhum espirito dão pelo pão a alma ; — e
nenhum homem ha que não dê pelo pão e ao pão todo o seu
cuidado

A este fim nascem as hervas ; — a este fim nascem as
plantas ; — a este fim florescem as arvores ; — a este fim produzem
e amadurecem os fructos ; — a este fim trabalhão os
animaes domesticos em casa ; — a este fim pastão os mansos
no campo ; — a este fim se crião os sylvestres nas brenhas ; —
a este fim os do mar, e os dos rios nadão em suas aguas ; —
emfim tudo o que nasce e vive neste mundo, a este fim vive e
nasce
. (P. Ant. Vieira).

E’ este o ensejo mais azado de fazer notar que se não
deve confundir a communidade de um mesmo termo com
a sua repetição ; porquanto, se no primeiro caso usa-se tão
sómente da virgula, no segundo usa-se do ponto e virgula.
No primeiro destes dous excerptos avulta a reproducção,
em cada principal, do complemento indirecto pelo pão ; e,
no segundo, do complemento indirecto a este fim. Mas,
por isso mesmo que elles apparecem repetidos, é que nãò
são communs ; e, embora uma forma equivalha á outra em
sentido, o ouvido não aceita esta equação, nem a pronunciação
se rege em taes casos pelas mesmas intoações. Averigua-se,
aliás, facilmente o allegado, se, do repetido que é,
se converter em commum o segundo dos referidos complementos
indirectos :

A este fim nascem as hervas, — nascem as plantas, —
florescem as arvores, — produzem e amadurecem os fructos, —
trabalhão os animaes domesticos em casa

O mesmo se verifica neste segundo exemplo :

« Tullio orou uma vez no senado ; e, cuidando todos que
a oração fosse mui comprida ; rematou a substancia dellá
numa só palavra, dizendo
 : com verdade se ha de orar ; —
com verdade se ha de fallar ; — e com a mesma verdade
590se ha de governar. (Luiz Torres de Lima). — (com verdade
se ha de orar, — se ha de fallar, — e se ha de governar).

Outros exemplos :

Tudo évaidade excepto amar a Deos ; — amar a Deos é
a maior das virtudes ; — ser amado de Deos é a maior das
felicidades. (
P. Ant. Vieira).

O maior mal do homem é não conhecer a si proprio ; —
;
tarde procurará emendar-se quem se não conhece
. (P. Ant.
Vieira).

Quasi todos querem ensinar com razões ; — com exemplos,
poucos ensinão
. (P. Ant. Vieira).

O bem é um ; — o mal se divide, e não tem numero. (P.
Ant. Vieira).

O homem, por lhe parecer que um só bem o não póde
fazer feliz, busca muitos ; — basta que se affeiçôe a um só, que
é a virtude
. (P. Ant. Vieira).

O sabio tem por officio mandar, não obedecer aos ignorantes ;
— a sciencia, se não supera, iguala aos que a natureza
fez maiores
.

O que governa a republica, e commette todo o governo aos
velhos, mostra ser inhabil ; — o que o fia dos moços, é leviano ;
— o que a rege por si só, é atrevido ; — e o que por si só e
por outros, é prudente
. (P. Ant. Vieira).

Despede-se o mundo sem dizer-nos nada ; — consome-se a
carne sem que ninguem o sinta ; — passa-se a nossa gloria
como se nunca fôra ; — e saltêa-nos a morte sem chamar primeiro
á porta
. (P. Ant. Vieira).

Se o rei está benigno e humano, para isso tem rosto de
homem ; — se está colerico e irado, para isso tem rosto de
leão ; — se está sobrelevado e altivo, para isso tem rosto de
aguia ; — se está melancolico e carregado, para isso tem rosto
de bezerro
. (P. Ant. Vieira).

Se os olhos vêm com amor, o corvo é branco ; — se com
odio, o cysne é negro ; — se com amor, o demonio é formoso ;
— se com odio, o anjo é feio ; — se com amor, o pygmêo é
gigante ; — se com odio, o gigante é pygmêo ; — se com amor,
o que não é, tem ser ; — se com odio, o que tem ser, e é bem
que seja, não é, nem será jamais
. (P. Ant. Vieira).

E’ possivel, diz a razão revestida em cada um de nós, ou
cada um de nós nella, é possivel que haja eu de amar a quem
me aborrece ?… Alma, corpo, que dizeis a este preceito ? Ajunte-se
a republica interior e exterior do homem ; — chame a cortes
ou a conselho todas suas potencias, todos seus sentidos ; — e

591sejão ouvidos nesta causa todos, pois toca a todos. Que é que
dizem ? Todos repugnão ; — todos reclamão ; — todos se alterão ;
— todos se unem e conjurão em odio e ruina do inimigo.
A memoria, sem jamais se esquecer, representa o aggravo; —
 ; —
o entendimento pondera a offensa ; — a fantasia afeia a injuria ;
— a vontade implora e pede a vingança : salta o coração ;
— bate o peito ; — mudão-se as côres ; — chammejão os olhos ;
— desfazem-se os dentes ; — escuma a boca ; — morde-se a lingua ;
— arde a colera ; — ferve o sangue ; — fumeião os espiritos,
os pés, as mãos, os braços ; — tudo é ira ; — tudo, fogo ;
— tudo, veneno

Deos, que isto manda, não é o autor da natureza ? e,
que faz a mesma natureza toda movida e governada pelo
mesmo Deos ? Vingão-se por instincto natural as feras na
terra ; — vingão-se as aves no ar ; — vingão-se os peixes no
mar ; — vinga-se a mansidão dos animaes domesticos ;
— vinga-se, e cabe ira numa formiga ; — e basta que a natureza viva
naquelles atomos para que nelles offendida se dôa, nelles aggravada
morda, nelles tome satisfação de sua injuria
. (P. Ant.
vieira).

Excepções

710. Esta regra soffre duas excepções :

1.° Substitue-se a virgula ao ponto e virgula entre
duas principaes não consorciadas por um termo ou uma
complementaria commum, quando, unidas por uma ligação
copulativa, as mesmas duas proposições constituem de
por si sós uma oração completa, ou formão na oração um
agrupamento fortuitamente legitimado pela intervenção da
ligação copulativa como elemento euphonico.

Ex. Em buscar pão se resolve tudo, — e tudo se applica
a o buscar
. (P. Ant. Vieira).

O temor não é de homens fortes, — nem o agouro de
homens sabios
. (P. Ant. Vieira).

A cousa mais facil do mundo é dar conselho a outrem, —
e a mais ardua é tomá-lo para si. (P. Ant. Vieira).

Toda a nobreza e excellencia do homem consiste no livre
alvedrio
, — e o servir, se não é perder o alvedrio, é captivá-lo.
(P. Ant. Vieira).

O coração do homem é mui generoso, — e o da mulher
mui delicado : quer por pouco bem muito premio, e por muito
mal nenhum castigo
. (P. Ant. Vieira).592

Os elementos não são viventes, — e a este mesmo fim cansamos,
e fazemos trabalhar aos proprios elementos
. (P. Ant.
Vieira).

O reino assolado será dividido, — e umas casas cahirão
sobre outras casas
. (P. Ant. Vieira).

Buscais mil traças e invenções para ajuntar o alheio ao
vosso
, — e essas são as que, em lugar de vo-lo accrescentar,
vo-lo roem, e vo-lo desbaratão
. (P. Ant. Vieira).

2.° Substitue-se igualmente a virgula ao ponto e virgula
entre duas principaes que, despidas de annexos separaveis
pela virgula, ou inteiradas por complementarias,
enuncião pensamentos em contraste.

Ex. Maior materia dão os nascimentos ao temor que á
esperança. A esperança promette bens, — o temor ameaça males…
A quem começa a vida, tudo fica futuro ; e, no futuro,
nenhuma distincção ha de males a bens : todos são males porque
todos se padecem : os males padecem-se porque se temem, —
os bens padecem-se porque se esperão
. (P. Ant. Vieira).

O bem é um ; o mal se divide, e não tem numero : uma a
saude, — muitas as doenças ; uma a harmonia, — muitas as
dissonancias
. (P. Ant. Vieira).

Averiguada conclusão é entre os mestres de uma e outra
milicia que, comparada a da terra com a do mar, esta é muito
mais trabalhosa e perigosa. Na terra peleja contra nós um
elemento, — no mar, todos os quatro ; na terra temos para onde
retirar, — no navio estamos presos, e não temos outra retirada
que lançarmo-nos ao mar… e por tudo isto se collige quanto
mais poderosa é a artilheria no mar que na terra, ajudando-se,
e dando-se a mão o elemento da agua com o do fogo. O fogo
queima, — a agua afoga ; o fogo mata, — a agua sepulta
, (P.
Ant. Vieira).

Mas olha em especial, ó minha alma, para os povoados,
porque o mundo são os homens. Tudo está fervendo em movimentos
que acabão e começão : uns a sahir dos ventres das
mãis, — outros a entrar no ventre das sepulturas ; aquelles
cantão, — dalli a pouco chorão ; est’outros. chorão, — dalli a
pouco cantão ; aqui se está enfeitando um vivo, — parede meia
estão amortalhando um defunto ; aqui contratão, — acolá distratão ;
aqui conversão, — acolá brigão ; aqui estão á mesa
rindo e fartando-se, — acolá estão no leito gemendo os que
rirão, e sangrando-se do que comerão. Daquella porta para
dentro ouvem a palavra de Deos, — e della para fora apupão
os que passão, e dão lhe vaia. Lá vai um no seu coche com
os pés sobre tela e veludo, — airaz das rodas vai um pobre
nú e descalço
. (P. Man. Bernardes).593

Pois tudo isto é o que faz e desfaz a paixão dos olhos
humanos : cégos
quando se fechão, — e cegos quando se abrem ;
cégos
quando amão, — e cégos quando aborrecem ; cégos
quando approvão, — e cégos quando condemnão ; cégos quando
não vêm, — e, quando vêm, muito mais cégos. (P. Ant.
Vieira).

Observação. As proprias principaes consorciadas por
um termo commum admittem tambem entre si o ponto e
virgula, se a constituição de cada uma dellas as apresenta
já recortadas pela virgula.

Ex. A este espectaculo ou ludibrio da maior fortuna
assistião todas as ordens : senatoria, consular e equestre ;
— assistião os centuriões, os tribunos, e toda a flor das legiões
romanas ; — assistião principalmente todos os familiares do
palacio imperial, e, entre elles, diz com grande ponderação
Tacito : Et mœcerens Burrhus, ac laudans (e o mesmo Burrho,
triste sim, mas louvando
).

Se se guardar esta igualdade, entrará em esperanças
o mosqueteiro e soldado de fortuna, que tambem para elle se
fizerão os grandes postos, se os merecer ; — e, animados com
este pensamento, os de que hoje se não faz caso, serão leões, e
farão maravilhas, que muitas vezes debaixo da espada ferrugenta
está escondido o valor, como talvez debaixo dos felizes
bordados anda dourada a cobardia
. (P. Ant. Vieira).

3.ª Regra
(entre complementarias)

711. A virgula deve ser substituida pelo ponto e virgula
entre complementarias collectivas que arrastão annexos
passíveis da virgula.

Ex. « De maneira que vejo dous prelados da Ordem de
meu glorioso Padre S. Domingos, prelados santos e religiosos,
convertidos hoje em Platões e Tullius formando republicas gentilicas
com razões e preceitos em tudo humanos
 ;… e isto para
me darem methodo no governo da republica espiritual e christãa !
Confesso que tomara ver esta linguagem em toda outra pessôa
antes que na boca dos que tanto me tocão
. que me faça respeitar
dos pobres, gastando com minha pessoa, e tirando aos
mesmos pobres aquillo com que os posso remediar e manter
 ; —
que metta em ataviar criados, e dourar baixellas, e ornar paredes
mortas o cabedal com que posso amparar a órphãa, soccorrer
a viuva, e vestir paredes vivas
 ; — que empregue cuidado
e tempo em apparato de mesa, e mestres de cozinha para
que sobejem potagens que desbaratão a saude, levão a fazenda
,
594aos pobres não matão a fome, quem não vê que são isto preceitos
gentilicos?
 » (Fr. Luiz de Souza). — (Quem não vê que
são preceitos gentilicos
que me faça respeitar dos pobres,…
que metta em ataviar criados,… — que empregue cuidado
e tempo… ?
).

Se, indo de jornada um cavalheiro, viesse a parar á casa
de um lavrador rico, e este, sem ter-lhe alguma obrigação, o
hospedasse com toda a humanidade e apparato que lhe fosse
possivel, e lhe puzesse uma mesa esplendida, provida das melhores
iguarias e aves que tivesse em sua ema
 ; — se, acabada
a comida, o cavalheiro se partisse sem despedir-se, nem dizer-lhe
uma só palavra de urbanidade ou agradecimento, em que
conceito teriamos a este homem ?
(Fr. Luiz do Granada).

E logo, pedindo D. João de Castro um missal, fez juramento
sobre os Evangelhos
que, até á hora presente, não
era devedor á fazenda real de um só cruzado ; — nem havia
recebido cousa de christão, judêo, mouro ou gentio ; — nem,
para a autoridade do cargo ou da pessoa, tinha outras alfaias
que as que de Portugal trouxera ! — e
que ainda a prata que
no reino fizera, havia já gastado ; — nem tivera jamais possibilidade
para comprar outra colcha que a que na cama vião ;
— só a seu filho D. Alvaro fizera uma espada guarnecida de
pedras de pouca estima, para passar ao reino
. (Jacintho Freire
do Andrade).

4.ª Regra
(entre incidentes)

712. Quando, em vez de se prender a uma unica proposição,
a incidente prende-se a um complexo de pensamentos
anteriores, antepõe-se-lhe o ponto e virgula, como
para advertir ao espirito do leitor, por uma pausa mais
prolongada, que são mais de um os argumentos do que
depende, e a que se refere a incidente.

Ex. E como, na clareza do juizo e engenho, el rei D.
Duarte era insigne, não somente aprendeu para si, mas para
doutrinar a outros
 ; — porque na lingua latina escreveu alguns
livros de cousas moraes, e, entre elles, um tratado do regimento
da justiça, e dos officiaes della, de que uma parte se vê ainda
agora na casa da supplicação
. (Duarte Nunes de Leão).

Cheia está a Escriptura de muitos exemplos por que claramente
consta deleitar-se Deos com a musica, a qual, por
experiencia se vê, tem muito grande força nos corações dos
homens
 ; — por onde os que della tiverão conhecimento, vendo
quanto podia em todas as cousas, a levárão á guerra, ardenando
595trombetas e outros instrumentos com que os homens, e
ainda os cavallos cobrassem esforço no rompimento das batalhas,
e, no andar e proceder dos esquadrões, guardassem a
ordem que ella tem
. (João de Barros).

Se em nossos costumes ha frouxidões e descuidos, não está
a culpa nos defeitos das leis, senão no defeito da execução
dellas
 ; — porque leis sem execução não são mais de que umas
pennadas de tinta, umas letras ou figuras pintadas
. (Fr. Luiz
de Souza).

Faltão geralmente nas historias das religiosas aquelles
casos e nomes estrondosos que por si mesmos levantão a penna,
e dão grandeza e pompa á narração
 ; — por onde notou o
mestre da facundia romana ser mais facil dizer as cousas sublimes
com majestade que as humildes com decencia
. (P. Ant.
Vieira).

E, para que o despacho deste forçado memorial não pareça
genero de ingratidão da minha parte, senão contrato util
de ambas, e muito digno de aceitação, sirva-se V. Ex. de considerar
que, se me falta uma mão para escrever, me ficão duas
mais livres para as levantar ao céo, e encommendar a Deos
os mesmos a quem não escrevo, com muito maior correspondencia
do meu agradecimento
 ; — porque uma carta em cada
frota é memoria de uma vez cada anno, e as da oração de
todas as horas são lembranças de muitas vezes cada dia
. (P.
Ant. Vieira).

713. Se, em iguaes condições, se succedão duas ou
mais incidentes, ainda é o ponto e virgula que as tem de
separar umas das outras.

Ex. Tanto pelo fundador como pelo amplificador lhe compete,
a Lisboa, a precedencia de todas as metropoles dos imperios
do mundo
 ; — porque, emquanto Elysia, é duzentos vinte annos
mais antiga que Ninive, cabeça do primeiro imperio, que foi o
dos Assyrios
 ; — e, emquanto Ulyssipo, quatrocentos vinte e
cinco annos mais antiga que Roma, cabeça tambem do ultimo
imperio
. (P. Ant. Vieira). — (… e [porque], emquanto Ulyssipo,
[É] quatrocentos vinte e cinco annos…).

E’ possivel que nisto parárão as façanhas e victorias de
Sansão ? E’ possivel que nisto parárão as riquezas e bizarrias
do prodigo ? Nisto parárão, ou, para melhor dizer, não
pararão só nisto
 : — porque o prodigo, perecendo a fome no
meio do montado, não tinha licença para se sustentar das bolotas
com que apascentava o seu gado ; — E Sansão, tirado
em publico para ludibrio do povo, foi tratado com taes escarneos
e indecencias, que, de corrido e affrontado, com suas proprias
mãos se tirou a vida
. (P. Ant. Vieira). — (… e [porque]
Sansão…),596

Dos dous pontos

714. Embora sobrepostos, na escala dos signaes de
pontuação, ao ponto e virgula, os dous pontos não formão,
em relação a este signal, uma gradação analoga á do mesmo
ponto o virgula para com a virgula senão em occurrencias
tão raras, que podem ser consideradas como excepcionaes.
Ahi vai exposto este caso em primeiro lugar.

1.ª Regra
(em substituição ao ponto e virgula)

715. Os dous pontos substituem-se ao ponto e virgula
quando a oração, por ser extensa, apresenta, como formando
duas ou mais ordens distinctas, pensamentos já divididos
pelo ponto e virgula.

Ex. A’s galas de Salomão, o mesmo Christo lhes chamou
gloria. Os thesouros de ouro e prata que a juntou, erão immensos ;
os gados maiores e menores, que naquelle tempo tambem
erão riqueza aos reis, não tinhão numero; os cavallos
estavão repartidos em quatro mil presepios : — a sumptuosidade
da mesa, para a qual concorrião diversas provincias, e a majestade,
grandeza e ordem dos officiaes e ministros com que era
servida, foi o que encheu de pasmo a rainha de Sabá; as baixellas
e vasos erão de ouro ; as musicas, de vozes exquisitas
de ambos os sexos : e os cheiros e aromas com que tudo rescendia,
de quanto cria e exhala o Oriente
. (P. Ant. Vieira).

Nesta enumeração das galas de Salomão, a intervenção
dos dous pontos justifica-se pela consideração que a oração
se reparte em duas ordens assaz distinctas do pensamentos,
constando, a primeira, da relação do que podia lisonjear o
orgulho do rei israelita, e a segunda, da exposição do que
interessava a sua sensualidade.

As demais indicações dos dous pontos são do alcance
muito mais especial, e portanto de determinação mais
facil.

2.ª Regra
(citação textual)

716. Pospõem-se os dous pontos a toda a proposição
pronunciando uma citação textual.

Por citação textual entende-se, não só a reproducção
exacta de palavras proferidas real ou fingidamente por pessoas
597alheias, ou entes personificados, senão tambem a cópia
litteral de trechos escriptos.

Ex. Com o animo de tentar a Christo se levantou em
certa occasião na synagoga um doutor, e lhe perguntou
 : —
« Mestre, que hei de fazer para me salvar ? »

Respondeu-lhe o Senhor que repetisse o texto da lei.
Disse o doutor
 : — « O que a lei manda, é : — Amarás a
Deos teu Senhor com todo o teu coração, com toda a tua alma,
com todo o teu entendimento, e com todas as tuas forças ; e
ao teu proximo como a ti mesmo
. » (P. J. B. de Castro).

Considero eu que ha mandamentos da lei da Inveja assim
como ha mandamentos da lei de Deos. Os mandamentos da
lei de Deos dizem : — Não matarás ; não furtarás ; não levantarás
falso testemunho. Os mandamentos da lei da Inveja
dizem : — Não serás honrado ; não serás rico ; não serás valente ;
não serás sabio ; não serás bem disposto. e tambem
dizem : — Não serás bom pregador
. (P. Ant. Vieira).

Ides daqui para Portugal ; não embarcais nada comvosco ;
que haveis de comer ? Respondeis : — Devo uma letra de tantos
mil cruzados
. (P. Ant. Vieira).

Um dia que o Lobo e o Cordeiro se achavão na margem
de um regato, indo beber, disse o Lobo mui encolerisado
contra o cordeiro
 : — « Porque me turvais a agua que vou
beber ?
 » Respondeu elle mansamente : — « Sr. Fulano Lobo,
como posso eu turvar a Vm. a fonte, se ella corre de cima, e
eu estou cá mais abaixo ?
 » (P. Man. Bernardes).

A maior fatalidade dos reis é nascerem todos em signo de
ser louvados. Lançou Jacob a benção a Judas, seu quarto
filho ; e as palavras por onde começou, forão estas
 : — « juda,
te laudabunt fratres tui
 : — Judas, a ti louvarão teus
irmãos
. » (P. Ant. Vieira) :

A mesma interposição dos dous pontos não deixa de ter
lugar ainda quando o facto prenuncio da citação se acha,
por uma inversão ousada, porém elegante, transposto para
dentro do texto citado.

Ex. Estando Salomão nestas felicidades, e voltando os
olhos a tudo quanto tinha feito
 : — « O que vi, disse, e achei em
tudo, é que tudo é vaidade, e afflicção de animo
. » (P. Ant.
Vieira).

3.ª Regra
(sentenças proverbiaes)

717. Por frisante analogia com a regra anterior collocão-se
tambem os dous pontos em seguida a uma proposição
598prenuncia da citação de uma sentença, proverbio,
maxima, adagio, annexim, aphorismo ou apophtegma.

Ex. Ninguem póde duvidar que assim se vai cumprindo
e tem cumprido em grande parte no imperio portuguez do
Oriente aquelle oraculo universal : — Passa o reino de uma a
outra gente
 : — regnum a gente in gentem transfertur.
(P. Ant. .Vieira).

Por mais que os homens se esforcem por justificar-se com
discursos, mais alto clama a experiencia, e com factos mostra
que : — Quem quer mais do que lhe convem, perde o que quer,
e o que tem
. (P. Ant. Vieira).

Breve e utilissimo dictame prescreveu Ovidio a este respeito,
o qual vem a dizer em nossa lingua : — Se não queres
casar mal, casa com igual
. (P. Man. Bernardes).

A moralidade desta fabula explica-se perfeitamente com o
proverbio portuguez : — Quem quer, vai; quem não quer, manda ;
ou por est’outro : — Quem de rico quer pobre vir a ser, mette
trabalhadores, e não os vai ver ; ou ainda por outro : — Se
queres ser pobre sem o sentir, mette obreiros e deita-te a dormir
.
(P. Man. Bernardes).

Observação. Os casos desta e da anterior regra são
os unicos em que os dous pontos avocão a maiscula no
inicio da proposição que se lhes segue.

4.ª Regra
(citação de teor narrativo)

718. Ainda se pospõem os dous pontos a uma proposição
prenuncia de uma citação, embora a mesma citação,
em vez de apparecer sob a formula textual ou directa, esteja
apresentada sob o teor narrativo.

Ex. No palacio de el rei Dario, emquanto elle dormia,
tres guardas-móres da pessoa real, que lhe vigiavão o somno
,
excitarão entre si aquella famosa questão que refere Esdras :
qual fosse a mais poderosa cousa do mundo. (P. Ant.
Vieira).

Biantes, um dos sete sabios da Grécia, perguntado qual
era o animal mais venenoso, respondeu
 : — que, dos bravos, o
tyranno ; dos mansos, o adulador
. (P. Ant. Vieira).

Peccou David, e ninguem o advertio do seu peccado senão
um propheta mandado por Deos ; antes, se, alguma vez, na
sua ante-camara (onde elle o não ouvisse) se tocou no seu
peccado, o que os palacianos discorrião, era desta maneira
 : —
que o amor de Betsabé fôra um galanteio de principe soldado
599que o casar-se com ella fôra uma honrada restituição de sua
honra, que o matar a Urias fôra um conselho necessario, prudente
e generoso
… (P. Ant. Vieira).

El rei Dario, sendo ainda homem particular, recebera de
um grego, por nome Cyloson, uma capa de grãa. Depois,
dando-lhe em recompensa quantidade de ouro, não lh’o aceitou,
dizendo
 : — que pedia antes para a sua patria, Samos, total
exempção de tributos
. (P. Man. Bernardes).

E’ bem que se saiba e se divulgue esta doutrina tão mal
aceita do mundo
 : — que os pobres tambem hão de dar conforme
podem
. (P. Man. Bernardes).

Grande zelador do segredo foi Demosthenes ; ao qual perguntando-lhe
um seu amigo porque lhe cheirava mal o bafo,
respondeu
 : — porque no estomago lhe apodrecerão grande
quantidade de segredos
. (Diogo do Couto).

5.ª Regra
(generalidade seguida de pormenores)

719. Pospõem-se igualmente os dous pontos a uma
proposição ou complexo de proposições que, enunciando
uma generalidade, continúa pela exposição das particularidades
ou pormenores que a constituem.

Ex. Todos os homens querem ter pão, e muito pão:
 :
Dous alvitres lhe trago hoje para isso : — um pava terem pão,
outro para terem muito
. (P. Ant. Vieira).

As paixões do coração humano, como as divide e numera
Aristoteles, são onze ; mas todas ellas se reduzem a duas capitães
 :
amor e odio. (P. Ant. Vieira).

Aprendão os navegantes a jogar as armas maritimas de todo
o genero : — a espada, a machadinha, o chuço, a pistola, o bacamarte,
a alcanzía
. (P. Ant. Vieira).

S. Paulo diz que Christo deu aos homens ; David diz que
recebeu dos homens ; e, como o commercio consiste em dar e
receber, tudo foi : — porque a nós deu-nos a sua divindade, e
de nós recebeu as mesmas chagas
. (P. Ant. Vieira).

Dizem que o rei se ha de tratar como o fogo : — nem tão
perto, que queime ; nem tão. longe, que não aquente. A’s avessas
ha de ser : — do rei, ou muito perto, ou muito longe
. (P. Ant.
Vieira).

Eis-aqui todo o juizo dos homens : — amarão mais, ou
amarão menos : — se amarão, ainda que seja as trevas, as
trevas hão de ser melhores que a luz ; se não amarão, ainda

600que seja a luz, a luz ha de ser peior que as trevas. (P. Ant.
Vieira).

Aquelles ministros, ainda quando despachavão mal os seus
requerentes, fazião-lhes tres mercês : — poupavão-lhes o tempo ;
poupavão-lhes o dinheiro ; poupavão-lhes as passadas. Os
nossos ministros, ainda quando vos despachão bem, fazem-vos
os mesmos tres damnos : — o do dinheiro, porque o gastais ; o
do tempo, porque o perdeis ; o das passadas, porque as multiplicais
.
(P. Ant. Vieira).

Dizia um grande cortezão que havia tres castas de casamentos
no mundo : — casamento de Deos, casamento do diabo,
casamento da morte : — de Deos, o do mancebo com a moça ;
do diabo, o da velha com o mancebo ; da morte, o da moça
com o velho. Elle, certo, tinha razão
. (D. Franc. Man. de
Mello).

Pouco ha, dissemos que o fogo natural era esteril, e não
gerava ; mas depois que o artificial se ajuntou com a polvora,
em todo o genero de viventes tem filhos de fogo : — animaes
de fogo nos camelos, serpentes de fogo nos basiliscos, aves de
fogo nos falcões, e, em todos os outros instrumentos sulfureos,
homens de fogo : — homens de fogo na artilheria, homens de
fogo nas bombas, homens de fogo nas granadas, homens de
fogo nos petardos, homens de fogo nos trabucos, homens de fogo
nas minas, e, assim sobre a terra como debaixo della, homens
de fogo que nelle e delle vivem
. (P. Ant. Vieira).

6.ª Regra
(conclusão. — similitude)

720. Emfim os dous pontos se interpõem ainda entre
as premissas ou o antecedente de um raciocinio, e sua
conclusão, como tambem entre os dous membros de uma
similitude.

Ex. Christo diz que na sua lei está o allivio de todo o
trabalho ; Christo diz que na sua lei, e só na sua lei se acha
o descanso : — logo, se não buscais o descanso na lei de
Christo, é certo que não crêdes a Christo
. (P. Ant. Vieira).

Aquella lei, vós tendê-la por trabalhosa, dizendo Christo
que só ella vos póde alliviar do trabalho ; vós tendê-la por
cansada, dizendo Christo que só nella está o descanso : — logo
crêdes o que vós imaginaes, e não o que Christo diz : — crêdes
em Christo, mas não crêdes a Christo
. (P. Ant. Vieira).

De um chamado Seronato disse com discreta contraposição
Sidonio Apollinario
 : « Seronato está sempre occupado em duas
601cousas : em castigar os furtos e em os fazer. » Isto não era
zelo de justiça, senão inveja : — queria tirar os ladrões do
mundo para roubar elle só
. (P. Ant. Vieira).

De umas cidades se não sabem os lugares onde estiverão ;
de outras se lavrão, semeião e plantão os mesmos lugares, sem
mais vestigios de haverem sido que os que encontrão os arados
quando rompem a terra : — para que os homens, compostos de
carne e sangue, se não queixem da brevidade da vida, pois
tambem as pedras morrem ; e para que ninguem se atreva a
negar que tudo quanto houve, passou ; e tudo quanto é, passa
.
(P. Ant. Vieira).

O peccado da usura, e a enfermidade da lepra parecem-se
em muitas cousas : — não é, logo, de admirar que esta fosse
a pena daquella culpa
.

A lepra chama-se cancro universal porque a todo o corpo
se vai estendendo, e todo o vai consumindo : — a usura tambem
é cancro universal porque consome a honra, a saude, a vida,
as virtudes
.

O leproso tem o bafo corrupto, e por isso todos se afastão
delle : — o onzoneiro escandalisa com o seu procedimento, e
ninguem o busca senão por remir sua vexação
.

A lepra é doença que não pode encobrir-se : — a usura é
vicio que logo se faz publico
.

A lepra pega-se aos vestidos e ás casas, e os consome e
afeia : — tambem a usura destroe as casas e familias, e as empobrece,
despeja e afronta ; porque
 : Male parte, male dilabuntur
(O que vem por mal, por mal se vai). — (P. Man.
Bernardes).

Lá dizia Socrates que as raizes da virtude são amargosas,
e os fructos della, suaves : — symbolo natural desta
verdade é a herva loto, amargosa nas raizes, e doce nos fructos
.
(P. D. Raphael Bluteau).

Do ponto final

721. Todo o pensamento ou complexo de pensamentos
versa exclusivamente sobre entes ou abstracções, ou promiscuamente
sobre abstracções e entes.

O que, na linguagem, representa directamente, quer
os entes, quer as abstrações são os substantivos ; e o que
os representa por delegação dos mesmos substantivos, são
os pronomes, os infinitivos e os adverbios.

O pensamento que versa exclusivamente sobre abstracções,
602torna-se, antes de tudo, do dominio da faculdade a
que chamamos entendimento, e fornece um argumento
sobre o qual se pronuncia o juizo por aceitação ou rejeição.

Logo, porém, que no pensamento entra um ente, delle
se apodera a imaginação para revestí-lo das formas pelas
quaes se torna accessivel aos sentidos, e o juizo actúa
nelle como se o tivesse presente.

Ora, no primeiro caso, deve ser considerado como formando
oração, isto é, como avocando o ponto final, todo o
pensamento ou complexo de pensamentos constituindo uma
opinião sobre a qual póde a reflexão pousar para novamente
ventilar as condições em que se apresenta.

Ex. Bem se póde dizer que o juizo é o mesmo que o entendimento,
porém é um entendimento solido : por isso póde
haver entendimento sem juizo, mas não juizo sem entendimento.
— O ter muito entendimento ás vezes prejudica ; o ter muito
juizo sempre é util. — O entendimento é parte que discorre,
porém póde discorrer mal ; o juizo é a mesma parte que discorre
quando discorre bem. — O entendimento pensa ; o juizo
tambem obra, — Por isso, nas acções de um homem conhecemos
o seu juizo, e, no discurso, lhe vemos o entendimento. —
O juizo duvida antes que resolva ; o entendimento resolve primeiro
que duvide : por isso, este se engana pela facilidade com
que decide, e aquelle acerta pelo vagar com que pondera
.

Ordinariamente fallamos no juizo, e não no entendimento
de Deos ; e deve ser pela impressão que temos de que o juizo
é menos sujeito ao erro, que em Deos é impossivel
.

Com esta vantagem que achamos no juizo, pouco nos desvanece
o ter juizo, e muito nos lisonjeia o ter entendimento. —
Consideramos o juizo como cousa popular, ou sómente como
uma especie de prudencia, sendo aliás cousa mui rara ; e olhamos
para o entendimento como cousa mais altiva, e em que
reside a qualidade da agudeza : e assim mais nos agrada o
discorrermos subtilmente do que o discorrermos com acerto ; e
ainda fazemos vaidade de voltar de tal sorte as cousas, que
fiquem parecendo o que claramente se sabe que não são. — O
engano vestido de eloquencia e arte attrahe, e a verdade mal
polida nunca persuade. — Fazemos vaidade de errar com subtileza,
e temos pejo de acertar rusticamente
. (Mathias Ayres
da Silva de Eça).

Quando, porém, o pensamento ou complexo de pensamentos
versa sobre entes, póde-se averiguar pela meditação
que o que delle vem a predominar na imaginação, é uma
ou outra das quatro contingencias inherentes á idéa de
603entidade : contingencia de pessoa, de evento, de tempo ou
de lugar.

Ora reputa-se em tal caso como completa a oração, e
portanto como tendo de ser fechada pelo ponto final, todas
as vezes que, por uma evolução mental, a attenção fica solicitada
a passar de uma das referidas contingencias para
outra diversa em especie ou assumpto.

Ex. Estando em artigo da morte um padre antigo do
famoso deserto de Scitin, os outros monges, rodeando-lhe a
pobre cama ou esteira em que jazia, choravão amargamente
.
(Contingencia de pessoas : os monges). — Neste ponto abriu
os olhos, e sorriu-se ; dalli a pouco tornou a rir ; e, depois de
outro breve intervallo, terceira vez deu a mesma mostra de
alegria
. (Contingencia de evento : o riso). — Causou isto nos
circumstantes não pequeno reparo, por ser austera a pessoa, e
formidavel a hora
. (Outra contingencia de evento ; o pasmo).
Perguntárão a causa, e respondeu : « A primeira vez me ri
porque vós outros temeis a morte ; a segunda, porque, temendo-a,
não estais apparelhados ; a terceira, porque já lá vai o trabalho,
e vou para o descanso
. » (Contingencia de pessoa : o
moribundo). — Tornou então a cerrar os olhos, e desatou-se
seu espirito
. (Contingencia de evento : a morte). — (P. Man.
Bernardes).

Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar
Erythêo a conquistar a India ; e, como fosse trazido á sua
presença um pirata que por alli andava roubando os pescadores,
reprehendeu-o muito Alexandre de andar em tão máo
officio
. (Contingencia de evento : reprehensão ao pirata). —
Porém elle, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim :
« Basta Senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão,
e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador !
 »
(Outra contingencia de evento : réplica a Alexandre). —
Assim é : o roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza ;
o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito,
os Alexandres
. (Abstracção : considerações sobre os juizos
humanos). — Mas Seneca, que sabia bem distinguir as qualidades,
e interpretar as significações, a uns e outros definiu com
o mesmo nome
. (Contingencia de pessoa : Seneca). — « Se o
rei de Macedonia, diz elle ou qualquer outro fizer o que faz
o ladrão, — o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem
o mesmo nome
. » (Abstracção : opinião de Seneca). —
(P. Ant. Vieira).

S. Pedro Damião e outros santos comparão os aduladores
ás serêas, as quaes, com a suavidade de suas vozes
, de tal
modo encantavão os navegantes, que voluntariamente se lançavão
e precipitavão ás ondas, e se afogavão no mar em que ellas

604vivião. (Contingencia de pessoas, por entes fabulosos : as
serêas). — Houve de passar por este mesmo lugar (que era
junto a Scylla e Charybdes) o fundador de Lisboa, Ulysses ;
e, usando da sua sciencia e sagacidade, que fez ?
(Contingencia
de lugar : Scylla e Charybdes, dous escolhos no
estreito de Messina). — Navegava em uma formosa galé da
Grecia ; e, para que a chusma não faltasse á voga dos remos,
nem a outra gente nautica, á mareação das velas, e todos escapassem
do encanto das serêas, tapou-lhes a todos os ouvidos de
tal sorte, que as não ouvissem
. (Contingencia de evento :
tapou Ulysses os ouvidos aos marinheiros). — Elle, porém,
para que pudesse ouvir as vozes, deixou os ouvidos abertos ; e,
para não padecer os effeitos do encanto, nem se precipitar ao
mar, como acontecia a todos, mandou-se atar ao mastro tão
fortemente, que, ainda que quizesse
, não se pudesse bulir nem
mover
. (Outra contingencia de evento : Ulysses fica com os
ouvidos abertos). — Esta é a historia ou fabula engenhosamente
fingida por Homero para ensinar que os varões sabios
e constantes como Ulysses, ainda que oução os aduladores, e o
contraponto doce das suas lisonjas, nem por isso se hão de
deixar vencer de seus enganos e artifícios, mas persistir, e continuar
a derrota certa, sem mudar, deter nem torcer a carreira
do bom governo
. (Contingencia do tempo remoto : opinião
de Homero). — Assim o poderá fazer tambem quem tanto confiar
ou presumir de sua constancia, e não conhecer que isto
mesmo, ainda sómente dito, é fabula
. (Outra contingencia de
tempo : isto tambem hoje se póde fazer). — Mas, se eu tivera
autoridade para emendar a Homero, e confiança para
aconselhar a Ulysses, não o havia de querer com os ouvidos
abertos, e as mãos atadas, senão com os ouvidos tapados, e as
mãos soltas ; porque com os ouvidos tapados não daria entrada
á adulação, e com as mãos soltas serião todas as acções suas,
e, como seus, verdadeiramente reaes
. (Contingencia de pessoa :
o P. Ant. Vieira contesta com a sua propria opinião). —
Deste modo se conquista no mundo a fama immortal, e se assegura
tambem no céo a gloria eterna
. (Abstracções : a fama,
a gloria). — (P. Ant. Vieira).

722. Ora, que muito importa acertar na collocação do
ponto, como aliás dos demais signaes de pontuação, a bem
de conservar aos pensamentos toda a sua integridade, demonstrão-no
os dous seguintes excerptos, onde o texto,
por ter sido violentado, na partição das orações, parece, já
obscuro, já confuso, quando na realidade não é, nem uma,
nem outra cousa, logo que, por uma recta disposição dos
pontos, as orações reassumem as suas proporções reaes e
verdadeiras.605

Transcripção | Rectificação

Sôa-me dentro n’alma, Padres
Reverendissimos, e faz-me retinir
ambos os ouvidos aquella voz, —
que se conta foi ouvida do Céo
em tempo de Constantino Magno
— quando — com santa liberalidade
— começou a enriquecer a Igreja.
— « Grande veneno começa
d’espalhar-se na Igreja do Deos ! »
grande nunc venenum in ecclesia
dei effusum est
.

E — considerando a conveniencia
que tem com a doutrina
que — tantos annos antes — nos
escroveo são Paulo : « Que — tendo
com que se alimentar, e de que
se vestir, com isso se contentava. »
habentes — autem — alimenta,
e quibus tegamur, his
contenti simus
. —

Confesso que não me atrevo
— nem posso acabar commigo despender
nem um só real fora dos
termos que devo á vida monastica
que professei.

Sôa-me dentro n’alma, Padres
Reverendissimos, e faz-me retinir
ambos os ouvidos aquella voz —
que se conta foi ouvida do céo
em tempo de Constantino Magno,
— quando, — com santa liberalidade,
— começou a enriquecer a Igreja :
— « Grande veneno começa
de espalhar-se na Igreja de Deos !
grande nunc venenum in ecclesia
dei effusum est !
 »

E, — considerando a conveniencia
que tem com a doutrina
que, — tantos annos antes, — nos
escreveu San’ Paulo : que, — tendo
com que se alimentar, e de que
se vestir, com isso se contentava :
habentes, — autem, — alimenta,
e quibus tegamur, his
contenti sumus
, — confesso que
não me atrevo, — nem posso acabar
commigo despender nem um
só real fóra dos termos que devo
á vida monastica que professei.

(Fr. Luiz de Souza).

Atravessava — um dia de inverno
— o Arcebispo com sua
comitiva a serra do Gerez por
caminhos asperos e fragosos ; —
salteou-os uma chuva fria e inoportuna,
— que os não largou na
mór parte da jornada, e corria um
vento agudo e desabrigado que os
congelava a todos. Tinha-se adiantado
o Arcebispo, — segundo o seu
costume, que era caminhar quasi
sempre só para se occupar com

Atravessava, — um dia de inverno,
— o arcebispo com sua
comitiva a serra do Gerez por
caminhos asperos e fragosos. —
Salteou-os uma chuva fria e importuna
— que os não largou na
mór parte da jornada, e corria um
venta agudo e desabrigado que os
congelava a todos. Tinha-se adiantado
o arcebispo — segundo o seu
costume, que era caminhar quasi
sempre só para, se occupar com606

mais liberdade em suas contemplações,
e ia fazendo materia de
tudo quanto via no campo e na
serra para louvar a Deos ; — offerecendo-se-lhe
á vista não longe
do caminho, posto sobre um penedo
alto e descuberto ao vento e
á chuva, um menino pobre — e
bem mal reparado de roupa, que
vigiava umas ovelhinhas que ao
longo andavão pastando. — Notou
o Arcebispo a estancia, o tempo, a
idade, o vestido, a paciência do
pobrezinho ; — e viu juntamente
que ao pé do penedo se abria uma
lapa, — que podia ser bastante
abrigo para to tempo ; — movido
do piedade, parou, chamou-o, o
disse-lh que se descesse abaixo
para a lapa, e fugisse da chuva,
pois não tinha roupa bastante para
a esperar.

« Isso não, respondeu o pastorinho,
— que em deixando de estar
á lerta, e com o olho aberto, vem
logo o lobo, e leva-me a ovelha,
ou vem a rapôza, e mata-me o
cordeiro. » — « e — que vai nisso ? »
disse o Arcebispo. — « a mim me
vai muito, tornou elle, que tenho
pai em casa, que pelejará commigo,
e tão bom dia, se não forem
mais que prados ; — eu vigio o
gado, elle me vigia a mim : mais
vai soffrer a chuva. »

Não quiz o Arcebispo dar
mais passo, — esperou que chegassem
os de sua companhia, contou-lhes
o que passára com o menino,
e accrescentou : « e este esfarrapadinho

mais liberdade em suas contemplações,
e ia fazendo materia de
tudo quanto via no campo e na
serra para louvar a Déos. — Offerecendo-se-lhe
á vista não longe
do caminho, posto sobre um penedo
alto e descoberto ao vento e
á chuva, um menino pobre, — o
bem mal reparado de roupa, que
vigiava umas ovelhinhas que ao
longe andavão pastando, — notou
o arcebispo a estancia, o tempo, a
idade, o vestido, a paciência do
pobrezinho, — e viu juntamente
que ao pé do penedo se abria uma
lapa - — que podia ser bastante
abrigo para o tempo. — Movido
de piedade, parou, chamou-o, e
disse-lhe que se descesse abaixo
para a lapa, e fugisse da chuva,
pois não tinha roupa bastante para
a esperar.

« Isso não, respondeu o pastorinho ; — que
em deixando de estar
alerta, e com o olho aberto, vem
logo o lobo, e leva-me a ovelha,
ou vem a rapôza, e mata-me o
cordeiro. » — « E, — que vai nisso ?
disse o arcebispo. » — « A mim me
vai muito, tornou elle, que tenho
pai em casa, que pelejará commigo,
e tão bom dia, se não forem
mais que brados ! — Eu vigio o
gado, elle me vigia a mim : mais
vai soffrer a chuva. »

Não quiz o arcebispo dar
mais passo ; — esperou que chegassem
os de sua compaphia, contou-lhes
o que passára com o menino,
e accrescentou : « E este esfarrapadinho607

innocente ensina a Fr. Bartholomeu
a ser Arcebispo. — Este
me avisa que não deixe de acceder,
e visitar minhas ovelhas por mais
tempestades que fulmine o Céo ; —
que se este, — com tão pouco remedio
para as passar, todavia não
foge d’ellas — respeitando o mandado
do pai mais que o seu descanço ;
— que razão poderei eu
dar, se — por mêdo do adoecer,
ou padecer um pouco do frio, desamparar
as ovelhas, — cujo cuidado
e vigia Christo fiou de mim, —
quando me fez pastor d’ellas ? »

innocente ensina a Fr. Bartholomeo
a ser arcebispo ! — Este
me avisa que não deixe do acceder,
e visitar minhas ovelhas por mais
tempestades que fulmine o céo. —
Que se este, — com tão pouco remedio
para as passar, todavia não
foge dellas, — respeitando o mandado
do pai mais que o seu descanso,
— que razão poderei eu
dar, se, — por medo do adoecer,
ou padecer um pouco de frio, desamparar
as ovelhas — cujo cuidado
e vigia Christo fiou de mim —
quando me fez pastor dellas ? »

(Fr. Luiz de Souza).

Da collocação anormal do ponto

723. Pelo que foi expendido ácerca das tres especies
de proposições : a principal, a complementaria e a incidente,
o que se deduz theoricamente, é que só a primeira
póde de per si mesma constituir uma oração, porquanto,
sendo ambas as outras dependentes, não ha meio do concebê-las
sem a preexistencia de outra preposição a que se
prendão. Dá-se tão sómente entre as ultimas esta differença
que, para a inteireza do pensamento geral, a assistencia da
complementaria é indispensavel, ao passo que a da incidente
é facultativa.

Torna-se, por isso, intuitivo que os signaes inferiores
de pontuação : a virgula, o ponto e virgula, e os dous
pontos, por não desligarem inteiramente os pensamentos
uns dos outros, possão e devão intervir, como aliás veiu
explicado, para graduar as relações das proposições dependentes,
o desobstruir assim a carreira que o espirito tem
de percorrer até chegar ao ponto, indicação da pausa necessaria
para o retrospecto mental que se chama reflexão,
Porém o que se não deixa theoricamente presuppôr, é que
possa haver casos em que seja conveniente interpor o ponto
entre proposições dependentes, e os pensamentos a que
ellas se referem ; entretanto é o que se verifica, não só
com as complementarias, senão tambem com as incidentes,
e isto é o que se entende por collocação anormal do ponto.608

Do ponto ante complementarias

724. Quando, em uma citação de teor narrativo, se
adduzem, sob uma mesma forma de complementarias collectivas,
considerações tão numerosas, que excedão as proporções
de uma oração, separão-se pelo ponto os topicos
que avocarião o mesmo signal, se a citação fosse directa.
Este caso póde-se considerar como competindo quasi exclusivamente
á relação de discursos deliberativos.

Ex. Era então governador da Bahia Antonio Telles da
Silva ; e, chamando a conselho os cabos principaes da guarnição
da cidade, propôz a sua resolução, que era desalojar aos
inimigos, atacando-os nos mesmos quarteis. Dizia
 :

« Que era injuria das nossas armas a assistencia do hollandez
dominante aos nossos olhos
. que deixá-lo senhor da
campanha, sem alguma opposição, era mostrar patente receio
do seu poder, e desconfiança do nosso
. que a nossa omissão
augmentava a sua ousadia
. que já ião faltando os viveres
na cidade, e seria cada vez maior a falta, porque as correrias
do inimigo cortarião todos os comboios
. que bem reconhecia
a difficuldade da empreza, e a desigualdade das
forças ; mas que esse era o costume do braço portuguez :
emprehender e conseguir cousas grandes, sempre com poder
inferior
. »

Calárão-se, todos, porque, guiados pela razão, nenhum quiz
approvar ; e, attentos ao respeito, nenhum se animou a contradizer
aquella arrojada proposta. Só o mestre de campo Francisco
Rebello, famoso igualmente no pulso e no conselho, expôz o que
lhe parecia, dizendo
 :

« Que era mais temeridade do que valor aquella resolução.
que o inimigo se achava fortificado. que, ainda no caso
da victoria, seria muito maior a perda que a utilidade
. que a
summa do negocio, nos termos presentes, era defender a Bahia,
fim para que se devião conservar as forças inteiras
. « que
desbaratá-las naquella invasão seria abrir uma porta aos
inimigos, para conseguirem facilmente a conquista que intentavão
.
que se devia esperar pelo beneficio do tempo em que
succederião novos accidentes que podião facilitar as nossas
operações
. que para a conducção de mantimentos não faltava
campo no dilatado circuito da cidade, estando o maior
poder dos hollandezes a um só lado della
. que elle votava
contra o seu desejo, mas que attendia ao que era mais conducente
á conservação do Estado e ao serviço de el rei
. »
(Fr. Franc. de S. Maria).

O provincial pediu ao arcebispo levasse na memoria, de
609mistura com estes santos intentos, tres cousas de que o queria
advertir
 :

« Primeira, que fosse amigo de tomar conselho, e não
fiasse de seu parecer, nem o seguisse, se não fosse em cousas
averiguadas, ou em decretos ou mandados apostolicos. Segunda
,
que não fosse precipitado nem rigoroso em castigar ;
antes curasse untando e mollificando, e dissimulando muitas
cousas ; que não quizesse de todos vida espiritual ; porém que
não permitisse peccado publico ou escandaloso. Terceira
, que
não fosse facil nem leve no trato, nas palavras, no semblante,
de maneira que desse azo a o terem em pouco, e lhe
perderem o respeito ; nem, tambem fosse tão esquivo, que suas
ovelhas se estranhassem delle ; mas guardasse em tudo uma
medida e pêso conveniente ao officio, abaixando com os pobres
e pequeninos os pontos da severidade, e tendo como regra
para com todos trazer, em balança igual, grandeza de animo
com humildade religiosa, e brandura com suavidade
. » (Fr.
Luiz de Souza).

Do ponto ante incidentes

725. Quando, a uma citação textual, ou a um amplo
conjuncto de considerações sobre um mesmo assumpto, accrescenta-se,
como argumento confirmativo, uma incidente
que a todas as mesmas considerações se refira, costuma-se,
por amor da lucidez, separá-la pelo ponto. Em tal caso, a
ligação subordinativa que a enceta, vem a representar o
mero papel de uma preventiva, isto é, a formar um simples
artificio de transição.

Ex. Aquella summa bondade que a todos nos creou á
sua imagem e semelhança, e nos fez capazes de sua mesma
bemaventurança, com muita razão nos obrigou a que, emquanto
caminhassemos por este desterro esses quatro dias vida que
nos dava, nos amassemos
. — porque não se soffria que gente
que tem um mesmo pai celestial, e caminha juntamente para
uma mesma cidade celestial, não se ame no caminho
. (D. Fr.
Bartholomeo dos Martyres).

S. Paulo diz : « Quem ama ao proximo, cumpre toda a
lei
. » — porque toda a lei e todos os mandamentos em que
nos é mandado que não impeçamos ao proximo em alguma
cousa, mas façamos a cada um o que queriamos que nos fizessem,
se comprehendem nestas palavras
 : « Amarás o proximo
como a ti mesmo
. » — porque quem ama, não faz mal a quem
ama
. (D. -Fr. Bartholomeo dos Martyres).

Pelo propheta Isaias fallava Deos com os justos, e, animando-os,
dizia
 : « Levantai os olhos ao céo ; olhai para a
610terra ; e entendei que primeiro os céos se desfarão como fumo,
e a terra se gastará como vestido, e os que morão nella, fenecerão,
que deixe de permanecer a minha saude, e tenha fim
a minha justiça
. » — Do que se segue manifestamente que
quem afflige os justos, faz guerra ao mesmo Deos
. (D. Fr.
Amador de Arraes).

Quando aqui, na Bahia, estivemos sitiados no anno de
1688, tirava o inimigo muitas balas ao baluarte de S. Antonio :
os pelouros que acertavão, ficavão enterrados na trincheira ;
os que erravão, voavão por cima, vinhão rompendo os
ares com grande ruido, e os que andavão por estas ruas, aqui
se abaixava um, acolá se abaixava outro, e muita gente lhes
fazia cortezias demasiadas
. — de sorte que o pelouro que
errou, esse fazia os estrondos, a esse se fazião as reverencias ;
e o outro que acertou, o outro que fez sua obrigação, esse ficava
enterrado
. (P. Ant. Vieira).

Pois, que remedio para accrescentar a fazenda, util, discreta
e muito seguramente ? O remedio é muito fácil : dar da
que tiverdes por amor de Deos
. — de maneira que ambos os
nossos pontos se vêm a resumir a Deos : quereis ter pão ? serví
a Deos ; quereis ter muito ? dai-o por amor de Deos
. (P. Ant.
Vieira).

Admira-nos o ver quão depressa haja a terra gerado e
produzido ; mas, quanto maior motivo temos para admiração,
se considerarmos como as sementes lançadas nella não fructificão,
se primeiro não morrem !
de sorte que, quanto mais
perdem o que são, tanto mais copioso fructo produzem
. (P.
Ant. Vieira).

Dos quatro signaes accessorios de
pontuação

726. Dentre os signaes accessorios de pontuação, os
que mais importancia têm, são incontestavelmente o ponto
interrogativo, e o ponto exclamativo, porque determinão
na leitura entoações tão especiaes, que, se não forem attendidas,
compromettido andará frequentemente o sentido
da oração. Quem, com effeito, deixará de perceber a differença
de modulações na voz, e conseguintemente de sentido
no espirito suscita a seguinte oração extrahida do P.
Ant. Vieira, conforme ella fôr concluída por um ponto interrogativo,
ou por um ponto simples ?

Ha mais para onde subir ?
Ha mais para onde subir.611

A differença é tal, que a primeira citação só se póde
entender de uma pergunta, e a segunda, só de uma resposta
no caso dado, ou, fóra dahi, de uma simples affirmação.

Por isso é que alguns escriptores de nota, considerando
quão tardiamente apparece o ponto interrogativo para produzir
o effeito a que é destinado como indicação phonetica,
tiverão a lembrança de antepô-lo, porém virado as avessas,
no inicio das orações que tem de concluir ; porque, assim
prevenido, o leitor não tem de hesitar sobre as diversas
inflexões de voz que servem a rematar o sentido de uma
oração. Porém as tentativas que se fizerão nesse intuito,
colhêrão tão poucos imitadores, que ficarão frustradas.

Ahi vai, como amostra, um exemplo deste genero de
pontuação :

« Tiremos exemplo da família. Tudo da sociedade e tudo
do mundo se acha alli symbolisado. O pai e a mãi, que são
a grande actividade intelligente, forte, autorisada e productiva
da casa, representão o presente
 ; os avós e os velhos, fracos e
improductivos, o preterito ; os filhos, o porvir. ¿Que é o que
faz a unica força que alli existe ? ¿que é o que faz aquelle
individuo, composto por Deos de duas metades, e só assim
completo, o homem e a mulher ? o casal ?
 » (José Feliciano de
Castilho).

Do ponto interrogativo

727. A interrogação chama-se indirecta quando, assumindo
o teor narrativo, enxerta-se no verbo perguntar,
ou em outro de igual significação. E, em tal caso, ella
não avoca o ponto interrogativo.

Ex. Perguntou o Senhoronde acharião pão para
que comessem todos
. (P. Ant. Vieira).

A interrogação chama-se directa quando, por eliminação
do verbo perguntar, ella fica formulada em teor de citação.
e então ella não prescinde já do ponto interrogativo
(O Senhor disse : — « onde acharemos pão para que comão
todos ?
 »).

Respondeu Santo André que todos os pães que havia, não
passavão de cinco ; e, com estes, sendo só cinco, quiz Christo
dar de comer a todos
. « Pois, Senhor, — não vêdes que tendes
doze discipulos que sustentar, e que os pães não são mais que
cinco ?
 » (P. Ant. Vieira).

Esta ultima oração, sendo convertida em interrogação
612indirecta pela introducção de perguntar, volta ao teor
narrativo, e perde por isso o ponto interrogativo. Pois,
Senhor
, eu pergunto — se não vêdes que tendes doze discipulos
que sustentar, e que os pães não são mais que cinco
. —
O que equivale a est´outra forma, de teor igualmente narrativo :
Pois, Senhor, eu peço — que vejais que tendes doze
discipulos que sustentar, e que os pães não são mais que
cinco
.

728. A opportunidade destas considerações consiste
em estabelecer que toda a interrogação directa constitue
logicamente uma complementaria dependente do verbo occulto
perguntar. o que confirma esta allegação, é a observação
seguinte : que toda a intorrogação directa está sempre
sob a influencia de uma ligação subordinativa, a qual nunca
deixa de sahir expressa quando tem de constar de que,
ou de um dos congeneres do mesmo vocabulo, e fica sempre
occulta quando tem de constar do dubitativo se.

Ex. Que homem ha que não busque o descanso ? (P.
Ant. Vieira). — (Pergunto pelo homemque ha que não
busque o descanso
).

Quereis ver o que é uma alma ? (P. Ant. Vieira). —
(Pergunto — [se] quereis ver o que é uma alma).

Isto explica o que, de outro modo pudera parecer parodoxal
na analyse logica do um trecho já diversas vezes
trazido á tela da dissertação :

Ha mais para onde subir ? Ainda ha mais. (P. Ant.
Vieira).

São duas as orações, e, ostensivelmente, tres as proposições :
Ha mais — para onde [se possa] subir ?Ainda ha
mais
.

Sendo a primeira e a ultima destas tres proposições
de teor sensivelmente conforme, o que parece natural á
primeira vista, é que sejão tidas como sendo de uma só e
mesma especie. Entretanto não ha tal ; e basta a differença
de pontuação para ser necessario assignar-lhes a cada uma
um caracter differente.

A primeira é complementaria, porque, a não ser assim,
deixaria de ser interrogativa :

Perguntose ha mais

A ultima é principal, porque não carece de supposição
alguma, attendendo-se á sua collocação, para de per si
mesma dar um sentido pleno :

Ainda ha mais.613

729. Dahi se deduz, em pontuação, uma regra que,
embora assaz geralmente desprezada na pratica, nem por
isso deixa de ter todo o cabimento, quer se considere pelo
lado theorico, quer pelo da elocução. Ella é a seguinte :

Vindo uma interrogação directa a ser encetada por
uma ligação copulativa ou preventiva, a mesma ligação
tem do ser separada pela virgula, porque não se refere de
modo algum á proposição interrogativa que lhe vai no encalço,
e sim ao verbo occulto Eu pergunto.

Ex. E, porque ainda havia no mundo outro poder maior,
posto que este fosse o de Deos, nem o anjo, nem o homem se
contentarão com poder o que podião
. e, — que se seguiu
daqui ?
(P. Ant. Vieira). — (… e [pergunto pelo] — que se
seguiu daqui
).

Dizia Seneca que antes queria offender com a verdade
que agradar com a lisonja
. mas, — quem era Seneca t (P.
Ant. Vieira). — (… Mas [eu pergunto pelo homem] — que era
Seneca
).

Poupar e morrer de fome para que outros vivão e alardeiem,
é uma avareza mui louca
. Pois, — que remedio para
accrescentar a fazenda, util, discreta e muito seguramente ?

(P. Ant. Vieira). — (… Pois [eu pergunto] do remedio — que
[ha] para accrescentar a fazenda…).,

O mesmo se dá quando são duas as ligações subordinativas
que precedem a interrogação, porquanto a primeira
ainda pertence ao subentendido Eu pergunto.

Ex. O que adquiristes com o que tinheis, e o que não
tinheis, forão as invejas dos amigos, as murmurações dos sizudos,
as perseguições dos credores, e a desgraça e máo conceito
dos principes a quem quizestes lisonjear e servir
 ; porque,
como vos ha de fiar a sua fazenda quem assim vê que esperdiçaes
a vossa ?
(P. Ant. Vieira). — (… porque [eu pergunto] —
como vos ha de fiar…).

Mas, donde tirou Saul esta certeza que havia David de
ser rei ? De nenhuma outra cousa senão da generosidade de
animo com que David lhe perdoara
porque, — que homem
ha que, tendo seu inimigo debaixo da lança, lhe perdoe, e o
deixe ir em paz ?
(P. Ant. Vieira). — (… Porque [eu pergunto]
pelo homem — que, tendo o seu inimigo debaixo da
lança
…).

Emfim o mesmo ainda se verifica nas interrogações
ellipticas.

Ex. Mas eu confio, e estou certo, conclue Saul, que Deos
não ha de deixar sem premio esta indifferença que hoje usaste

614commigo. E, — como ? Tirando-me a mim a coroa da cabeça,
e pondo-a na tua
. » (P. Ant. Vieira). — (… e [pergunto] —
como [a não deixará sem premio].

E, que turba multa é aquella que vai cobrindo os campos
de armas e carruagens ? E’ um exercito que vai a uma de
duas cousas : ou a morrer, ou a matar
. e, — sobre que ?
Sobre que dous palmos de terra são de cá, e não são de lá.
(P. Man. Bernardes). — (… e [pergunto das duas cousas]
sobre que [vai aquelle exercito].

Em todos estes casos, a collocação da virgula fica
theoricamente justificada por uma consideração de coherencia
com a que fundamenta a regra do § 680, e vem a
ser a conveniencia de assignalar por este meio a suppressão
accidental de um facto. Em referencia á elocução, facil é
observar, mórmente na dicção emphatica, que tão expressiva
é a pausa que de si mesma ahi se impõe ao que falla,
que ella chega a converter um mero enclitico qual a conjuncção
e, em verdadeira syllaba tonica (E, — que turba
multa
… ? E, — sobre que ?).

730. Um ensejo que agora se apresenta com toda a
opportunidade, é o de ventilar se ao ponto interrogativo
se deve necessariamente seguir uma maiuscula, como após
o ponto ; ou se ha casos em que tenha melhor cabimento
o emprego do uma simples minuscula.

Os grammaticos geralmente, quando não se deixárão
cautelosamente ficar quedos e mudos sobre a hypothese,
derão-lhe uma solução de pancada : para elles, depois do
ponto interrogativo ou exclamativo, como depois do ponto
final, a maiuscula é de rigor, e está dito. Vai em abono
do preceito um ou outro exemplo adrede escolhido, e a
receita está prompta para todas as contingencias possiveis.

Entretanto todos os escriptores de nota, como facil é
verificá-lo, têm procedido e procedem menos summariamente
neste particular ; pois que tanto usão da minuscula
como da maiuscula, mas com visos tão manifestos de discriminar
um caso do outro, que o que ficou por fazer, foi
tão sómente denunciar em uma formula geral o criterio
que latentemente os guiou. Esta formula coaduna-se, aliás,
sem violencia aos principios mais comesinhos da pontuação ;
todavia carece de algumas considerações prévias para ser
bem elucidada.

A constituição de uma oração interrogativa, mórmente
sendo ella extensa, é muitas vezes de tal ordem, que, se
se esperasse até á sua conclusão para determinar-lhe o caracter
de interrogação por meio do ponto competente, o
615pensamento ficaria frequentemente compromettido pela possibilidade
de equivocações. Torna-se, portanto, necessario,
para obstar a tal inconveniente, collocar em semelhantes
casos o ponto interrogativo após cada um dos trechos que
poderia concluir a mesma oração.

O que dahi decorre, é que, vindo um ponto interrogativo
a se achar interposto entre partes de uma mesma
oração, a palavra que se lhe segue, não deve, por modo
algum, assumir a maiuscula ; porquanto é claro que o
mesmo ponto apenas substitue em tal hypothese algum dos
signaes de pontuação que não avocão senão a minuscula,
isto é, a virgula, o ponto e virgula, ou os dous pontos ; e
que a maiuscula só é bem cabida depois do ponto interrogativo
quando este substitue ao ponto final.

Ex. Mas, quem poderá declarar quanta seja a formosura
dos campos ? , —
quanta a sua fragrancia e suavidade ? , —

e quantos os deleites de que gozão os lavradores ? , —Que poderão,
desta belleza, exprimir nossas palavras ?
(Fr. Luiz de
Granada).

Agora o que se póde exigir da sciencia grammatical,
é que forneça um criterio certo e facil para chegar ao conhecimento
das condições em que o ponto interrogativo
avoca ou repelle a maiuscula. Este meio, fornece-o outra
vez o processo da substituição.

Não ha oração interrogativa que não possa vir a ser
invertida em oração simplesmente affirmativa. Pois faça-se
a experimentação ; e, onde se verificar que o ponto interrogativo
corresponde a um dos tres signaes inferiores de
pontuação, use-se da minuscula ; onde corresponde ao ponto,
da maiuscula.

Ex. Não, ninguem poderá declarar quanta seja a formosura
dos campos, — quanta a sua fragrancia, a sua suavidade,
— e quantos os deleites dos lavradores. — Nada poderão,
desta belleza, exprimir nossas palavras
.

Estando assim já formulada a regra, apenas resta corroborá-la
por mais alguns exemplos.

Todos os homens querem ter pão, e muito pão. Dous alvitres
lhes trago hoje para isso : um para terem pão, outro para
terem muito. Vámos ao primeiro
.

Mas, que alvitre vos parece que será este ? — que meio
vos parece que se póde dar para um homem, em toda a sua
vida, ter o pão certo, sem nunca lhe haver de faltar ? — Será
por ventura ajuntar mais ? — trabalhar mais ? - — lavrar mais ?
616— negociar mais ? — desvelar mais ? — poupar mais? — mentir
mais ? — adular mais ? — Alguns cuidão que estes são os meios
de ter pão, mas enganão-se
.(P. Ant. Vieira).

Por inversão de formas

Mas eu vos pergunto que alvitre vos parece que será este ;
— que meio vos parece que se póde dar para um homem, em
toda a sua vida, ter pão certo, sem nunca lhe haver de faltar.
— Respondeis talvez que será ajuntar mais, — trabalhar mais,
— lavrar mais, — negociar mais, — desvelar mais, — poupar
mais, — mentir mais, — adular mais. — Sim, alguns cuidão

Esta é a ultima circumstancia do nosso exame. e, quando
acabaria eu, se houvera de seguir até ao cabo este quando ?. —
Quando fazem os ministros o que fazem ? — e quando fazem o
que devem ? — quando respondem ? — quando deferem ? —
quando despachão ? — quando ouvem ? — que até para uma
audiencia são necessarios muitos quandos!
(P. Ant. Vieira).

Por inversão de formas

Esta é a ultima circumstancia do nosso exame. e pergunto
quando eu acabaria, se houvera de seguir até ao cabo este
quando. — Todos sabem quando fazem os ministros o que fazem,
— e quando fazem o que devem : — quando respondem, —
quando deferem, — quando despachão, — quando ouvem ; —
porquanto sabe-se que até para uma audiencia são necessarios
muitos quandos
.

Pois, se na união está o remedio, e na desunião a ruina,
porque nos não aconselhamos com a nossa mesma desunião
para nos unirmos ? — Será bem que nos demos nós as batalhas
para que nossos inimigos logrem as victorias ? — Não sabemos
que a nossa união é a maior guerra que lhes podemos fazer ?

P. Ant. Vieira).

Por inversão de formas

Pois, se na união está o remedio, e na desunião a ruina,
devemo-nos aconselhar com a nossa mesma desunião para nos
unirmos. — Não será bem que nós nos demos as batalhas para
que nossos inimigos logrem as victorias. — Já sabemos que a
nossa união é a maior guerra que lhes podemos fazer
.617

Do ponto exclamativo

731. O ponto exclamativo é o signal concomitante,
não só das interjeições violentas, Senão tambem das expressões
apaixonadas ; e, como o ponto interrogativo, ao
qual o teor do pensamento o conchega ás vezes de modo
a ser difficil discriminar qual seja o mais proprio, tanto
póde elle recortar como concluir a oração, decorrendo dahi
que vai, no primeiro caso, seguido de minuscula, e no segundo,
de maiuscula.

Ex. Ah ! — idolatras do mundo ! — que tantas vezes dais
a alma, e dobrais o joelho ao demonio, não pelo mundo todo,
senão por umas partes tão pequenas delle, que nem migalhas
do mundo se podem, chamar ! — quantos principes dão a alma,
e tantas almas ao demonio por uma cidade, por uma fortaleza ! —
quantos titulos por uma villa ! quantos nobres, por
uma quinta, por uma vinha, por uma casa !
(P. Ant. Vieira).

Por inversão

Dirijo-me aos idolatras do mundo, — a esses que tantas
vezes dão a alma, e dobrão o joelho ao demonio, não pelo
mundo todo, senão por umas partes tão pequenas delle, que
nem migalhas do mundo se podem chamar, para que vejão —
que muitos principes dão a alma, e muitas almas ao demonio
por uma cidade, por uma fortaleza ; — que muitos titulos a dão
por uma villa ; — que muitos nobres a dão por uma quinta,
por uma vinha, por uma casa
.

732. O ponto exclamativo, aliás, discorda theoricamente
do interrogativo por não depender, como este, de
uma fórma determinada de proposição, e sim ser applicavel
a todas : pois basta, para que tenha cabimento, a enunciação
de um affecto vehemente, ou a conveniencia de desvendar
uma allusão ironica.

Ex. E, que vivão e obrem, com esta inhumanidade homens
que se confessão, quando procedião com tanta razão homens
sem fé nem sacramentos ! — Oh ! restituições ! oh ! consciencias !
oh ! exames ! oh ! confissões ! — Seja a ultima admiração, esta !
— pois não louvo nem condemno, e só me admiro !
(P. Ant.
Vieira).

Diz o rei que quer fazer uma guerra ; e, ainda que a empreza
seja pouco provável, e o successo, de perigosas consequencias,
que respondem os echos ?
« Guerra ! — guerra ! —
guerra !
 » — Diz que quer fazer uma paz, ; e, ainda que a
occasião seja intempestiva, e os pactos e condições, pouco decorrosas,
618que respondem os echos ?
« Paz ! — paz ! — paz ! » —
Diz que quer enriquecer o erario, e para isso multiplicar os
tributos ; e, ainda que os fins ou pretextos tenhão mais de
vaidade que de utilidade, que respondem os echos ?
« Tributos !
— tributos ! — tributos !
 » (P. Ant. Vieira). ’

Portanto póde-se dizer resumidamente que é da competencia
do ponto exclamativo a notação de todos os sentimentos
brandos ou acres que em oppostas escalas percorre
a alma humana ; desde a admiração ingenua, e o sarcasmo
mordaz, até aos enlevos do fervor religioso, e ás imprecações
da raiva.

Ex. Pois esses celestes orbes, fundidos de agua pela soberana
mão do Artifice Supremo, oh ! — como é verdade que
são pregoeiros de sua glória ! — Com que igual desigualdade
visita o sol a terra, e assigna os tempos, dobrando juntamente
os dias com um movimento de levante a poente, e os annos com
outro de sul a norte ! — Quão magnificas e bem ordenadas são,
Senhor, todas vossas obras ! — Bemdita e adorada e glorificada
seja eternamente vossa bondade, sabedoria e omnipotencia, que
são os tres mysticos dedos de que conservais pendente a universidade
de todas as cousas!
(P. Man. Bernardes).

« De maneira, senhor, que, sem eu dar outra occasião ao
governador mais que dizer-lhe (como já dei conta a V. Ex.)
que levava uma petição na qual me parecia que, não só pedia
mercê, mas fazia serviço a S. S., por ser
materia de justiça e
consciencia, sem chegar a declarar qual fosse a petição, me
respondeu em vozes altas que tinha melhor consciencia que os
padres da Companhia, e cria melhor em Deos que eu, repetindo
por varios modos esta mesma injuria, e chamando-me claramente
judêo ! — e eu fui o que descompuz o governador de
Sua Majestade, e não o governador de Sua Majestade a mim !
— que, só pelo caracter de sacerdote, merecia de qualquer
homem christão ser tratado com differente respeito !
 » (P. Ant.
Vieira).

Oh ! — Deos e Senhor meu ! — por vossa infinita bondade
vos rogo humildemente me concedais que vos ame de todo o
coração ! — Ame-vos eu, Senhor, para que despreze o mundo,
mortifique o meu corpo, e abomine o peccado ! — Ame-vos eu,
Senhor, de todo o coração, para que me sujeite á vossa vontade,
abrace a vossa cruz, e purifique a minha alma ! — Ame-vos
eu, Senhor, com todas as forças da minha alma, para que
não tema a morte nem o inferno, e conserve sempre viva a luz
da fé e de vossa graça, e ultimamente chegue a lograr a de
vossa gloria !
(P. Man. Bernardes).

« Chegastes, emfim, o mesmo, e não outro, aos pés de
619Judas, assombradas e tremendo aquellas paredes de que a
agua da bacia se não sumisse, e o metal se não derretesse ! —
e, como se portou a dureza daquella pedra, e a fereza daquelle
bruto, e a vilania (que só assim se póde encarecer) sua ?
o
manus tornatiles aureæ !
Quando dessas soberanas mãos
se havião de formar grilhões de ouro aos pés do cubiçôso
traidor para que se esquecesse da pouca e falsa prata que esperava
da venda, tão fóra esteve de se enternecer com tal vista,
e se lhe abrandar o coração com taes abraços, que no mesmo
tempo estava dizendo dentro de si : Já que agora, como escravo,
me estás lavando os pés, eu nesta mesma noite te venderei
como escravo ! — O’ insolência ! — ó descomedimento ! — .
ó maldade mais que infernal ! — digna de que no mesmo
momento se abrisse a terra, e não depois rebentasse tal coração,
mas logo o tragassem os abysmos !
 » (Anonymo, do Iris
Classico).

Dos pontos de reticencia

733. Os pontos de reticencia servem a marcar, não
só uma parada brusca na emissão dos pensamentos, senão
tambem qualquer interrupção que, por imitação da linguagem
offegante, commette ao conceito do leitor o cuidado
e desenvolver mentalmente o que apenas se lhe apresenta
verbalmente indicado.

Ex. O senhor rei D. Manoel o Conquistador, que accrescentou
aos seus titulos, o da navegação, e a entendeu melhor
que todos, e lhe fez os mais sabios e prudentes regimentos,
tambem quiz que se divertissem dos fastios do mar os seus navegantes,
e mandou que todas as náos fossem providas para
isso… de que ? De violas, adúfes e pandeiros, mas não de baralhos
de cartas
. (P. Ant. Vieira).

A horrenda sepultura
Conter não póde a luz brilhante e pura
Que, soberana, rege o corpo inerte…
Não descobres em ti um sentimento
Sublime e glorioso, que parece
Tua vida estender além da morte ?

Attenta… escuta bem… olha… examina… !
Em ti deve existir ; eu não te engano.
Tu me dizes que existe… Ah ! meu Fileno !

Como é doce a lembrança
Dessa vida immortal em que, banhado
De ineffavel prazer, o justo goza
Do seu Deos a presença magestosa !

(Souza Caldas).620

Dos parenthesis

734. O parenthesis serve a encerrar, quer palavras
interpoladas como notas explicativas, quer proposições que,
rompendo repentinamente o desenvolvimento natural dos
pensamentos, nelles introduzem uma reflexão que antecipadamente
os confirma ou infirma. Cumpre tão sómente
notar que, tendo um signal de pontuação de recahir no
lugar onde se abre o parenthesis, convem transferir o mesmo
signal para depois do risco com que o parenthesis se fecha ;
e que, no fim das palavras assim interpoladas, só cabe,
dentro do parenthesis, o ponto interrogativo ou exclamativo,
se por acaso o requeira o sentido.

Ex. Cicero e Plinio referem que houve um homem chamado
Strabon, de tão excellente mão no escrever, e de tão
aguda vista, que escreveu a Ilíada de Homero (que é um largo
livro) em um pergaminho que coube no vão de uma noz (caia
a fé disto sobre seus autores !). Dizem que este homem via á
distancia de cento e trinta e cinco mil passos ; e (por autoridade
de Marco Varro) que, na guerra punica, do Lilibêo,
promontorio da Sicilia, via a armada que sahia do porto de
Carthagena do Levante, e contava o numero das náos !
(Antonio
de Souza Macedo).

Da risca de separação

735. Apezar de satisfazerem geralmente os signaes de
pontuação a todos os requisitos que tornárão, não só conveniente,
senão necessaria a sua introducção na linguagem
escripta, casos ha que, embora raros, solicitão mais um
signal para eximir o discurso de toda e qualquer dubiedade.
Este signal, então, vem a ser a risca de separação.

O seu alcance significativo consiste em obviar a que
palavras consecutivas sejão tidas como formando um só e
mesmo termo composto, quando realmente constituem termos
diversos. O seguinte exemplo, transcripto sem a risca
de separação, toma patente a facilidade com que póde
alguem cahir em equivoco, na leitura corrida, sobre o verdadeiro
sentido da oração.

« Se o rei da Macedonia, diz Seneca, ou qualquer outro
fizer o que faz
o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o
mesmo lugar, e merecem o mesmo nome
. » Com a risca de separação
desapparece toda a incerteza que possa por ventura
ter suscitado o teor do trecho : « Se o rei de Macedonia,
diz Seneca, ou qualquer outro fizer o que faz
o ladrão, — o
pirata e o rei
, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo
nome
. » (P. Ant. Vieira).621

Especimen de analyse logica

Advertencia. O argumento é o mesmo das duas precedentes
analyses.

Para se tornar o processo analytico mais intelligivel,
a cada oração novamente transcripta na sua integra succede
a sua decomposição em proposições, e finalmente a
especificação de cada proposição na ordem em que apparecem
os factos que lhes servem de declaração symbolica,
evitando-se por este modo a operação intrincada, e muitas
vezes pouco praticavel, de sua reconstituição systematica.

1.ª Oração

« Salomão, o mais sabio de todos os que nascêrão, faz
uma comparação tão superior ao nosso juizo, que só podia
caber no seu. »

Salomão, o mais sabio de.todos os — que nascerão (1)
faz (2) uma comparação tão superior ao nosso juizo, —
que só
podia (3) caber no seu.

A primeira é complementaria ; a segunda, principal ; a
terceira complementaria.

2.ª Oração

« Compara o dia da morte com o do nascimento ; e,
na differença destes dous extremos, quem não imaginará
que se compara o dia com a noite, a luz com as trovas,
a alegria com a tristeza, a felicidade com a desgraça, a
cousa mais desejada com a mais temida, e, com a mais
terrivel, a mais amavel ? »

compara (1) o dia da morte com o do nascimento ; — e,
na differença destes dous extremos
, [pergunto (2) pelo homem]
que não imaginará (3) — que se compara (4) o
dia com a noite
, — [que se compara (5)] a luz com as trevas,
— [que se compara (6)] a alegria com a tristeza, — [que se
compara (7)] a felicidade com a desgraça, — [que se compara
(8)] a cousa mais desejada com a [cousa] mais temida,
— e [que se
compara (9)], com a [cousa] mais terrivel, a
[cousa] mais amavel.

A primeira é principal ; a segunda, principal ; a terceira,
complementaria ; a quarta, complementaria encadeada ;
emfim todas as demais, complementarias collectivas.

3.ª Oração

« Sendo, porém, tão prenhe de admiração a proposta,
mais digna de espanto é a sentença. »622

Sendo, porém, tão prenhe de admiração a proposta, mais
digna de espanto
é (1) a sentença.

Uma só proposição, e portanto principal.

4.ª Oração

« Resolve Salomão que melhor é o dia da morte que
o dia do nascimento. »

Resolve (1) Salomão — que melhor é (2) o dia da morte
— que [bom
é (3)] o dia do nascimento.

A primeira é principal ; a segunda, complementaria ; a
terceira, complementaria encadeada.

5.ª Oração

« E, que tem o dia da morte para ser melhor que o
dia do nascimento ? »

E [pergunto (1) pela cousa] — que tem (2) o dia da
morte para ser melhor — que [bom
é (3)] o dia do nascimento.

A primeira é principal ; a segunda, complementaria ; a
terceira, complementaria encadeada.

6.ª Oração

« O dia do nascimento não é o mais alegro, e o da
morte, o mais triste ?. »

[Pergunto (1)] — [se] o dia do nascimento não é (2) o,
mais alegre, — e
[se] o da morte [não é (3)] o mais triste.

A primeira é principal ; a segunda, complementaria ; a
terceira, complementaria collectiva.

7.ª Oração

« O do nascimento não é o que povôa o mundo ; o da
morte, o que abre e enche as sepulturas ? o do nascimento,
o que veste de gala as familias e côrtes ; o da
morte, o que as cobre de luto ? »

[Pergunto (1)] — [se] o dia do nascimento não é (2) o
— que
povoa (3) o mundo, — [se] o da morte [não é (4)] o
— que
abre (5) — e [quê] enche (6) as sepulturas ; — [pergunto
(7) — [se] o do nascimento [não é (8) o — : que veste (9)
de gala as famílias e côrtes, — [se] o da morte [não é (10)
o — que as cobre (11) de luto.

A primeira ó principal ; a segunda, complementaria ; a
terceira, complementaria encadeada ; a quarta, complementaria
collectiva ; a quinta, e a sexta, complementarias encadeadas
623conjunctas ; a setima, principal ; a oitava, complementaria ;
a nona, complementaria encadeada ; a decima,
complementaria collectiva ; a undecima, complementaria
encadeada.

8.ª Oração

« A morte não é o maior inimigo da vida, e o nascimento
não é o que, sendo ella mortal, a immortalisa ? »

[Pergunto (1) — [se] a morte não é (2) o maior inimigo
da vida, — e
[se] o nascimento não é (3) o — que,
sendo ella mortal, a
immortalisa (4).

A primeira é principal ; a segunda, complementaria ; a
terceira, complementaria collectiva ; a quarta, complementaria
encadeada.

9.ª Oração

« Que é o nascer senão o remedio de não ser ? e, que
seria do mundo, se, em lugar dos mortos, não nascêrão
outros que lhes succedessem ? »

[Pergunto (1) pela cousa] — que é (2) o nascer, — se
não [é (3)] o remedio de não ser ; — e [pergunto (4) pela
cousa
] — que seria (5) do mundo, — se, em lugar dos mortos,
não
nascêrão (6) outros — que lhes succedessem (7).

A primeira ó principal ; a segunda, complementaria ; a
terceira, complementaria encadeada ; a quarta principal ; a
quinta, complementaria ; a sexta, complementaria encadeada ;
a setima, complementaria encadeada.

10.ª Oração

« Até em Deos necessita de nascimento a mesma Trindade,
porque, sendo só a pessoa Padre innascivel, Deos,
sem nascimento, seria um, mas não seria trino. »

Até em Deos necessita (1) de nascimento a mesma Trindade,
— porque, sendo só a pessoa Padre innascivel, Deos, sem
nascimento
, seria (2) um, — mas não seria (3) trino.

A primeira é principal ; a segunda e a terceira são
incidentes.

11.ª Oração

« Pois, se tantos são os bens e felicidades que traz
comsigo o dia do nascimento, os quaes todos funesta,
consume e acaba o dia da morte, que motivo teve o juizo
de Salomão para antepor o dia da morte ao do nascimento ? »

Pois, — se tantos são (1) os bens e felicidades — que
624traz (2) comsigo o dia do nascimento, — os quaes todos funesta
(3) — consume (4) — e acaba (5) o dia do nascimento,
— [pergunto (6)] pelo motivo] — que teve (7) o juizo
de Salomão para antepor o dia da morte ao do nascimento
.

A primeira é complementaria ; a segunda, complementaria
encadeada ; a terceira, a quarta e a quinta, incidentes
conjuntas ; a sexta principal ; a setima, complementaria.

12.ª Oração

« Entendeu-o melhor que todos, o maior interprete, das
Escripturas. »

Entendeu (1) o melhor — que todos [o entenderão (2)],
o maior interprete das Escripturas.

A primeira é principal ; a segunda complementam.

13.ª Oração

« E’ melhor, diz S. Jeronymo, o dia da morte que o
dia do nascimento, porque, no dia do nascimento, ninguem
pode saber o para que nasce, e só no dia da morte se
sabe o fim para que nasceu. »

E’ (1) melhor, — diz (2) S. Jeronymo, — o dia da morte
— que [bom
é (3)] o dia do nascimento, — porque, no di,a. do
nascimento, ninguem
pode (4) saber o — para que nasce (5),
e [porque] só no dia da. morte se sabe (6) o fim — para
que
nasceu (7).

A primeira é principal ; a segunda, incidente ; a terceira.
complementaria ; a quarta, complementaria ; a quinta,
complementaria encadeada ; a sexta, complementaria eollectiva ;
a setima, complementaria encadeada.

14.ª Oração

« Se, no nascimento do Judas e Dimas, se levantasse
figura certa ao que cada um havia de sér em sua vida, a
do primeiro diria que havia de ser apostolo, e a do segundo,
que bavia de ser ladrão : e assim forão na vida. »

Se, no nascimento de Judas e Dimas, se levantasse (1)
figura certa ao — que cada um havia de ser (2) em sua
vida, — a do primeiro
diria (3) — que havia de ser (4)
apostolo, — e a do segundo [diria (5)] — que havia de ser (6)
ladrão : — e assim forão (7) na vida.

A primeira é complementaria ; a segunda complementaria
encadeada ; a terceira, principal ; a quarta, complementaria ;
a quinta, principal ; a sexta, complementaria ; a
setima, principal.625

15.ª Oração

« Mas o verdadeiro juizo do fim para que cada um
delles nascera, ainda estava incerto. »

Mas o verdadeiro juizo do fim — para que cada um delles
nascera (1), — ainda estava (2) incerto.

A primeira é complementaria ; a segunda principal.

16.ª Oração

« Veiu finalmente o dia da morte, que foi o mesmo
em que ambos acabarão, e esse dia declarou, com assombro
do mundo, que Judas nascera para morrer enforcado
como ladrão, e Dimas, para confessar e prégar a
Christo como apostolo. »

Veiu (1) finalmente o dia da morte, — que foi (2) o
mesmo — em que ambos
acabarão (3) ; — e esse dia declarou
(4), com assombro do mundo, — que Judas nascêra (5)
para morrer enforcado — como [se fòra (6)] ladrão, — e [que]
Dimas [nascêra (7)] para confessar e pregar a Christo —
como
[se fôra (8)] apostolo.

A primeira é principal ; a segunda, incidente ; a terceira,
complementaria ; a quarta, principal ; a quinta, complementaria ;
a sexta, complementaria encadeada ; a setima,
complementaria collectiva ; a oitava, complementaria encadeada.

Fim626