CTLF Corpus de textes linguistiques fondamentaux • IMPRIMER • RETOUR ÉCRAN
CTLF - Menu général - Textes

Ribeiro, Júlio. Grammatica portugueza – T04

[Grammatica portugueza]

Annexos331

I
Agente indeterminado em romanico

Os factos de uma lingua qualquer só podem ser cabalmente
elucidados pelo estudo historico comparativo da grammatica
dessa lingua.

As explicações metaphysicas, mais ou menos subtis, mais
ou menos engenhosas, nunca satisfazem.

Os meios que emprega o Latim, que empregam as linguas
romanicas para indicar de modo abstracto a indeterminação
do agente de um verbo, têm servido de thema a milhares
de divagações tão prolixas quanto abstrusas, tão requintadas
quanto estereis.

Analysar esses meios á luz do estudo historico comparativo
das grammaticas romanicas e da latina, eis o fim que levo em
vista.

É não me apresento como exhibindo novidades: sigo apenas
os passos dos srs. G. Waldbach e Adolpho Coelho, de Diez.
e Bopp, de todos os mestres de philologia e linguistica.333

I

O primeiro meio de indicar em Baixo Latim e nas linguas
romanicas a indeterminação do agente de um verbo, é
dar por sujeito a esse verbo o substantivo homo em Latim;
uomo em Italiano; hombre ou ome em Hespanhol; homem em
Portuguez; on em Francez; omul em Valaquio.

Taes substantivos assumem neste caso verdadeiro kharacter
pronominal, e equivalem exactamente ao man allemão.

Exemplos:

Baixo Latim. Ut inter tabulas adspicere homo non posset (1)1.

Sic debit (debet) homo considerare (2)2.

Italiano. Com’ uom fa del’orribili cose (3)3. Com’ uom
dice
(4)4.

Hespanhol. No puede hombre conocer (5)5. Es razon
que
ome guarde mucho aquello (6)6.

Portuguez. O que homem trás na phantazia (7)7. Segredos
que
homem não conhece (8)8.

Francez. On dit. On croit.

Valaquio. De este omul beteag.

O Francez é a unica lingua romanica que no periodo
actual ainda conserva vigente este modo de expressão: applica-o
334elle a ambos os generos, a ambos os números — On doit
être bon
. On doit être bonne. On se battit en désespérés.

Em Portuguez a palavra gente presta-se a uso identico:
Quando a gente tem tutor ou padrinho

II

Indica-se tambem nas linguas romanicas a indeterminarão
do agente de um verbo, unindo-se a esse o pronome reflexivo
se considerado como mera particula apassivadora.

Neste uso que remonta aos monumentos mais antigos do
dominio romanico, cumpre distinguir, dous casos:

1.°) Expressão impessoal

A) com verbos transitivos

a) Italiano. Si dice. Si crede, Si sa. Non si puó
dire
.

b) Hespanhol. Se dice. Se cree. Se sabe.

c) Portuguez. Diz-se. Cré-se. Sabe-se.

B) com verbos intransitivos

a) Italiano. Si va. Si vien. Si vive.

b) Hespanhol. Se anda. Se viene. Si vive.

c) Portuguez. Vai-se, Vem-se. Vive-se.

d) Valaquio. Se mearge. Se vine.

2) Expressão pessoal. N’este caso o verbo, que só transitivo
póde ser, regula-se pelo numero do sujeito.

a) Italiano. Il libro non si trova. I libri non si trovano.

b) Hespanhol. Se teme una borrasca. Si dicen muchas
cosas
.

c) Portuguez. Dá-se um baile. Plantaim-se arvores.

d) Francez. Cela se fait. La maison se bâtit.

Sendo o sujeito, como nós exemplos adduzidos, nome de
cousa, nada se oppõe a esta construcção; si é, porém, o sujeito
nome de pessôa ou mesmo de ser vivo, a expressão póde
ficar equivoca. Assim, não se dirá em Italiano — I fratelli
335se puniscono
; em Hespanhol — Las mujeres se mirám; em Portuguez
Ferem-se os soldados, etc.

Mas, como não ha confusão a temer, diz-se em italiano —
Laddove Cristo tutio di si merca
(1)9; em Hespanhol — Las mujeres
se conquislan por semejantes medios
(2)10; em Portuguez
Vencem-se os reis com lisonjas.

Segundo Diez a grammatica italiana prescreve o emprego
da voz passiva própria em vez desta construcção com si, sempre
que a phrase contem um pronome pessoal; ensina o douto
mestre que se deve dizer — Mi é stata tagliata la borsa, e
não Mi si taglió. Todavia Silvio Pellico escreveu: Mi si fece un
lungo interrogatorio
(3)11.

Ora o que resta a saber é si estas fórmas são realmente
passivas.

São, e á prova é que ás vezes empregam-se com o agente
claro.

Lê-se em Solis: Adorno-se luego por sus mismos criados
con las mejores alhajas de su guardaropa
(4)12. E em Cervantes:
En un instante se coronaron todos los corredores del patio

de criados e criadas (5)13.

E não é tudo: estas fórmas correspondem com exactidão
mathematica ás fórmas passivas latinas.

A voz passiva em Latim classico tem por principaes objectos

1) trazer a lume o nome que teria servido de paciente,
si a oração fosse construida em voz activa, nome
esse que na passiva figura como sujeito.336

2) indicar uma acção sem designação precisa do agente,
que a leva a effeito (1)14.

O primeiro destes usos só tem logar com verbos
transitivos; o segundo extende-se até os intransitivos.

São ambos tão communs nos escriptos latinos do
periodo classico, que não se faz mister apontar exemplos:
todavia adduzirei alguns do segundo

1) com verbos transitivos:

Subeatur ista quantacumque esl indignitas.
Quum de faedere agitatum esset. (Titus Livius).

2) com verbos intransitivos:

Vivitur ex rapto.
Nunc pedibus itur
. (Ovidius).

Itum est in consilio.
De provinciis decedatur
. (Cicero).

Si agro Samnitum decederetur. (Titus Livius).

Fica, pois, demonstrado que as fórmas romanicas construidas
com se, bem como as fórmas latinas passivas, servem
para exprimir a acção sem trazer a lume o agente.

Mas como servem construcções tão differentes para um
mesmo fim?

Não são differentes as construcções, e quem o vai prorvar
é ainda o estudo historico comparativo.;

As antigas linguas aryanas tinham tres vozes — a activa,
a media e a passiva.

A voz activa indica uma acção do sujeito, a qual passava
para um objecto; a media exprimia uma acção que, partida
do sujeito, recahia sobre elle proprio; a passiva traduzia uma
acção que, vinda de agente extranho, era recebida ou soffrida
pelo sujeito.

Volvendo os annos, a voz media confundiu-se com a passiva.337

Os tempos dos verbos em Grego, á excepção do primeiro
aoristo e do futuro, têm as mesmas fórmas para a voz media
e para a passiva.

O Latim teve de certo, para exprimir o sentido da voz
media, desinencias analogas ás gregas μαι, σαι, ται perderam-se
porém, deixando apenas os vestigios que hoje nos auctorisam
a tal supposição. Substituiu-as uma formação periphrastica: o
pronome reflexivo se juntou-se ás fórmas de todas as pessoas
dos tempos de acção incompleta da voz activa para constituir
uma nova fórma de voz media, que afinal veiu a ser a passiva
do periodo classico.

A tendencia das linguas aryanas foi sempre exprimir o sentido
da voz media por fórmas simples: os elementos, pois, da
composição fundiram-se em Latim, e constituiram palavras apparentemente
simples.

Tal fusão operou-se sob a acção das leis phoneticas peculiares
ao Latim.

Dessas leis tres ha que se faz mister conhecer para se poder
comprehender o processo da fusão:

1.ª) Entre duas vozes a modificação s converte-se em r.

2.ª) As vozes finaes não accentuadas caem,

3.ª) As vozes longas finaes abreviam-se.

Assim, pois, por exemplo, pela addição do pronome reflexo
se.

image lego deu legose, legore, legor; | legelegese, legere, | legetolegetose, legetore, legetor; | legantolegantose, legantore, legantor; | legamlegase, legare, legar; | legislegise, legire, legere; | legimuslegimuse, legimure, legimur.

Nas terceiras pessoas em t, como legit, legunt, encontra-se
338na voz passiva, entre a desinencia activa e o pronome reflexivo
apassivador se, um u:

image legit, legituse, legiture, legitur; | legunt, leguntuse, legunture, leguntur;

Provém de certo esse u de um o connectivo que se vc
tambem na desinencia grega to.

E’ verdade que em Latim não ha fórma correspondente á
fórma grega ελέετο; mas ás fórmas gregas λεγοιτο, λεγοιντο correspondem
as latinas legeto, legento, que, pela addição do pronome
se, e por transformações regulares converteram-se em legetor,
legentor.

Muito se poderia aprofundar este assumpto; basta, porém,
o que fica dito para provar que as fórmas passivas dos tempos
de acção incompleta do periodo classico latino foram fórmas
medias creadas pela addição do pronome se ás fórmas
activas correspondentes.

Ora, é exactamente o mesmo que se dá nas linguas romanicas:
a voz media ou reflexa converteu-se em voz passiva,
appropriando-se nas terceiras pessoas a exprimir a indeterminação
de um agente que se não especifica.

Ha ainda a notar que a voz reflexa, em romanico é tambem
empregada como equivalente da passiva nas primeiras e
nas segundas pessoas. E’ obvio o sentido passivo destas construcções:

Devoro-me de pezar.
Tu te pagas de lisonjas.

Mesmo em Inglez, lingua foncièrement germanica, ha um
passivo curiosissimo para exprimir a indeterminaçao do agente:

Piter is said to have spente usdessley his time.
We do not suffer ourselves to be trifled with
.339

Nesta identidade dos meios de expressão, dos processos linguisticos
dos modernos idiomas aryanos, não se enxergará
um effeito do atavismo, lei tão provada na evolução sociologica,
como está na biologica?

III

Em Latim e Grego a terceira pessôa do singular da voz
passiva, quando se tracta de indicar a indeterminarão do agente,
póde ser trocada pela terceira pessôa do plural da voz activa
sem sujeito claro: em Latim dicitur equivale a dicunt; em
Grego λεγνται tem a mesma força que λεγουσι.

O mesmo dá-se na mór parte das linguas romanicas, o
mesmo acontece em Inglez; em Italiano si dice vale tanto como
dicono; em Inglez credit is given to this e they give credit
to this
são expressões identicas.

Em Portuguez e Hespanhol são vernaculissimas construcções
como estas:

Mataram o general em Paris.
Me han convidado para las cinco menos cuarto
.

Este verbo no plural representa muitas vezes uma acção
que, pelo contexto, sabe-se ter sido exercida por agente do
singular.

Menina e moça me levaram da casa de meu pae pera longes terras (1)15
Una vira me han tirado
(2)16

Em ambos estes exemplos quem executou a acção do
verbo foi uma só pessôa.

Frequentemente dá-se em Portuguez á terceira pessôa do
340plural da voz activa um sujeito que, sendo incapaz de exercer
a acção do verbo, indica por isso mesmo a indeterminação do
agente.

Muitos a vida, e em terra extranha e alheia
Os ossos para sempre sepultaram
(1)17.

E os que neste sentido o acompanharam
Os ossos em penhascos transformaram
(2)18.

Objectar-se-á de certo que, a ser assim, só philologos e
linguistas poderão entender e explicar taes construcções.

Mas, por Deus, de accordo, de perfeito accordo!

Não ha necessidade de dar a uma pessôa razões falsas,
por isso que ella não póde entender as verdadeiras.

Ao estudante de grammatica basta que lhe ensinem o
uso correcto: quem se lembrou jamais de explicar a um menino
que começa a aprender a grammatica de sua lingua o
processo de derivação porque passaram as conjugações dessa
lingua para chegarem ao estado em que se acham?

Ninguem, porque seria desatino.

Pois o que se dá na lexeologia, porque se não dará na
syntaxe?

Apresenta-se a declinação, a conjugação como factos linguisticos;
pois apresente-se tambem do mesmo modo a construcção,
deixando-se de parte elucidações especiosas.

Explique e entenda um e outro facto, e todos os da lingua,
quem tiver estudado philologia e linguistica.

Subtilezas só engendram confusão: em metaphysica cada
341qual discreteia a seu modo, e ha sempre tantas sentenças
quantas são as cabeças.

As irregularidades, os idiotismos, os dizeres intimos de
uma lingua só pelo estudo historico comparativo podem ser
postos em luz, explicados, solvidos.

Campinas, 27 de Agosto de 1881.342

II
O artigo portuguez (1)19

Postas de parte por anti-historicas e falhas as opiniões de
Constancio (2)20 e de José Alexandre Passos (3)21, que entendem
vir o artigo portuguez das formas do artigo grego ό, ο (ho,
he), examine-se a doutrina de Diez (4)22, seguida por quasi todos
os romanistas.

Diz o grande mestre que o artigo portuguez foi outr’ora
identico ao artigo hespanhol, e que as fórmas lo, la abreviaram-se
por apherese em o, a. Diz mais — que se acha em Gallego
el ao lado de o; que esta fórma actual remonta tão alto
no romanismo que já é encontrada em documentos do seculo
343XIII; que as duas fórmas el e o viveram de par em Portuguez
muitos séculos:

Admittidos os factos da segunda parte das asserções do
mestre, porque são rigorosamente exactos, discuta-se a primeira
parle das mesmas asserções, o ensinamento de que lo
abrandou-se em o.

Porque esta apherese? Qual a sua razão de ser?

Nenhuma.

Si o o de lo fosse uma voz tonica, isto é, uma voz fortemente
accentuada, poder-se-ja ter dado o facto: sendo elle,
porém, voz atonica, sendo o artigo um verdadeiro proclitico,
era de boa razao, era mais, era glottico, era physiologico que
se conservasse, para apoio da voz fraca, a modificação kharacteristica
l.

Foi o que fez sempre o Francez, foi o que fizeram o Hespanhol
e o Italiano em certas emergencias.

O caso é que o artigo portuguez não vem de ille em
fórma nenhuma, mas sim de hoc, hac, formas ablativas de hic.

Que hic, hæc, hoc empregavam-se em Latim para distinguir
o genero dos nomes não ha que duvidar. Plinio o antigo,
seguido por seu sobrinho, Plinio o moço, e pelos grammaticos
posteriores propõe que se reconheça um artigo em hic, hæc,
hoc.

Na baixa latinidade encontra-se a cada passo ille como
fórma articular e pronominal, mas lambem não faltam exemplos
de hic.

Eis alguns desses exemplos tomados da collecção Diplomatae
et Chartae
, de que vem extractos no começo do segundo
volume do Diccionario de Frei Domingos Vieira:

«Que spontanea morte corporea de HOC seculo ad alia,
uita humana transferuntur. animas
… (Anno 870)».

Para mellior elucidação veja-se o seculo (seculo precedido
de o) em Moraes, artigo seculo.344

«Ranemirus presbiter qui hec notuit manu mea (Anno
897)».

«Et qui hunus ex nobis ad infringendum uenerit hunc
culmellos divisionis chareat omne sua portione in
has villas
desuper nommatos
(Anno 950)».

«Cum demone habeant participium qui hunc votum nostrum
irrumpere voluerint
(Anno de 983)».

«Moneo ut nemo presumerent in alia parte transferre
uindere uel donare sed in hoc loco predicto seruire
… (Anno
1041)».

Has uillas et ecclesias sicut in hanc testamento et in
«alias nostras scripturas sunt colligate
… (Anno 1058)».

Encontram-se; exemplos de ille alternado com hic na mesma
sentença:

«Núnc autem ordinamus ut ipsa uilla osgildi habeant
illa in ipso arcisterio sorores in slipendio illorum in uictum
et tolleratione per manu abbatis qui hunc cenobio ducatum
habuerit et reddat ad illas fideliter illo fructu per curriculus
annos cunctis diebus sceptis alia sua ratione que de
hanc monasterio sunt solitas accvpere
(Anno 1058)».

A fórma o, articular e pronominal alterna com lo nos primeiros
documentos escriptos em Portuguez:

«Venerum a Vila, e filati o porco ante seus filios e cumerum-s’si-lo.
Venerum alia vice er filarum o trigo ante illes,
er cumerum-s’o. Venerum in alia vice, er filiarum una
ansar ante sa filia, er cumerum-se-
a (Anno 1185 a 1211)».345

O, a, os, as, fórmas articulares já inconcussas no Portuguez
antigo, escrevem-se por vezes com h elymologico em documentos
do seculo XII.

«Hos alcaides non estem em corral com os VI sinon quando
enviaren por elos
.

Hos alcaldes non fagan en uno corral con VI, nin en
vernes, nin en sabado, si non fore por barallar sus vozes
».

(Foros de Castel Rodrigo, Liber Secundm, L. LI, anno
1209).

Ha a notar que parece haver tendencia a usar de o (hoc)
como artigo e de lo, illo (ille) como pronome :

«Super isto piazo ar ferum suo pleito e a maior ajuda
que illos hic conocerum que les acanocese Laurenço Fernandis,
sa irdade per preito, que a tevesse o Abate de Santo Martino,
que como vencessem outra que assi les desse de ista o
Abade, e que nunca illos leixassem d’aquella irdade
(Ąnno
1185 a 1211)».

«E las calonas que forem feytas en una alcalderia si
non la demandaren essos alcaldes de esse anno, hos outros
alcaldes que entraren non las demanden mays, mas demande
o quercloso o seu dereyto
».

(Foros de Castel Rodrigo, Liber Secundus, XXXXVI,
Anno 1209.)

Nos séculos subsequentes accentua-se o triumpho definitivo
das fórmas o, a, os, ás, quer como artigos, quer como
pronomes, e as fórmas vencidas lo, la, los, las desapparecem
de uma vez.

Em conclusão: porque recusar uma etymologia-de perfeito
accordo com o systema romameo, e, o que é mais, attestada
pela evidencia dos factos?346

Porque Diez ensinou que o vera de ille?

Mas isto é forçar a derivação, e o prespicassimo e honestissimo
Diez reconhece-o. Diz elle (1)23:

«Este artigo dá ares de ter alguma cousa de particular,
quasi de anti-romanico».

Ainda mais: em relação ao pronome provençal Diez reconhece
a verdadeira elymologiar da fórma o. «Para a terceira
pessôa, diz o venerando e saudoso mestre (2)24, faz-se mister
assignalar ainda o neutro o (Latim hoc) de um radical differente,
por exemplo S’ilh es folha, ja ieu non o serai».

Em vista do exposto relevar-me-á o douto professor de
Munich (3)25 que eu continue a manter nesta edição a elymologia
que dei na primeira ao artigo portuguez.

Capivary, 31 de Dezembro de 1884.347

III
Aoristo

As grammaticas francezas, seguidas por muitas portuguezas,
chamam perfeito definito a um tempo verbal que as grammaticas
inglezas appellidam indefinite, as italianas indeterminato,
é as gregas άόριστος.

Burnouf, procurando explicar esta contradicção, diz (1)26
«Le mot aoriste vient du grec άόριστος, et signifie indéfini, indéterminé.
Pourquoi donc le même temps s’appelle-t-il en français
défini et en grec indéfini? Le voici: en français la denomination
de ce temps est tirée de l’emploi qu’on en fait.
Or, on ne s’en sert que quand l’époque est fixée par quelque
terme accessoire, comme l’an dernier. En grec, au contraire,
sa dénomination est tirée de sa nature même. Or par
sa nature il est indéterminé; car si vous dites, je lus ce livre,
on vous demandera, quand? et c’est la réponse à cette
question qui seule déterminera l’epoque. Je lus n’offre donc
par lui même qu’une idée indifinie, indéterminée; la dénomination
d’aoriste est donc parfaitement juste. A la difference
du français le grec emploie souvent cette forme dans les
phrases où l’époque n’est marquee par aucun terme.»

Em relação ao nome do tempo Diez, é ainda mais positivo:
348«Os grammaticos francezes chamam-lhe definito porque,
segundo a opinião d’elles, esse tempo designa um momento
determinado — j’ecrivis hier —. E’ uma expressão mal
escolhida
, e que não convem ao seu emprego mais importante
como tempo historico. O Italiano diz pelo inverso indeterminato,
e o Grego designa um tempo absolutamente similhante
pela palavra άόριστος».

O tempo verbal em questão é o que indica em absoluto
a preteritividade do enunciado: eu lhe chamo com os Gregos
aoristo.

O tempo verbal que indica a reiteração preterita do enunciado
é um tempo acabado, completo: para este reservo eu o
nome de perfeito (perfectum, acabado, completo).

Ha ainda uma rasão histórica, melhor diria eu — atavica,
para dar a tal tempo o nome de aoristo. O perfeito latino, de
quem elle é filho legitimo, mais deve ser considerado, como
um artigo aoristo do que como um perfeito.

Diz Bopp (1)27: «Assim o perfeito latino, a que por sua significação
ter-se-ia bem o direito de chamar aoristo, nada
tem de commum com o perfeito grego e sãoskrito
. Eu creio
poder relacionar todas as fórmas delle ao aoristo sãoskrito,
mesmo sem exceptuar as fórmas redobradas como cucurri,
momordi, cecini. Temos, com effeito, aoristos como ácûcuram,
medio ácúcurê (raiz cur «roubar» e ἐπεφὸϱαδου, ἒπεφου
Cucurri, momordi, cecini perderam simplesmente o augmento,
como tambem o perderam scripsi, vexi, mansi, e como
tambem o perdeu o imperfeito. E’ esta auséncia de augmento,
que lhes dá o aspecto de perfeitos gregos e sãoskritos».

Isto posto, considerando

1) que em Sãoskrito e em Grego ha dous tempos aoristo
e perfeito;349

2) que o perfeito latino desempenha as funcções de
ambos

3) que o perfeito latino é um aoristo e não um verdadeiro
perfeito

4) que o tempo portuguez em questão é filho legitimo
do perfeito latino ou antes, é o mesmo perfeito latino
«com pouca corrupção»;

5) que a funcção exercida pelo tempo portuguez é essencialmente
aoristica;

Concluo que, sem restricções e legitimamente, se pode
chamar a esse tempo aoristo.

E para corroborar a conclusão tenho ainda duas auctoridades.

1.ª

Diez (1)28: «Os tempos do passado (romanico) comparam-se
melhor com os tempos do Grego do que com os do Latim.
O imperfeito corresponde ao imperfeito grego; o primeiro
perfeito (2)29 ao aoristo; o segundo perfeito (3)30 ao perfeito».

2.ª

Gaix de Saint Aymour (4)31: «En dehors de ce parfait par
redoublement, le latin connait deux autres parfaits d’une formation
toute differente; nous voulons parler des parfaits en
vi ou Benfey a reconnu le premier le parfait fui du verbe
fu (rac. bhu, exister, être), et aussi du parfait en si qu’il
fraudrait nommer
aoriste, né du verbe as, en latin es,
souffler, respirer, exister, être».

Capivary, 1 de Janeiro de 1884.350

IV
O grupo kh

Os Latinos, querendo representar o χ grego, que é κ aspirado,
pospozeram ao c, equivalente exacto do κ entre elles, o h,
signal de aspiração, constituindo o grupo ch.

Andaram bem, e χόϱος, ηχὡ, μουαϱα ficaram perfeitamente
representados por chorus, echo, monarchia.

Com o volver dos tempos alterou-se a pronuncia do Lartim,
e o grupo ch, em vez de continuar a representar sómen-te
o valor de χ grego, assumiu tambem em algumas palavras
de origem diversa um som particular, o som de x em faxa, e
transmittiu-se assim geminado em funcções a certas linguas
romanicas, tao Portuguez por exemplo.

Que fazer então para othographar nesta lingua palavras
oriundas do Grego, e nelle escriptas com χ? — Usar de ch latim?
Mas tem virtude de facto acima exposto, isso abre logar
a enganos deploraveis. — Representar o χ por outro symbolo,
por outro grupo que não ch, por c, por k, por qu? Mas isso
dá ás palavras um aspecto barbaro, obscurecendo as filiações
etymologicas.

O remedio é simples e intuitivo: é fazer o que fez Constancio,
o que fez Baudry, o que fez Regnier, o que fez Bopp,
o que fez Dübner, o que fizeram todos os hellenistas que representaram
kharacteres gregos com lettras latinas; e pospor
h a k e constituir, o grupo kh.

E tal grupo não é novo como o entende o sabio professor
351de München, Dr. von Renhardstoettner. Muito pelo contrario
é mais antigo do que o χ, é vetustissimo.

Ora attenda-se:

«L’alphabet latin n’a point de caractères pour exprimer
le son des explosives sourdes aspirées. Quand les Latins écrivaint
ph, ch, th ils ne faisaient que transcrire φ, κ, θ qui s’écrivaient,
avant l’invention de ces lettres aspirées, kh, nh,
th
(1)32».

«N’ell’ antichissimo alfabeto greco che appare nelle iscrizioni
delle isole di Thera e di Melos il χ è ancora espresso con
kh, ed anche φ con kh». (2)33

«Inoltre la metatesi accenata del’aspirazione, il kh, p. Χ,
ed il kh p. Φ, e la trasformazione de k, t, h in Χ, Θ, Φ, allorquando
adderiscóno ad uno spirito aspro, ci dimostrano che
l’elemento fonetico, il quale aggiungeva se all’esplosive sorde
nelle aspirate greche, era la mera aspirazione h, non la spirante
omorganica, come altri suppose (3)34».

Provada a legitimidade do grupo, estabelecido o seu antiquissimo
direito de cidade no dominio hellenico, que se póde
objectar de serio contra a sua adopção em Portuguez?

A sua extranheza de aspecto no meio dos grupos usuaes?

Mas isso é devido ao descostume, e uma vez que nos tenhamos
affeito, elle será para a nossa vista como um outro
grupo qualquer.352

O que se deve considerar é que a adonção d’esse grupo
nos traz duas vantagens reaes:

1.ª

Poupar-nos a erros vergonhosos de pronuncia quando encontremos
escriptas palavras que não conheçamos, ex.: «archote,
arkhonte; choro, khoro».

2.ª

Habituar-nos a reconhecer a filiação da palavra ao primeiro
relance, ex.: «archote de arseda (baixo Latim por arsa
tœda
), arkhonte de ἄϱχοντος; choro de ploro, khoro deχόϱος».

Capivary, 2 de Janeiro de 1884.353

V
Conjugações portuguezas

Quer o douto professor de München que haja em Portuguez
só tres conjugações.

Diz elle que pôr é uma contracção de poer, e que, por
isso, é um verbo da segunda conjugação.

Quanto á primeira parte do asserto nada ha a dizer: pôr
é de facto uma contracção de poer: Quanto a outra, o illustre
philologo não tem rasão.

Com effeito, que é conjugação praticamente fallando? E’
a maneira de flexionar-se um verbo Haverá, pois, tantas conjugações
quantas forem as maneiras mais geraes de flexionar-se
os verbos. Pôr e seus compostos, tendo fórmas exclusivamente
suas, constituem conjugação á parte.

E este systhema de arvorar em conjugação cada maneira
especial de flexionar um grupo de verbos é de tanto alcance
pratico, que até Brachet (1)35 chega a admittir cinco conjugações
em Francez, geminando a chamada segunda das grammaticas
usuaes.

A vigorar na pratica a theoria do sabio professor de München
haveria nas grammaticas latinas uma só conjungação, a
de flexão forte, a terceira cujo thema termina por u ou por
modificação vocalica; a primeira, a segunda e a quarta cujo
354thema acaba em a, e, i desappareceriam, filiando-se todas na
referida terceira da qual são contracções.

Amare effectivamente está por amāĕre, monere por monēĕre,
vestire
por vestīĕre.

E, havendo em Latim uma só conjungação, tambem em
Portuguez, tambem em Francez uma só haveria.

Sob o ponto de vista scientifico, historico, de facto assim
é: tanto em Latim, como em Portuguez, como em Francez ha
uma só conjuncção.

As quatro conjungações latinas, as quatro Portuguezas,
as cinco francezas de Brachet, são mais praticas do que theoricas,
mais de uso do que de sciencia.

Capivary, 2 de Janeiro de 1884.355

1(1) Gregorio de Tours, IV, 12.

2(2) Lupus, Codex Diplomaticas, pag. 527.

3(3) Dante, Purgatorio, XIV, 69.

4(4) Boccacio, Decameron, I, 7.

5(5) Marquez de Santillana, Proverbios, 70.

6(6) Las siete partidas del rey don Affonso el sabio, Tom. I,
pag. 76.

7(7) Bernardim Ribeiro, Menina e Moça, cap. VII.

8(8) Camões, Lusiadas, Cant. III, Est. 69.

9(1) Dante, Purgatorio, XVII, 51.

10(2) Meneses.

11(3) Le mie prigioni.

12(4) Historia de la conquista de Mejico.

13(5) Dom Quijote.

14(1) Guardia e Wierzeyski.

15(1) Bernardim Ribeiro, Menina e Moça.

16(2) Silva de romances viejos.

17(1) Camões, Lusiadas, Cant. V, Est. 81.

18(2) Gabriel Pereira de Castro, Ulisséa, Cant. V. Est. 91.

19(1) Este, bem como os subsequentes artigos, escrevi-os em homenagem
ao erudito dr. Karl von Reinhardstoettner: era dever meu
dar as razões da não acceitação de algumas das emendas que em o
numero 5 do «Literaturblatt für germanische and romanische Philologie».
de 1882 fez-me o douto professor.

Outras observações suas, que não são poucas, achal-as-á elle aproveitadas
nos logar es competentes.

Sobre a etymologia de algures, alhures, nenhures nada aqui adduzo,
porque a esse respeito escrevi em Francez uma memoria que vou
mandar para uma revista de philologia.

20(2) Novo Diccionario Critico e Etymologico.

21(3) Diccionario Grammatical Portuguez, Rio de Janeiro, 1865.

22(4) Grammaire des Langues Romanes, Traduction de Morel Patio
et Gaston Paris, Paris, 1874, vol. II, pag. 29 et suivantes.

23(1) Obra citada, logar citado.

24(2) Obra citada, vol. II, pag. 83.

25(3) DR. Karl von Reinhardstoettner.

26(1) Dübner Grammaire Elémentaire et Pratique de la Langue
Grecque
, Paris 1855, pag. 82, note.

27(1) Grammaire Comparée des Langues Indo-Européennes, Traduction
de M. Michel Bréal, Paris MDCCCLXXV, vol. 3º pag 179.

28(1) Obra citada, volume citado, pag. 256.

29(2) O defini das grammaticas francezas.

30(3) O indefini das sobreditas grammaticas.

31(4) La Langue Latine, Paris, 1868, pag. 191.

32(1) Guardia et Wierzeyski Grammaire de la Langue Latine, Paris,
1876, pag. 22.

33(2) Domenico Pezzi, Grammatica Storico Comparativa della Lingua
Latina
, Roma, Torino, Firenze, 1872, pag. 89, nota.

34(3) Idem, Ibidem.

35(1) Nouvelle Grammaire Française, Paris, 1878, pag. 105.